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SÉRIE NOVA CONSCIÊNCIA

Edgar Morin
Jean-Louis Le Moigne

A inteligência da complexidade

Tradução
Nurimar Maria Falei

Ano: 2000
ISBN: 9788585663421

,._1 editora fundação


/i' Peirópolis
/
Nova Conscíêncía é uma série de livros que faz um registro
dos novos rumos assumidos pelas diversas áreas do conhe­
cimento humano, a partir do resultado teórico e prático de
diversos pesquisadores e professores, dentro e fora das uni­
versidades, que, insatisfeitos com os paradigmas tradicionais,
ousaram investir na compreensão do mundo e do ser humano
por meio de diferentes ângulos de um pensamento mais
abrangente, transdisciplinar e complexo.
Nova Conscíêncía enfoca a ética e a solidariedade como valo­
res imprescindíveis nesta virada de milênio. E destina-se a um
público heterogêneo, formado por professores, pesquisadores e
estudantes das mais diversas áreas, e ao leitor em geral.

Nurimar Maria Falei


Marco Polo Henriques
Coordenadores

Série Nova Consciência


--

SUMÁRIO

Prefácio à edição brasileira 9


Prefácio de Jean-Louis Le Moigne
Uma nova reforma do entendimento....... ................................................................... ....................... 13
Capítulo l
Ciência e consciência da complexidade . .............................................................. ...................... 25 t-
Capítulo 2
A epistemologia da complexidade ................ ............................................ 43
2.1. Sobre a "paradigmatologia"......................................................................... 45
2.2. Debates e questionamentos epistemológicos 70
2.3. Complexidade: os desafios do Método........................................... 90
Capítulo 3
Universalidade, incerteza, educação e complexidade:
Diálogos com Edgar Morin................................................... .
3. 1 O homem e o universo, o homem e a ciência
Diálogo com Hubert Reeves e Monique Mounier-Kuhn. ........ 141
3.2 Complexidade, consciência do incerto
Diálogo com François Ewald ............. .............................................................. .......... 162
3.3 Educação e complexidade
Diálogo com Jacques Ardoino......... ...................... ................ ............. .. ..... . ......... ....... ...... 171
Capítulo 4
O pensamento complexo, um pensamento que pensa ........................... ...... 197
4. 1 . O paradigma da complexidade ................................... ....................... .................................. .... 199
4.2. A necessidade de um pensamento complexo....................... .... 207
J
Capítulo 5
Sobre a modelização da complexidade. ............................ 215
5. 1 Inteligência da complexidade, complexidade da inteligência.......... ................ 218
5.2 O exercício da inteligência: a organização ...... . .. 227
5.3 Complexidade artificial e jogos de inteligência.... .. 237

Conclusão
Da análise, da complicação à concepção da complexidade. ·············· 249
Posfácio
''Trabalhar para bem pensar. .. " - Pragmática e ética da compreensão. 255
Agradecimentos e referências ............................................ .. 261
-

PREFÁCIO À EDICÃO BRASILEIRA

Falar de Edgar Morin é sempre uma grande satisfação, mas é


também, indubitavelmente, uma grande responsabilidade. Considerado
um dos maiores pensadores deste século, Morin é acima de tudo uma
extraordinária figura humana. Sociólogo por título, filósofo, antropólogo,
historiador por formação, muitos outros títulos lhe são ainda atribuídos
graças ao seu saber ímpar e transdisciplinar, que mescla as ciências
humanas com as ciências físico-biológicas, as ciências da vida e da terra,
a literatura e o cinema para estudar e refletir sobre os problemas do
homem e do mundo contemporâneo.
Incansável pesquisador que nunca separa o objeto do conhecimento
da sua própria vida - para ele, o intelectual é também um ator-, Morin
é o pioneiro e o introdutor do pensamento complexo que se opõe a
qualquer forma de reducionismo e de determinismo, e assinala a dis­
junção entre as duas culturas: a cultura das humanidades e a cultura
científica iniciada no século passado e agravada no nosso. "A cultura
humanista é uma cultura genérica que, via a filosofia, o ensaio, o roman­
ce, alimenta a nossa inteligência geral, afronta as grandes interrogações
humanas, estimula a reflexão sobre o saber e favorece a integração pes­
soal dos conhecimentos. A cultura científica, de outra natureza, separa os
campos do conhecimento; ela suscita admiráveis descobertas, teorias
geniais, mas não a reflexão sobre o destino humano e sobre o vir-a-ser
dela própria enquanto ciência. A cultura das humanidades tende a se
tornar como um moinho, privado do grão das aquisições científicas
sobre o mundo e sobre a vida que deveria alimentar suas grandes inter­
rogações; a cultura científica, privada da reflexividade sobre os problemas
gerais e globais, se rorna incapaz de pensar a si própria e de pensar os
problemas sociais e humanos que ela coloca" 1.

l. Edgar Morin. La tête hie11 faite. Repen.rer la réfor111e - reformer la pt1w!e. Collcction "L'Histoire
lmmediace'". Éditions dn Scuil, Paris, 1999, p.18.

9
Propõe então uma reforma: "(... )Éa reforma do pensamento que permi­
tiria o pleno emprego da inteligência para responder a esses desafios e a ligação
das duas culturas disjuntas. Trata-se de uma reforma, não programática, mas
paradigmática, que concerne à nossa aptidão de organizar o conhecimento". E
complementa:
"(... ) A reforma do ensino deve conduzir à reforma do pensamen­
to e a reforma do pensamento deve conduzir à reforma do ensino" 2.
A inteligência da complexidade é um livro, um tecido cujos fios de
diversas cores se entrelaçam, oferecendo-nos uma rara oportunidade de
tomarmos contato, através de uma única obra, com vários textos, arti­
gos, conferências, colóquios e diálogos de Edgar Morin, de 1983 a 1998,
dispersos - alguns publicados em revistas e esgotados, outros inéditos -
que foram cuidadosamente aqui reunidos. Num verdadeiro exercício de
complexidade, uma gama de pesquisadores e profissionais de diferentes
áreas participam deste livro, dentre eles: o filósofo e educador Jacques
Ardoino, o astrofísico Hubert Reeves, Mounique Mounier-Kuhn, encar­
regada das relações parlamentares e públicas do CNRS (Centro Nacional
da Pesquisa Científica), Paris, e Jean-Louis Le Moigne*, responsável
pela publicação original deste livro, ele próprio contribuindo com dois
capítulos, um dos quais apresenta sua proposta pessoal sobre a modeli­
zação da complexidade. Num outro momento ainda, Le Moigne destaca
a necessidade de bem compreender a concepção, o ponto de partida, a inteligência
humana, para aprender a conceber a complexidade. Trata-se, sob o ponto de
vista de Le Moigne, da proposição de· uma ação inteligente para com­
preender o pensamento complexo proposto por Morin, justificando
desse modo, o título do livro: A inteligência da complexidade.
É no problema do conhecimento, do ponto de vista cognitivo, que
se centra a reflexão de Edgar Morin:
"Existe uma inadequação cada vez maior, profunda e grave
entre os nossos conhecimentos disjuntos, partidos, compartimen­
tados entre disciplinas, e, de outra parte, realidades ou.problemas
cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais,

2. Edgar Morin. op. cit.. p. 21


* Jean-Louis Le Moigne é professor emérito da Universidade de Aix-Marseille.
10
transnacionais, globais, planetários, enfim. Nessa situação tor­
nam-se invisíveis os conjuntos complexos, as inter-relações e
retroações entre as partes e o todo, as entidades multidimensionais,
os problemas essenciais" 3_

A inteligência da complexidade é, portanto, um documento, uma sín­


tese de alguns aspectos do pensamento de Edgar Morin e um ponto de
referência bibliográfico de inúmeros pesquisadores deste século, que,
conscientes da insuficiência dos paradigmas tradicionais do pensamen­
to, tentam buscar soluções e respostas mais adequadas às questões e aos
problemas do homem e do mundo contemporâneo.
No Brasil, país particularmente complexo, o pensamento de Edgar
Morin se expande cada vez mais através de suas obras, de suas constan­
tes participações em conferências, seminários e congressos, país por ele
escolhido para a realização do primeiro congresso lnterlatino do Pen­
samento Complexo, em 1998, e com o qual ele encontra particular
empatia e simpatia.
"Amar, chorar, rir, compreender", título de um livro de Edgar
Morin, expressa convenientemente a sensibilidade desse homem apai­
xonado pela vida, que, antes de mais nada, denuncia, se solidariza e por
vezes se enraivece com os sofrimentos e as injustiças do homem e do
mundo, que se emociona e que vibra com os pequenos detalhes da vida
cotidiana e que espalha raios de amizade pelos lugares por onde passa.
Convidamos a todos para uma caminhada através do percurso pro­
posto por Edgar Morin, homem e intelectual instigante, incansável
caminhante da Terra-Pátria, crítico e aucocrítico, sempre generoso e
atento a todas as questões do homem e do mundo contemporâneo.
Nos rastros dos versos do poeta espanhol, Antonio Machado, e que
tão bem ilustram sua caminhada, Edgar Morin nos diz:
"Foi o caminho, não que eu tracei para mim, mas que minha
caminhada traçou: Caminhante, não há caminho, o caminho se
faz com o caminhar".

Nurimar Maria Falei

3. Edgar Morin, op. cit.. p.13.

ll
PREFÁCIO
Uma nova reforma do entendimento:
a inteligência da complexidade"
11

Jean-Louis Le Moigne

Este livro é um farol, um ponto de referência que ajuda o


navegador e o cidadão a compreender melhor aquilo que eles fazem
e aquilo que eles gostariam de fazer. Tais pontos de referência balizam
a história de nossas culturas e de nossas civilizações, mas aparecem
sobretudo nos períodos de grandes transições. Estamos habituados
hoje em dia a nos reportar aos textos que se formaram na aurora dos
tempos modernos, há três séculos: o Tratado da reforma do entendimento
(Intelectus) de Spinoza, publicado em 1677; o Ensaio sobre o entendi­
mento (Understanding) humano de Locke, publicado a partir de 1690;
e os Novos ensaios sobre o entendimento humano de Leibniz, concluídos
em 1705 e publicados em 1765, além da Pesquisa sobre o entendimen­
to humano de David Hume (1758).
Essas referências chegam facilmente ao espírito quando nos
interrogamos, aqui e agora, sobre a legitimidade dos atos que evoca­
mos: o bem ou o mal, o verdadeiro ou o falso, o útil ou o perverso, o
prudente ou o insensato, o digno ou o iníquo ... Sem dúvida, não
lemos mais esses tratados sobre o entendimento humano, mas sua
evocação é tranqüilizadora. Muito, talvez' Gascon Bachelard já se
surpreendia de que O Discurso do Método, de que procederam simbo­
licamente há três séculos os apelos a uma reforma do entendimento, não
tivesse mais na "cultura moderna nenhum valor dramático" 1.

l. G. Bachelard. Le 11011vel e1prit 1cientifiq11e, PUI', 1934, p. 151.

13
Jean-Louis Le Moigne

Três séculos depois,


um "novo acontecimento intelectual"
Sem dúvida, é por isso que a progressiva mas relativamente rápi­
da emergência da "inteligência da complexidade" nas nossas culturas
contemporâneas é cada vez mais espontaneamente percebida como um
"acontecimento intelectual", tanto mais dramático que ela nos incita a
deixar o porto das certezas científicas, forjadas, que as grandes reformas
do entendimento nos asseguravam à força de martelo.
Reforma do entendimento (ou do "mérodo para bem conduzir a
razão" - Descartes-, ou do "caminho a seguir para chegar ao verdadei­
ro conhecimento das coisas" - Spinoza) a nos garantir que a ordem e o
progresso, o bem moral e a verdade positiva, a consciência e a ciência
caminhariam doravante, e eternamente, de mãos dadas.
Na verdade, para quem reconhecia no Ensaio sobre o entendimento
humano de Locke ou no Discurso sobre o método de estudos de nosso tempo de
Giambattista Vico (1708) uma outra leitura de nossos discursos sobre
o mérodo para bem conduzir sua razão nos negócios humanos, esse
pedestal de certezas não era tão sólido quanto se proclamava! Mas quem
os lia ainda? Leibniz não havia escrito seus Novos ensaios sobre o entendi­
mento para restaurar nas nossas culturas o primado do "princípio da
razão suficiente" que o empirismo reflexo ou o self-conscient 2 de Locke
traziam o risco de dessacralizar?
Acontecimento intelectual dramático que vivemos cada vez mais
coletivamente, atentos enfim aos pioneiros que para aí nos haviam con­
duzido, sem que soubéssemos compreendê-los (de Locke ou de Vico a
Paul Valéry, W. James ou Husserl - a lista é longa). Essa atenção cada
vez mais compartilhada sobre a irredutível complexidade do mundo,
que nenhum princípio de razão suficiente saberia recompor numa pres­
suposta harmonia preestabelecida (e que no entanro queremos com­
preender), não nos convida a prestar o devido testemunho?

2. O empobrecimento da tradução de ,e!fcon1âo11sn,sJ por "consciência", sobretudo quando esta pala­


vra é também entendida, em francês, como "espírito", está sublinhada por M. Parmancier, lntrod11c­
rion à l'mai de Lockt, PUF, 1998, p. 269.

14
A inteligência da complexidade

O projeto deste livro:


testemunhar um acontecimento
Em essência, eis o projeto deste livro: testemunhar uma tomada
de consciência que, após mais ou menos vinte e cinco anos, impregna
pouco a pouco nossas culturas e nosso entendimento - um tipo de coa­
lescência cultural, análoga à transformação progressiva de uma atmosfera
úmida em zona chuvosa. Tomada de consciência que podemos apresentar,
na aurora do século XXI, como a de uma Nova reforma do entendimento,
nova no sentido de que as gerações que nos precederam consideravam
os tratados sobre o "entendimento humano" (de Spinoza, de Locke ou
de Leibniz) como emblemas da mudança de era cultural que percebiam
na virada do século XVIII.
Certamente, essa tomada de consciência foi por muito tempo sub­
terrânea, "transformando o subsolo antes que a superfície fosse afetada" 3.
Mas, tendo tido a chance de ser, há uns trinta anos, um dos "observa­
dores" desse ressurgimento esperado e sempre incerto, encontrei-me na
posição de testemunha atenta e apaixonada dessa surpreendente aven­
tura do "entendimento humano", da qual Edgar Morin é, há cinqüenta
anos, o herói incontestável e, ao mesmo tempo, o criador, o autor, o ator
e o animador.
Testemunha e partidário, pude conferir durante essa trajetória
alguns textos que guardam em si traços ainda pouco ou mal referencia­
dos, que, no entanto, são ou serão constitutivos dos "novos ensaios sobre a
compreensão humana". Na verdade, existem outros, e os companheiros de
Edgar Morin nas culturas latino-americanas, eslavas, escandinavas ou
asiáticas nos indicarão outros sinais de referência, acumulados ao longo
de suas peregrinações na Terre-Patrie. Mas, já que se verifica ser relati­
vamente fácil reunir muitos daqueles que se formaram nas culturas
francofônicas (às quais tinha acesso com mais facilidade), não tinha eu
o dever de testemunhar, de prestar contas da emergência, ou, antes, do
ressurgimento, dos novos ensaios sobre a compreensão humana, compreensão
que aqui nos propomos interpretar, dada a sua contribuição ao enrique­
cimento e à renovação da nossa inteligência da complexidade de nossas
relações com o universo e com o outro?

3. E. Morin, na Terre-Patrie (Éd. Scuil, 1993, p. 216), reconheceu aqui o ""princípio da toupeira".

15
Jean-Louis Le Moigne

"Um novo entendimento":


a inteligência da complexidade
Inteligência da complexidade? Sim, visto que é por intermédio
de uma incessante meditação sobre a complexidade da consciência- ato
refletido e inteligível e no entanto irredutível a uma ciência acabada-,
e ainda sobre a complexidade dessa dupla que queremos inseparáveis,
ciência e consciência, que somos impelidos a retomar coletivamente o
apelo a um "novo começo"4, que simboliza hoje o emblema de uma
"nova" reforma do entendimento.
Uma inteligência da complexidade não considerará mais satisfató­
ria a "razão suficiente" e dedutiva de Leibniz e a de seus seguidores-
aquela que, sabendo calcular, pretende prescrever -, mas clamará,
antes de tudo, a "compreensão humana" de Locke, a que, sabendo
"que também é preciso a sombra para ver", tentará descrever "traba­
lhando para o bem pensar" 5.
Uma inteligência da complexidade que prestará testemunho à nossa
consciência do "subdesenvolvimento da nossa consciência" no "ato de
conhecimento", que será ascese epistemológica e "obstinado rigor"
(Leonardo da Vinci) e que incentivará o cultivo de uma "ética da com­
preensão e da deliberação".
Uma inteligência da complexidade que exigirá de si própria atenção
à percepção e à descrição dos contextos em que ela é exercida, dedican­
do-se a produzir conhecimentos que nos ajudem, antes de tudo, mais
do que a prescrever, a descrever ("Conhecer é descrever para reencon­
trar" 6, lembra-nos Bachelard).
Uma inteligência da complexidade que, ciente de seu caráter
teleológico, privilegiará o exercício de uma racionalidade crítica,
consciente do fato de que a idéia de meio para alcançar um fim trans­
forma essa finalidade e, assim o fazendo, já sugere, irreversivelmente,
um outro meio...

4. Alusão ao tículo ela obra publicada sob esse título em 1991 por Morin, em colaboração com
G. Bocchi e M. Ceruti (Écl. Senil).
5. Pascal. Pemée.r, 200-347.
6. G. Bachelard. Em,i 111r la connaimmce approchie. Écl. Vrin, 1927, p. 9.

16
fF

A intel.igência da complexidade

Uma inteligência da complexidade que assumirá "a ecologia da ação


humana" (Edgar Morin), sabedora do fato de que todo ato que se com­
promete sempre engendrará efeitos não previstos e freqüentemente
indesejados, algumas vezes até mesmo perversos.
Uma inteligência que assumirá seu caráter pragmático, divulgando
sua consciência da contingência sociocultural de todo conhecimento
que se queira absoluto, aquilo que só coma/ainda mais obstinada a pro­
cura da verdade e do bem, aqui e agora.
Uma inteligência cônscia de que "a ciência contemporânea faz entrar
o homem num mundo novo. Se o Homem pensa a ciência, ele se reno­
va ao mesmo tempo como homem pensante" 7.
Refletindo sobre a complexidade epistêmica da cognição, o "conhe­
cimento do conhecimento" 8, Edgar Morin nos convida a meditar sobre
"a complexidade paradoxal da consciência... ao mesmo tempo subjetiva
e objetivante, distante e interior, estranha e íntima, periférica e cen­
tral, epifenomenal e essencial", reencontrando os traços surpreendentes
da "aventura do conhecimento" nos relatos aventurosos do conheci­
mento científico: desde que a ciência procure negar a complexidade da
nossa relação com o mundo, para explicá-lo melhor , assegura, ela
parece atrofiar a cultura que dela tinha a consciência humana. O
"heroísmo da razão" (Vico, Husserl), que nos convidava a revelar os
desafios da complexidade, transforma-se então numa "barbárie da
razão", cujo século que termina nos deu novamente algumas trágicas
ilustrações. A incultura epistemológica contemporânea de muitos
cientistas e de muitos responsáveis por decisões de ação coletiva não
nos deve servir de sinal de alarme1
Vou evocar um incidente banal que me levou a socorrer-me de Edgar
Morin e a retomar o projeto desta obra e desta meditação sobre a com­
plexidade do laço existente entre ciência e consciência: o diretor de uma
grande revista de vulgarização científica, interrogado sobre a mediocri­
dade epistemológica do artigo de um acadêmico que ele havia publicado,
respondeu-me sem preocupação aparente: "Mas os jornalistas científicos
não precisam ter cultura epistemológica! Não é trabalho deles. E nós

7. G. Bachelard. Le malériafúme raliormel, PUF, 195 3, p. 2.


8. E. Morin. O Método, e. 3, Ed. Sulina, 1999.

17
Jean-Louis Le Moigne

não temos de discutir a qualidade epistemológica dos propósitos dos


acadêmicos acolhidos por seus pares".
Como então poderão eles estar conscientes da "barbárie da razão"
que vai difundir a ciência sem consciência, ou melhor, a ciência auto­
mutilada que não sabe que não há ciência senão com consciência de sua
própria complexidade, complexidade irredutível e inteligível, presente
na relação de cada ser humano com o mundo que ele produz e que o
produz :> Uma ciência consciente, capaz de invocar o "heroísmo da
razão" e o "fim das certezas".

As "novas" ciências da complexidade


reivindicam uma "ética da compreensão"
Talvez assim reconstruam-se as "novas ciências da complexidade"
que sabem que "a reflexão sobre um objeto pelo sujeito toma sempre a
forma de projeto" 9_ Atentas ao seu projeto civilizatório, elas ponderam
sobre as descrições agora "disciplinadas" de seus objetos, impregnando­
os. Os métodos que elas colocam em ação para produzir e legitimar os
conhecimentos não adquirem sentido senão pela referência explícita a
esse projeto. O uso a priori de um "método científico" não cria, ipso
facto, os conhecimentos científicos!
Configuram ciências pela consciência que possuem da complexidade
desse projeto em permanente transformação, e consciências pelos conhe­
cimentos que moldam heroicamente a partir da complexidade do
"mundo da vida e da condição humana". Por essa consciência, os concei­
tos e as teorias desenvolvidas - do caos determinista aos fractais ou aos
algoritmos genéticos - deixarão de ser antes de tudo prescritivos e pre­
tenderão ser principalmente descritivos, atentos aos atos e às experiên­
cias, antes que aos objetos e suas essências evanescentes, convertendo-se
em produtores de inteligibilidade e de possibilidades que com elas
advêm, antes que em leis necessárias que se devam apenas analisar.
Por essa consciência do desenvolvimento de uma ciência da complexi­
dade, por essa ciência consciente de sua complexidade, e sabendo, enfim,
que o pressuposto cientificamente verdadeiro não se confunde com o

9. G. Bachelard. Le 11011vel espril Jciemifiqm. PUF, 1934, p. 15.

18
A inteligência da complexidade

pressuposto do bem moral, se constituirá talvez essa "ética da compreen­


são" ... que mobiliza a inteligência para enfrentar a complexidade da vida,
do mundo, da ética ela-mesma (Edgar Morin) to_ Os julgamentos de fatos
podem ignorar que eles incorporam alguns julgamentos de valores e que
o "tudo feito já é uma teoria", A razão é heróica quando se percebe instru­
mental, permitindo a investigação 11, mas torna-se bárbara quando se
quer como juízo supremo no tribunal do entendimento humano.

A respeito da construção do "ensaio


sobre a inteligência da complexidade"
Quando, em 1982, Edgar Morin publicou a primeira edição de
Ciência com consciência, em que coligia os estudos que havia prepara­
do, a que se seguiu a formação do Paradigma da Complexidade (em
que se expunham os primeiros tomos de O método - tomo 1, 1977;
tomo 2, 1980), ele suscitou inúmeras vezes uma nova tomada de
consciência a respeito desse "erro fatal" já denunciado por Husserl
em 1935 12 ("erro fatal segundo o qual é a ciência que torna o homem
sábio") e por tantos outros antes dele. Assim Locke, citando Mon­
taigne em seus Pensamentos sobre a educação: "Não basta unir o saber
(a ciência) à alma (à consciência); é preciso incorporá-la àquele; não
basta regá-lo, é indispensável com ela tingi-lo".
"Ciência e Consciência da Complexidade"? Podemos tomar cons­
ciência da irredutível complexidade da nossa relação com o mundo sem
nos esforçar em descrevê-la e interpretá-la, ou, dito de outro modo, sem
conhecê-la? Projeto do espírito, "tomada de consciência", a complexi­
dade torna-se objeto de conhecimento científico. Talvez ela venha a ser
seu "ideal", assegurava Bachelard, evocando de bom grado "o ideal da
complexidade da ciência contemporânea ... e a idéia da complexidade
dos fenômenos elementares, colocando-a frente a essa epistemologia
cartesiana", que esquece que "o simples é sempre o simplificado" 13.

10. E. Morin. Mem demónios, Bertrand Brasil, 1997,


11. J. Dewey. Logiqm, théorie de l'enq11ête. 1938, trad. francesa de G. Dclcdalle, PUF, 1993.
12. La crise des sciences ettropéenes, p. 371.
13. Le nottvel esprit scientifique, 1943, pp. 147 e 143.

19
Jean-Louis Le Moigne

A atenção, e muitas vezes a surpresa epistemológica que suscitou


Ciência com consciência desde o seu aparecimento, sustentava aquilo que
Edgar Morin nos pedia que transformássemos - não somente a "tintura"
ou a cor da ciência, mas igualmente o olhar que a ela dirigimos: seu tecido
é ondulado, difícil de descrever de um só ponto de vista, e mais traba­
lhoso ainda de cortar, pois se enrola e se desdobra de inúmeras maneiras,
convidando-nos a "descobrir o mundo da vida que nos é cotidianamence
familiar e, portanto, cientificamente desconhecido" (Husserl 14).
A última parte de Ciência com consciência já se intitulava "Pelo pensa­
mento complexo", um convite para que desenvolvêssemos, consciente e
cientificamente, o paradigma da complexidade, a expressão, que então
ganhava corpo nos dois primeiros cornos do Método, acabava de aparecer
e iria desenvolver-se nos anos seguintes. Ela nos propunha um nome
para transformar em projeto esse sonho quase inefável que evocava, no
século XIX, uma bela reflexão de Michelet: "Ciência e consciência se
enlaçaram" 15. Não pode hoje o sonho romântico tornar-se um projeco
pragmático caso aceitemos essa ascese do entendimenco, essa "crítica
epistemológica interna" (Piaget), que nos libera enfim do dualismo
perverso que desejava não apenas distinguir, mas sobretudo separar em
duas culturas o conhecimento da experiência, a ciência, da experiência
do conhecimento, a consciência?
Essa surpresa e essa esperança suscitaram pouco a pouco, a partir de
1982 (Ciência com consciência aparece dois anos após o tomo 2 do Método),
um tipo de propagação de ondas de tipo epistêmico, se quisermos aceitar
essa imagem incongruente: círculos múltiplos, mais marginais que des­
viantes, constituíram-se e desenvolveram-se nas mais diversas instituições
sugerindo questionamentos do tipo epistemológico, interrogando ao
mesmo tempo a legitimidade de um discurso científico, freqüentemente
arrogante, e a incultura científica de moralistas e de políticos, na maioria
das vezes resignados. Uma das manifestações desse fenômeno foi a orga­
nização de um colóquio - o Clube de Epistemologia da Universidade
de Marselha, nos dias 6 e 7 de dezembro de 1982, a partir da obra de
Edgar Morin. Convidado a desenvolver o projeto de Ciência com consciência

14. La t'rÍJe des Jcienas wropéeneJ, p. 496.


1 5. La Bible d, l'H11111a11i1l, p. 363.

20
A inteligência da complexidade

em termos epistemológicos, debateu com os universitários oriundos de


várias disciplinas que ali estavam reunidos espontaneamente, graças ao
apoio do professor Atias, que então presidia o Clube de Epistemologia,
por ele fondado pouco antes.
O interesse desses intercâmbios, no decorrer dos quais Morin intro­
duziu, em particular pela primeira vez, o conceito de Paradigmatologia,
que, aliás, ele iria refinar nos anos seguintes (no tomo 4 do Método,
1990), foi tamanho que se aventou a idéia de editar as atas dali resul­
tantes. A compilação apareceu em 1984 sob o título Ciência e consciência
da complexidade, permutas com Edgar Morin 16.
As duas conferências de Morin dos dias 6 e 7 de dezembro de
1982, e a primeira discussão que elas suscitaram calorosamente, cons­
tituíram o essencial dessa obra, completada por dois diálogos do autor
com J. Ardoino e H. Reeves, publicados pouco antes, mas ainda
pouco difundidos. A receptividade desse dossiê, que não era inicial­
mente destinado ao grande público, revelou novamente a surpresa e a
curiosidade que suscitava o apelo de Ciência com consciência: apelo à
mudança do olhar sobre o nosso próprio entendimento, que Morin
argumentava de maneira tão estimulante - a inteligência da complexi­
dade deve ser construída, é um caminho a ser feito 17 nesta religação 18
deliberada e exigente da ciência e da consciência complexa.
No decorrer dos anos, inúmeros encontros impulsionaram essa
reflexão coletiva, cujos traços são encontrados nas obras e artigos de
Morin e de muitos companheiros que se unem, de múltiplas formas, a
esse exercício de inteligência humana. Entre elas, as atividades do Pro­
grama Europeu de "Modelização da Complexidade", constituído sobre
um projeto tanto cívico quanto epistêmico ("consciência e ciência da
complexidade") a partir de 1988, em estreita ligação com a Associação

16. Coordenação de Acias eJ.-L. Le Moigne, Éd. de la Librairie de l'Université d'Aix-en-Provence, 1984.
l 7. "Cc11ninante,, no hay c,múno, se hace e/ camino ai andar." Esses versos de Antonio Machado, que
Morin evocava desde as primeiras páginas do Método para salientar que "o método só pode ser for­
mado durante a pesquisa", tomaram-se o lema do Programa Europeu de "Modelização da Com­
plexidade".

18. Religação' A palavra é, acredito eu, criada ou restaurada por M. Bolle de Bal em Voyage a11 coeur
des JcienceJ hwnaines, de la Reliam<, Éd. L'Harmatran, 1996. Ela exprime a conjunção do ato e do resul­
tado de religar e de se religar, de tornar a ligar.

21
Jean-Louis Le Moigne

para o pensamento complexo, que se desenvolveram por intermédio de


variados exercícios de transformação consciente de experiências em ciên­
cias, e vice-versa 19.
Aqueles encontros me permitiram assegurar mais livremente ainda as
funções de "observador" e me .incitaram a apelar uma vez mais a Edgar
Morin que realizasse esta obra. Sobre o núcleo inicial da primeira inte­
ração de Ciência e consciência da complexidade, suscitada em 1982 pelo
Colóquio com Edgar Morin, tornou-se possível ampliar a "clareza operató­
ria" 2º originada pelos exercícios coletivos de "inteligência da complexi­
dade". Os diálogos que esse colóquio havia reativado se processavam de
várias maneiras e em lugares diversos, no decorrer dos quinze anos
seguintes, deixando como marcos de rastreamento desse caminho ("el
camino") textos que iluminam os rios, sugerindo novas explorações. Tex­
tos de acesso freqüentemente incômodo, mas ainda assim disponíveis
para os cidadãos atentos ao sentido de suas ações: como quando se des­
dobra um tecido muito dobrado e se deseja ver melhor os mil reflexos
furta-cores e a harmonia das cores, a inteligência ativa da complexidade
elucida a experiência dessas reflexões, religando ciência e consciência. Os
desafios da complexidade nos convocam de maneira urgente ao exercício
dessa inteligência... "do bom uso da razão nas questões humanas" 21.

A arquitetura da inteligência da complexidade


A arquitetura da obra se desenha desde logo sobre o modo do
desdobramento, mais do que sobre o da decupagem: partindo do
"núcleo iniciador" (os três textos de Ciência e consciência da complexidade
de 1984), foram reunidos vários textos de Edgar Morin que assinalam
essa navegação (entre 1983 e 1998), retendo, é claro, os propósitos
(artigos ou diálogos) hoje em dia de difícil acesso. Um deles, o mais
recente - 1999- (Complexidade - os desafios do método, capítulo 2.3).

19. Função de vigília epistêmica proporcionada por encontros, oficinas e publicações diversas, cujo
,ite na Internet - www.mcxapc.org - conserva a marca de consulta atual.
20. Fórmula de Bachelard em No11vel e,prit 1cientifiq11t, p. 148. Diremos sem dúvida hoje: a proble­
mática.
21. H. A. Simon, Ret11on in h11111t1n ajft1irI, Scanford Universicy Press, 1983.

22
A inteligência da complexidade

São textos que compartilham a mesma intenção criadora: a aposta e a


ética da compreensão, que é fazer ciência com (cum scientia = consciência),
com o outro e consigo mesmo, self-conscience.
Compreensão que seja a "conscientização do conhecimento e que
pode-se transmitir como qualquer outro conhecimento " 22. Transmis­
são que se faz principalmente pelo exercício da inteligência e, portanto,
da "representação reflexiva", que entendemos hoje pela prática da
modelização (que vamos chamar de "sistêmica'' para não reduzi-la à
"modelização matemática", tal como entendida de maneira restrita hoje
em dia). Para ilustrar esse argumento, retomei no último capítulo um
estudo sobre a modelização da complexidade (cuja primeira versão
havia sido redigida em 1984, no cadinho de encontros entre Aix-en­
Provence e Montpellier, com Morin e H. A. Simon23 ). Estudo esse que
se presta a identificar os modos da representação consciente dos quais
podemos dispor para descrever inteligivelmente, através de sistemas de
símbolos, as situações percebidas como complexas (irredutíveis portanto
a um modelo acabado) e no seio das quais nós raciocinamos.
Assim, este livro se torna ele mesmo exercício da inteligência da
complexidade, pelo qual, ao mesmo tempo que se forja o leitor; este se
faz arquiteto 24 ou, melhor ainda, urbanista: o empreendimento não
adquire sentido senão nos contextos nos quais ele foi formado, aquele
dos múltiplos encontros e diálogos. Diálogos que, de qualquer manei­
ra, constroem a paisagem urbana, no interior da qual se desenha meta­
foricamente esse edifício. Paisagem que podemos facilmente tornar
visível descrevendo aqui a única arquitetura dessa obra. No entanto, a
contribuição de três autores e testemunhas dessas interações constituti­
vas permitirá sugerir esse contexto: os três capítulos formados pelos
diálogos de Edgar Morin com H. Reeves e M. Mounir-Khun, com F.
Ewald e com J. Ardoino ilustram esses questionamentos em que se

22. E. Morin. O Método, t. 3, Ed. Sulina, 1999.


23. Essa primeira versão foi apresentada, sob o título de ''Inteligência da complexidade", no
Colóquio da Universidade das Nações Unidas sobre "as ciências e as práticas da complexidade",
em Montpellier, em 1984.
24. H. A. Simon, 'Tarchitecture de la complexité". Esse texto, publicado em 1962, foi retomado em
edições sucessivas no The Sciences of the Artificial, MIT Press, 1969-1997.

23
Jean-Louis Le Moigne

forma a nossa inteligência da complexidade. Com Morin e o leitor pen­


sante, reafirmamos a cada um desses "dialogadores" a nossa gratidão
pela oportunidade de participar de um empreendimento comum: fazer
ciência, fazer ciência com, cum scientia, construindo nossos caminhos no
interior, através de e pela inteligência da complexidade.

24
Capítulo 1
Ciência e consciência
da complexidade
Edgar Morin
ciência com consciência se refere evidentemente à célebre frase de
Rabelais, frase pedagógica por excelência: "Ciência sem consciência é
somente a ruína da alma". Na Renascença, quando nasce a Ciência
moderna, antes mesmo que ela tenha sua autonomia e seu grande
desenvolvimento, na visão humanista da Renascença, a sociedade sabe
que a Ciência tem sempre qualquer coisa a ver com a consciência, no
sentido ético e moral do termo. Um puro saber operacional é somente
a ruína da alma. Mas deve ser bem entendido que Rabelais não pensava
num puro saber operacional tal como aquele manipulado, por exemplo,
em uma bomba termonuclear, que, mais do que a ruína da alma, talvez
seja também a ruína do Ser.
Mas essa óptica de Rabelais, essa visão antiga, não era necessário des­
menti-la para que se pudesse desenvolver a ciência moderna? Era pre­
ciso que o conhecimento científico, para se desenvolver, colocasse como
princípio fundamental a disjunção absoluta entre o julgamento de valor
e o problema de dever moral.
Isso equivale a dizer que o conhecimento deve ser tornado público e
pesquisado quaisquer que sejam as conseqüências morais. O sentido
desse princípio é efetivamente aquele de uma vontade autónoma da
pesquisa científica com relação ao enorme poder que representava então
a Igreja, poder de inibição que dizia: "Não vá pesquisar nessa direção
porque ela contradiz a Bíblia", ou: "Não vá pesquisar nessa direção pois
isso já está escrito em Aristóteles e a teologia integrou Aristóteles. Nós
já temos a visão do mundo".
Em outras palavras, o conhecimento científico se coloca então de
maneira absolutamente necessária como conhecimento amoral: ele
implica uma disjunção entre ciência e consciência no sentido moral
do termo. Mas a essa disjunção se acrescenta uma segunda, formulada
de maneira exemplar por René Descartes. Com efeito, Descartes, ao
propor o problema do conhecimento, determina dois campos de
conhecimento totalmente separados, totalmente distintos. De um
lado, o problema do Sujeita, do ego cogitans, do homem que por
assim dizer reflete sobre si mesmo, e esse problema vai ser, deve ser
aquele da filosofia. De outro lado, o problema daquilo que ele chama
de res extensa, quer dizer, dos objetas que se encontram num espa­
ço, e o universo da extensão do espaço é aquele oferecido ao conheci­
mento científico.

27
Edgar Morin

Efetivamente, o desenvolvimento da Filosofia e da Ciência seguiu a


direção fixada por Descartes. A filosofia tornou-se cada vez mais uma
filosofia reflexiva, do sujeito que por si próprio tenta sondar-se, conhe­
cer-se, enquanto o conhecimento científico fundou-se excluindo por
princípio o sujeito do objeto do conhecimento. E essa exclusão podia
ser desse modo legitimada. O sujeito é considerado como qualquer
coisa de parasita no sentido de que ele faz intervir a subjetividade de tal
e tal pesquisador. Com efeito, há pesquisadores de opiniões diferentes,
de países diferentes, de classes diferentes, de metafísicas diferences, e é
isso que deve ser retirado, a sua subjetividade.
Mas como retirá-la?
Evidentemente, com o método experimental ou pela observ�ção, o
que faz com que, se uma observação ou uma experiência for confirma­
da por pessoas que são de classes, de raças, de opiniões diferentes, ela
seja objetiva. Nesse momento, o problema do sujeito não tem nada a
ver com o conhecimento científico, que, ao extrair, detectar, isolar a
objetividade dos dados e dos fenômenos, torna-se um conhecimento
que reflete a realidade.
Desse modo, opera-se uma ruptura decisiva entre a reflexividade filo­
sófica, isto é, a possibilidade do sujeito de pensar e de refletir, e a obje­
tividade científica. Encontramo-nos num ponto em que o conhecimento
científico está sem consciência. Sem consciência moral, sem consciência
reflexiva e também subjetiva. Cada vez mais o desenvolvimento extraor­
dinário do conhecimento científico vai tornar menos praticável a própria
possibilidade de reflexão do sujeito sobre a sua pesquisa.
Desde o início existe o problema bem conhecido da especialização,
que se tornou o da hiperespecialização; o fenômeno da hiperespecializa­
ção faz com que um verdadeiro mosaico, um puzzle de objetos, cerrados,
fechados, disciplinares não possam se comunicar uns com os outros; a
reflexão de uma disciplina, de um objeto a outro, se torna muito difí­
cil. Mas nessa especialização produz-se um outro fenômeno, que é a
fragmentação, depois a desintegração das realidades molares com as
quais são confrontadas nossas vidas e nossas reflexões como o indivíduo,
a subjetividade, o homem, a sociedade, a vida.
Por quê? Como'
Tomemos como exemplo a biologia. François Jacob diz muito justa­
mente: "Não estudam mais a vida nos nossos laboratórios".

28
r
A inteligência da complexidade

Efetivamente, estudam as interações moleculares, estudam os com­


portamentos na cadeira de ecologia, estudam os processos da evolução
na cadeira de teoria da evolução... O problema da vida parece ter-se tor­
nado secundário quando nos damos conta de que não existe substância
viva, mas de que os seres vivos são simplesmente seres constituídos da
mesma química que tudo aquilo que existe no mundo físico. Eles têm
simplesmente uma organização diferente. Então, nesse momento, a
vida como princípio, como essência, desaparece.
Mas, de repente, a biologia molecular negligencia o problema que
reaparece no nível da originalidade da organização vivente e d�s qua­
lidades emergentes que ela produz. Desde então, aquilo que é negli­
genciado não é somente o mito metafísico do "princípio vital", mas o
problema teórico fundamental da auto-organização vivente.
Desse modo, nas ciências humanas, o homem desaparece.
Vocês devem conhecer a famosa frase de Claude Lévi-Strauss: "A fina­
lidade das ciências humanas não é revelar o homem, mas dissolvê-lo".
Realmente, trata-se de estabelecer princípios ou regras estruturais
que permitam compreender o funcionamento do casamento, da econo­
mia, etc. A ciência econômica não tem necessidade da noção do
homem. Sem dúvida, ela teve necessidade durante um tempo de um
homem abstrato, que foi chamado de Homo oeconomicus, mas pode
até mesmo dispensá-lo de agora em diante. A demografia não tem
necessidade da noção de homem. A história, se é uma história feita de
processos e que elimina_ o papel aleatório dos indivíduos, dos reis, dos
príncipes, pode finalmente epifenomenalizar a noção de homem.
Então, evidentemente podemos chegar às ciências em que a vida, o
homem, a sociedade não existem. Chega-se a uma situação inteiramen­
te oposta àquela que reinava na cultura humanista do século XVII ou
do século XVIII.
O que é cultura humanista? É a cultura que continuamos mais ou
menos a aprender no colégio, marcada pelos nomes de Montaigne, Vol­
taire, Rousseau, Diderot... E qual é o conveniente dessa cultura' É efe­
tivamente interrrogar-se sobre o homem, a sociedade, o destino, a vida, a
morte, o outro lado. É uma cultura que se fundamenta sobre um número
de conhecimentos ou informações limitadas. Evidentemente, desco­
briu-se a América, sabe-se que existem os índios, sabe-se que existe a
verdade deste lado dos Pireneus e o erro do outro lado, e sabe-se que os

29
Edgar Morin

costumes são diferentes ... E lá embaixo existem reflexões muito ricas


que conduzem a conclusões diferentes segundo os autores. É uma cul­
tura que permite a organização das informações muito diversas, dispo­
níveis no mercado intelectual, que são acessíveis em princípio àquilo
que nós chamamos de homem honesto, aquele que pode ter acesso à cul­
tura. É uma cultura que permite reflexão e medicação. É uma cultura
que permanece num nível de problemas em que o conhecimento está
ligado à vida de cada um e à sua vontade de se situar no universo.
A nova cultura científica possui uma natureza diference.
Por quê?
Porque se fundamenta cada vez mais sobre uma enorme quantidade
de informações e de conhecimentos que nenhum espírito humano sabe­
ria nem poderia armazenar. É impossível poder ter uma visão sobre o
homem, a sociedade, o universo acumulando esse material; tanto mais
que esse material está fechado, compartimentado, esoterizado, visto que
é preciso entrar no vocabulário, nos conceicos e no conhecimento espe­
cializado, matemático, ele mesmo necessário à compreensão de tal ou
qual formulação. Em outras palavras, eis um conhecimenco que não se
pode discutir, que não se pode refletir. Daí uma situação cultural nova.
Então, diz o especialista: "Mas as idéias gerais são vagas, vazias; não
as quero, não são necessárias".
Ele tem razão. Só que aquilo que ele diz também é uma idéia geral,
ela mesma ainda mais vaga, mais vazia, pois o chamado especialista
tem idéias sobre a amizade, o amor, a vida conjugal, o mundo, a polí­
tica, sobre a necessidade ou não do Estado ou de um Estado mais forte,
etc. O dilema dos especialistas é que, se eles próprios não podem ter
uma idéia geral sobre suas especialidades, proíbem-se a si mesmos ter
idéias gerais sobre outros assuntos. No entanto, eles têm idéias gerais!
Não somente os especialistas, mas os grandes sábios também, natural­
mente. Nós os vemos quando se exprimem sobre o plano político,
social; essas "idéias gerais" são do mesmo nível - eu diria do mesmo
nível de incompetência, ou de irreflexão - que aquelas do simples
cidadão, com a diferença de que o cidadão tem medo e é intimidado,
enquanto o grande sábio é arrogante, vitorioso, e em nome do seu prê­
mio Nobel pode fazer qualquer proclamação sobre os problemas mais
gerais. Estamos então no reino das idéias vazias, não refletidas. Hoje
em dia, na conjunção dos saberes fragmentados e das idéias gerais,

30
A inteligência da complexidade

vazias, o direito à reflexão é colocado em causa e até mesmo condena­


do. O tr_ágico é que enquanto nos lamentamos, sofremos essa situação,
em que finalmente não sabemos mais o que pensar, existe não somen­
te uma aceitação resignada, mas uma aceitação sólida. Diz-se: "É
assim, e isso deve ser assim; é preciso que seja assim e é preciso que
continue cada vez mais desse modo". Esse neo-obscurantismo genera­
lizado significa que existe uma renúncia submissa e fatalista à ignorância
e à incapacidade de saber. E, no final, vê-se que a enorme quantidade
de saber que continua a ser produzido vai se acumulando cada vez mais
para ser estocado, graças aos computadores, aos meios informáticos,
nos bancos de dados manipulados e tratados pelos computadores,
devido a necessidades e demandas de instâncias anônimas, da empresa
e do Estado. Nós nos encaminhamos, se esse processo se torna domi­
nante (o que não acredito, porque haverá reação), em direção a uma
verdadeira revolução na história do espírito humano; pela primeira
vez, o saber seria produzido não para ser pensado, refletido, discutido
entre as pessoas, os seres humanos, os indivíduos, mas essencialmente
para ser armazenado pelas instâncias anônimas e manipulado pelas
chamadas instâncias anônimas.
Além disso, é preciso notar que os princípios que dinamizaram o
conhecimento ci�ntífico, e que se mostraram extremamente fecundos,
apresentam hoje graves problemas.
O que são esses princípios'
Podemos resumir assim: é o princípio da simplificação. O objetivo
do conhecimento científico é dizer: "Veja, estamos num universo apa­
rente de multiplicidade, de diversidade, de caos".
Ora, esse caos aparente se dissolve quando descobrimos as leis simples
que de fato o governam. O exemplo mais admirável foi a descoberta
da gravitação por Newton. Portanto, eis um princípio gravitacional
que permite compreender os fenômenos tão diferentes como a queda
de uma maçã, a impossibilidade de queda da Lua e o movimento das
marés. Naturalmente, um tal princípio é admirável, mas é evidente
também que esse princípio newtoniano não explica por que a maçã é
maçã, a Lua é a Lua e como são formados os mares. Da mesma manei­
ra, o código genético nos mostra que existe uma linguagem, um sis­
tema comum que preside a organização de todos os seres vivos, da
pulga ao elefante, por mais diferentes que sejam as suas formas. Mas

31
Edgar Morin

isso não nos explica por que a pulga é uma pulga e o elefante é um
elefante. De modo semelhante, eu falo uma linguagem; com essa lin­
guagem sustento o meu discurso e vocês, com a mesma linguagem,
sustentam um discurso talvez contraditório. Está claro que a pesquisa
de leis ou de princípios universais e a pesquisa dos elementos de base
fecundaram o progresso e o conhecimento. Desse modo, a obsessão
pelo elementar fez descobrir a molécula, depois o átomo, depois a par­
tícula; mas, quando nos apercebemos de que a partícula era não uma
noção de base, mas uma noção de fronteira, bruscamente nos depara­
mos com algo duvidoso: não sabermos ao certo o que é uma partícula.
Ela está no limite da materialidade, e aparece tanto como onda quan­
to como corpúsculo. Alguns teóricos dizem que a partícula não está
separada de um boostrap (uma teoria que postula um tipo de continui­
dade, de não-separabilidade na base mesma da realidade material).
Outros dizem que na partícula existem os quarks e que estes não
podem aparecer em estado isolado. Chegamos pela própria ciência ao
não-simples; chegamos ao que é complexo. Durante longo tempo, o
ideal do conhecimento científico foi aquele que Laplace havia formu­
lado com a sua idéia de universo totalmente determinista e mecanicista.
Segundo ele, uma inteligência excepcional dotada de uma capacidade
sensorial, intelectual e computacional suficiente poderia determinar
qualquer momento do passado e qualquer momento do futuro. É essa
visão extremamente pueril e talvez louca do mundo que está prestes
a desmoronar, mas ela ainda reina, e efetivamente excluiu todo o pro­
blema da reflexividade.
Paralelamente aos fantásticos desenvolvimentos do conhecimento
científico, houve um extraordinário desenvolvimento do poder oriundo
do conhecimento científico. Vemos hoje que a física, em particular a
física nuclear, apresenta um enorme poder de destruição, que o conhe­
cimento em biologia molecular e em genética permite entrever as
manipulações genéticas, uma nova indústria genética, onde não se
pode distinguir muito bem se é a indústria que vai se biologizar ou se é
a vida que vai ser industrializada. De todo jeito, convocaremos as
bactérias ao trabalho! O conhecimento biomolecular e bioquímico do
cérebro, que está nos estágios iniciais, permite entrever fantásticas
manipulações do cérebro. Os fenômenos das próteses, como a recente
prótese do coração, nos mostra que os poderes oriundos da ciência são

32
f

A inteligência da complexidade

fantásticos. Mas, ao mesmo tempo, esses grandes poderes escapam aos


cientistas, que parecem completamente impotentes! Vimos isso clara­
mente no momento da criação e da utilização das primeiras bombas
atómicas. Os cientistas começaram a dizer: "Nós não quisemos isso!"
Eles pretenderam protestar... Mas o curioso é que o conhecimento
científico que descobriu os meios realmente extraordinários para, por
exemplo, ver aquilo que se passa no nosso sol, para tentar conceber a
estrutura das estrelas extremamente distantes, e até mesmo para tentar
pesar o universo, o que é algo de extrema sutilidade, o conhecimento
científico que multiplicou seus meios de observação e de concepção do
universo, dos objetos, está completamente cego, se quiser considerar-se
apenas a si próprio1
O que é a ciência na sociedade?
Qual é o seu poder?
Qual é a reação entre a ciência, a técnica, a sociedade, a política?
Muitos cientistas prisioneiros desse pensamento disjuntivo que
utilizam (separando os problemas e deixando de os fazer comunicar)
afirmam: "É verdade, acontecem coisas muito graves, mas não temos
culpa. Aquilo que fazemos é uma ciência muito boa, em que reina o
espírito crítico. A técnica é uma coisa completamente diferente, é
neutra, como a língua de Esopo. Mas os políticos, os homens políti­
cos, são muito maus, e então eles fazem mau uso das boas coisas que
nós produzimos!" Mas não se pode manter por muito tempo um dis­
curso disjuntivo tão ingênuo.
Certamente a ciência do século XVII estava muito marginalizada
na sociedade. Os cientistas eram amadores esclarecidos, eram ao
mesmo tempo filósofos e cientistas, como Descartes, Gassendi. Mas a
ciência, em alguns séculos, chegou ao centro da sociedade. O CNRS*
(instituição à qual tenho a honra de pertencer) reúne dezenas de
milhares de pessoas no centro da sociedade. Todas as empresas pos­
suem laboratórios de pesquisa científica. A ciência tornou-se um
fenómeno central; o conhecimento científico estimulou o desenvolvi­
mento técnico, o qual evidentemente reestimulou o conhecimento

* CNRS - Centre Narional de la Recherche Scientifigue (Centro Nacional da Pesquisa Científi­


ca), Paris.

33
Edgar Morin

científico, mas esse desenvolvimento científico também permitiu a


criação da bomba atômica, etc. Estamos num círculo vicioso, num
círculo de intersolidariedade em que é justo distinguir aquilo que é
científico, técnico, sociológico, político ... Mas é preciso distingui-los
e não dissociá-los. E há sempre a cegueira, a incapacidade de ver a
conexão onde existe conexão, a incapacidade de olhar-se a si próprio.
O conhecimento científico é um conhecimento que não se conhece
mais a si próprio. Esse problema, o grande filósofo Husserl havia per­
cebido nos anos 30, numa célebre conferência sobre a crise da ciência
ocidental. Ele tinha efetivamente diagnosticado que havia uma mis­
são cega, uma carência fundamental, ou seja, a ausência da capacidade
do sujeito de se conhecer e de refletir sobre si mesmo.
Além disso, o problema da consciência moral, que efetivamente
havia sido resolvido necessariamente da maneira como eu disse, coloca-se
hoje em outros termos. Porque os problemas éticos e morais, esses pro­
blemas de consciência, surgem não somente quando existe a pressão do
poder político ou neoteológico que quer intervir no conhecimento cien­
tífico, como foi o caso, por exemplo, da era hitlerista ou stalinista. O
problema de autonomia da ciência não se põe mais nos mesmos termos:
atualmente, uma ditadura inteligente sabe que ela tem interesse em
deixar sua autonomia aos cientistas para que eles façam descobertas que
poderão ser utilizadas nos objetivos militares ou industriais. Não, o
verdadeiro problema moral nasce dessa enormidade de poderes que
vieram da ciência e diante dos quais o cientista é impotente. Houve
uma crise terrível e concomitante com a arma termonuclear, quando se
pôs a questão: "Nós somos responsáveis ;> Do que somos responsáveis?"
Nesse momento, o diagnóstico de Edmond Husserl retorna. Respon­
sabilidade! Cada um de nós pode, mais ou menos, sentir-se responsá­
vel ou culpado. Mas vocês sabem muito bem que a responsabilidade
não é um conceito científico.
Por quê?
Porque a responsabilidade nã.o tem sentido senão com relação a um
sujeito que se percebe, reflete sobre si mesmo, discute sobre ele mesmo,
contesta sua própria ação. Ou o conceito de sujeito não tem nenhum
lugar justamente nos princípios do conhecimento científico: ser cien­
tista é ser literalmente irresponsável por profissão! Isso não quer dizer
que o cientista não seja responsável. Ele se sençe responsável. Mas ele

34
r
A inteligência da complexidade

deve tratar esse problema da responsabilidade como qualquer cidadão,


com aquela diferença que o faz trabalhar justamente em alguma coisa
que pode produzir vida e morte, sujeição ou liberação.
Assim, vemos que o problema da ciência e da consciência se encontra
hoje colocado como problema ético e como problema de consciência
reflexiva, postulando ambos a reintrodução do sujeito. Ou podemos
dizer que um certo número de processos que ocorrem no seio do
desenvolvimento científico modifica a situação e faz interpor não
soluções, mas caminhos que nos mostram que podemos resistir à frag­
mentação, à perda e à irresponsabilidade do conhecimento.
Antes de mais nada, há a possibilidade de operar a ressurreição dos
objetos e dos problemas que são aqueles de nossas vidas no quadro de
um certo tipo de conhecimento científico moderno que se chama
"ecologia". A ecologia foi criada no fim do século passado e conheceu
desenvolvimentos notáveis neste século. Falo da ecologia como conhe­
cimento científico e não como movimento político. Mas, enfim, não
é por acaso que um se apóia no outro.
Qual é o objeto da ecologia?
Os objetos da ecologia são as interlocuções que existem no seio de
um ecossistema entre os constituintes geológicos, físicos, climáticos,
mas também biológicos, e, portanto, os microorganismos, os vegetais,
os animais de todas as espécies. Assim, o ecologista estuda as interações
formando sistemas. A palavra "escossistema" é clara. O ecologista tem
necessidade de conhecer um pouco de biologia, de botânica, de sociolo­
gia... Sua cultura para desenvolver seu conhecimento ecológico precisa
ser multidimensional; ele deve desenvolver uma policornpetência. Isso
não só é possível, como existe e funciona! O que é a priori impossível
tornou-se possível através da exigência desse conhecimento. E, mais
ainda, a partir do momento em que vocês têm urna ciência de ecossis­
temas e que os ecossistemas estão ligados aos ecossistemas mais vastos,
ecossistemas em ecossistemas, chegamos a esse conjunto que se chama
"biosfera", constituída de todas as coisas vivas, aí subentendidas a
humana. Graças a esse tipo de conhecimento podemos examinar um
certo �úmero de problemas que são colocados por nós, habitantes das
cidades e dos campos, hic et nunc, com relação ao meio que nos cerca.
O problema clássico das relações homem-natureza se encontra reco­
locado no quadro da civilização moderna e nas condições hic et nunc.

35
Edgar Morin
,

Naturalmente, e aí eu creio que exista alguma coisa de intransponível,


não podemos deduzir uma ética a partir de um conhecimento; não
podemos ultrapassar o princípio fundador do conhecimento clássico.
Em outras palavras, jamais um conhecimento positivo ditará um
dever. Mas o certo é que esse conhecimento ecológico permite dialogar
com os nossos problemas e as nossas necessidades. O movimento ecoló­
gico nasceu de um diálogo entre uma aspiração existencial e um certo 1
tipo de conhecimento. Além disso, esse diálogo ultrapassou o movi­
mento ecológico, pois por todos os lados interrogamo-nos sobre o pro­
blema, tanto sob o ângulo das poluições e da hiperindustrialização
quanto sob o ângulo do desflorestamento da Amazônia, etc. Eis um
tipo de conhecimento que conseguiu ultrapassar os defeitos mais gri­
tantes da superespecialização.
Existe um outro ponto: o extraordinário é que o conhecimento
científico se fundou em reação à metafísica! Diz-se: "Todos esses pro­
blemas, o ser, o nada, o vazio, o tudo, o começo, a origem, o fim ... isso
não tem nenhum interesse. São reflexões para os filósofos. Aquilo que
queremos saber é como isso funciona, essas são as regras, essas são as
leis ..." Mas esse conhecimento científico encontrou grandes problemas
filosóficos. A partir do momenco em que a teoria da astrofísica moderna
coloca com plausibilidade o problema do começo do nosso universo, o
começo_que nós chamamos de "big bang", pode-se perguntar: "Mas,
antes do início, que havia?" Não conseguimos perceber direico! Dizemos:
"Mas para onde vai o nosso universo?" Clausius, já no século passado,
devido ao segundo princípio da termodinâmica, dizia que ele caminha
em direção à morte térmica. Hoje em dia podemos pensar que, com
esse movimento de diáspora das galáxias, ele vai em direção à dispersão
generalizada. Outros podem pensar que pode advir um contramovi­
mento de contração. O problema do universo, o problema da origem
do universo, do sentido do universo estão colocados. E o problema da
vida do universo está colocado. Verificamos atualmente que os biólo­
gos como Jacques Monod, François Jacob e outros fizeram obras não
de vulgarização, mas obras em que, como diz Monod, tentam tirar a
filosofia natural dos seus próprios conhecimentos. Quer dizer, interro­
gar-se sobre o lugar da vida no mundo físico. Vocês sabem que Monod
concluía que a vida deve ter nascido de maneira totalmente imprová­
vel, que ela deve ser única no cosmos e que nós somos os ciganos do

36
r
A inteligência da complexidade

universo. Outros, referindo-se à termodinâmica de Prigogine, chegam


a concepções menos desesperadoras. Mas, de todo modo, os problemas
fundamentais são retomados e colocados em discussão. O livro de Reeves,
por exemplo, Patience dans l'azur, não é apenas urna obra de populari­
zação como se acredita. Naturalmente, o autor fez um esforço para tor­
nar sua palavra acessível. Ele mesmo assevera: se eu percebo que não
consigo explicar bem a uma criança qualquer coisa que diga respeito à
minha concepção das estrelas, então minha visão é falha e é preciso que
eu tente me explicar melhor. Isso quer dizer que hoje em dia o proble­
ma do universo é uma questão que pode entrar no domínio das idéias
indiscutíveis. Existe, de qualquer modo, um contramovimento na
ciência moderna que reencontra os grandes problemas filosóficos, que
é a retomada da reflexão.
Infelizmente, os filósofos profissionais não têm respondido a esse
apelo. Se durante séculos a filosofia viveu do diálogo com o saber, isto é,
com o conhecimento científico, hoje ela lhe dá as costas, e com os racio­
cínios e os argumentos especificamente abstratos, que são os argumen­
tos da racionalidade francesa, afirma: "A partir do momento em que me
torno filósofo, não tenho competências para poder falar de problemas
científicos. Só os cientistas competentes as possuem". Mas os cientistas,
enquanto especialistas, não são competentes para falar de problemas filo­
sóficos. Portanto, eles mesmos realimentam o obscurantismo generalizado,
do qual digo: é preciso sobretudo não procurar entender.
Hoje, no entanto, existe uma renovação, o que significa dizer que os
cientistas, quando chegam através do seu conhecimento a esses proble­
mas fundamentais, tentam por si próprios compreendê-los e fazem um
apelo à sua própria reflexão. Nos próximos anos, por exemplo, após as
experiências do Aspecto, a discussão sobre o espaço e sobre o tempo -
problemas filosóficos - vai ser retomada. Nós sabemos: desde que uma
experiência foi concluída, ela foge da esfera da- competência daquele que
conseguiu fazer a manipulação.
É a ressurreição de problemas fundamentais, seja pelas ciências de
um tipo novo, como a ecologia, seja nos seus próprios progressos, como
os da biologia ou da física. Existe também o contributo considerável
da epistemologia moderna. A grande importância da epistemologia
moderna consiste em ter mostrado de maneira decisiva que a teoria
científica não é o reflexo do real; é uma construção do espírito que

37
Edgar Morin

efetivamente se esforça por aplicar sobre o real. K. Popper é um daque­


les que foram inteligentemente nessa direção. Não se pode, diz ele,
induzir de maneira certa uma lei a ·partir das verificações empíricas. As
teorias são sistemas lógicos elaborados pelo espírito humano e este os
aplica sobre o real.
Desse modo, as teorias científicas são construções do espírito; não
são reflexos do real - são traduções do real numa linguagem que é a
nossa, ou seja, aquela de uma dada cultura, num dado tempo. Isso é
muito importante. De um lado, as teorias científicas são produzidas
pelo espírito humano; portanto, elas são subjetivas. De outro, estão
fundamentadas em dados verificáveis e portanto objetivos.
Como é possível isso?
Bem, é bastante possível: conhecemos o exemplo da astrologia.
Os astrônomos da Antiguidade, caldeus e babilônios, fizeram
observações que permitiram predições válidas, mesmo após o abando­
no do sistema de Ptolomeu, que fazia da Terra o centro do universo.
Em seguida, a teoria mudou: passou-se à teoria de Copérnico, mas
muitas correlações sobre as quais se fundava a antiga concepção foram
retomadas e reutilizadas para a nova teoria. Muitos dados objetivos
podem ser mantidos, embora as teorias mudem e apareçam novos
dados objetivos que não haviam sido observados até então. Logo, as
ciências físicas são as ciências do espírito mesmo quando vocês acredi­
tam escudar fenômenos apenas físicos, materiais. Vocês fazem opera­
ções intelectuais e, sobretudo, elaboram um sistema de idéias. Nesse
sentido, vocês fazem ideologia. E aí é preciso sublinhar uma idéia
muito importante: acreditou-se durante muito tempo que a regra do
jogo científico era a da verificação, a verificação pelas experiências ou
pelas observações concordes de observadores diferences. Para que esse
jogo funcione, diz Popper, para que esse jogo do conhecimento cientí­
fico funcione, é preciso que ele tenha também conflito de teorias, de
ideologias. Os cientistas são homens que têm idéias metafísicas, quer
camuflem quer não. Alguns, no fundo, gostariam de provar a existência
de Deus; outros, de provar que Deus não existe. Alguns gostariam de
provar o determinismo; outros, ao contrário, estão satisfeitos que exista
o acaso no universo. Cada um, com a sua mania, produz mais ou menos
conscientemente as teorias em relação a sua libido ideológica. Essas
teorias evidentemente estão em conflito.

38
A inteligência da complexidade

Daí essa idéia ser tão importante - a cientificidade não está na cer­
teza teórica. Ao contrário, já Whitehead, o grande filósofo das ciências
anglo-saxônicas, havia observado que a ciência é mais mutável que a
teologia. Com efeito, o envelhecimento das teorias científicas é sem
dúvida incrível. As teorias se desatualizam e ainda assim a ciência con­
tinua! É que a verdade científica não está na certeza teórica. Uma teoria
é científica não porque ela é certa, mas, ao contrário, porque ela aceita
ser refutada, seja por razões lógicas, seja por razões experimentais ou de
observações. Isto é, uma teoria científica não é o substituto, num
mundo laico, da verdade teológica e religiosa. É o contrário!
Uma teoria científica tem sempre a incerteza, ainda que ela possa
fundar-se em dados que possam ser certos. A biodegradabilidade da
teoria científica é um fato fundamental que nos mostra que a fecundi­
dade do conhecimento científico é uma luta de teorias. É uma luta de
diversidades que aceitam uma regra comum. Quando a aplicação da
regra comum pode ser bem feita, como nas ciências físicas, isso não
caminha mal! Mas, quando não se pode encontrar a verificação, como
nas ciências sociais, evidentemente isso caminha muito menos bem!
Mas eu diria quase: felizmente! Porque, se houvesse hoje uma ciên­
cia social que fosse manipuladora e redutora, e também eficaz, como a
física, então, nesse caso, seríamos completamente, e muito em breve,
"orwellizados"! As teorias científicas são produções do espírito, as
ciências físicas são espirituais, mas não no sentido do colóquio de Cor­
doue, a meu ver. Elas são espirituais porque produtos do espírito
humano, e elas são sociais porque emanam das atividades sociais.
Outros já observaram: o fato de querer negar que as ciências físicas
sejam ciências sociais é um empreendimento obscurantista, porque,
efetivamente, o terreno das ciências físicas é a sociedade, a história.
Não quero dizer que as ciências físicas sejam pura e simplesmente
ideologias produzidas pela sociedade, como qualquer outra ideologia.
De maneira nenhuma: as ciências físicas assim como as ciências bioló­
gicas têm um modo de relação verificável com o mundo exterior que
advém das experiências, das observações, etc. Mas elas não podem escapar
de uma dependência com relação à sociedade que as produz. Tomemos
como exemplo a energia que nos parece evidente. Mas ninguém viu a
energia com seus próprios olhos. A energia deve ter sido construída
por um esforço de dezenas e dezenas de anos unindo a noção de força

39
Edgar Morin

e a noção de trabalho. A noção de trabalho é ela mesma de origem


antropo e sócio-morfa. É evidente que o conceito de energia não pode
desenvolver-se senão num contexto de uma civilização industrial,
aquela das máquinas, do desenvolvimento da produção e da manipu­
lação da energia.
A inscrição na história social é capital. Ela é tão mais importante
quanto mais seriamente se coloque o problema que eu abordava ante­
riormente: qual é o papel social da ciência? Se os cientistas das ciências
físicas ou biológicas são incapazes de ousar conceber que a ciência físi­
ca possa ser também uma ciência social, como podem eles ter os instru­
mentos para pensar os problemas de sua responsabilidade?
Enfim, estou convencido de que os novos desenvolvimentos do
conhecimento científico nos conduzem um pouco a todos os domínios
para restituir o diálogo, senão diretamente entre o sujeito e o objeto,
pelo menos entre o observador e aquele que o observa. O problema do
sujeito é inevitável nas ciências humanas. Quer dizer, não é possível ilu­
dir-se com o seguinte problema: eu sou uma pessoa egocêntrica e etno­
cêntrica numa determinada sociedade, e eu não posso encontrar por
mim mesmo, completamente, os conceitos que me permitiriam ultra­
passar o egocentrismo e o ecnocentrismo se eu não voltar ao exame do
problema da subjetividade.
É claro que nas ciências físicas pode eliminar-se o sujeito individual,
mas não pode eliminar-se "o sujeito epistêmico" (Piaget), nem o pro­
blema do observador. Não é somente pela referência bastante conhecida
aos princípios de Heisenberg, em que o observador perturba a observa­
ção; é também o princípio de Brillouin, segundo o qual toda observação
se utiliza e se funda na negeocropia potencial. Mas é também pelo prin­
cípio "antrópico" desses astrofísicos que dizem que a consideração da
gênese do universo deve incluir a possibilidade da consciência humana.
Concluindo. O que eu queria dizer é que, por caminhos diversos,
reintroduzem-se hoje o problema da consciência, no sentido reflexivo,
e o problema da consciência, no sentido rabelaisiano. Eles se reintro­
duzem, mas estamos no início de um processo. A meu ver, estamos
numa época de mudança de paradi_gma: os paradigmas são os princí­
pios dos princípios, algumas noções mestras que controlam os espíritos,
que comandam as teorias, sem que estejamos conscientes de nós mesmos.
Creio estarmos numa época em que temos um velho paradigma, um

40
r
A inteligência da complexidade

velho princípio que nos obriga a disjuntar, a simplificar, a reduzir, a


formalizar sem poder comunicar aquilo que está disjunto e sem poder
conceber os conjuntos ou a complexidade do real. Estamos num perío­
do "entre dois mundos"; um, que está prestes a morrer, mas que não
morreu ainda, e outro, que quer nascer, mas que não nasceu ainda.
Estamos numa grande confusão, num desses períodos angustiantes, de
nascimentos, que se assemelham aos períodos de agonia, de mortes; mas
creio que nessa grande confusão existam movimentos diferentes - citei
apenas alguns - para a reintrodução da consciência na ciência. A aposta
não é simplesmente a aposta do enriquecimento do espírito dos cientis­
tas, o que já não seria mau. Não é somente a consciência no sentido da
complexidade que uma visão mutilada das coisas havia eliminado, o que
seria também muito bom! Penso ser uma aposta não somente científica.
Mais do que isso: é profundamente política e humana, humana no sen­
tido que concerne, talvez, ao futuro da humanidade.

41
Capítulo 2
A epistemologia da
complexidade
Edgar Morin
2.1 Sobre a "paradigmatologia"
A questão sobre a complexidade é complexa!
A questão havia sido colocada às crianças numa escola: "O que é
complexidade?" Resposta de uma aluna: "Complexidade é uma com­
plexidade que é complexa". É evidente que ela havia tocado o cerne da
questão. Mas, antes de abordar essa dificuldade, devemos dizer que o
dogma, a evidência subjacente ao conhecimento científico clássico, é,
como dizia Jean Perrin, que o papel do conhecimento consiste em
explicar o visível complexo pelo invisível simples. Atrás da agitação, da
dispersão, da diversidade, existem as leis. Por conseguinte, o princípio
da ciência clássica é evidentemente legislar, colocar as leis que regem os
elementos fundamentais da matéria da vida; e para legislar ela deve dis­
juntar, isto é, isolar os objetos sujeitos às leis. Legislar, disjuntar, redu­
zir - esses são os princípios fundamentais do pensamento clássico. Não
se trata absolutamente, do meu ponto de vista, de decretar que esses
princípios sejam doravante abolidos.
Mas as práticas clássicas do conhecimento são insuficientes. No mo­
mento em que a ciência de inspiração cartesiana ia muito logicamente
do complexo ao simples o pensamento científico contemporâneo tenta
ler a complexidade do real sob a aparência simples dos fenômenos. De
fato, não existe fenômeno simples. Tomemos como exemplo o beijo.
Pensem naquilo que é preciso de complexidade para que nós, humanos,
a partir da boca, possamos exprimir uma mensagem de amor. Nada
parece mais simples, mais evidente. No entanto, para o beijo, é preciso
uma boca, emergência da evolução do focinho. Foi preciso que houvesse
a relação própria dos mamíferos, na qual a criança mama na mãe e a mãe
dá de mamar à criança. Foi preciso, portanto, toda a evolução comple­
xificadora que transforma o mamífero em primata, depois em humano;
e, anteriormente, toda a evolução que vai do unicelular ao mamífero. O
beijo, além do mais, supõe uma mitologia subjacente que identifica a
alma ao sopro que sai da boca: ele depende das condições culturais que
favorecem sua expressão. Desse modo, há cinqüenta anos, o beijo no
Japão era inconcebível, incongruente.
Em outras palavras, essa coisa extremamente simples surgiu de uma
hinterland de uma complexidade surpreendente. Acreditou-se que o
conhecimento tinha um ponto de partida e um fim; hoje penso que o

45
Edgar Morin

conhecimento é uma aventura em espiral que tem um ponto de partida


histórico, mas que não tem um fim, que deve, sem cessar, fazer círculos
concêntricos, ou, melhor dizendo, que a descoberta de um princípio
simples não tem fim; ela reconduz ao mesmo princípio simples que ela
esclareceu em parte. Dessa maneira, pensem no caso do código genético,
que, uma vez descoberto, nos reconduz à questão: por que existe essa
diversidade extraordinária de formas entre os vegetais e os animais?
Cito uma frase do biólogo Dobzhansky, que diz: "Infelizmente, a natu­
reza não foi gentil o suficiente para fazer as coisas tão simples como nós
teríamos desejado que fossem. É preciso afrontar a complexidade".
Existe um físico, que é ao mesmo tempo um pensador, David Bohm, e
que já considera o dogma da elementaridade - sobre o qual voltarei a
falar. Ele diz: "As leis físicas primárias não serão jamais descobertas por
uma ciência que tenta dividir o mundo em seus constituintes".
Embora Bachelard tenha dito que, de fato, a ciência contemporânea
procurava - porque ele pensava na física - o complexo, é evidente que
os cientistas não sabiam que essa era a questão que lhes dizia respeito.
Muitas vezes vocês têm uma consciência dupla; vocês acreditam sempre
obedecer à mesma velha lógica recebida na escola; mas, de fato, sem que
saibam, em seu espírito trabalham uma outra lógica e outros princípios
do conhecimento.
Mas a complexidade tem dificuldades de manifestar-se. Ela tem
dificuldade de emergir, em princípio, porque não foi o centro de
grandes debates e de grandes reflexões, como, por exemplo, no caso
da racionalidade com os debates entre Lakatos e Feyerabend ou Pop­
per e Kuhn. A científicidade, a falseabilidade são muito debatidos,
mas a complexidade não foi jamais posta em debate. A bibliografia
sobre a complexidade é, pelo menos até onde conheço, muito restrita.
Para mim, a coisa importante é o artigo de Weaver, colaborador de
Shannon, como vocês sabem, para a teoria da informação, que, em
1948, escreveu o artigo "Ciência e complexidade" para a Scientific
American, que é um resumo de um estudo mais longo. É Von Neu­
mann que, na teoria "On self reproducing automaca", aborda essa
questão pelo viés da complexidade das máquinas, dos aucômatos
naturais com relação aos aucômatos artificiais, numa visão muito pro­
funda. Houve Bachelard em Le nouvel esprit scientifique; há Von Foerster
em diversos escritos, notadamence em seu rexto agora muito conhecido

46
f

A inteligência da complexidade

"On self organizing systems and their environment". Há H. A. Simon,


"Architecture of complexity", que era inicialmente um artigo autô­
nomo e que foi em seguida retomado em seu livro. Podemos encontrar
a complexidade na França nos livros de Henri Atlan, Entre le cristal et
la fumée, e existe Hayek, que escreveu um artigo intitulado "The
theory of complex phenomena" nos Studies in philosophy, politics and
economics, que é bastante interessante.
Naturalmente, a complexidade foi muito abordada no domínio
teórico, físico, no domínio sistêmico; mas freqüentemente, na minha
opinião, tratamos, antes de mais nada, daquilo que Weaver chama de
complexidade desorganizada, que irrompe para o conhecimento
com o segundo princípio da termodinâmica, a descoberta dessa desor­
dem microscópica, microcorpuscular no universo. Mas a complexidade
organizada é freqüentemente redirecionada para a complicação. O que
é complicação? Quando existe um número inacreditável de interações
entre, digamos, as moléculas numa célula ou os neurônios num cére­
bro, este número inacreditável de interações e de inter-retroações
ultrapassa, evidentemente, qualquer capacidade de computação - não
somente por um espírito humano,. mas também por um computador
muito aperfeiçoado - e então efetivamente vale mais a pena ater-se ao
input e ao output. Em outras palavras, é muito complicado; a com­
plicação é um emaranhado de inter-retroações. Certamente, é um
traço de complexidade, mas acredito que a importância da noção está
alhures. A complexidade é muito mais uma noção lógica do que uma
noção quantitativa. Ela tem, certamente, sempre suportes e caracteres
quantitativos que desafiam os modos de cálculo, mas é uma outra
noção. É uma noção a ser explorada, a ser definida. A complexidade
nos aparece, à primeira vista e de modo efetivo, como irracionalidade,
incerteza, confusão, desordem.
Dando continuidade a essas idéias, a complexidade parece em pri­
meiro lugar desafiar o nosso conhecimento e, de alguma maneira, orde­
ná-lo a regressar. Cada vez que existe uma irrupção de complexidade,
sob a forma justamente de incerteza, de acasos, existe uma resistência
muito forte. Houve uma resistência muito force contra a física quântica,
porque os físicos clássicos diziam: "É o retorno à barbárie; não é possí­
vel nos colocar a indeterminação no momento em que, depois de dois
séculos, todas as vitórias da ciência foram aquelas do determinismo".

47
Edgar Morin

Foi necessário o êxito operacional da física quântica para que, finalmente,


compreendêssemos que a nova indeterminação constituía também um
progresso no conhecimento da própria determinação.
A idéia da complexidade é uma aventura. Eu diria mesmo que só
podemos tentar entrar na problemática da complexidade se entrar na da
simplicidade, porque a simplicidade não é assim tão simples quanto pare­
ce. No meu texto "Os mandamentos da complexidade", publicado em
Ciência com consciência, tentei levantar treze princípios que tratam do para­
digma da simplificação, quer dizer, dos princípios da inteligibilidade
pela simplificação, para poder resgatar de maneira correspondente, com­
plementar e antagonista ao mesmo tempo - aí está uma idéia tipicamente
complexa - os princípios da inteligibilidade complexa. Vou simplesmente
relê-los e tecer alguns comentários. Essa será a primeira parte da minha
exposição (A). A segunda parte (B) será consagrada um pouco mais pre­
cisamente ao problema do conhecimento do conhecimento ou à espiste­
mologia complexa que está ligada a tudo isso.

Parte A*
1 - Podemos dizer que o princípio da ciência clássica é legislar.
Isso corresponde talvez ao princípio do direito. É uma legislação, mas
não é anônima, porque se situa no universo, é a lei. E esse princípio é
um princípio universal que foi formulado pela lei comum - "Não há
ciência senão no geral" -, o que comportava a expulsão do local e do
singular. Ou seja, o interessante é que, no próprio universo, no univer­
sal, a localidade interveio. Quero dizer que hoje o nosso universo nos
aparece como fenômeno singular, comportando constrangimentos sin­
gulares, e que as grandes leis que o regem - que nós podemos chamar as
leis das interações, como as interações gravitacionais, as interações ele­
tromagnéticas, as interações fortes, no seio dos núcleos atômicos -, que
essas leis das interações não são leis em si, mas leis que só se manifes­
tam, só se atualizam a partir do momento em que existam elemenros em
interação. E, se não houvesse partículas materiais, não haveria gravitação,

* (N. do Editor) 11lseri111os no início do parágrafo os mí111eros dos "Mandamentos do paradigma da simplifi­
ca;ão" apresentados SIICÍnlamtnte por E. Morin 110 caplt11l0 "Os mandame11fos da complexidade" de Ciência
com consciência.

48
A inteligência da complexidade

a gravitação não existe em si. Essas leis não têm um caráter de abstração
e estão ligadas às coações singulares do nosso universo; poderia ter
havido outros universos possíveis - talvez existam - que teriam outras
características singulares. A singularidade está, doravante, profunda­
mente inscrita no universo; e, ainda que o princípio da universalidade
permaneça no universo, ele vale para um universo singular onde apa­
recem os fenômenos singulares, e o problema consiste em combinar o
reconhecimento do singular e do local com a explicação universal. O
local e o singular devem cessar de ser rejeitados ou despejados como
resíduos elimináveis.

2 - O segundo princípio era o de não se levar em consideração


o tempo como processo irreversível. As primeiras leis físicas podiam
muito bem ser concebidas num tempo reversível. E, de qualquer
modo, a explicação era depurada de toda a evolução, de toda a histo­
ricidade. E aí também existe um problema muito importante - o do
evolucionismo generalizado. Hoje em dia, o mundo, quer dizer, o cos­
mos, no seu conjunto, e a matéria física, na sua constituição (particu­
lar, nuclear, atômica, molecular), têm uma história. Ullmo já dizia
energicamente nessa epistemologia piagetiana em que François
Meyer colaborou: "A matéria tem uma história". Hoje, tudo aquilo
que é material é concebido através da sua gênese, da sua história. O
átomo é visto historicamente. O átomo de carbono é visto através da
sua formação no interior de um sol, de um astro. Tudo está profunda­
mente historizado. A vida - a célula, François Jacob o destaca freqüen­
temente - é também um corte no tempo.
Hoje em dia e contrariamente a essa visão que reinou durante algum
tempo nas ciências humanas e nas ciências sociais, segundo a qual se
acreditava poder estabelecer uma estrutura pela eliminação de toda a
dimensão temporal e a considerá-la fora da história, todas as outras
ciências reclamam um vínculo estrutural ou organizacional (eu prefiro
dizer isso e direi por quê) com a história e com o evolutivo. E o efeti­
vamente importante é que o problema do tempo se colocou de maneira
inteiramente paradoxal no século passado.
Com efeito, no momento em que se desenvolvia o evolucionismo sob
a forma darwiniana, quer dizer, uma idéia de evolução complexa e diver­
sificante a partir de uma primeira protocélula viva, no momento em que

49
Edgar Morin

a história humana era vista como um processo de desenvolvimento e pro­


gresso, no mesmo momento o segundo princípio da termodinâmica ins­
crevia um tipo de corrupção fatal, de degradação de energia que podia ser
traduzido através da óptica botzmaniana como um crescimento da desor­
dem e da desorganização. Nós nos confrontamos com uma dupla tempo­
ralidade: não se trata de uma flecha do tempo que apareceu- são duas fle­
chas do tempo, e duas flechas voando em sentido contrário. No entanto,
é o mesmo tempo, a mesma aventura cósmica. Certamente, o segundo
princípio da termodinâmica inscreveu um princípio de adulteração, de
dispersão no universo físico, mas, ao mesmo tempo, esse universo físico,
nesse movimento de dispersão, constituiu-se e continua a se formar.
Ele se constitui das galáxias, dos astros, dos sóis, aliás, ele se desen­
volve da organização ao mesmo tempo que produz a desorganização. O
mundo biológico é um mundo que evolui - é a vida. Mas a vida, ao
mesmo tempo, faz-se através da morte dos indivíduos e através da
morte das espécies. Acreditamos justapor esses dois tempos. É aquilo
que havia feito Bergson, um dos raros pensadores que olhou de frente o
segundo princípio. Mas, segundo ele, era a prova de que a matéria bio­
lógica era diferente da matéria física, porque esta cem qualquer coisa de
adulterado, enquanto a substância biológica não sofreu o efeito do
segundo princípio. Infelizmente, para ele, descobriu-se a partir dos
anos 50 que a originalidade da vida não estava na sua matéria constitu­
tiva, mas na sua complexidade organizacional.
Nós nos confrontamos com esse duplo tempo e não somente com
esse tempo de duas flechas, mas também um tempo que pode ser
simultaneamente irreversível e reiterativo. Foi a emergência do pensa­
mento cibernético que mostrou isso. Não era somente o fato de que a par­
tir de fluxo irreversível pode-se criar wn estado estacionário, como, por
exemplo, aquele do turbilhão. No encontro do fluxo irreversível com
um obstáculo fixo, como o arco de uma ponte, cria-se um tipo de siste­
ma estacionário que é ao mesmo tempo móvel, porque cada molécula
de água que curbilhona é levada de novo no fluxo, mas manifesta uma
estabilidade organizacional. Tudo isso é encontrado em todas as organi­
zações vivas: irreversibilidade de um fluxo energético e possibilidade de
organização pela regulação e sobretudo pela recursão, quer dizer, a
autoprodução de si mesmo. Temos, pois, o problema de uma tempora­
lidade extremamente rica, extremamente múltipla, e complexa. É preciso

50
A inteligência da complexidade

ligar a idéia de reversibilidade e de irreversibilidade, a idéia de organiza­


ção à complexificação crescente e a idéia de desorganização crescente. Eis
o problema com o qual se defronta a complexidade! Enquanto o pensa­
mento simplificador elimina o tempo, ou concebe somente um tempo
único (aquele do progresso ou aquele da adulteração), o pensamento com­
plexo afronta não somente o tempo mas o problema da politemporalidade
em que se encontram ligados a repetição, o progresso e a decadência.

3 - O terceiro princípio de simplificação é o da redução ou,


ainda, da elementaridade. O conhecimento dos sistemas pode ser recon­
duzido àquele das partes simples ou unidades elementares que os cons­
tituem. A esse respeito, serei muito breve.
É no domínio em que esse princípio parecia ter incontestavelmente
triunfado, o físico, que esse princípio mais se evidencia. Fiz alusão ao
problema da partícula que é aporética (onda e corpúsculo) e cuja
substância é flutuante. Nós nos damos conta de que naquilo que se
acreditava ser o elemento puro e simples existem, a partir de agora,
a contradição, a incerteza, o compósito (faço alusão à teoria dos
quarks) - e talvez o inseparável (alusão à teoria do "bootstrap"). Exis­
tem limites à elementaridade, mas eles não são somente intrínsecos.
Sustentam também o fato de que, uma vez que inscrevemos tudo no
tempo, a elementaridade aparece também como uma factualidade, ou
seja, o elemento constitutivo de um sistema pode também ser visto
como fato ou acontecimento. Por exemplo, existe uma visão estática que
consiste em considerar nós mesmos como organismos. Nós somos cons­
tituídos de 30 ou 50 bilhões de células. Mas, na verdade - e creio que foi
Atlan quem fez essa observação -, nós não somos constituídos de célu­
las, somos constituídos de interações de células.
Não são tijolos uns ao lado dos outros e sim interações. E essas
interações são acontecimentos (fatos) eles próprios ligados por acon­
tecimentos repetitivos que são martelados pelo movimento do nosso
coração, movimento ao mesmo tempo regular e inscrito num fluxo
irreversível. Todo elemento pode ser lido também como acontecimento.
E existe principalmente o problema da sistematicidade. Existem
níveis de emergência; os elementos associados fazem parte dos conjuntos
organizados; no nível da organização do conjunto, emergem as qualidades
que não existem no nível das partes.

51
Edgar Morin

Descobrimos que finalmente tudo aquilo que se passa no nosso ser


- não somente no nosso organismo, mas até no nosso pensamento, nas
nossas idéias, nas nossas decisões - pode ser reduzido a turbilhões de
elétrons. Mas é evidente que não se pode explicar a conquista da Gália
por Júlio César pelos movimentos e turbilhões eletrônicos do seu cére­
bro, do seu corpo e dos seus legionários romanos. Mesmo que um
demônio conseguisse determinar essas interações físicas, ele não com­
preenderia nada da conquista da Gália que não possa ser compreendido
senão no nível da história romana e das tribos gaulesas. Eu diria mesmo
que, ern termos de trocas bioquímicas, os amores de César e de Cleó­
patra são totalmente ininteligíveis. Portanto, é certo que não se redu­
zirão os fenômenos antropossociais aos fenômenos biológicos, nem estes
às interações físico-químicas.

4 - O quarto princípio simplificador é o da Ordem-Mestra. O


Universo obedece estritamente a leis deterministas, e tudo aquilo que
parece desordem (quer dizer, aleatório, agitado, dispersivo) é apenas uma
aparência devida unicamente à insuficiência do nosso conhecimento.
A noção de ordem e a de lei são necessárias n;i.as insuficientes. A esse
respeito, Hayek, por exemplo, mostra que, quanto mais existe comple­
xidade, menos a idéia de lei é útil. Hayek pensa, evidentemente, na
complexidade sócio-econômica; é o seu tipo de preocupação. Mas ele se
dá conta de que é muito difícil, pois os fenômenos sociais são complexos
e de difícil predição. É evidente que as "Leis" da Sociedade ou as "Leis"
da História são de tal modo gerais, de tal modo triviais, de tal modo
planas, que elas não chegam a ter nenhum interesse. Hayek diz: "A partir
de agora, a pesquisa das leis não é um rótulo de procedência científica,
mas somente o caráter próprio das teorias dos fenômenos simples". Ele
vincula de maneira muito forte a idéia de leis à idéia de simplicidade.
Acredito que, se essa visão é bastante justa no que concerne aos fenôme­
nos sociais, não é menos no mundo físico ou biológico. O conhecimento
deve ao mesmo tempo detectar a ordem (as leis e determinação) e a
desordem, e reconhecer as relações entre ordem e desordem. O interes­
sante é que a ordem e a desordem têm uma relação de complementari­
dade e de complexidade. Tomemos o exemplo que cito freqüentemente
de um fenômeno que apresenta, sob um ângulo, um caráter aleatório
surpreendente e, sob um outro ângulo, um caráter de necessidade. Esse

52
A inteligência da complexidade

fenômeno é a constituição do átomo de carbono nas fundições solares.


Para que esse átomo se constitua, é preciso que haja o encontro, em um
só momento, de três núcleos de hélio, o que é um fato inteiramente
aleatório e improvável. Contudo, desde que exista esse encontro aleató­
rio, uma lei se impõe, uma regra, uma determinação muito estrita
intervém - o átomo de carbono se forma. Portanto, o fenômeno tem um
aspecto aleatório e um aspecto de determinação. Além do mais, o
número de interações entre os núcleos de hélio é enorme no seio do sol.
Considere-se ainda que houve várias gerações de sóis no nosso sistema
solar. Finalmente, com o tempo, cria-se uma quantidade considerável
de átomos de carbono, e, com isso, forma-se uma ampla reserva neces­
sária ao aparecimento e ao desenvolvimento da vida. Vemos que um
fenômeno que parece ser extremamente improvável, por seu caráter
aleatório, finalmente é quantitativamente muito importante e pode
entrar numa categoria estatística. Tudo isso depende, pois, dos ângulos
de visão e eu diria sobretudo que é interessante - é necessário - juntar
todos os ângulos de visão. É nesse sentido que proponho um tetragra­
ma que não é inteiramente um princípio de explicação, mas muito mais
um memento indispensável - é o tetragrama ordem-desordem-inte­
rações-organização.
Quando se diz tetragrama, pensa-se um tetragrama muito famoso,
aquele que, no Monte Sinai, o Eterno deu a Moisés para lhe revelar o
seu nome, nome sagrado e impronunciável: JHVH. Aqui o tetragrama
de que falo não é a Fórmula suprema: ele exprime a idéia de que qualquer
explicação, qualquer inteligibilidade não poderão jamais encontrar um
princípio último. Não será nem a ordem, nem uma lei, nem uma fór­
mula mestra (E= mc 2 ), nem desordem pura. Desde que o consideremos
um fenômeno organizado, do átomo aos seres humanos, passando pelos
astros, é preciso fazer intervir de maneira específica os princípios de
ordem, os princípios de organização. Os princípios de ordem podem até
crescer ao mesmo tempo que aqueles da desordem, ao mesmo tempo
que a organização se desenvolve. Por exemplo, Lwoff escreveu um livro
chamado L 'ordre biologique. É um livro muito interessante porque, com
efeito, existem os princípios de ordem que são válidos para todos os
seres vivos, para toda a organização viva. Somente esses princípios de
ordem válidos para qualquer organização viva �ão podem existir a não
ser que as organizações vivas sejam vivas; portanto, eles não existiam

53
Edgar Morin

antes do surgimento da vida, senão no estado virtual. E, quando a vida


se extinguir, eles cessarão de existir. Eis uma ordem que cem necessidade
de se autoproduzir através da organização e essa ordem é bastante par­
ticular porque ela tolera uma parte importante da desordem, ou até
mesmo colabora com a desordem, como Von Neumann o havia bem
observado na sua teoria dos autômatas. Portanto, ao mesmo tempo que
se desenvolve a complexidade, há o crescimento da desordem, o cresci­
mento da ordem, o crescimento da organização, se eu ouso empregar
essa palavra quantitativa de crescimento. É certo que a relação
ordem-desordem-organização não é somente antagônica; ela é também
complementar, e é nessa dialética devida à complementaridade e ao
antagonismo que se encontra a complexidade.

5 - A antiga visão, a visão simplificadora, é uma visão na qual,


evidentemente, a causalidade é simples; ela é exterior aos objecos; ela
lhes é superiora; ela é linear. Ora, existe uma nova causalidade que
introduziu, em primeiro lugar, a retroação cibernética oufeedback nega­
tivo. O efeito complementa, em círculo, a causa e pode-se dizer que o
efeito retroage sobre a causa. Esse tipo de complexidade se manifesta no
exemplo de um sistema de aquecimento de uma peça equipada de um
termostato, em que efetivamente o termostato desencadeia ou inter­
rompe o funcionamento da máquina térmica. O interessante é que não
existe somente esse tipo de causalidade em círculo. Há também uma
"endoexocausalidade", porque é efetivamente também o frio ou o calor
exterior que vai desencadear a interrupção ou pôr em marcha o movi­
mento do dispositivo do aquecimento central. Mas, nesse caso, a causa
exterior provoca um efeico interior inverso de seu efeito natural: o frio
exterior provoca o calor interior. Porque faz frio fora, a peça está aque­
cida. Evidentemente, tudo isso pode ser explicado de maneira muico
simples quando se consideram os segmentos constitutivos do fenôme­
no do anel retroativo; mas o anel que liga esses segmentos, a maneira
de ligá-los é que se coma complexo. Ele faz aparecer a "endoexocausa­
lidade". A visão simplificadora, desde que se tracou de máquinas vivas,
tem procurado a "endoexocausalidade" simples. Essa foi a obsessão
behavorista, por exemplo. Pensava-se que o estímulo que provocava
uma resposta (como a salivação do cachorro) produzia quase sempre
essa resposta. Finalmente, chegou-se à conclusão de que o interessante

54
A inteligência da complexidade

era conhecer também aquilo que acontecia no interior do cachorro e


reconhecer a natureza organizadora da endocausalidade que estimula o
cachorro a se alimentar. Tudo aquilo que é vivo e a /ortiori tudo aquilo
que é humano devem ser compreendidos a partir de um jogo comple­
xo ou dialógico da endoexocausalidade. Desse modo, é preciso superar,
compreender o desenvolvimento histórico, a alternativa estéril entre
endocausalidade e exocausalidade. No que concerne à URSS, por exem­
plo, duas visões simplificadas se defrontam: a primeira concebe o stali­
nismo segundo uma causalidade puramente endógena, que de Marx vai
a Lênin, o qual vai a Stálin, como uma espécie de desenvolvimento
quase dedutivo, a partir de um quase-gene doutrinal; outros vêem aí,
ao contrário, um fenômeno acidental, quer dizer, eles vêem no stalinis­
mo o efeito dos constrangimentos do passado tzarista, da guerra civil,
do cerco capitalista, etc. É evidente que nem uma nem outra dessas
visões são suficientes. O interessante é ver a espiral, o anel de reforço de
causas endógenas e causas exógenas, que faz com que, num dado
momento, o fenômeno se desenvolva numa tal direção mais do que
numa outra, ocorrendo, desde o início, virtualidades de desenvolvimen­
to múltiplas. Sobre o plano da causalidade, há uma revisão muito
importante a fazer.

6 - Sobre a. problemática da organização, não quero ins1st1r.


Diria que basicamente existe o princípio da emergência, o que signifi­
ca que as qualidades e as propriedades que nascem da organização de
um conjunto retroagem sobre esse conjunto. Há qualquer coisa de não
dedutivo na aparição das qualidades ou propriedades de todo fenômeno
organizado. Quanto ao conhecimento de um conjunto, é preciso pensar
na frase de Pascal que cito freqüentemente:
"Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o
todo, assim como conhecer o todo sem conhecer as partes."
Isso reconduz o caso do conhecimento a um movimento circular
ininterrupto. O conhecimento não se interrompe. Conhecemos as partes
que permitem conhecer melhor o todo, mas o todo permite novamente
conhecer melhor as partes. Nesse tipo de conhecimento, o conhecimento
tem um ponto de partida quando ele se coloca em movimento, mas não
há fim. Nós nos deparamos na natureza, não somente biológica mas

55
Edgar Morin

física, com fenômenos de auto-organização que sugerem enormes pro­


blemas; eu não insisto nesse ponto. Os trabalhos de Pinson, que nós
conhecemos e que acho de fato notáveis, dão nascimento, do ponto de
vista organizacional, a uma concepção que pode-se dizer hologramática.
O interessante é que se tem um exemplo físico, que é o holograma pro­
duzido pelo laser. No holograma, cada parte contém a informação do
todo. Embora ela não o contenha totalmente, guarda uma grande parte.
Assim, pode-se partir a imagem do holograma que ele se reconstitui com
a mesma quantidade de "microtodos" fragmentários e atenuados. Thom
disse: "A velha imagem do homem-microcosmo, reflexo do macrocosmo,
guarda todo o seu valor; quem conhece o homem conhecerá o universo".
É notável constatar que na organização biológica dos seres multicelu­
lares cada célula contém a informação do todo. Ela contém potencial­
mente o codo. E é nesse sentido um modo hologramático de organização.
Na linguagem, o discurso ganha seu sentido com relação à palavra,
mas a palavra só fixa seu sentido com relação ao discurso no qual ela
se encontra encadeada. Aqui também existe uma ruptura com toda
visão simplificada na relação parte-todo; precisamos ver como o todo
está presente nas partes e as partes presentes no todo. Por exemplo,
nas sociedades arcaicas, nas pequenas sociedades de caçadores-coletores,
nas sociedades chamadas de primitivas, a cultura estava profundamente
arraigada em cada indivíduo. Havia alguns que tinham a totalidade da
cultura, como os sábios e os velhos; mas os outros membros da sociedade
tinham no seu espírito o conhecimento dos saberes, das normas, das
regras fundamentais.
Hoje, nas nossas sociedades-nações o Estado conserva em seu poder
as Normas e as Leis, e a Universidade contém o Saber coletivo. Entre­
tanto, passamos vários anos, inicialmente na família e depois sobretudo
na escola, a registrar a cultura do todo; desse modo, cada indivíduo traz
em si praticamente, de maneira indefinida, inacabada, toda a sociedade,
toda a sua sociedade.
Os problemas de organização social só podem ser compreendidos a
partir desse nível complexo da relação parte-todo. Aqui intervém a
idéia de recursão organizacional, que, a meu ver, é absolutamente cru­
cial para conceber a complexidade da relação entre as partes e o todo.
As interações entre as individualidades autônomas, como nas sociedades
animais ou mesmo nas células, visto que cada célula cem a sua autonomia,

56
r
A inteligência da complexidade

produzem um todo, o qual retroage sobre as partes para elas próprias se


reproduzirem. Em outras palavras, as interações entre indivíduos fazem
a sociedade; de fato, a sociedade não tem um mínimo de existência sem
os indivíduos vivos; se uma bomba muito limpa, como a bomba de
nêutrons, atingisse toda a França, todos os monumentos permanece­
riam: o Elysée, a Câmara dos Deputados, o Palácio da Justiça, os
Arquivos, a Educação Nacional, etc. Mas não haveria mais sociedade
porque, evidentemente, os indivíduos produzem a sociedade. Portanto,
a sociedade produz os indivíduos ou, pelo menos, completa sua huma­
nidade fornecendo-lhes educação, cultura, linguagem. Sem a cultura,
seríamos rebaixados à categoria dos primatas.
Em outras palavras, são as interações entre indivíduos que produzem
a sociedade, mas é a sociedade que produz o indivíduo. Eis um processo
de recursividade organizacional, recursivo no sentido de um processo
em que os produtos e os efeitos são necessários à sua própria produção.
O produto é ao mesmo tempo o produtor, o que destrói toda a nossa lógi­
ca das máquinas artificiais em que as máquinas produzem os produtos
que foram programados. Ver a nossa sociedade como a imagem dessas
máquinas é esquecer que essas máquinas artificiais estão no interior de
uma sociedade que se autoproduz.

7 - O pensamento simplificador baseava-se na disjunção entre


o objeto e o meio. Compreendia-se o objeto isolando-o do seu meio
ambiente Era tão mais necessário isolá-lb quanto mais fosse preciso
extraí-lo do meio ambiente para colocá-lo em um ambiente artificial
que pudesse ser controlado, o meio da experiência, da ciência experi­
mental. Graças à experiência, podia-se fazer variar as condições do
comportamento do objeto e, por isso mesmo, conhecê-lo melhor. A
experimentação fez progredir consideravelmente o nosso conheci­
mento. Mas existe um outro conhecimento que não pode progredir
senão concebendo as interações com o meio ambiente. Esse problema
se encontra na física, onde as leis são as leis da interação. Ele se
encontra novamente também na biologia, onde o ser vivo é um sis­
tema ao mesmo tempo fechado e aberto, inseparável do meio
ambiente do qual ele tem necessidade para se alimentar, informar-se,
desenvolver-se. É preciso, pois, não disjuntar, mas distinguir os seres
do seu meio ambiente.

57
Edgar Morin

Por outro lado, o pensamento simplificador se apoiava na disjun­


ção absoluta entre o objeto e o sujeito que o percebe e o concebe.
Devemos colocar, ao contrário, o princípio da relação entre o observa­
dor-conceituador e o objeto observado, concebido. Demonstrou-se
que o conhecimento físico é inseparável da introdução de um dispo­
sitivo de observação, de experimentação (aparelho, recorte, planilha),
incluindo-se a presença do observador-conceituador em toda observa­
ção ou experimentação. Ainda que ele não tenha até o momento
nenhuma virtude heurística do conhecimento ascronômico, é interes­
sante notar aqui o princípio antrópico, demonstrado por Brandon
Carter: "A presença de observadores no universo impõe constrições,
não somente sobre a idade do universo, a partir do qual esses obser­
vadores podem aparecer, mas também sobre o conjunto de suas carac­
terísticas e dos parâmetros fundamentais da física que aí se desenvolve".
Ele acrescenta que a forma fraca do princípio antrópico estabelece que
a presença de observadores no universo impõe coerções sobre a posição
temporal destes últimos. Já a forma forte do princípio antrópico asse­
gura que a presença de observadores no universo impõe coerções não
somente sobre sua posição temporal, mas também sobre o conjunto
de propriedades do universo. Isso quer dizer que o universo pertence
a uma categoria de modelos de universos capazes de abrigar seres
vivos e de ser estudados por eles, o que é uma coisa extraordinária,
pois todo o nosso conhecimento do cosmos efetivamente fazia de nós
seres cada vez mais periféricos e marginais. Não somente éramos de
uma estrela de periferia, de uma galáxia de periferia, mas em seguida
éramos seres vivos, talvez os únicos seres vivos do universo - enfim,
não tínhamos a prova de que existam outros -, e, do ponto de vista
da vida, éramos o único ramo em que surgiu essa forma de consciência
reflexiva que dispõe de linguagem e pode verificar cientificamente os
conhecimentos. O universo nos marginalizava totalmente.
Naturalmente, o princípio antrópico não suprime toda essa margi­
nalidade. Mas ele diz que é preciso que o universo seja capaz, mesmo
que de um modo altamente improvável, de fazer seres vivos e seres
conscientes. Sobre o plano fraco, o exemplo que ele cita é muito inte­
ressante: "Nosso Sol tem 5 bilhões de anos; é um adulto. É provável
que ainda venha a ter, salvo algum contratempo, 10 bilhões de anos. A
vida começou talvez há 4 bilhões de anos, quer dizer, no início do sistema

58
f
A inteligência da complexidade

solar. Nós, seres humanos, aparecemos no meio da idade do Sol". Existe


aí, por acaso, qualquer coisa que não é puramente arbitrária. Se a vida
tivesse começado mais cedo, ela não teria tido condições de desenvolvi­
mento; mas, se ela tivesse surgido mais tarde, a consciência humana teria
aparecido no momento em que o Sol teria começado a se apagar, isto é,
no momento em que ela mesma talvez não tivesse tido senão um raio
antes do crepúsculo final. Aliás, há um certo interesse que se esforça por
pensar nosso sistema com relação a nós e com relação ao nosso sistema.
E é um convite ao pensamento rotativo: da parte ao todo e do todo à
parte. Já a reintrodução do observador na observação havia sido efetuada
na microfísíca (Bohr, Heisenberg) e na teoria da informação (Brillouin).
É com mais profundidade ainda que o problema se coloca na sociologia
e na antropologia: qual é o lugar que nos cabe, observadores-conceitua­
dores, nesse sistema do qual fazemos parte?
Por trás da noção de observador esconde-se a noção ainda nefasta do
sujeito. Sem dúvida, em física podemos ultrapassar a noção de sujeito
sob a condição de bem esclarecer que toda a nossa visão do mundo físico
se faz por intermédio de representações, de conceitos ou de sistemas de
idéias, ou seja, de fenômenos próprios ao espírito humano.
Mas podemos ultrapassar a idéia do observador-sujeito num mundo
social constituído pelas interações entre sujeitos?

8 a 11 - Existe também uma outra questão que me parece


importante. No conhecimento simplificador, as noções de ser e de
existência eram totalmente eliminadas pela formalização e pela quan­
tificação. Ora, acredito que elas sejam reintroduzidas a partir da idéia
de autoprodução, que é inseparável da idéia de recursão organizacio­
nal. Tem-se um processo que se autoproduz e que, desse modo, pro­
duz o ser; ele cria de "si". O processo autoprodutor da vida produz os
seres vivos. Estes seres são como sistemas abertos dependentes do seu
meio ambiente, submetidos aos acasos, os existentes. A categoria da
existência não é uma categoria puramente metafísica; nós somos os
"seres-aí", como diz Heidegger, submetidos às flutuações do meio
exterior e submetidos efetivamente à iminência ao mesmo tempo
totalmente certa e totalmente incerta da morte. Em outras palavras,
essas categorias do ser e da existencialidade que pareciam puramente
metafísicas são encontradas no nosso universo físico. Mas o ser não é

59
Edgar Morin

uma substância; o ser só pode existir a partir do momento em que exis­


ta a auto-organização. O Sol é um ser que se auto-organiza evidente­
mente a partir, não de nada, mas de uma nuvem cósmica; e, quando
o Sol explodir, ele perderá o seu ser...
Se nós podemos nos referir de agora em diante aos princípios cientí­
ficos que permitem conceber o ser, a existência, o indivíduo, o sujeito, é
certo que o estatuto, o problema das ciências sociais e humanas, se
modifica. O drama, a tragédia das ciências humanas e das ciências
sociais notadamente, é que, pretendendo fundar sua cientificidade
sobre as ciências naturais, elas encontraram os princípios simplificado­
res e mutilados com os quais era impossível conceber o ser, impossível
conceber a existência, impossível conceber a autonomia, impossível con­
ceber o sujeito, impossível conceber a responsabilidade.

12 a 13 - Chegamos agora ao último ponto, o mais dramático.


O conhecimento simplificador baseia-se na confiança absoluta da lógica
para estabelecer a verdade intrínseca das teorias, uma vez que elas estão
fundadas empiricamente nos procedimentos da verificação. Ora, nós
descobrimos, com o teorema de Godel, a problemática da limitação da
lógica. O teorema de Godel revelou os limites da demonstração lógica
no seio dos sistemas formalizados complexos; estes comportam ao menos
uma proposição que é indecifrável, o que faz com que o conjunto do sis­
tema seja indecifrável. O interessante nessa idéia é que ela pode ser gene­
ralizada. Todo o sistema conceitua! suficientemente rico inclui necessa­
riamente questões a que ele não pode responder através dele mesmo, mas
a que ele só pode responder referindo-se ao exterior desse sistema.
Como disse enfaticamente Godel: "O sistema só pode encontrar
seus instrumentos de verificação dentro de um sistema mais rico ou
de um metassistema". Tarski disse a mesma coisa também muito cla­
ramente a respeito dos sistemas semânticos. Os metassistemas, ainda
que mais ricos, comportarão também uma brecha e assim sucessiva­
mente; a aventura do conhecimento não pode ser fechada; a limitação
lógica nos faz abandonar o sonho de uma ciência absoluta e absoluta­
mente certa, mas é preciso dizer que isso era somente um sonho. Era
finalmente o sonho dos anos 20, o sonho do matemático Hilbert, que
acreditava efetivamente que se podia provar de maneira absoluta atra­
vés da matemática, matematicamente, logicamente, formalmente, a

60
t5
A inteligência da complexidade

verdade de uma teoria. Era o sonho do positivismo lógico que acredi­


tava ter fundado na certeza a teoria científica. Ora, Popper, depois
Kuhn, mostraram, cada um à sua maneira, que a propriedade de uma
teoria científica é ser biodegradável. Existe aí uma brecha na lógica à
qual se acrescenta uma outra brecha, que é o problema da contradi­
ção. É um problema muito velho, já que o contraditório ou o antago­
nismo está presente em Heráclito, em Hegel, em Marx.
A questão é saber se o aparecimento de uma contradição é sinal de
erro, ou seja, se é preciso abandonar o caminho que para aí conduz ou
se, ao contrário, ele nos revela superfícies profundas ou desconhecidas
da realidade. Existem contradições não absurdas, às quais a observa­
ção nos conduz. Assim, a partícula se apresenta ao observador tanto
como onda como corpúsculo. Essa contradição não é uma contradição
absurda. Ela se fundamenta no percurso lógico. Partindo de certas
observações, chega-se à conclusão de que aquilo que foi observado é
qualquer coisa de imaterial, uma onda. Mas outras observações, não
menos verificáveis, nos mostram que, sob outras condições, o fenômeno
se comporta como uma entidade discreta, um corpúsculo. É a lógica
que conduz a essa contradição. O verdadeiro problema é que a própria
lógica nos conduz a momentos aporéticos, os quais podem ou não ser
ultrapassados. O que revela a contradição - se ela é intransponível -
é a presença de uma superfície profunda da realidade que deixa de
obedecer à lógica clássica ou aristotélica.
Eu diria, em duas palavras, que o trabalho do pensamento, quando
ele é criador, consiste em fazer saltos, transgressões lógicas, mas que o
trabalho da verificação é retornar à lógica clássica, ao núcleo dedutivo, o
qual efetivamente só opera verificações segmentárias. Podemos formular
proposições aparentemente contraditórias, aquelas que o são não o sendo,
como, por exemplo: eu sou um outro. Eu "é" um outro, como dizia
Rimbaud. Ou essa frase muito bonita de Tarde, para citar um antigo
sociólogo, que nos diz: "A mais admirável de todas as sociedades, essa
hierarquia da consciência, essa feudalidade de almas vassalas cujo ápice
é a nossa pessoa", ou seja, essa multiplicidade de personalidades no eu. Na
identidade existe um tecido de noções extremamente diversas, existe a hete­
rogeneidade no idêntico. Tudo isso é muito difícil de conceber, e assim é.
Desse modo, no coração do problema da complexidade existe um pro­
blema do princípio do pensamento, ou paradigma, e no coração do para-

61
Edgar Morin

digma da complexidade existe o problema da insuficiência e da necessi­


dade da lógica, do afrontamento "dialético" ou dialógico da contradição.

Parte B
O segundo problema é o da epistemologia complexa, que, no
final, tem quase a mesma natureza do problema do conhecimento do
conhecimento. Ele retoma os pontos daquilo que eu já disse, mas
ultrapassando-os, englobando-os. Como conceber o conhecimento do
conhecimento?
Pode-se dizer que o problema do conhecimento científico poderia
ser colocado em dois níveis. Haveria o nível que se poderia chamar de
empírico e de conhecimento científico, que, graças às verificações obti­
das por observações e experimentações múltiplas, esclareceria dados
objetivos e, sobre esses dados objetivos, induziria a teorias que, pensa­
va-se, "refletiam" o real. Num segundo nível, essas teorias se funda­
mentariam na coerência lógica e assim fundamentariam sua verdade do
sistema de idéias. Haveria, portanto, dois tronos: o trono da realidade
empírica e o trono da verdade lógica, de onde se controlava o conheci­
mento. Os princípios da epistemologia complexa são complexos: não
existe um trono, não existem dois tronos; não existe absolutamente
nenhum trono. Existem instâncias que permitem controlar o conheci­
mento; cada uma delas é necessária e cada uma delas é insuficiente.
A primeira instância é o espírito. O que é o espírito? O espírito é a
atividade de qualquer coisa, de um órgão que se chama cérebro. A
complexidade consiste em não reduzir o espírito ao cérebro, nem o cére­
bro ao espírito. O cérebro, evidentemente, é um órgão que se pode ana­
lisar, estudar, que nós nomeamos como tal pela atividade do espírito.
Complementando, nós temos qualquer coisa que podemos chamar
de espírito-cérebro ligado e recursivo, visto que um co-produz o
outro de uma certa maneira. Mas, de toda maneira, esse espírito-cére­
bro surgiu a partir de uma evolução biológica, via hominização, até o
homo dito sapiens. Desde então, a problemática do conhecimento
deve absolutamente integrar, cada vez que elas aparecem, os valores
adquiridos fundamentais da bioantropologia do conhecimento. E
quais são esses valores adquiridos fundamentais?
O primeiro valor adquirido fundamental é que a nossa máquina
cerebral é hipercomplexa. O cérebro é um e múltiplo. A menor palavra,

62
f
A inteligência da complexidade

a menor percepção, a menor representação coloca em jogo, em ação e


em conexão miríades de neurônios e de múltiplas camadas ou setores do
cérebro. Ele é bi-hemisférico. Seu bom funcionamento mantém-se na
complementaridade e no antagonismo entre um hemisfério esquerdo
mais polarizado sobre a abstração e a análise e um hemisfério direito
mais polarizado sobre a apreensão global e o concreto. O cérebro é
hipercomplexo igualmente no sentido de que é "triúnico", segundo a
expressão de Mac Lean. Ele leva consigo, não, como na Trindade, três
pessoas em uma, mas três cérebros em um: o cérebro reptiliano (cio,
agressão), o cérebro mamífero (afetividade) e o neocórtex-humano (inte­
ligência lógica e conceitual), sem que exista predominância de um sobre
outro. Ao contrário, há um antagonismo entre essas três instâncias, e
algumas vezes é o impulso que governa a razão. Mas também no e atra­
vés desse desequilíbrio surge a imaginação.
Talvez o mais importante na bioantropologia do conhecimento seja
aquilo que nos reconduz às críticas kantianas, a meu ver, incontorná­
veis. Efetivamente, descobriu-se por novos meios de observação e
experimentação aquilo que Kant havia descoberto através dos meios
intelectuais e reflexivos. É que o nosso cérebro está dentro de uma
caixa preta que é o crânio, sem nenhuma comunicação direta com o uni­
verso. Essa comunicação se efetua indiretamente, via rede nervosa, a
partir dos terminais sensoriais. O que acontece à nossa retina, por
exemplo? São os stimuli que na linguagem atual nós chamamos de
fótons, que vão impressionar a retina, e essas mensagens vão ser anali­
sadas pelas células especializadas, depois transcritas num código biná­
rio, o qual vai chegar ao nosso cérebro, onde, de novo, vão, segundo os
procedimentos que não conhecemos, traduzir-se em representação. É a
ruína da concepção do conhecimento reflexo.
Nossas visõ�s de mundo são as traduções do mundo. Traduzimos a
realidade em representações, noções, idéias .e depois teorias. Dora­
vante, está experimentalmente demonstrado que não existe nenhuma
diferença intrínseca entre a alucinação e a percepção. Podem-se efe­
tuar estímulos sobre certas zonas do cérebro e eles fazem reviver as
impressões, as lembranças, com um força alucinatória sentida como
percepção. Aliás, aquilo que diferencia a percepção da alucinação é
unicamente a intercomunicação humana. E ainda existem casos de
alucinação coletiva. Mesmo não se admitindo a realidade da aparição

63
Edgar Morin

de Fátima, é certo que milhares de pessoas, que uma multidão, po­


dem produzir uma mesma alucinação.
Por conseguinte, do exame bioantropológico do conhecimento se
depreende um princípio de incerteza fundamental: existe sempre uma
relação incerta entre o nosso espírito e o universo exterior. Nós não pode­
mos traduzir sua linguagem desconhecida senão atribuindo-lhe e adap­
tando-lhe a nossa linguagem. Desse modo, denominamos "luz" aquilo
que nos permite ver e entendemos hoje por luz um fluxo de fótons que
bombardeiam nossas retinas. É tempo, pois, para que a epistemologia
complexa reintegre uma personagem que ela ignorou totalmente, ou
seja, o homem enquanto ser bioantropológico que tem um cérebro.
Devemos conceber que aquilo que permite o conhecimento é ao mesmo
tempo aquilo que o limita. Impomos ao mundo categorias que nos per­
mitem captar o universo dos fenômenos. Assim, conhecemos as reali­
dades, mas nada pode pretender conhecer A Realidade com "A" e "R".
Existem somente as condições bioantropológicas do conhecimento.
Há, correlativamente, as condições socioculturais de produção de qualquer
conhecimento, aí subentendido o científico. Estamos nos primórdios
balbuciantes da sociologia do conhecimento. Uma das suas doenças
infantis é reduzir qualquer conhecimento, até mesmo o científico, uni­
camente ao seu enraizamento sociocultural. Infelizmente, não se pode
fazer do conhecimento científico uma ideologia do mesmo tipo que as
ideologias políticas, ainda que - e eu voltarei a este ponto - toda a teo­
ria seja uma ideologia, isto é, construção, sistema de idéias, e que todo
sistema de idéias releva ao mesmo tempo as capacidades inerentes ao
cérebro, as condições socioculturais, a problemática da linguagem.
Nesse sentido, uma teoria científica comporta inevitavelmente um
caráter ideológico. Existem sempre postulados metafísicos ocultos na e
sob a atividade teórica (Popper, Holton).
Mas a ciência estabelece um diálogo crítico com a realidade, diálogo
que a distingue das outras atividades cognitivas.
Por outro lado, a sociologia do conhecimento está ainda muito
pouco desenvolvida e comporta em si um paradoxo fundamental. Seria
necessário que a sociologia fosse mais poderosa do que a ciência que ela
estuda para poder tratá-la de maneira plenamente científica. Ora, infe­
lizmente a sociologia é cientificamente menos poderosa do que a ciên­
cia que ela considera. Isso quer dizer evidentemente que é preciso

64
A inteligência da complexidade

desenvolver a sociologia do conhecimento. Existem estudos interessan­


tes, mas muito limitados, que são os escudos de sociologia de laborató­
rio; damo-nos conta de que um laboratório é um micromeio humano
onde fervilham ambições, invejas, rivalidades, modas... É certo que isso
imerge novamente a atividade científica na vida social e cultural; mas
nada mais que isso. Existe muito mais a ser feito do ponto de vista da
sociologia da cultura, da sociologia da intelligentsia (Mannheim). Existe
um domínio extremamente fecundo a ser pesquisado. Nesse nível, é
preciso desenvolver uma sócio-história do conhecimento, aí compreen­
dida a história do conhecimento científico. Acabamos de ver que toda
a teoria cognitiva, até mesmo a científica, é co-produzida pelo espírito
humano e por uma realidade sociocultural. Isso não é suficiente.
É preciso também considerar os sistemas das idéias como realidades de
um tipo particular, dotadas de uma certa autonomia "objetiva" com rela­
ção aos espíritos que as alimentam e se alimentam delas. É preciso pois
ver o mundo das idéias não como um produto da sociedade somente, ou
um produto do espírito, mas ver também que o produto tem, no domí­
nio complexo, sempre uma autonomia relativa. É o famoso problema da
superestrutura ideológica que atormentou gerações marxistas, porque,
evidentemente, o marxismo sucinto e fechado fazia da superestrutura um
puro produto das infra-estruturas. Mas o marxismo complexo e dialético,
a começar por Marx, via que uma ideologia retroage, evidentemente, e
desempenha um papel no processo histórico. É preciso ir além disso.
Marx acreditou recolocar a dialética de pé, subordinando o papel das
idéias. Mas a dialética não tem nem cabeça nem pés. Ela é rotativa.
A partir do momento em que se leva a sério a idéia de recursão orga­
nizacional, os produtos são necessários à produção do processo. As
sociedades humanas, as sociedades arcaicas têm mitos de base, mitos
comunitários, mitos de ancestrais comuns, micos que lhes explicam sua
situação no mundo. Ora, essas sociedades não podem completar-se
enquanto sociedades humanas se não houver esse ingrediente mitológi­
co; o ingrediente micológico é tão necessário quanto o ingrediente
material. Pode-se dizer que inicialmente existe a necessidade de comer
e depois ... os micos. Sim, mas não inteiramente! Os mitos mantêm a
comunidade, a identidade comum que é um laço indispensável às socie­
dades humanas. Eles fazem parte de um conjunto em que cada momen­
to do processo é capital para a produção do todo.

65
Edgar Morin

Dito isso, quero me referir ao grau de autonomia das idéias e tomo


dois exemplos extremos. Um exemplo que sempre me tocou é evidente
em todas as religiões. Os deuses de uma comunidade crente têm uma
existência inteiramente real e inteiramente objetiva. Eles não têm certa­
mente a mesma objetividade que uma mesa, uma cadeira, mas possuem
uma objetividade real à medida que se acredita neles. São seres que
vivem para os crentes e estes operam com seus deuses um comércio, uma
troca de bons procedimentos. Pede-se sua ajuda ou proteção e em troca
dá-se-lhes oferendas. Melhor ainda: há muitos cultos em que os deuses
aparecem, e o que sempre me fascinou no candomblé é o momento em
que os deuses chegam e os espíritos que se apossam de tal e qual pessoa
falam bruscamente pela boca do deus, falam pela voz do deus, quer dizer,
a existência real desses deuses é incontestável. Mas esses deuses não exis­
tiriam sem os humanos que os protegessem. Eis a restrição que é preci­
so fazer à sua existência! Quando muito, uma mesa pode ainda existir,
após a nossa vida, após o nosso aniquilamento, ainda que não tivesse
mais a função de mesa; sua linhagem é que continuaria a sua existência.
Mas os deuses morrerão todos, desde que nós deixemos de existir!
Esse é o seu tipo de existência!
Do mesmo modo, direi que as ideologias existem de maneira muito
flagrante. A idéia trivial de que se pode morrer por uma idéia é bem ver­
dadeira! Evidentemente, temos uma relação muito equivocada com a
ideologia. Uma ideologia, segundo a visão marxista, é um instrumento
que mascara os interesses particulares sob os ideais universais. Tudo isso
é verdadeiro. Mas a ideologia não é somente um instrumento - ela tam­
bém nos instrumentaliza. Somos possuídos por ela. Somos capazes de
agir por ela. Portanto, há um problema de autonomia relativa do mundo
das idéias e o problema da organização do mundo das idéias.
Há a necessidade de elaborar uma ciência nova que seria indispensá­
vel ao conhecimento do conhecimento: a noologia, ciência das coisas
do espírito, das entidades mitológicas e dos sistemas de idéias, conce­
bidos na sua organização e no seu modo específico de ser.
Os problemas fundamentais da organização dos sistemas de idéias
não relevam somente a lógica - há também aquilo que chamo de para­
digmatologia. Isso significa que os sistemas de idéias obedecem a certos
princípios fundamentais que são os princípios da associação ou da
exclusão que os controlam e que os comandam.

66
A inteligência da complexidade

Assim, por exemplo, isso que se pode chamar de o grande paradig­


ma do Ocidente, muito bem formulado por Descartes, que é a disjun­
ção entre o objeto e o sujeito, a ciência e a filosofia, é um paradigma
que não controla somente a ciência, mas também a filosofia. Eis, por­
tanto, um paradigma que controla tipos de pensamento totalmente
diferentes, na verdade antagônicos, mas que lhe obedecem igualmente.
Ora, retomemos o exemplo do paradigma da natureza humana. Ou
bem o paradigma faz com que essas duas noções da natureza e do
homem sejam associadas, como no caso de Rousseau, para quem
somente se pode compreender o humano na relação com a natureza, ou
então essas duas noções encontram-se separadas, ou seja, só se pode
compreender o humano pela exclusão da natureza. Esse é o último
ponto de vista da antropologia cultural ainda reinante.
Um paradigma complexo, ao contrário, pode compreender o humano
ao mesmo tempo em associação e em oposição à natureza. Foi Kuhn
quem resgatou a importância crucial dos paradigmas, ainda que ele
tenha mal definido essa noção. Ele a utiliza no sentido original anglo­
saxão de "princípio fundamental". Eu o emprego num sentido interme­
diário entre seu sent'ido lingüístico e seu sentido kuhniano, ou seja, que
esse princípio fundamental se define pelo tipo de relações que existe
entre alguns conceitos mestres extremamente limitados, mas cujo tipo
de relações controla todo o conjunto de discursos, aí compreendida a
lógica do discurso. Quando eu disse lógica, é preciso notar que de fato
acreditamos na lógica aristotélica; mas nesse tipo de discurso, que é o
discurso do nosso conhecimento ocidental, é a lógica aristotélica que
nós fizemos obedecer, sem o saber, a esse paradigma de disjunção, de
simplificação e de legislação soberana. E o mundo do paradigma é evi­
dentemente qualquer coisa muito importante que merece ser estudado
em si mesmo, mas sempre sob a condição de abri-lo sobre o conjunto
das condições socioculturais e de introduzi-lo no coração da idéia de
cultura. O paradigma que produz uma cultura é ao mesmo tempo o
paradigma que reproduz essa cultura. Atualmente, o princípio da dis­
junção, da distinção, da associação, da oposição que rege a ciência é
qualquer coisa que não somente controla as teorias, mas, ao mesmo
tempo, comanda a organização tecooburocrática da sociedade. Essa
divisão, essa hiperdivisão do trabalho científico aparece de um lado,
evidentemente, como uma espécie de necessidade de desenvolvimento

67
Edgar Morin

intrínseco, pois, desde que uma organização complexa se desenvolve, o


trabalho se especializa enquanto as tarefas se multiplicam para chegar
a uma riqueza mais complexa do todo. Mas esse processo é não somente
paralelo como ligado ao processo da divisão do trabalho social, ao pro­
cesso de heterogeneização das tarefas, ao processo de não-comunicação,
da parcelarização, compartimentalização das atividades humanas na
nossa sociedade chamada industrial. É claro que existe uma relação
muito profunda entre a maneira pela qual nós organizamos o conhe­
cimento e a maneira pela qual a sociedade se organiza. A ausência de
complexidade nas teorias científicas, políticas e mitológicas está liga­
da a uma certa carência de complexidade na própria organização
social, ou seja, o problema do paradigmático é extremamente profun­
do porque ele reconduz a qualquer coisa de muito profundo na orga­
nização social que não está evidente à primeira vista; ele reconduz a
qualquer coisa de muito profundo, sem dúvida, na organização do
espírito e do mundo noológico.
Concluindo: o que seria uma epistemologia complexa?
É não mais a existência de uma instância soberana, o epistemólogo
que controla de maneira irredutível e irremediável todo o saber. Não exis­
te trono soberano, mas uma pluralidade de instâncias. Cada uma dessas
instâncias é decisiva; cada wna delas é insuficiente. Cada uma dessas ins­
tâncias comporta seu princípio de incerteza. Abordei o princípio da
incerteza da bioantropologia do conhecimento. É preciso também falar
do princípio da incerteza da sociologia do conhecimento. Uma sociedade
produz uma ideologia, uma idéia, mas não o sinal de que ela seja verda­
deira ou falsa. Por exemplo, no tempo em que Laurent Casanova - é uma
recordação pessoal - estigmatizava o existencialismo sartriano, dizendo:
"É a expressão da pequena burguesia dividida entre o proletariado e a
burguesia", o infeliz Sartre dizia: "Sim, talvez; é verdade; mas isso não
quer dizer do mesmo modo que o existencialismo seja verdadeiro ou
falso". Também as conclusões "sociológicas" de Lucien Goldmann sobre
Pascal, mesmo que elas sejam fundamentadas, não afetam os Pensées.
Lucien Goldmann dizia: "A ideologia de Pascal e de Port-Royal é a
ideologia da nobreza de toga dividida entre a monarquia e a burguesia
ascendente". Talvez, mas a angústia de Pascal diante dos dois infinitos
pode reduzir-se ao drama da nobreza de toga que vai perder sua toga?
Isso não é assim tão certo.

68
t

A inteligência da complexidade

Em outras palavras, mesmo as condições mais singulares, mais loca­


lizadas, mais particulares, mais históricas da emergência de uma idéia,
de uma teoria, não são prova da sua veracidade - evidentemente -, nem
da sua falsidade. Existe um princípio de incerteza sobre o fundo da ver­
dade. É o problema da epistemologia ; é o problema da dialética; é o
problema da verdade. Mas aí também a verdade foge. Também por
esse motivo, o dia em que criarem uma faculdade de noologia com o
seu departamento de p aradigmatologia , não será esse o ponto central
de onde se poderá promulgar a verdade.
Existe um princípio de incerteza e, como eu lhes dizia há pouco,
existe um princípio de incerteza no coração mesmo da lógic a . Não há
incerteza no silogismo, mas, no momento da junção em um sistema de
idéias, continua a subsisitr um princípio de incerteza.
Desse modo, existe um princípio de incerteza no exame de cada ins­
tância constitutiva do conhecimento. E o problema da epistemologia é
fazer comunicar essas instâncias separadas, fazer o circuito. Não quero
dizer que cada um deva passar seu tempo lendo, informando-se de
todos os domínios. Não! O que eu quero dizer é que, se se coloca o pro­
blema do conhecimento do conhecimento, estão obrigados a conceber
os problemas que acabo de enumerar. Eles são inevitáveis. O fato de ser
difícil informar-se, conhecer-se, verificar-se, etc., não elimina esses pro­
blemas. É preciso, com efeito, dar-se conta de que é muito difícil e de
que não é uma tarefa individual - é uma tarefa que necessitaria de
encontro, de intercâmbio entre todos os pesquisadores e universitários
que trabalham nessas áreas disjuntas, que, infelizmente, enclausuram­
se aí corno ostras. Ao mesmo tempo, devemos saber que não existem
mais privilégios, tronos ou soberanias epistemológicas. Os resultados
das ciências do cérebro, do espírito, das ciências sociais, da história das
idéias, etc., devem retroagir ao estudo dos princípios que determinam
tais resultados. A questão não é que cada um perca a sua competência,
mas que cada um a desenvolva o suficiente para articulá-la a outras
competências, que, ligadas em cadeia, formariam um círculo completo
e dinâmico, o anel do conhecimento do conhecimento. Eis a problemá­
tica da epistemologia complexa e não a chave mestra da complexidade,
cuja característica, infelizmente, é não fornecer a chave mestra.

69
Edgar Morin

2.2. Debates e questionamentos epistemológicos

Pergunta: Começo por duas questões que se referem à epistemologia. Pode-se


falar de progresso recente em epistemologia? Em que a epistemologia moderna se
distingue daquela do século passado?
Resposta: O progresso fundamental se realizou a partir do momen­
to em que se considerou que as teorias científicas no fundo não se redu­
ziam nem ao reflexo do real nem à lógica e é o grande debate que passa
por Popper, Kuhn, Feyerabend, Lakatos, etc.
O progresso fundamental da epistemologia consiste em colocar o
conhecimento científico como um objeto que merece o conhecimento e
não uma elucidação que não tem necessidade de se conhecer. Isso me
parece muito importante.

P.: A epistemologia não é por natureza destinada a ser matéria de especialistas?


R.: Na medida em que as ciências que controlam a epistemologia
complexa a controlam através do seu resultado, tal epistemologia
requer uma policompetência. De qualquer maneira, os problemas,
idéias, conclusões que se depreendem do trabalho de um especialista
devem entrar numa esfera de discussão da qual o "honnête homme"*
moderno deveria (poderia) participar. O verdadeiro problema não é res­
suscitar o antigo "honnête homme" mas suscitar o novo "honnête homme".
Não aceitar a nova ignorância que criou a hiperespecialização. O objeti­
vo dos debates entre Popper de um lado, Adorno do outro, Popper de
um lado, Kuhn do outro, é que eles ultrapassaram o quadro dos espe­
cialistas e que interessaram, num dado momento, a muitos cientistas,
não somente das ciências exatas mas também das ciências humanas.

P.: Nessa revolução cultural que o senhor deseja, pois trata-se de uma revolução
cultural, o problema entre a Alemanha e a França é que nós temos estruturas que
são verdadeiramente paranóicas, o que torna evidentemente impossível fazer esse tipo
de experiência. Nós estamos aqui, alguns - eu diria por acaso da conjuntura -,
mas é absolutamente impossível fazer a interdisciplinaridade, senão ficticiamente,
no papel. E algumas reformas que estão atualmente em curso no CNRS me deixam

* Homem íntegro e culto dos séculos XVI, XVll e XVII. (N. da T.)

70
A inteligência da complexidade

cético sobre esse ponto. Creio que aí existe um obstáculo contra o qual nós mesmos
nada podemos. Mermo nas universidades que juridicamente associam os literatos e
os erpecialistas em ciências sociais, nós não temos jamais um debate sobre epistemo­
logia. Eu me pergunto se não estamos em face de um obstáculo que é a tal ponto claro
que necessitaria, no mínimo, romper as ertruturas da universidade?
R.: Acredito que a pior resistência das estruturas não seja de modo
nenhum a resistência administrativa - é a estrutura dos espíritos. É por
isso que se pode fazer as mais belas reformas da universidade no papel,
sempre as fazemos nos planos da administração, nos centros de deci­
são... e jamais no plano do espírito, porque, evidentemente, há este
famoso problema: quem educará os educadores? Quando se fazem pro­
gramas em matéria disciplinar, eles não vão mais longe do que aqueles
da ONU. Na realidade, cada um confirma seu território. Fazem corre­
ções de território e de fronteira com algumas magras trocas. A solução,
a meu ver, não é destituir a universidade. Há uma crise nas estruturas
do pensamento e eu tenho a impressão de que um gênero de perguntas
que coloquei no Método teria sido totalmente rejeitado há uns vinte
anos. Por que, pois, não foi totalmente rejeitado?
Porque existe uma crise em diferentes meios. No fundo, é a mesma
crise que toma aspectos de particular gravidade com os físicos porque
eles têm problemas de manipulação, de energia atômica... tanto quan­
to os biólogos que têm dificuldades ligadas à manipulação genética.
Mas existe uma crise da validade, dos problemas que o conhecimento
científico coloca, das insuficiências, do poder. E é essa crise (onde tudo
é solidário) que obriga a refletir. Atualmente é bem conhecida a idéia
de que uma falsa teoria não se destrói jamais a si própria - é preciso
esperar a morte de seus defensores. No plano da antropologia, é certo
que há vinte anos existe um número de dados novos que destroem o
paradigma que separa natureza e cultura: a hominização é um processo
que transforma a natureza em cultura. Mas tudo isso permanece letra
morta porque a antiga óptica não pode perceber o interesse dessa cami­
nhada. Há sempre a vontade de manter a fronteira fechada. É preciso
que exista a crise e é preciso trabalhar para aprofundar essas crises e é
difícil dizer àqueles que estão presos à sua segurança mental que é pre­
ciso aderir à insegurança. Dizer às pessoas: "Coloquem-se em crise, quer
dizer, joguem suas idéias para o ar, coloquem-se na merda". Nesse
momento, eles não estão nada contentes. Eles querem antes de tudo que

71
r
Edgar Morin

lhes sejam dadas as estruturas de mudança que possam fazê-los trocar


seus velhos televisores por um novo.
Não se pode ficar sem um aparelho conceitual, não é mesmo? Quere­
mos já tudo pronto, com o modo de funcionamento, o novo modo con­
ceitual, e quando não se pode dar-lhe tudo pronto, porque tudo isso
está em gestação, é muito difícil efetivamente poder operar essa
mudança. Ela só pode vir com o tempo, ou seja, com a aparição cada vez
mais coerente de modos de pensamento complexos que se provam, que
se validam, de trabalhos que mostram que eles são eficazes, etc., e é
nesse momento que se aceitará o modo de pensamento que não ofereça
as mesmas seguranças, que não ofereça os mesmos programas, mas que
proponha o jogo e a arte da estratégia, reabra todos os problemas, traga
a alegria e a aventura do conhecimento.

P.: A complexidade do real e a do pensamento justificam, como exprime Hayek,


um princípio da não-intervenção no agregado complexo que é o mundo? É o defeito
de Hayek que consiste em dizer que esse agregado complexo, esse conjunto equili­
brado, é melhor não tocá-lo na medida em que, como o homem não conhece nem os
mantenedores de sua intervenção nem a totalidade das razões que criaram um
equilíbrio ou um desequilíbrio, nem as interferências, nem as conseqüências da sua
intervenção, qualquer intervenção é necessariamente muito destrutiva, sendo melhor
limitar as intervenções, no mínimo supostas como retificadoras. É um problema que
vai pouco a pouco mais longe do que o conhecimento. Depois de ter constatado a
complexidade, depois de ter tentado compreender todos os elementos, é preciso agir
ou se limitar ao seu conhecimento, é preciso tentar intervir e pode-se agir?
R.: Quando Hayek se coloca na cátedra e no interior do problema da
economia liberal e do problema das intervenções do Estado, penso que a
sua idéia sobre a complexidade seja interessante. É preciso acrescentar,
acredito, um princípio concernente à ação: o princípio da ecologia da ação.
Toda ação, desde que ela começa, desde que ela entra no mundo, entra num
jogo de interações que a fazem muito rapidamente escapar do seu autor.
Em outras palavras, a ação não é somente aleatória, quer dizer, suscetível
de ter êxito ou de falhar. Ela pode desencadear processos inteiramente
inesperados e mesmo contrários aos esperados. Isso é muito interessante.
Ora, não se pode impedir a ação. O verdadeiro problema não é a inibi­
ção da ação; é o efeito que possa sobrevir dela. Não podemos nos aterro­
rizar pelo medo das conseqüências da ação. Acredito que o verdadeiro

72
t

A inteligência da complexidade

problema consiste em reformular o problema da ação. Evidente­


mente, há hoje as teorias da decisão, etc., mas são insuficientes. A
idéia de que toda ação é uma aposta, que toda ação se faz na incerte­
za, obriga-nos a estudar melhor o jogo de inter-relações da nossa ação
e a não acreditar ingenuamente que a nossa ação continua a caminhar
na direção a que foi lançada. Falou-se depois de muito tempo do efei­
to bumerangue, pelo qual a ação retorna ao nariz daquele que a lançou.
E o problema é efetivamente o desenvolvimento de uma reflexão
sobre os princípios estratégicos da ação, pois o interessante é opor a
ação do tipo programático rígido, quer dizer, a ação que segue
implacavelmente seu caminho segundo as normas e os processos fixados
anteriormente e que não pode autocorrigir-se e considerar os elementos
novos, a não ser para deter-se, e o princípio de uma ação estratégica,
que integra as informações obtidas no decorrer do caminho, que integra
o acaso, até mesmo a adversidade, para se automodificar. Acredito
que, do ponto de vista em que se encontra, Hayek dá uma resposta
não complexa a um problema complexo. A dificuldade é conceber
bem o problema da ação e o problema da vontade com sua parte de
risco, sua parte de incerteza, desenvolvendo somente a estratégia e nos
afastando, no plano político, das ações unicamente programáticas que
não possuem meios de autocorreção. Neste momento, talvez seja pre­
ciso pensar que, no plano das intervenções do Estado, elas não tenham
o caráter rígido-programático-burocrático que faz com que elas não
possam jamais se autocorrigir e sofrer a retroação da experiência senão
alguns anos mais tarde, quando se modifica a lei, o princípio, etc.
Existe certamente uma conclusão a ser tirada da ação do Estado que
deve ser estratégica, ou seja, maleável e complexa.

P.: Sobre esse ponto, já que o senhor falou de consciência moral, existe aí tam­
bém um problema moral da ação. O curioso é que muito freqüentemente o senhor
tem uma atitude metafísica, diria eu. Quer dizer, o senhor tem postulados tão
inverificáveis quanto os postulados científicos que o senhor denuncia. Por exem­
plo, a incapacidade da ciência de refletir sobre ela mesma. Evidentemente, o
senhor cita Adorno, a Escola de Frankfurt, Popper, Husser/... Acredito que exis­
ta com o senhor um postulado e isso bloqueia a ação. Isso que o senhor chama de
"consciência moral" não é simplesmente a falsa consciência em um certo momento?
Um segundo exemplo: o senhor tem constantemente a visão de contra-ordem, no

73

Edgar Morin

sentido musical do termo, a idéia de que a submissão das ciências sociais, que
seriam científicas, é mais grave. De minha parte, penso que a libera[ão pela ciên­
cia é simplesmente um postulado que é também um problema, com excefão de Popper.
Em outras palavras, o senhor está sempre na articula[ão, e aí suas respostas são
mais claras do que o seu discurso, numa articulafãO que faz com que o senhor
tenha retirado o aspecto metafísico dos seus paradigmas. Eu gostaria que o senhor
me esclarecesse esse ponto. O senhor se ilude a si próprio com o seu sujeito?
Outra pergunta: o senhor tomou como exemplo "[eh bin". Por exemplo, os
místicos mu[ulmanos são mais sutis do que isso. Eles dizem: eu sou Deus; e não
existe o atributo. E é muito curioso também na mística mufulmana... Então,
coloca-se um problema, existe um meio perdurável de um conhecimento que nós
teríamos estocado e de formas tiradas a partir do seu esquema, com o qual estou
inteiramente de acordo, com certeza/
R.: Acredito que toda teoria, toda visão de mundo comportam pos­
tulados sob a forma de intuições fundamentais, inverificáveis, que
podem ser fecundos ou maus. Mas aquilo que você chama de "ciência
sem consciência", não chamo de postulado. Considero como um diag­
nóstico. Eu chamaria antes de postulado essa idéia de que o mundo é
trágico, é um tecido de contradições e que, no entanto, a harmonia
comporta a discórdia. Tenho essa espécie de intuição fundamental.
Cada um tem os seus postulados. Muitos pensam no fundo que o uni­
verso seja uma máquina que tem ordem, que tem um sentido. Outros
pensam que o universo não tem sentido. Isso faz parte dos postulados
inverificáveis. Mas a idéia de que o desenvolvimento do conhecimento
científico é um desenvolvimento inteiramente centrado no objeto pela
eliminação do sujeito não é um postulado. É um problema da história
das idéias. Isso é que é interessante. Tudo aquilo que se denomina
"ciência clássica" cessa de ser válido nesta época de metamorfose em que
vivemos. E, aliás, é por isso que tomo o cuidado de citar sempre essa
frase de Bronowsky: "O conceito de ciência que nós temos não é nem
absoluto nem eterno". Em outras palavras, existe uma aventura muito
específica que começa sem dúvida no século XVI-XVII, mas essa aventura
chega hoje a um momento de metamorfose total. Essa metamorfose
comporta uma parte de autodestruição dos princípios do conhecimento
que têm desembocado nesse processo de metamorfose. O que me sensi­
biliza é o exemplo da metamorfose da lagarta em borboleta.
O que acontece nessa brava lagarta)

74
A inteligência da complexidade

Seus glóbulos brancos que pararam de defendê-la contra todos os agen­


tes agressivos do exterior bruscamente se põem a trabalhar para destruí-la.
Então, eles destroem todos os seus tecidos, seus tecidos conjuntivos; eles
destroem até o seu sistema digestivo; só ficam o coração e o sistema ner­
voso. E, ao mesmo tempo, começa um outro processo para constituir a
borboleta com um novo sistema digestivo porque a borboleta não come a
mesma coisa que a lagarta. Então, diz-se que não é mais, de modo
nenhum, o mesmo ser. Com efeito, não é absolutamente o mesmo. No
entanto, olha-se para ele e vê-se que é efetivamente o mesmo.
Quanto ao conhecimento científico, os problemas ditos metamórficos
são os fenômenos de autodestruição. É a conseqüência lógica dos princípios
iniciadores da construção que conduz a essa espécie de desordem. Acerca
disso, há um diagnóstico que eu faço sobre um processo em curso; talvez
ele seja falso, mas isso não é um postulado. É uma tentativa de diagnósti­
co num processo em movimento, e diagnóstico incerto, pois talvez essa
transformação não seja feita e o mundo seja aniquilado antes; pode ser que
ela se faça muito mais rápido do que se acredita, talvez mais lentamente,
etc. Aí, a questão desse processo é mais difícil pelo fato de haver a burocra­
tização, a tecnoburocratização dos cientistas que efetivamente são muito
numerosos e sobre os quais pesam não somente esses princípios antigos de
conhecimento que mostraram sua fecundidade no passado e que permitem
recortar seus objetos e lhe dão uma certa segurança mental, mas também
toda uma série de pensadores cecnoburocratas próprios à nossa sociedade.
Portanto, é difícil. Eis o que poderia dizer sobre o postulado.
Agora, a idéia da consciência moral é um problema inteiramente aber­
to. Não se trata de modo nenhum de um problema que eu possa resolver.
Dei-me conta de que eu tinha colocado no Le vi/ du sujet o problema da
moral como um problema dramático, quer dizer, um problema em que
não existe um imperativo categórico, claro e evidente. Não há um impe­
rativo universal. Existe até uma contradição entre uma moral da proxê­
mia e uma moral - eu diria - universal que se torna muito abstrata.
Finalmente, é melhor ajudar seu vizinho, ou seu irmão, do que desejar a
felicidade da humanidade chateando todo o mundo. Mas acredito que
seja preciso também querer a felicidade da humanidade. E existem até
rupturas numa mesma moral. Tomemos como exemplo a moral da honra.
Massignon havia relatado essa coisa que o impressionara muito e que
depois também me atraiu a atenção pelo seu sentido.

75
Edgar Morin

Trata-se da mulher de um beduíno cujo marido foi morto durante


uma vendetta. Ela e seus irmãos têm por objetivo matar o assassino do
marido, e o assassino em fuga chega à sua tenda ao cair da noite e pede-lhe
que seja acolhido. Como seu código d� honra sagrado, o código da hos­
pitalidade, lhe exige que cumpra o dever, ela lhe concede refúgio sem
denunciá-lo. Mas, na manhã seguinte, ela se reúne com os irmãos para
matar o homem. Quer dizer, existem contradições internas profundas
na moral. É um problema não resolvido. Aquilo que tento colocar é
que a moral também possui essa complexidade, ou seja, essas incertezas
e essas contradições quando se faz qualquer coisa simples.
Acrescento ainda que sobre a moral ecoa aquilo que acabo de dizer
sobre a ecologia da ação: o inferno está cheio de boas intenções, ou seja,
as melhores intenções levam a conseqüências espantosas das quais não
se dão conta aqueles que as fizeram. Mas, felizmente, o inverso pode ser
verdadeiro também. Infelizmente, o paraíso não existe e as ações muito
más podem ter resultados positivos.

P.:, Qual é a idéia que o senhor faz desse dinamismo do conhecimento, da


obsolescência do complexo, ela mesma um conhecimento que passa pela complexi­
ficação? Por que o dinamismo desse conhecimento que se renova sem cessar, que
é capaz de recolocar em causa os princípios fundados, que engendra analogias,
que é novamente trabalhado?
E qual é a idéia que está subjacente, em sua obra, a esse dinamismo do
conhecimento e da complexidade?
R.: Acredito que o dinamismo do conhecimento científico sustenta
um primeiro motor, o da curiosidade inesgotável, inesgotável porque
um conhecimento, uma descoberta, a resolução de um enigma faz sur­
gir novos enigmas, novos mistérios. A aventura do conhecimento é
non stop, porque, quanto mais se sabe, menos se sabe. Não são coisas
subtrativas. Quanto mais sábio, mais ignorante. Essa aprendizagem
da nossa ignorância é positiva, já que nos tornamos conscientes da igno­
rância de que éramos inconscientes. Portanto, existe um dinamismo
que está no seu próprio movimento. O conhecimento do tipo cientí­
fico jamais encontrará um limite. O limite talvez possa ser encontrado
num conhecimento do tipo místico ou do tipo religioso, no qual,
enfim, tenha-se contato com real. No caso científico, é a ilusão que
faz com que um teórico possa ver finalmente onde está a chave do

76
+
A inteligência da complexidade

universo, a teoria unitária. Mas é ele mesmo que a terá e não os outros
cientistas que apresentam outras teorias.
E chegamos ao segundo aspecto do dinamismo, o aspecco concorren­
cial muito profundo que Popper destacou entre ideologias, a diversidade
dos espíritos, e que, no entanto, não é estéril; não é destruidor porque
se respeita uma regra crucial do jogo. E, de fato, a ciência conseguiu
conquistar um terreno de relativa autonomia na sociedade. Ela pode,
mesmo nas sociedades em que reinam as piores coerções ditatoriais ou
totalitárias, guardar uma relativa autonomia. É evidente que, por
exemplo, houve um tempo em que o Partido legislava; agora ele não
legisla mais nas ciências físicas porque, para a indústria da paz ou da
guerra, a ciência é muito útil ao poder, o que torna o problema da ciên­
cia ainda mais inquietante.
Então, esse dinamismo tem causas intrínsecas, ou seja, a curiosidade
e a competição, e causas extrínsecas, que são a relativa autonomia e a
regra do jogo. Atualmente, a complexidade aparece como o retorno do
reprimido. Durante muito tempo, portanto, acredicou-se na explicação
simples, no princípio simples. Procurou-se o mesmo tipo de segurança
na pesquisa científica que se procurou na religião. Acredito que aquilo
que se chama de "cientifismo" não é outra coisa senão colocar a ciência
no lugar da religião, achando que ela vai desempenhar a mesma função,
que vai trazer a certeza. E, ainda hoje em dia, a crença "vulgar" é que a
ciência é a cerca. Evidentemente, é o certo sobre o plano dos dados. Mas
não é o certo no que diz respeito ao pensamento, à teoria. Esse movi­
mento inquietante da incerteza e a descoberta de zonas do real onde a
lógica não funcionava mais puseram novamente em marcha a proble­
mática da complexidade. Acredito que esse reprimido pôde vir porque
nós nos amparamos sobre as aporias, as perplexidades, as incertezas, as
contradições. A experiência precede a essência, a teoria. Foi de fato a
resistência do real que trouxe consigo a complexidade, e é isso que eu
acho muito bonito.
Vou responder agora à questão sobre o materialismo e o idealismo.
O que eu chamo de "idealismo", criticado como idealismo, é a preten­
são de fazer entrar o real em um sistema coerente e simples do espírito. O
sistema dito materialismo é o exemplo típico desse idealismo. O extraor­
dinário na aventura (e eu sou completamente apaixonado pela aventura
científica) é o real que nos relembra que o nosso espírito é muito pequeno,

77
Edgar Morin

que existem mais coisas sobre a Terra e no céu do que em todas as teorias
e em todas as filosofias, e o real é sempre enorme. Ele não se deixa jamais
arrebatar pelo nosso espírito, pela nossa ideologia, e os estimula a se auto­
ultrapassar. Ela não pode se auto-ultrapassar senão no jogo complexo.
Acredito que o grande estímulo é esse diálogo do espírito com o real.

P.: Feitas todas as contas, o complexo tal como o senhor o analisou não é a
própria expressão da natureza de tudo o que é concreto? Tudo o que é concreto é
complexo, mais problematizável do que o abstrato?
R.: Sim, mas o próprio abstrato resiste a se tornar complexo a partir
do momento em que existam limites à lógica clássica. Tome como
exemplo a teoria dos conjuntos flexíveis, que é tipicamente o abstrato
se tornando complexo. A partir do momento em que há conjuntos
leves, não existe uma fronteira clara entre eles. A teoria de Godel faz
surgir a complexidade no formalismo, e desse modo a complexidade
lógica surgiu no coração do pensamento abstrato.

P.: Em que medida é preciso desconfiar das obsessões ontológicas?


R.: Você cita uma frase que eu escrevi: "As zonas obscuras do espírito
existem também no sábio. Um fervor epistemológico pode dissimular
uma obsessão ontológica". É verdade que somos codos ontológicos.
Mesmo se pensamos que nada existe, esse nada é muito denso, como no
caos. É certo que pensamos por obsessões ontológicas. É preciso descon­
fiar delas1 Inicialmente, é necessário conhecê-las; uma vez que as
conhecemos, é preciso dialogar com elas, quer dizer, desconfiar e ao
mesmo tempo não desconfiar de maneira puritana, de maneira policial,
porque é preciso saber dialogar com suas obsessões. Enfim, não é preci­
so impedir de tê-las. Se isso se torna monomania, é preciso se curar, evi­
dentemente. Todos temos pulsões do espírito com raízes muito duvidosas,
sem dúvida, e com as quais é preciso tentar estabelecer um diálogo de
elucidação. Acredito que existam casos cruciais.
Vejo um problema típico em que existem dois jogos de obsessões: é
o famoso problema da origem da vida. É um problema muito interes­
sante porque hoje em dia examinam-se os dados. Existem argumentos
a favor da idéia de que a vida é um fenômeno a tal ponto improvável
que ele é único no cosmos.

78
A inteligência da complexidade

Argumento a favor: inicialmente, na Terra, só houve provavelmente


um único ser vivente e não vários. A prova é o mesmo código genético,
o caráter da molécula de carbono, do átomo de carbono ... Existe o fato
de que não se tem nenhuma comunicação com extraterrestres... Por­
tanto, a vida é filha do acaso inaudito, e, como diz Monod, somos os
ciganos do universo.
Argumento contra: percebemos, hoje em dia, cada vez mais, que se
criaram macromoléculas complexas, aí subentendidos os aglomerados
bioquímicos. Em laboratórios, em condições relativamente fáceis,
podem-se reconstituir os conjuntos de macromoléculas indispensáveis à
vida. As condições de aparição da vida não são unicamente de acasos quí­
micos, mas favorecidas pelos turbilhões do tipo prigoginiano. A enorme
quantidade de estrelas, de eventuais planetas com as mesmas condições
da Terra, na sua origem, faz com que seja muito provável que haja vida.
O fato de que não se tenha comunicação não é prova de que não se terá.
Eis um problema tipicamente aberto! A idéia daqueles que querem
profundamente que esse fato seja único, que sejamos estrangeiros no
cosmos, etc., é algo que agrada mais por razões estéticas ou éticas... O
sistema de Monod, por exemplo, é uma hipótese que mantinha seu lado
muito protestante, ou seja, o sistema do Deus escondido. É essa idéia
que brotava de seu espírito e que ele a exprimiu de maneira magnífica.
Outros - por exemplo, os progressistas, os gradualistas - dizem:
Não! Não! Não! É preciso que a vida nasça em todos os lugares; é pre­
ciso que o universo tenha um sentido; é preciso que o universo queira
produzir a consciência. Eles reencontram essa idéia.
Reeves diz: "Sim, tudo se passa como se o universo quisesse desem­
bocar na consciência".
Eu digo: "Mas que desperdício inútil!"
Ele responde: "Mas, sim, é preciso que ele pague o preço do segun­
do princípio da termodinâmica".
Pessoalmente, eu gostaria muito de um e de outro no fundo. De um
lado, acredito na solidão trágica do homem e, de outro, gostaria muito
que existissem extraterrestres, ET, e tudo o mais.
O interessante é que o jogo das duas obsessões contrárias faz com
que uns e outros encontrem argumentos, realizem experiên_cias, façam
observações que levem água ao moinho. É esse o jogo que talvez possa
encontrar uma solução para esse problema.

79
Edgar Morin

P.: É indiscutível que Ciência sem consciência seria uma grande lição
para os juristas. A priori, o jurista parece dever ser mais bem preparado do que
os químicos ou os físicos a aceitar o lado da incerteza, do acaso, do sujeito... e
no entanto, como resultado, ele é ainda mais fechado do que os outros. Ele acre­
dita um pouco mais na objetividade do que os outros. E, aliás, existe o fato bruto
(o senhor me dirá que isso é somente um detalhe, talvez; ainda assim, é um enor­
me indício): na enciclopédia Piaget, quase todas as disciplinas são abordadas.
Falta uma: o direito. Existe uma epistemologia da biologia, uma epistemologia
da sociologia, uma epistemologia da matemática... Não há a epistemologia do
direito. Não digo que não exista de modo nenhum uma epistemologia noutra
parte, mas noto que os juristas parecem, pela sua maneira de trabalhar, por
aquilo que eles estudam, mais próximos que os outros a admitir uma certa mar­
gem de incerteza, e que eles ocultam essa margem de incerteza de uma maneira
que me parece verdadeiramente dramática.
Se os juristas chegam a fazer desaparecer tudo isso, é porque desde o início eles
fizeram desaparecer simplesmente, de uma maneira muito complexa, o estudo de
direito. Se há uma etapa que está hoje completamente encoberta, é o estudo do
direito. Fazer direito é participar da formação do direito. O objeto e o sujeito se
ajustam perfeitamente. Não existe mais nenhuma fase que pudesse ser percebida
pela epistemologia porque ninguém mais estuda o direito. Testemunho disso são as
extraordinárias mudanças dos significados da expressão "ciência do direito".
Ciência do direito, no século XIX, é a pesquisa do direito natural; a partir
do início do século XX, ciência do direito se torna a observação dos dados sociais
da fabricação do direito. Hoje, quando se observa aquilo que poderia caracteri­
zar a epistemologia jurídica, não há nada aparentemente porque não existe mais
a reflexão sobre o estudo do direito. Tenho a prova por um pequeno detalhe. Não
faz muito tempo, quando pedimos ao CNRS que financiasse as pesquisas sobre
o progresso do conhecimento jurídico, em resposta o CNRS entendeu progresso do
direito e nos respondeu: "Pesquisa puramente ideológica, impossível de ser finan­
ciada". Acho isso significativo.
R.: Acho que o senhor deu o diagnóstico fazendo a pergunta. O direito
é uma ciência, uma ciência que produz o seu objeto, ao passo que a eco­
nomia é uma ciência econômica que contempla o seu objeto. Evidente­
mente, ele toma o seu objeto, seus caracteres quantificáveis, mas existe
essa distância. Em outras palavras, até o momento, concebeu-se o direito
como uma ciência que está inteiramente identificada com a produção do
seu objeto. É o primeiro ponto de vista e o senhor tem razão de me dizer

80
+
A inteligência da complexidade

que é preciso distinguir a noção de direito daquela de ciência do direito.


Por outro lado, é preciso examinar os traços característicos desse objeto.
Parece-me que o direito se define, não pela transcrição, mas pela proibi­
ção. Ele diz aquilo que não é preciso fazer e muito raramente aquilo que
é preciso ser feito. Existe um terreno inteiro de pesquisa que necessita da
redefinição do objeto tornando-o complexo e autônomo.

P.: Conhecer o estudo do direito é o que eu chamaria, de maneira um pouco exa­


gerada, o paradigma. O paradigma que vejo aí é a crença na possibilidade de um
direito, objeto exterior, reatado a um certo número de princípios: falamos de princí­
pios, mas poderia ser de autoridades. Em outras palavras, existe atrás de tudo isso a
idéia de que o direito é um objeto exterior observável porque ele é o produto de um certo
número de autoridades instituídas. Mas, sendo assim, é isso que eu não compreendo.
Diz-se: o direito é o produto da vontade do legislador. Para mim, se é um objeto exte­
rior, estudemos as condições dessa observação! Nesse caso, estou completamente sozinho.
Não existe ninguém para observar porque não me respondem; é o senhor que produz
o objeto que o senhor está observando. Nesse caso, não compreendo.
Outra pergunta: esse problema, nós o reencontramos constantemente em socio­
logia religiosa. É que a produção dos bens simbólicos gera efeitos recorrentes em
que o menor é somente a análise desta produção e implica o auto-suicídio do grupo
que o produz. O que me causa surpresa é que os juristas jamais se questionam. A
resposta existe muito claramente: é o fato de que se raciocina em termos de coisas
científicas. O jogo é sempre o mesmo, o da dominação do campo científico.
Ora, os juristas entendem ter o monopólio absoluto do montante e do aval. É
paradoxal na medida em que eles não são nem os verdadeiros produtores, nem os
verdadeiros controladores da produção. Eles são os agentes legítimos da produção de
um bem muito particular, um bem simbólico que se chama direito, mas não contro­
lam a legitimidade das autoridades. Essa legitimidade lhes é endógena, exterior; e
eles não controlam a aplicabilidade, já que é um corpo especial do aparelho repres­
sivo do Estado ou dos aparelhos ideológicos que controlam sua própria produção.
É uma situação fantástica. De fato, a questão é: esse esquema é aplicável à
nossa própria disciplina? A resposta é: sim, mas isso implica que vocês desapa­
reçam. A ciência do direito só pode operar a partir dos conceitos e dos instrumen­
tos do direito. É esse o significado.
Outra pergunta: O extraordinário é que efetivamente essa idéia de que o
jurista não tem acesso àquilo que precede a afirmação do direito lhe permite, com
efeito, formar o direito como ele queria.

81
r
Edgar Morin

Outra pergunta: Sinto muitíssimo esse tema, mas o direito não é uma ciência
de gênio, uma ciência de concepção, uma ciência totalmente artificial? O enge­
nheiro, o jurista fazem a mesma coisa. Eles concebem qualquer coisa que depois
de cientificar vão tentar conhecer por um processo de conhecimento científico.
Ora, percebemos que formar um engenheiro e formar um jurista é também
desesperador; eles se fecham neles próprios. Não podemos mais tratá-los como objeto
do conhecimento científico. Ou eles aceitam entrar nessa problemática, mas lá está
o olhar sobre o conjunto de nossas disciplinas que deste modo está protegido.
Outra pergunta: Tenho somente uma informação a dar. Quando se fala de
disjunção para simplificar, para apreender no fundo a unidade do raciocínio,
damo-nos conta de que não se chega ao mesmo padrão, e é estranho porque aí o
esquema torna-se a juntar, o que acho apaixonante. Vou tomar dois exemplos.
Primeiro exemplo: a propriedade. O conhecimento que se tem da propriedade
é no fundo a idéia de que se faz da propriedade; ela é totalmente diferente1
segundo o enfoque dos sistemas do Common Law ou os sistemas continentais, e
essas diferenças contêm aquilo que podemos chamar de razões socioculturais ou a
história, e chega -se a essa coisa bizarra, que o nível de argumentação não é o
mesmo. De um lado, tem-se a impressão de que se parte de um elemento de racio­
cínio e se dissocia e, de outro1 parte-se de um elemento de raciocínio ao qual se
chega pela acumulação.
Explico: a propriedade é o próprio tipo do direito e é a partir dessa unidade
de argumento que se vai decompor e se vai dizer: existe o usufruto, a propriedade
de raiz... Se não nos submetemos à influência que nós tivemos, mas à influência
que receberam os anglo-saxões, o procedimento é inteiramente diferente, porque a
unidade de raciocínio é ao contrário os "interests"1 isto é, os pequenos pedaços; os
anglo-saxões têm como unidade o raciocínio de um certo número de "interests"
que, reagrupados na nossa visão, dão, grosso modo, a propriedade. Mas há
alguma coisa que perturba: é que no fundo a unidade de argumento, a unidade
lógica, é tanto um conjunto como um elemento. O exemplo que lemos é aquele da
propriedade, mas poderia ser o contrato. Para nós, no código, fala-se de contrato,
de consentimento, de unidade de argumento - é o contrato. O BGB, o código civil
alemão, fala da declaração de vontade. Declaração de vontade mais declaração
de vontade igual contrato.
R.: Sim, sem resposta. Simplesmente, se vocês tomam os dados obser­
váveis da propriedade francesa, anglo-saxônica ou germânica, é evidente
que o conhecimento diferenciado reconduz às condições histórico-sócio-

82

A inteligência da complexidade

culturais diferenciais de sua produção. O que não resulta em grande


coisa visto que já existe um postulado no início de sua proposição. Mas,
enfim, isso quer dizer simplesmente que nesse quadro podemos tentar
analisar mediante processos divergentes e notadamente a própria consti­
tuição, essa mesma noção de propriedade, o que quer que ela seja, é uma
cristalização sócio-histórica. Agora, pode-se dizer que por trás dessas
estruturas históricas, se vocês raciocinarem em termos de ideologia , evi­
dentemente, os ecologistas farão emergir uma noção de territorialidade,
pela qual vocês se darão conta das diversas formas, até a cristalização do
conceito de propriedade. Então, é todo um programa tipicamente para
elucidar, a partir do objeto singular, local e histórico. Mas, sobre um
plano mais amplo, pode-se dizer que é um problema não esgotado. Por
que existe propriedade antes da não-propriedade?

P.: Mas posso mudar o rumo da conversa em direfãO da _ou das lógicas? Vou
fazer uma pergunta. Não podemos deixar que essa discussão fique para depois
- com pouca diferença -, trezentos anos depois que surgiu a Lógica de Port­
Royal e depois que nossos ancestrais de cinco ou seis gerafões e nós mesmos este­
jamos convencidos de que em termos de método, em termos de economia de pensa­
mento, em termos de economia de esclarecimento de uma verdade suficiente para
agir, estejamos fechados num esquema que nos parecia muito familiar, que se nos
tornou natural, que vocês evocaram anteriormente sucintamente. Não podemos
nos conformar, pelo menos quando temos que colocar as notas sobre uma cópia. O
que eu quero dizer é: se isso não é verdadeiro, é falso; se isso não é falso, é ver­
dadeiro; uma situafãO intermediária é a priori dificilmente manipulável. Ou
ainda: um operador não deve ser ao mesmo tempo um operador e o resultado de
uma operação. Para tomar dois exemplos bem esquemáticos.
A impregnafão desse interdito do terceiro excluído que se encontra nas dife­
rentes expressões. Esse interdito é tão pesado que temos unia certa dificuldade de
entender o próprio conceito de complexidade, que, no fundo, convoca a intrusão
do terceiro. A complexificafão, acrescenta o senhor, quando eu proponho a com­
preendê-la como a intrusão do terceiro imprevisível, não totalmente previsível em
toda a relafãO de construfão, de conhecimento? Essa intrusão, que tem conseqiiên­
cias tão dramáticas em termos de afãO hoje com, por exemplo, o desenvolvimento
da informática, os sistemas "experts". Essa inibifãO é tão forte que me pergunto
se podemos tolerá-la; não devemos dizer a nós mesmos que todos os paradigmas
que o senhor nos propõe não vão conduzir ipso facto à hipótese de trabalho?

83
Edgar Morin

Devemos nos resignar, privar-nos desse aparelho lógico, que se tornou lógica for­
mal e que por isso adquiriu uma fecundidade, uma força, uma economia que, por
outro motivo, nos surpreeende? Privar-nos, com efeito, desses fantásticos proveitos
das lógicas exclusivas ou excludentes, tornadas formais; e devemos aceitar repartir,
com uma "bolsa" muito menos aparelhada em termos de elegância, de comodidade
de emino? Não éfácil ensinar uma lógica deontológica hoje em dia. E as lógicas
flexíveis, pelo menos para o momento, é o cinema, por assim dizer, a boa velha lógi­
ca com um pouco de probabilidade. Mas permanecemos com a nossa velha receita.
Minha pergunta: O senhor está pronto para dizer: Sim, convenhamos que o
seu aparelho lógico, oficial, constitucional é, com efeito, muito perigoso para nos
permitir com alguma probidade e segurança explorar as outras construções do
conhecimento que o senhor sugeriu, e, em conseqiiência, esforçamo-nos por inovar,
de um lado, por reformular outras lógicas. Ou nós tornamos conveniente que
infringiremos uma regra sagrada fora daquela, aquela de Aristóteles, de Santo
Tomás de Aquino, de Port-Royal... Tem-se um tal corpo de batalha que não
temos o direito de nos privar dele.
R.: A questão é gravíssima. Vou resumir um pouco o meu ponto de
vista, e aproveitarei para falar de Marx e de Hegel.
Aproveito que o terceiro excluído que incomoda o pensamento cons­
trutivo ou sintético, recursivo, é necessário ao pensamento analítico,
segmentário. Em outras palavras, não podemos abster-nos do pensa­
mento analítico, mas é preciso admitir que ele é segmentário, ou seja,
que cada segmento do nosso raciocínio não pode obedecer à lógica aris­
totélica. Somente o todo do nosso raciocínio e do nosso pensamento o
ultrapassa e lhe foge de uma certa maneira, se ele é construtor ou cria­
dor. Eu diria, para simplificar: o pensamento é muito mais do que a
lógica, mas ele não é nada sem a lógica. Isso é urna coisa.
Existem também dois tipos de idéias que eu gostaria de elucidar com
relação aos limites da lógica aristotélica. Um deles é a idéia de transgres­
são e o outro, de dialógica. A idéia de transgressão, no momento em que
formulamos, sintetizamos o princípio segundo o qual existe o não-eu no
eu, eu sou o que sou, e eu não sou quem sou, nós sustentamos os propósitos que, de
outro modo, estão inteiramente coerentes porque posso segmentaria­
mente, fazendo apelo à lógica aristotélica, aí chegar, se bem que a for­
mulação global ultrapasse inteiramente a lógica aristotélica.
Então, o que é a aventura do pensamento1

84

A inteligência da complexidade

É um pensamento que dá saltos fora dessa lógica para depois aí recu­


perá-la. Ele a recupera depois numa fase retrospectiva verificadora e
analítica. Em outras palavras, é preciso caminhar por essa lógica e sobre
sua transgressão sem que se tenha a esperança de uma lógica superior.
Que possam existir lógicas operacionais com diversos valores, é possí­
vel. Mas, a meu ver, elas não poderão ser lógicas da nossa linguagem
dita natural, do nosso pensamento dito conceitual.
Acredito que Hegel justamente não conseguiu fazer urna lógica,
mas mostrar as insuficiências da lógica clássica. O que Hegel conseguiu
é que se pode pensar através da contradição e se ajudando a contradi­
ção. Hegel demonstrou ainda que a idéia de negatividade podia ter um
valor justamente que ela não podia adquirir no quadro da lógica clássi­
ca. Mas não existe na dialética de Hegel nem regulamento, nem para­
peito, o que faz com que essa lógica se torne finalmente descomedida
se ela não observa um respeito muito rescrito do mundo dos fenôrnenos
e a aceitação da verificação sobre os segmentos utilizados pelo pensa­
mento aristotélico... Senão, é a pretensão de dizer qualquer coisa, sem
se preocupar como dizê-la: isso é a dialética.
Notem, eu conheci quem trabalhou desse modo. Com eles, a idéia
de ter uma pretensa lógica superior era uma maneira de deixar a razão
não acima, mas embaixo. É esse o drama desse tipo de pensamento.
A idéia de dialógica me parece interessante; existe uma diferença em
relação a Hegel. Hegel faz sua lógica partir da impossibilidade de per­
manência da noção do ser. É urna noção ao mesmo tempo tão vazia
quanto cheia que ela tem de saltar, que ela chama de não-ser e que tudo
isso junto produz o devir. Em Hegel, o Um explode sempre e, depois
que se forma a unidade, existe uma negatividade no interior que traba­
lha e que, de novo, o faz explodir. E com isso ele explica a evolução. O
interessante nos fenômenos da evolução como eles nos são revelados no
universo físico e biológico é que o átomo nasce da reunião de várias par­
tículas. Depois, na vida, o interessante é que a união de cercos tipos de
existência química, a união, por exemplo, das moléculas transitórias, da
proteína instável, poliforme, com os ácidos nucléicos que têm qualidades
de duração, de perenidade, ou seja, a união de dois constituintes cujas
propriedades são totalmente heterogêneas faz urna única, que é a uni­
dade do ser vivente e da célula vivente. Era qualquer coisa de dialógico.
Em outras palavras, o nosso espírito só vê dois princípios inteiramente

85
Edgar Morin

diferentes porque, de um lado, vocês têm aquele que vive um instante,


o fenómeno individual que morre, e, de outro, alguma coisa que pare­
ce atravessar de maneira invariável a torrente dos séculos, que é o capi­
tal genético, o modelo hereditário.
Assim, vocês têm uma vida na duração, sem individualidade - é o
gene -, e, de outro lado, um:a vida na mudança, o mundo das formas
diversas - o indivíduo -, é um fenómeno tipicamente dialógico e ao
mesmo tempo recursivo, já que para que um indivíduo exista é preciso
que haja um processo de reprodução que o transcenda.
O indivíduo aparece como puro produto, mas aquilo que produz é
necessário à produção desse processo de reprodução. É preciso que tenha
as sementes que permitirão a reprodução. Desse modo, o indivíduo é o
produto epifenomenal e o elo fundamental desse processo dialógico.
Essa questão da dialógica se apresenta também, por exemplo, entre
o social e o individual; ela se coloca em outros termos, mas é também
inquietante.
Somos obrigados pois a pensar de urna maneira dialógica, e eis então
alguma coisa também que não é absolutamente prevista na lógica clás­
sica, que ela não proíbe, que a ultrapassa incontestavelmente. O que nos
reconduz à idéia inicial de que o pensamento é mais do que a lógica.
Quanto a Hegel e Marx, no fundo, acredito que faço parte dessa cor­
rente de pensamento que remonta a Heráclito...
Num outro sentido, quais são as diferenças?
De urna parte, é a desconfiança sob o olhar da intemperança dessa
dialética de Hegel, reconhecendo inteiramente a virtude de querer pensar
com as contradições, com os contras da contradição; a harmonia também
não elimina a discórdia que a constitui, ela a comporta; e, nesse sentido,
ela não está em harmonia ao mesmo tempo que está. É essa, a meu ver,
a dialética no seu sentido forte . De outra parte, me diferencio do caráter
um pouco eufórico, eu diria mesmo teleguiado, da dialética de Hegel
que gera por si própria os excessos - em outras palavras, os excessos que
vêm como por uma espécie de necessidade interior.
Creio que a propriedade de muitas coisas vivas, organizadas, é que
elas vivem de contradições sem poder ultrapassá-las; o viver é de algu­
ma maneira superá-las, mas sem que aí haja o além (do outro lado) da
contradição. "O ser vivo só pode existir a uma temperatura de sua própria
destruição." Sobre o plano físico, isso quer dizer que, se quisermos criar

86

A inteligência da complexidade

a vida, se quisermos pegar o líquido, é bem evidente que não se pode


conseguir reorganizar os constituintes da vida. Se quisermos pegar o
sólido, vamos colocá-lo numa geladeira, é muito cristalino e acabou, a
vida não pode existir. A vida está entre o sólido e o líquido. É uma
situação absolutamente paradoxal; ela tem as propriedades do sólido e
do líquido e é inteiramente um e outro, nem um nem outro.
Essa idéia de viver as contradições vale para o pensamento que "vive
a uma temperatura de sua própria destruição" e corre o risco de ser sem­
pre devorado pela contradição; não existe uma sobrelógica que seria o
nosso protetor e o nosso guia. Existem contradições que não podem ser
ultrapassadas, talvez provisoriamente. Um certo tipo de perplexidade
surge do real como as grandes aporias que Kant havia formulado e que
não podem ser ultrapassadas; talvez um dia, mas eu não sei nada.
Bem, não vemos como, com os limites do nosso espírito, possamos
ultrapassar essas contradições, mas podemos trabalhar na fronteira dessas
contradições. Darei um estatuto mais forte à contradição do que à ultra­
passagem, mas reconhecendo a possibilidade de ultrapassagem. E, quando
dei o exemplo de Gõdel e mesmo o pensamento do próprio Gõdel, vê-se
perfeitamente que se pode colocar a ultrapassagem, não somente em ter­
mos de ultrapassagem das suas contradições, mas de ultrapassagem das
carências e dos limites pelo recurso a um sistema mais rico e finalmente
mais complexo. Portanto, a complexidade é inerente ao seu diria quase
inconsciente no pensamento de Hegel. Ela não está formulada, embora o
pensamento de Hegel seja denso de idéias de complexidade, mas ela não
está formulada. Além do mais, acredito que aquilo que não estava formu­
lado com Hegel é igualmente a incerteza. É após Hegel que a termodi­
nâmica introduziu a desordem no mundo físico. Hoje sabemos que os
átomos, as moléculas, a vida são originados de encontros aleatórios. Em
outras palavras, só existem contradições, oposições; existe o jogo aleatório
que é importante. Evidentemente, um hegelianismo aberto, um marxismo
aberto podem muito bem aceitar esses pontos de vista e reconhecê-los.
Infelizmente, em geral, eles são mais fechados.
Acredito que o pensamento de Marx permanece um pensamento pro­
fundo. Um grande pensador que descobriu uma complexidade no real.
Ele viu os tumultos, as discórdias, os conflitos, onde normalmente esses
conflitos não eram vistos. É um pensamento bastante enérgico, que tentou
ligar os domínios do saber que não se comunicavam entre eles. É um

87
Edgar Morin

pensamento que permanece inteiramente vivo? No momento em que


suas formas degradadas ocultam todos os problemas que nascem na
sociedade moderna e na vida política e social do mundo moderno. O
marxismo degradado é um instrumento de elucidação - isso é bastante
compreensível. Finalmente, eu diria que a complexidade pode ser
decomposta, mas não composta de maneira lógica.

P.: Sobre o problema da evolução, sobre a recusa de considerar as ciências como


os domínios platônicos, o senhor salientou que só pode haver ciência a partir do
momento em que o seu objeto aparece no mundo. Em particular, a química só tem
sentido, só tem existência a partir do momento em que o universo é capaz de pro­
duzir corpos químicos. Existe, portanto, uma progressão do universo que ocasiona,
mas num devir verdadeiramente evolutivo, ocasião de ciências verdadeiramente
diversas. Essas ciências, no fundo, que Auguste Comte havia colocado em escala.
É bastante fácil reconhecer também com C omte essas ciências diferentes, mas sem
a idéia essencial de que elas aparecem na história, segundo a ordem na qual os
seus objetos apareceram e nas suas condições de plausibilidade. Existe um tipo de
repetição do paradigma evolutivo que se cruza numa certa medida ao mesmo
tempo na história das ciências e na história do universo.
R.: Não tenho nenhuma objeção; o paradigma da evolução e da his­
tória se processa mais além. A partir do momento em que se faz uma
ciência que se chama de história, esta deve ser historizada; ela mesma
se torna o objeto. Nesse momento, o espantoso é que se acredita que se
vai num movimento de recursão infinito, ou seja, que se faz a história
da história, se fundamentar qualquer coisa de uma história que se
auto-reflete, que seja própria às condições de existência, quer dizer, um
nova relação com o passado. Pensar a química como o surgimento que
se encontra numa certa relação com o devir evolutivo do universo é
também fazer um tipo de círculo no tempo que permite ao conheci­
mento químico se inserir na história das idéias históricas e na história
do universo. Eu acredito que não se possa escapar à problemática do
tempo, que é muito mais complexa do que se tinha acreditado.

P.: Apenas uma pequena ressalva: essa apresentação não é um pouco euro­
peu-centrista? Eu daria dois exemplos contrários de acasos: o primeiro é um
filósofo árabe do século IX que redescobre a lógica absolutamente moderna. O
meu problema é que a história desse autor que descobre uma história fazendo

88
A inteligência da complexidade

história e que não tem absolutamente nenhum impacto sobre a sociedade de seu
tempo porque ele teve realmente medo do que havia encontrado que ele regrediu no
conhecimento. Isso é para o mundo já mediterrâneo, mas é ainda mais verdadeiro
para os outros mundos que consideramos como arcaicos, por exemplo, em matemá­
tica ou em álgebra. E a questão que eu colocaria, já que o senhor disse que nenhuma
das variáveis é necessária, é: o que faz que num determinado momento essa coisa
aconteça lá e não noutro lugar? Porque eu creio na progressividade, mas acredito
antes de mais nada na espiral. O que faz que num momento onde existe um con­
junto de fatores o desencadeamento epistemológico possa se produzir?
R.: O senhor tem dois exemplos que são somente em parte esclarece­
dores. O senhor tem, por exemplo, o surgimento de um pensamento novo;
esse pensamento novo pode não dar frutos, não criar o movimento, a cor­
rente. Se ele está isolado, não é muito desviante, ou seja, ele tem medo dele
mesmo. A eclosão do novo pode-se fazer em condições sócio-históricas que
não a determinam; isso retorna a condições individuais do conhecimento.
Acredito que um espírito original pode, numa civilização, ter uma
idéia que não seja absolutamente determinada pelas condições da civili­
zação. Mas essas condições socioculturais vão, sem dúvida, ajudar a fazer
frutificar, quando elas já estiverem favoráveis, tal tipo de invenção, tal
tipo de descoberta. Tenho certeza de que os não-crentes, os livres-pensa­
dores devem ter existido mesmo nas sociedades arcaicas; mas apenas eles
não as diziam por prudência... Portanto, acredito que as condições sócio­
históricas chegam a um dado momento para fazer o sucesso ou o fracasso
de um movimento de idéia. E, sobretudo, no início, existe um período
aleatório em que o movimento pode ter êxito ou fracassar.
Tome o caso, por exemplo, do terrorismo. Como ocorreu na Aleman­
ha, na Itália. Ele não se verificou na França. Na realidade, é suficiente
que no início possa constituir-se em grupo de vinte ou trinta pessoas
para que isso funcione, e se, de início, o primeiro grupo de quatro ou
cinco pessoas se detém, isso não funciona mais. Existe um papel que o
acaso desempenha no inído, mas, uma vez que tomou impulso, isso se
torna uma outra coisa. É por esse motivo que qualquer sociologia da cul­
tura, das idéias, não pode absolutamente ser uma sociologia determinis­
ta, por assim dizer: isso teve êxito porque isso deveria ser bem sucedido.
De modo nenhum. Existem o movimento autógeno das coisas e as con­
dições exteriores. Isso funciona ou não funciona. No início, o acaso
desempenha um grande papel, que vai diminuindo pouco a pouco.

89
Edgar Morin

2.l. Complexidade: os desafios do Método

A palavra vazia
A palavra "complexidade" está cada vez mais corrente e deste fato
depreende-se que a complexidade esteja cada vez mais reconhecida.
Esse reconhecimento da complexidade nos faz não elucidar, mas elidir
os problemas que ela coloca: dizer "é complexo" é confessar a dificuldade
de descrever, de explicar, é exprimir sua confusão diante de um objeto
que comporta traços diversos, excesso de multiplicidade e de indistinção
interna. Os sinónimos de "complexo" são, segundo o dicionário, "árduo,
difícil, espinhoso, embaraçoso, embrulhado, confuso, enrolado, entrelaça­
do, indecifrável, inextricável, obscuro, penoso". A palavra "complexida­
de" exprime ao mesmo tempo confusão da coisa designada e embaraço do
locutor, sua incerteza para determinar, esclarecer, definir e, finalmente,
sua impossibilidade de fazê-lo. O uso banal da palavra "complexidade"
significa quando muito "isso não é simples, isso não está claro, tudo não
é branco nem preto, não se pode confiar nas aparências, existem dúvidas,
nós não sabemos muito bem". A palavra "complexidade" é finalmente
uma palavra em que o demasiado pleno se faz uma palavra vazia. Como
ela é cada vez mais empregada, seu vazio se espalha cada vez mais.
Existe, portanto, um desafio da complexidade. Ele se encontra em
todo o conhecimento, cotidiano, político, filosófico, e, de agora em
diante, de forma aguçada, no conhecimento científico. Ele transborda
na ação e na ética.

A dissolução da complexidade
A incapacidade de reconhecer, tratar e pensar a complexidade é um
resultado do nosso sistema educativo. Ele ensina a validar toda percepção,
toda descrição, toda explicação pela clareza e distinção. Ele nos inculca um
modo de conhecimento oriundo da organização das ciências e das técnicas
do século XIX, que é difundida no conjunto das atividades sociais, polí­
ticas e humanas. Por toda parte ele é abstrato, ou seja, extraído, um objeto
de seu contexto e do seu conjunto que rejeita os laços ·e as intercomunica­
ções com o seu meio, insere-o num compartimento da disciplina cujas
fronteiras quebram arbitrariamente a sistemicidade (a relação de uma
parte com o todo) e a mulcidimensionalidade dos fenómenos; ele conduz-

90

A inteligência da complexidade

à abstração matemática que opera uma cisão com o concreto, privilegiando


tudo aquilo que é calculável e formalizável, disjunta e compartimenta os
saberes, tornando cada vez mais difícil sua colocação no contexto. Ele nos
impele a reduzir o conhecimento dos conjuntos complexos aos elementos
que os constituem e, como diz Piaget, a "considerar como simples aquilo
que parece tal pela dissociação do complexo". Ele nos ensina que atrás da
aparente complexidade dos fenômenos se escondem as leis simples da
natureza, que são as estruturas anônimas que operam através da singula­
ridade concreta dos seres humanos e da sua sociedade. Também o conceito
mestre de determinismo faz da incerteza não um dos caracteres da nossa
relação com o universo, mas o estado provisório da ignorância de uma
Ordem escondida. Ao mesmo tempo, ele justifica a aplicação da sua lógica
mecânica aos problemas vivos, humanos e sociais.
Desse modo, isolando e/ou fragmentando seus objetos, esse mundo
de conhecimento elimina não somente o seu contexto, mas também sua
singularidade, sua localidade, sua temporalidade, seu ser e sua existência,
e tende a desnudar o mundo. Reduzindo o conhecimento dos conjuntos
à adição de seus elementos, ele enfraquece nossa capacidade de reunir os
conhecimentos; mais freqüentemente, ele atrofia a nossa aptidão de reunir
(as informações, os dados, os saberes, as idéias) como único benefício da
nossa aptidão a separar. Ora, o conhecimento só pode ser pertinente se
ele situar seu objeto no seu contexto e, se possível, no sistema global do
qual faz parte, se ele cria uma forma incessante que separa e reúne, ana­
lisa e sintetiza, abstrai e reinsere no concreto.
Certamente, todo conhecimento comporta sua parte mais ou menos
grande de decomplexificação, no sentido de que ele separa como não
significativos, contingentes, epifenomenais um certo número de traços
do fenômeno considerado. Mas nós fomos educados para uma sobre­
simplificação, que separa tudo aquilo que não entra no esquema da
redução, do determinismo, da descontextualização.

A inteligência cega
Mas uma inteligência cega invadiu todos os setores técnicos,
políticos e sociais.
Desse modo, a economia, que é a ciência social matematicamente
mais avançada, é a ciência social e humanamente mais atrasada, porque
ela se abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas,

91
r
Edgar Morin

ecológicas, inseparáveis das atividades econômicas, bem como das deci­


sões, estratégias, inovações, invenções que aí intervêm (Morgenstern,
1972, p. 6). Maurice Aliais diz justamente: "Em economia tudo depende
de tudo, tudo age sobre tudo". E Von Hayek: "Ninguém pode ser um
grande economista se for somente um economista". Ele acrescenta
também que um economista que é somente um economista torna-se
prejudicial e pode constituir um verdadeiro perigo. Por esse motivo os
economistas são cada vez mais incapazes de prever e de predizer o
curso da economia até a curto prazo.
A ciência econômica clássica constrói sua disciplina como um sistema
fechado, e somente uma minoria de economistas "abertos", de Perroux
a Passet, abre para destruir esse fechamento. Morgenstern (1972, p. 5)
mostra que a noção de produto nacional bruto registra cegamente como
crescimento positivo todo mau funcionamento do sistema (crescimento
de engarrafamentos de trânsito, portanto o consumo de carburantes, as
suas emanações e as despesas com a saúde).
Existe uma associação surpreendentemente antinômica entre as
maravilhas das obras provenientes da racionalidade técnica, como as
grandes pontes, os grande túneis, as barragens monumentais, os aviões
supersônicos, os foguetes espaciais, e a cegueira sobre as conseqüências
humanas, sociais e culturais dessas obras. A ausência da contextualização
determina uma racionalidade fechada, ou racionalização 25 . Também a
racionalização abstrata e unidimensional triunfa sobre a Terra. Na
África, a agronomia dita racional pode desenvolver as grandes explora­
ções da monocultura com rendimentos superiores, mas ela destruiu a
agricultura de subsistência, todo um tecido concreto de relações sociais,
condenando as populações aos bidonvilles* ou à emigração.
Os engenheiros planificaram muito eficazmente a admirável bar­
ragem de Assuã para produzir energia elétrica e regular o curso do
Nilo, mas a barragem reteve uma parte dos limos que fertilizavam o
baixo vale e uma parte dos peixes que alimentavam as populações
ribeirinhas. Lá, como em outros lugares, o contexto humano cultural,
social foi ignorado pelos grandiosos programas técnicos concebidos

25. Para a definição do termo "racionalização'", cf. mais adiante.


* Aglomeração de habitações onde vive a população miserável. (N. da T.)

92
+
A inteligência da complexidade

em tubos de ensaio. As mais monumentais obras-primas dessa racio­


nalidade tecnoburocrata foram realizadas na URSS. Por exemplo, lá
foram desviados os cursos dos rios para irrigar, mesmo nas horas mais
quentes, vastas extensões de cultura de algodão, o que provocou a
salinização do solo pela subida do rio, a volatilização das águas subter­
râneas, a estiagem do mar de Aral. Infelizmente, depois do desmorona­
mento do Império, os novos dirigentes pediram ajuda aos especialistas
liberais do Ocidente, que, ignorando deliberadamente que uma eco­
nomia concorrencial de mercado tem necessidade de instituições, de
leis e de regras, não elaboraram a estratégia complexa indispensável
que teria operado uma transformação de menores custos humanos.
De fato, o programa econômico liberal foi pura e simplesmente subs­
tituído pelo programa estatal. E lá também, segundo a lei de Gre­
sham 26, estabelecida por H. Simon, a atividade programada elimina
a atividade não-programadà 27.
Em medicina, os progressos relevantes foram e continuam sendo rea­
lizados através da eliminação ou redução das epidemias, da multiplicação
das vacinas, dos transplantes de órgãos, dos avanços prodigiosos da cirur­
gia, dos primeiros passos da medicina preventiva, mas a hiperespecializa­
ção médica produz múltiplos efeitos nocivos: os órgãos são tratados inde­
pendentemente uns dos outros e independentemente do corpo. Desse
modo, os remédios que curam um órgão provocam freqüentemente novos
males em outros órgãos e, de fato, da mesma descontextualização os
medicamentos produzem as doenças chamadas iatrógenas.
O corpo é concebido como uma entidade somática fechada, que só
releva o tratamento químico. O corpo está, desse modo, desassociado do
espírito, e o espírito é tratado pela psiquiatria ou psicanálise indepen­
dentemente do contexto familiar, cultural e social. O clínico-geral, que
tem a possibilidade de juntar os órgãos ao corpo, o corpo ao espírito e este
ao meio familiar e cultural, desempenhava de fato esse papel nos tempos
antigos, em que conhecia pessoalmente, psicologicamente, familiarmente
e de maneira constante suas ovelhas. Hoje em dia, o clínico-geral das
cidades se tornou não o maestro que conhecia a partitura de todos os

26. A moeda má elimina a boa.


27 . Em The new science o/ management decúio11, Prentice Hall, 1977.

93
Edgar Morin

instrumentos, mas o prático de categoria inferior que despacha seus clien­


tes, e ele freqüentemente só tem um conhecimento breve e superficial,
adquirido de especialistas e de instituições de radiografia e ecografia.
Certamente, uma reação começou a ocorrer nesse campo e também
em outros, e nota-se a propagação da noção psicossomática que examina
não somente o efeito mental das doenças do corpo, mas o efeito corporal
das perturbações mentais; nota-se a difusão igualmente de uma psico­
terapia familiar ou de grupo. Mas não estamos ainda preparados para
considerar nossos males, pelo método, nos seus caracteres bio-psicos­
sociais. Não se instituiu ainda nem estabelecimentos, nem modos de
pensamento que permitiriam operar as rejunções.
A filosofia era, no entanto, o tipo de pensamento que permitia juntar
os conhecimentos, situá-los novamente no concreto e na complexidade,
e trazer a capacidade de reflexão global de cujas inteligências puramente
especializadas são desprovidas. Mas um grande desmembramento separou
a ciência e a filosofia, e o moinho da filosofia, cessando de se alimentar
das ciências, notadamente dos conhecimentos-chave concernentes ao
mundo, à realidade física, à vida, à sociedade, gira vazio e se consagra a
morder sua própria substância, o que, aliás, suporta sua fecundidade,
mas rompe com uma das suas missões tradicionais, que era de pensar e
refletir sobre os saberes adquiridos pelas ciências.
Em múltiplos domínios, portanto, a inteligência parcelada, compar­
timentada, mecânica, disjuntiva, reducionista, destrói o complexo do
mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa aquilo
que está juntado, unidimensionaliza o multidimensional. É uma inte­
ligência ao mesmo tempo míope, presbita, daltônica, zarolha; ela acaba
freqüentemente por tornar-se cega. Ela destrói na origem as possibili­
dades de compreensão e de reflexão, eliminando também todas as chances
de um julgamento correto ou de uma visão a longo prazo. Assim, mais
os problemas se tornam multidimensionais, mais existe a incapacidade
de pensar sua multidimensionalidade; mais os problemas se tornam
planetários, mais eles se tornam impensáveis; mais a crise aumenta,
mais cresce a incapacidade de pensar a crise. Incapaz de visualizar o
contexto e o complexo planetário, a inteligência cega torna-se incons­
ciente e irresponsável. Ela acredita na pertinência e na credibilidade das
suas atividades programáticas que ignoram freqüentemente as condi­
ções, as coerções e as possibilidades do contexto dessas atividades.

94

A inteligência da complexidade

De tudo isso, resultam catástrofes humanas cujas vítimas e as conse­


qüências não são nem compatibilizadas nem asseguradas, como são as
vítimas das catástrofes naturais.
De onde vem a certeza desse modo de pensamento, tão pouco sensível
às cegueiras e aos desastres que ele provoca?
Como iremos ver agora, "dos quatro pilares da certeza".

Os pilares da certeza
Até o início do século XX - quando ela entra em crise -, a ciência
"clássica" se fundamentou sobre quatro pilares da certeza que têm por
causa e efeito dissolver a complexidade pela simplicidade: o princípio
da ordem, o princípio de separação, o princípio de redução, o caráter
absoluto da lógica dedutivo-identitária.
Esses quatro pilares suscitaram um tipo de conhecimento que
expandiu seu império das ciências físicas às ciências humanas, das ciên­
cias às técnicas - de agora em diante associadas em tecnociências -, destas
às instituições industriais, burocráticas privadas e públicas, e desse
modo esse império cresceu nas dimensões do mundo contemporâneo.
O pilar da "ordem" postula que o Universo é regido pelas leis impe­
rativas. Seu caráter absoluto provém da origem da monarquia absoluta,
humana e/ou divina. Até Newton, é a perfeição divina que garante a
perfeição das Leis da Natureza. Depois, com o reenvio de Deus ao
desemprego tecnológico pela ciência do século XIX, a Ordem se fun­
damenta sobre ela mesma, ou melhor, é o mundo concebido como
máquina perfeita, que adquire o absolutismo arrancado de Deus.
Da realeza da ordem emana, portanto, uma concepção determinista
e mecânica do mundo. Toda desordem, todo acaso aparente são consi­
derados como uma carência do nosso conhecimento ou um efeito da
nossa ignorância provisória. Atrás dessa desordem aparente existe uma
ordem escondida a ser descoberta e é a pesquisa multiforme, obsessiva
da ordem escondida das leis da natureza que a conduz às grandiosas des­
cobertas da ciência física, de Newton a Einstein.
O segundo pilar, o do princípio da separabilidade, é constituído pelo
princípio segundo o qual para resolver um problema é preciso decompô-lo
em elementos simples. Segundo regra do Discurso do método: "Dividir
cada uma das dificuldades que eu examinaria igualmente em partes que
pudessem e que fossem convenientes para melhor resolvê-las". Esse

95
Edgar Morin

princípio analítico é certamente pertinente, mas aí simplesmente falta


a consciência da dificuldade que coloca o conjunto enquanto conjunto.
O princípio da separabilidade se impôs no domínio científico pela espe­
cialização, depois ele se degradou em hiperespecialização e comparti­
mentação disciplinar em que os conjuntos complexos como a Natureza
ou o ser humano foram fragmentados em partes não comunicantes.
Isso operou-se desse modo:
• a separação entre as grandes ciências e no interior das oencias
entre as disciplinas que tendem a se fechar em si próprias, depois
propagou-se a especialização das técnicas e enfim das ciências
humanas segundo os mesmos princípios, o que conduziu a uma
parcelarização generalizada do saber;
• o isolamento dos objetos do seu meio ambiente e a auto-suficiên­
cia de tais objetos;
• a separação do objeto do conhecimento do conhecimento. De onde
o dogma de um conhecimento que seja o espelho da realidade
objetiva, o que elimina o sujeito observador e conceituador;
• a separação entre ciência e filosofia e mais amplamente entre a cultu­
ra humanista e a nova cultura científica que se efetivou no decorrer
do século XIX (aqui se notam os traços distintos das duas culturas).
O terceiro pilar, o do princípio da redução, fundamentado na idéia
de que o conhecimento dos elementos de base do mundo físico e bioló­
gico é fundamental, enquanto o conhecimento dos seus conjuntos,
mudanças e diversos é secundário. Esse princípio fortalece o princípio
da separabilidade, o qual fortalece o princípio da redução.
Mais amplamente, o princípio da redução tende a reduzir o conhe­
cível àquilo que é mensuravel, quantificável, formalizável, segundo o
axioma de Galileu: os fenômenos só devem ser descritos com a ajuda de
quantidades mensuráveis. Daí então a redução ao quantificável conde­
na à morte qualquer conceito que não se traduza por uma medida. Ora,
nem o ser, nem a existência, nem o sujeito conhecedor não podem ser
matematizados nem formalizados. Aquilo que Heidegger chama "a
essência devorante do cálculo" esmaga os seres, as qualidades e as com­
plexidades, enquanto conduz à "quantophrénie" (Sorokin) e à "arithmo­
mania" (Georgescu-Roegen).

96
A inteligência da complexidade

O princípio da redução anima todos os empreendimentos destinados


a dissolver o espírito no cérebro, a reenviar o cérebro ao neurônio, a
explicar o humano pelo biológico, o biológico pelo químico ou pelo
mecânico. Ele anima todos os empreendimentos que tratam da história
e da sociedade humana, fazendo a economia dos indivíduos, da cons­
ciência, dos acontecimentos.
Um reducionismo análogo opera na filosofia fechada, que se esforça
para reduzir a essência da realidade em um conceito mestre e o conjunto
da realidade em um sistema mestre.
O quarto pilar é o da lógica indutivo-dedutivo-identitária identificada
com a Razão. A indução, a dedução e os crês axiomas identitários de
Aristóceles 28 asseguram a validade formal das teorias e raciocínios. Nossa
lógica "clássica" nasceu na Grécia quatro séculos antes da nossa era; ela
diz respeito aos conceitos, proposições, inferências, julgamentos, raciocí­
nios; seus fundamentos foram propostos no Organon de Aristóteles.
O núcleo da lógica clássica tomou um valor universal e intransgres­
sível nos sistemas racional-empíricos clássicos.
A argumentação e a construção teórica se realizam logicamente por
dedução e indução. A dedução é o procedimento que eira as conseqüências
ou as conclusões necessárias das premissas ou proposições preliminares.
A indução, que, ao inverso da dedução, parte de fatos particulares para
chegar aos princípios gerais, é desde o início o processo animal e humano
mais corrente da aquisição de um conhecimento geral. Restringindo-se
unicamente à dedução e à indução, a lógica clássica põe fora da lógica
aquilo que opera a invenção e a criação (cf. "a abdução" de Pierce,

28. O primeiro entre eles, o princípio da identidade, formulado sob a forma de A é A, afirma a
impossibilidade que o mesmo existe e não existe ao mesmo tempo e sob a mesma relação.
O princípio da contradição (isto é, da não-contradição) afirma a impossibilidade que um mesmo
atributo pertença e não pertença a um mesmo sujeito, ao mesmo tempo e sob a mesma relação: A
não pode ser ao mesmo tempo B e não-B.
O princípio do terceiro excluído afirma, sobre a base de que roda a proposição clorada de signifi­
cação é verdadeira ou falsa, que entre duas proposições contraditórias uma somente pode ser consi­
derada como verdadeira: A é ou B ou não-B.
Os crês princípios são solidiírios. É notório que Aristóteles tenha restringido sua validade a um
mesmo tempo e sob uma mesma relação, indicando implicitamence que a pertinência desses axiomas
possa cessar desde que exista uma mudança, seja de tempo, seja de relação. Mas a rnzão e a ciência
clássicas vão absolutizar esses princípios.

97
Edgar Morin

formação de hipóteses explicativas, e a "retrodução" de Hanson, indivi­


dualização de um novo esquema cognitivo em que se podem enquadrar
os fenômenos de diversas naturezas). Como diz Popper (1959, p. 31),
"o ato pelo qual uma teoria é concebida ou inventada não requer uma
análise lógica".
Uma tal lógica é estritamente aditiva e não pode conceber as trans­
formações qualitativas ou as emergências 2 9 que sobrevêm a partir das
interações organizacionais. Ela fortalece o pensamento linear, que vai da
causa ao efeito, e faz obstáculo à inteligência da retroação do efeito
sobre a causa. É uma lógica da Ordem que fortalece o determinismo ao
mesmo tempo que ele a fortalece. Ela expulsa qualquer contradição, aí
subentendido o exame racional de um fato da experiência como signo
de um erro no raciocínio. O princípio de identidade constituiu um
embasamento ontológico/metafísico para a razão e para a ciência oci­
dentais, a identidade das coisas, elas próprias constituindo de alguma
maneira seu próprio ser.
Como nós havíamos dito, "essa lógica armou a concepção de um
mundo coerente, inteiramente acessível ao pensamento, e tudo aqui­
lo que excedia essa coerência se tornava não somente fora da lógica,
mas também fora do mundo e fora da realidade 3°. Dessa perspectiva,
a racionalidade se reconhecia na soberania absoluta da lógica deduti­
vo-identitária.
Existe um perfeita correspondência entre lógica clássica e ciência
clássica. O princípio reducionista da ciência clássica isola as unida­
des elementares (moléculas, átomos, etc.), substanciais e invariantes,
a que corresponde "o mesmo" do princípio de identidade aristotéli­
ca. Ela se fundamenta no princípio do determinismo universal, ao
qual são adequados o caráter necessário da dedução e o caráter uni­
versalizante da indução. Desse modo, a lógica clássica reforçou os
caracteres fundamentalmente simplificadores da ciência clássica, a
qual reforçou por seus êxitos a idéia da pertinência ontológica da
lógica clássica. Esta beneficia ao mesmo tempo o estatuto da verdade
inerente à ciência e o estatuto imperativo próprio à norma, que, por

29. Sobre a noção de emergência, ver mais adiante.


30. O Método, t. 4. As idéias.

98

A inteligência da complexidade

sua vez, definindo as regras da retidão dos argumentos e teorias, asse­


gura sua verdade. A verdade de urna proposição não é certamente o
recurso exclusivo da lógica, já que essa verdade depende também do
seu conteúdo. Mas, uma vez verificado o conteúdo empírico de urna
proposição, a lógica se torna a corte de cassação epistemológica que
lhe dá seu critério definitivo de verdade. (No momento em que para
Aristóteles a lógica era um organon, ou seja, um instrumento de
conhecimento, não o juiz do conhecimento.)
De fato, ciência, matemática e lógica vão cada vez mais se associar
e mesmo confundir seus fundamentos no início do século XX.
Hilbert pôde esperar que a lógica soberana controlasse a ciência,
enquanto o Círculo de Viena acreditou que a ciência soberana contro­
laria todo o pensamento.
Os quatro pilares são, de fato, interdependentes e se entre-reforçam
um ao outro. Disjunção e redução eliminam aquilo que não é redutível
à ordem, às leis gerais, às unidades elementares. Elas ocultam não
somente a multipresença da desordem no mundo, mas também o pro­
blema da organização. O único dilema possível fica entre disjunção
(separação) e redução. Por conseguinte, é impossível, no interior desse
tipo de conhecimento, conceber a unidade do múltiplo ou a multipli­
cidade do um. Não existe alternativa entre a unificação que ignora a
diversidade (desde aquela da gravitação de Newton até a E=mc 2 de
Einstein 31, em que a maçã de um e o sol do outro não têm consistên­
cia) e uma diversidade que ignora a unidade em proveito das classifica­
ções, tipologias, catálogos. E é desse modo, de todos os problemas, até
mesmo aqueles do ser humano: ou bem se vê a unidade humana, e as
diferenças individuais culturais e históricas são negligenciáveis, ou bem
se vêem somente as diferenças, e a mesma unidade desaparece. As ciên­
cias clássicas foram divididas entre duas obsessões: aquela da unidade e
a da variedade, cada uma correspondendo a um certo tipo de espírito,
e, aliás, seu antagonismo foi produtivo, permitindo desenvolver ao
mesmo tempo a diversificação e a unificação do saber, sem contudo che­
gar à concepção da unitas multiplex.

3 l. Como dizia Einstein, "'a ciência é a tentativa de coordenar a multiplicidade caótica da experiên­
cia em um sistema de pensamento unitário (jn Holron, 1981, p. 231).

99
Edgar Morin

O pensamento simplificador
A conjunção dos quatro pilares determina o pensamento sim­
plificador, submisso à hegemonia da disjunção, da redução e do cál­
culo. Este só concebe os objetos simples que obedecem às leis gerais.
Ele produz um saber anônimo, cego, sobre todo o contexto e todo o
complexo; ignora o singular, o concreto, a existência, o sujeito, a afe­
tividade, os sofrimenros, os gozos, os desejos, as finalidades, o espí­
rito, a consciência. Ele considera o cosmos, a vida, o ser humano, a
sociedade como máquinas deterministas triviais através das quais se
poderiam prever todos os outputs se conhecêssemos todos os inputs.
Ele seleciona sempre como verdadeira explicação a mais simples, em
virtude não mais de uma navalha de Occam, mas de uma serra de
cortar toras que devasta, por princípio, o complexo. Mas, como diz
Musil, no Homem sem qualidades, "em virtude de qual princípio o
valor explicativo de um fato psicológico deveria ser tanto maior do
que ele é simples?"
Sofisticado com relação ao "bom senso" ingênuo, mas ela mesma
extremamente ingênua com relação à complexidade do mundo, a sim­
plificação científica havia criado um Universo mecânico, sem acidentes,
sem inovações, sem indivíduos, sem seres dissolvendo os conceitos de
cosmos, de natureza, de indivíduo. Em antropologia, a corrente estru­
turalista havia substituído as leis pelas estruturas em detrimento da
noção de ser humano. O objetivo das ciências do homem é dissolver o
homem, dizia Lévi-Strauss, enquanto Foucault havia constatado que o
homem era um inexistente, surgido somente no início do século XIX e
já condenado à morte. Em sociologia, que trata o objeto mais complexo
de todos, o determinismo expulsava a complexidade. Aquilo que
Wazlawick chama de "terrível simplificação" é a eliminação de um pro­
blema levantado no nível de um complexus.
A aplicação aos fenômenos humanos de um pensamento simpli­
ficador conduz a idéias mais grosseiras. Como destacou Wittgen­
stein, "as explicações dos usos (supostos) primitivos são muito mais
grosseiras do que são esses usos. Do mesmo modo, a maneira como
Frazer expõe as concepções mágicas e religiosas dos homens não sati­
faz: ela faz com que essas concepções apareçam como erros" (em
James Frazer, 1977). Efetivamente, a simplificação aberrante desse

100

A inteligência da complexidade

tipo de pensamento conduz inevitavelmente a considerar que toda


crença, todo mito, toda doutrina de uma civilização não-ocidental é
um tecido de erros e de superstições; é somente nos últimos decê­
nios, com a decadência da Europa e a crise fecunda da racionalização
européia, que cessa de considerar como erro aquilo que não entra no
nosso sistema simplificador de inteligibilidade, ele mesmo errôneo
em seu princípio.
Correlativamente, a inteligência oriunda dos quatro pilares é de uma
terrível eficácia. Atirando o complexo nas latas de lixo, sustentando o
quantificável e o algoritmável, isolando seus objetos e comprometendo
as experimentações, ela permitiu e desenvolveu a manipulação de
inúmeras vitórias técnicas, ignorando contudo os efeitos perversos que
elas podem engendrar.
A simplificação se torna, desse modo, estreitamente correlaciona­
da à manipulação, ela própria correlacionada à idéia, ou, melhor
ainda, ao mito da conquista da natureza e do domínio do homem
sobre o Universo. É um princípio de persuasão, segundo Heidegger.
Conduz à dominação, ao que é preciso acrescentar que ela conduz ao
desprezo, nos dois sentidos do termo (tomar abstração por realidade e
desprezar tudo aquilo que não participa do projeto de dominação).
Constituiu-se desse modo "um paradigma" 32 de disjunção /redução,
comportando nele mesmo um princípio de seleção/rejeição. Esse para­
digma, presente de maneira invisível no espírito daquele gue sofreu a
sua influência, determina a dissolução dos complexos para reconduzi­
los aos seus elementos de base, a dissolução do não-formalizável para
reduzir o real ao seu esqueleto 'matemático. Ele ordena a separação do
objeto do meio ambiente, da ordem da desordem, das disciplinas das
ciências e da ciência da filosofia. A seleção escolhe tudo aquilo que é
ordem, quantidade, medida. A rejeição elimina o ser, a existência, o
individual, o singular. Esse paradigma que regula todos os conheci­
mentos reinou no conhecimento científico, técnico, político. A despeito

32. A noção de paradigma, tal como entendemos, foi desenvolvida e explorada no lvlttodo, t. 4, A 1
ldéia.r, III, 3, pp.211�238. Rescringimo-nos aqui, esperando retornar a essa definição: "Um paradig­
ma contém, para todos os discursos que se efetuam sob seu império, os conceitos fundamentais ou as
categorias dominantes da inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações lógicas de atra­
ção/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre esses conceitos e categorias".

101
Edgar Morin

das formidáveis revoluções nas ciências do século XX e das autonomias


internas que, como um império, envelhecem, ele teve de ceder em alguns
pontos, e apesar das tomadas de consciência, múltiplas mas ainda disper­
sas, ele permanece escondido subterraneamente e age soberanamente na
maior parte dos espíritos.
De fato, o extraordionário desenvolvimento das ciências físicas e de
suas aplicações técnicas (utilização da energia nuclear, conquista do
espaço) foi ligado a uma incapacidade inaudita de considerar na sua
complexidade as realidades humanas, a favorecer a incompreensão no
seio da espécie humana, a responder aos problemas humanos como a
guerra, a fome, a miséria. O desenvolvimento das ciências físicas está
ligado ao desenvolvimento do subdesenvolvimento do espírito tecno­
científico. É dessa maneira que this time is out o/ joint. Vamos traduzir
aproximada e abusivamente a fórmula shakespeariana: "Este tempo é o
da disjunção, não se sabe reunir".
Logo, a ciência é complexa na sua natureza, porque ela comporta
ao mesmo tempo os consensos sobre seus valores e o conflito interno
das teorias; ela caminha sobre quatro patas distintas que se opõem
complementarmente (racionalismo, empirismo, imaginação, verifica­
ção). Essas são duas dialógicas complexas e interferentes que anima­
ram os seus formidáveis progressos, incluindo os últimos progressos
que agitam e acabarão por fazer desmoronar os quatro pilares.
Aparentemente, a simplificação venceu a complexidade como Roma
venceu a Grécia, mas sabe-se que o espírito grego acabou por vencer
culturalmente o seu bárbaro vencedor. A simplificação científica
falhou na sua própria vitória: na sua pesquisa obsessiva da pedra
angular elementar e da Lei suprema do Universo, reencontrou, nos
seus últimos avanços e sem poder reabsorvê-la, a complexidade que
ela tinha eliminado no seu princípio.
A filosofia era no seu princípio destinada a reencontrar a complexi­
dade dos problemas fundamentais do conhecimento, aberta a todos os
saberes e portanto não compartimentada. Mas esse setor da não-com­
partimentação é compartimentado e somente tem um contato rarefeito
com o mundo da vida e a vida do mundo. Os novos saberes e as desor­
denadas origens da ciência sobre o cosmos, a Terra, a vida, o homem,
não chegam ao seu moinho, que gira vazio.

102

A inteligência da complexidade

A crise do conhecimento simplificador


Como acabamos de anunciar, a simplificação, ainda que sempre
hegemônica e triunfante, está em crise no século XX, sob o efeito de
seus próprios progressos, que tomaram forma de duas revoluções cien­
tíficas - a primeira inacabada; a segunda, nos seus primórdios.
A primeira revolução científica ocorre na física a partir de 1900 e ela
opera a crise da ordem, da separabilidade, da redução, da lógica.
A segunda se manifesta pela emergência das ciências sistémicas dos
reagrupamentos das disciplinas muito diversas, em torno de um com­
plexo de interações e/ou de um objeto que constitui um sistema e afeta
na base a separabilidade e a redução.
Os quatro pilares são desse modo sacudidos pelo surgimento da desor­
dem, da não-separabilidade, da não-redutibilidade, da incerteza lógica.

O surgimento e o afrontamento das desordens


A desordem brotou no coração da Ordem-Mestra, isto é, no seio
das ciências físicas, com um surgimento multiforme de desordens.
Como havíamos descrito (O Método, 1, pp. 33-92), um bolsão de
desordem criou-se na termodinâmica a partir do momento em que o
calor é reconhecido como agitação molecular desordenada (Botzmann,
1877), e esse bolsão acabará por se estender a todo o universo. Um
século mais tarde, ele se torna evidente com o reconhecimento da
expansão do universo (Hubble, 1930), a descoberta de tampões de
galáxias, de explosões de estrelas, de buracos negros devoradores, e,
enfim, a hipótese cada vez mais plausível do surgimento de uma
catástrofe térmica em que a desordem desempenha um papel inicial e
permanente no nosso universo.
Nesse ínterim, o vírus da desordem havia deixado resíduos microfí­
sicos na noção de quantum de energia de Plank (1900), que em seguida
tinha explodido no subsolo da m�téria.
Desse modo, somos tributários da desordem termodinâmica, da
desordem microfísica, da desordem cosmológica.
A desordem não substitui a ordem. Ela é a partir de então insepará­
vel. As idéias de ordem e desordem cessam de se excluir absolutamente
uma à outra, ou melhor, elas podem tornar-se complementares. Por um
lado, uma ordem organizacional pode nascer nas condições próximas à

103
Edgar Morin

turbulência, como mostram os turbilhões de Bernard; por outro, aqui­


lo a que chamamos "física do caos" nos ensina que os processos desorde­
nados podem nascer a partir dos estados iniciais deterministas 33.
A física do caos emprega a palavra "caos" num sentido restrito, sinó­
nimo de "desordem ou aparente incoerência". Ora, a palavra "caos", tal
como a concebemos nesse trabalho (O Método, 1, p. 57 ), tem um sentido
muito mais rico, energético, de indistinção e de confusão entre poder
criativo e poder destrutivo, e esse caos leva consigo a potencialidade
genésica. Doravante, não podemos mais ignorar a idéia de que um caos
genésico sustenta o nosso universo e de que ele se desintegra se organi­
zando. O universo está submetido a uma aventura incerta e complexa,
contendo tampões de galáxias, explosões de estrelas, desmoronamento
em buracos negros. As leis da natureza não são mais do que leis singu­
lares, oriundas da própria singularidade do nosso universo e alimentadas
pelas interações entre seus componentes.
O sistema solar modela a ordem cósmica, acentua ao longo do tempo
um processo caótico (no sentido da física do caos). Segundo Liscar, a
órbita da Terra e a duração de sua rotação são indiagnosticáveis para
além de um passado de duzentos milhões de anos, ou além de um futuro
de duzentos milhões de anos, e não se pode assegurar que ele não pro­
duza no futuro as colisões entre planetas. A Terra deve sua relativa esta­
bilidade à presença muito próxima de seu extremamente grande satélite,
enquanto outros planetas, privados de um tal satélite, são muito mais
instáveis. Essa instabilidade, devida pois a um fator excepcional, tem
sem dúvida permitido o desenvolvimento da vida na Terra.
A crise da ordem afetou o planeta Terra no seu próprio ser. Assim,
parece plausível hoje que a Terra seja constituída por agregado de detritos
cósmicos que, a partir de suas interações, constituíram uma auto-orga­
nização que não cessou de sofrer flutuações e desordens, subentendido
hoje em dia com tampões de placas, deslocamentos e encontros de con­
tinentes, dobras e acidentes de cadeias de montanhas. O nascimento da
vida, um milhão de anos apenas após a formação do planeta, se efetua
nas convulsões telúricas, tempestades, erupções, terremotos, e parece

33. Aquilo gue chamamos hoje de "física do caos" significa gue estados iniciais deterministas podem
suscitar comportamentos aparentemente desordenados e por isso imprevisíveis.

104

A inteligência da complexidade

também que essas convulsões tenham produzido os primeiros turbi­


lhões de macromoléculas diversas, pouco depois energeticamente auto­
alimentadas, que são constituídas finalmente em organizações vivas.
Além disso, parece que dois grandes cataclismos devastaram a vida da
Terra: o primeiro, no fim do Primário, destruindo a maior parte das
espécies; o segundo, no fim do Secundário, aniquilando os dinossauros
e dando a chance aos nossos ancestrais, os mamíferos.
O mistério da criação de novas ramificações, como a dos vertebrados,
dos novos gêneros, das novas espécies, implica sem dúvida o estímulo
das virtudes geradoras próprias às organizações vivas pelo desafio das
perturbações exteriores. Os pesquisadores do CNRS Vincent Courtillot
e Yves Gaudemer 34 acreditam que sem as três extinções maciças do fim
do Permiano, do final do Triásico e do final do Cretácio a biosfera fosse
talvez congelada no Paleozóico, e quase certamente a humanidade não
teria visto o dia 35 . Segundo a teoria atual, a inovação evolutiva aparece
pela mutação genética aleatória. Nos anos 60, a biologia molecular
tende mesmo a divinizar o acaso para fazê-lo o grande artesão da cria­
ção das espécies. Posteriormente, começou-se a tomar consciência da
complexidade das reorganizações genéticas e, ainda que existam pro­
fundas obscuridades, o acaso intervém na criação da riqueza evolutiva, e
não se poderá doravante fugir da idéia de que a evolução obedeça a uma
dialógica de ordem/desordem/desorganização que comporta os acasos
externos nas mudanças ecológicas e os acasos internos nas mutações e
reorganizações genéticas.
Enfim, fracassaram todos os esforços para congelar a história huma­
na, eliminar os acontecimentos e acidentes, fazê-la sofrer o jugo de um
determinismo econômico-social e/onde fazê-la obedecer a uma ascensão
telecomandada em direção ao progresso.
Desse modo, o cosmos, o sistema solar, a Terra, a humanidade são
conduzidos a uma história que destaca o jogo incessante e incerto que
chamo de dialógica entre ordem/desordem e organização. A regressão do
determinismo suscitou não uma regressão do conhecimento, mas o

34. V Courtillor e Y. Gaudemer. ""Effects of mass extinccions on biodiversiry", Nat11re, 381, 9 de


maio de 1996.

3 5. CNRS INFO nº 326, ! º de julho de 1996.

105
Edgar Morin

desenvolvimento do conhecimento de nossas ignorâncias e dos limites


do nosso saber, ao mesmo tempo que o desenvolvimento das estratégias
cognitivas capazes de tratar a incerteza, notadamente dos métodos de
tratamento estatístico, que, dirigindo-se a populações e não mais a
indivíduos, permite prognósticos corretos baseados no cálculo das pro­
babilidades em inúmeros domínios: físicos, biológicos ou sociológicos.
Todavia, existe uma carência de tratamento estatístico em tudo aquilo
que obedece a um devir que comporta eventos, acidentes e transforma­
ções; assim, a disposição das moléculas que constituem a organização
viva é extremamente improvável do ponto de vista físico-químico e apa­
receu de maneira singular sobre a Terra. Todo processo estatístico tende
em direção a uma média, dizia Bronowski, e é bem ao contrário que se
produz tanto na história da vida como na história do homem.
Além do mais, o tratamento estatístico não é suficiente para o
conhecimento das interações no interior de um fenômeno organizado.
É necessário, portanto, recorrer a uma concepção das interações e das
inter-relações organizacionais, como veremos adiante.
A teoria dos jogos abriu, por seu lado, novamente modos de trata­
mento de situações a componentes aleatórios, invadindo o quadro dos
jogadores no sentido literal do termo. Dessa maneira, ela pôde ser apli­
cada às estratégias da reprodução das espécies vivas.
Certamente, existem ainda determinismos escondidos a serem des­
cobertos, mas a pesquisa obsessiva do único determinismo torna-se
cega. Não é preciso procurar somente a ordem, mas também a desor­
dem, e elaborar estratégias para conhecer as diversas formas do jogo
ordem/desordem/ organização.
O abalo da Ordem da Natureza suscitou um verdadeiro "corte epis­
temológico" que começa com Bachelard, autor do termo, e Popper.
Como diz Bachelard no Nouvel esprit scientifique (1934), "a verdadeira
ordem da natureza é a ordem que nós colocamos tecnicamente na
Natureza... o determinismo científico se prova sobre os fenômenos
simplificados e solidificados ... " e ele acredita que "é preciso chegar a
desmanchar esse enorme bloco do determinismo que pesa sobre o
pensamento científico". Popper, na Logique de la découverte scientifique,
derruba a evidência segundo a qual a ciência se reconhece pela certeza
que ela traz e afirma que ela é reconhecida pelo seu caráter hipotético;
uma teoria é científica não porque seja irrefutável, mas porque oferece

106

A inteligência da complexidade

a possibilidade de ser refutada. Por sua vez, Wittgenstein havia denun­


ciado que "a ilusão daquilo que se denomina 'as leis da natureza' sejam
as explicações dos fenômenos naturais" (notas em O ramo de ouro).
A agitação atinge até a ordem interna do pensamento científico. De
maneiras distintas e apesar das suas oposições, Popper, Holton, Lakatos,
Kuhn, Feyerabend mostram que existem pressupostos metafísicos e
postulados indemonstráveis no centro das teorias científicas. Entre esses
postulados, o do determinismo, bem como o do acaso: Chaitin, depois
de ter definido o acaso pela incompreensibilidade algorítmica, estabe­
lece uma teoria segundo a qual a existência ou não do acaso não te.ria
meios de ser demonstrada. De qualquer maneira, um mundo determi­
nista não permitiria nenhuma intervenção e um mundo entregue a um
só acaso não poderia tomar consistência. Não somos, pois, projetados
além do caráter ontológico do determinismo e do acaso e obrigados
uma vez mais a considerar que só podemos conhecer nosso mundo se
combinarmos ordem/desordem/organização.

A crise da redução e o surgimento


da inseparabilidade na separabilidade
A pesquisa obsessiva do primeiro elemento, indivisível, conduz à
descoberta da molécula; em seguida, quando parecia evidente que a molé­
cula fosse ordem compósita, à descoberta do átomo; e em seguida, quan­
do pareceu evidente que o átomo fosse ordem compósita, aí subentendido
no seu núcleo, à descoberta da partícula, e então, como tornaremos a ver,
pareceu evidente que a partícula fosse não um objeto elementar, claro e
distinto, mas uma entidade equívoca, incerta e de uma certa maneira com­
pósita; quanto ao último elemento denominado quark, ele não pode ser
isolado materialmente, ele é somente postulado pelo cálculo.
A mesma obsessão conduz na biologia à descoberta da célula; a seguir,
de seus constituintes moleculares; depois, dos genes que pareceram,
durante um tempo, entidades dotadas de um poder informacional e
primeiro programador não-equívoco, regendo a organização e o com­
portamento do ser vivo. Em seguida, pareceu ser evidente que o gene
não podia ser isolado dos outros genes, que o genoma constituía um
sistema não-fixo, mas comportava suas próprias reorganizações, e aí
também a pesquisa obstinada simples desembocou no complexo.

107
Edgar Morin

Por outro lado, a idéia sistêmica começou progressivamente, na


última metade do nosso século, ao verificar a validade de um conhe­
cimento reducionista. Formulada por Von Bertallanfy no decorrer dos
anos 50, a teoria geral dos sistemas, partindo do fato de que a maior
parte dos objetos da física, da astronomia, da biologia, da sociologia,
átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros, galáxias
eram sistemas, ou seja, conjuntos de partes diversas que constituíam
um todo organizado, retomou a idéia freqüente, formulada no passado,
de que um todo é mais do que o conjunto das partes que o compõem.
Na mesma época, a cibernética estabeleceu os primeiros princípios
concernentes à organização das máquinas dispondo de programas
informacionais e de dispositivos de regulagem, cujo conhecimento
não podia ser reduzido ao das suas partes constitutivas. Como
depreendemos (O Método, t. 1), a organização em sistema produz qualida­
des ou propriedades desconhecidas das partes concebidas isoladamente:
as emergências. Assim, as propriedades do ser vivo são desconhecidas
na escala de seus constituintes moleculares isolados - elas emergem na
e através dessa organização e retroagem sobre as moléculas constitutivas
dessa organização. A experiência oriunda da ciência disciplinar era tão
forte que o pensamento sistêmico ficou durante muito tempo à
margem das ciências tanto naturais como humanas, e ainda hoje per­
manece marginalizado.
Contudo, a idéia de sistema foi de facto inserida, em seguida
imposta sob a forma de noção de ecossistema, numa ciência fundada
no fim do século passado, que conheceu um prodigioso desenvolvi­
mento a partir do início dos anos 60: a ecologia. A noção de ecos­
sistema significa que o conjunto das interações no seio de uma
determinada geofísica que contém diversas populações vivas cons­
titui uma unidade complexa de caráter organizador: um sistema.
Também o conhecimento ecológico engloba os constituintes inter­
dependentes que assinalam separadamente a zoologia, a botânica, a
microbiologia, a geografia, as ciências físicas, etc. Como se sabe, a
pesquisa ecológica se expandiu a partir dos anos 70 à biosfera no
seu conjunto, esta sendo concebida como um sistema auto-regulador
que comporta em seu seio as atividades humanas, cujos prodigiosos
desenvolvimentos técnicos/industriais provocam os mais graves
atentados aos processos de regulação.

108
A inteligência da complexidade

Nos anos 60, sob o efeito do escudo da tectónica das placas, as ciên­
cias da terra consideram o nosso planeta como um sistema complexo que
se auto-produz e se auto-organiza; articulam entre elas as disciplinas anti­
gamente separadas como eram a geologia, a meteorologia, a vulcanologia,
a sismologia. Elas nos sugerem como a diminuição da extremidade con­
tinental do sudeste asiático, sob o efeito da extrema erosão anual devida
às monções, pode provocar a oscilação do oeste da Anatólia e uma pres­
são que provoca tremores de terra ou erupções na Grécia e na Itália.
O progresso das ciências da terra e da ecologia revitaliza a geografia,
ciência complexa por princípio, visto que ela cobre a física terrestre, a
biosfera e as implantações humanas. Marginalizada pelas disciplinas
triunfantes, privada do pensamento organizador além do possibilismo
de Vida! Lablache ou do determinismo de Ratzell, procedente de suas
monografias verticais sobre uma região pela descrição dos estratos
sucessivos físicos, biológicos e humanos, a geografia, que além disso
forneceu seus profissionais à ecologia e às ciências da terra, retoma suas
perspectivas multidimensionais e globalizantes (cf. Jacques Levy, Le
monde pour cité, debate com Alfred Valladao, Hachette). Ela desenvolve
seus pseudopodos geopolíticos (cf. Y. lacoste, Dictionnaire de geopoliti­
que, Flammarion, 1993) e reassume sua vocação original; como diz Jean
Pierre Allix, "nós somos necessariamente os geralistas". (L 'espace
humain, une invitation à la geographie, Seuil, 1996). A geografia se amplia
na ciência da terra dos homens.
Enfim, pouco a pouco, na mesma época, ocorreu o nascimento da
cosmologia científica. O cosmos havia sido liquidado no início do sécu­
lo pela concepção einsteiniana do espaço-tempo. Sua ressurreição
começa com a colocação em evidência por Hubble da dispersão das
galáxias, a hipótese do átomo primitivo de Lemaitre, depois, a partir
dos anos 60, com as diferentes descobertas que levaram à concepção que
nós delineamos de um cosmos singular em devir. Para conhecer esse
cosmos e conceber notadamente a formação de núcleos, átomos e inter­
reações interiores aos astros, associam-se à observação astrofísica os
resultados das experimentações microfísicas, ou seja, a disciplina do
infinitamente pequeno à disciplina do infinitamente grande, e cercos
cosmólogos, meditando, a exemplo de Pascal, sobre a situação humana
entre esses dois infinitos, tentam inrroduzir a possibilidade da vida e da
consciência na sua idéia de cosmos (princípio antrópico).

109
r
Edgar Morin

Enfim, começou a se operar um remembramento de novo tipo entre


disciplinas, uns relevando as ciências biológicas, outros, as ciências da
engenharia, outros, as ciências humanas, em torno do conhecimento, as
ciências cognitivas. Mas até o presente existe mais justaposição do que
remembramento e não tanto pesquisa de uma linguagem comum mas
conflitos das disciplinas com pretensão hegemônica: neurociências, psi­
cociências, teorias oriundas da informação cibernética, concepções de
auto-organização a partir de redes, etc. O mais grave é que as ciências
cognitivas, que aglutinam as disciplinas "normais" originárias da
própria estruturação da ciência clássica, ignoram seu problema-chave
de complexidade: o objeto de seu conhecimento é da mesma natureza
que o instrumento do conhecimento. Também as ciências cognitivas
constituem um primeiro estado de remembramento que espera sua
revolução copernicana.
Enfim, o princípio da separação, inerente ao método experimental
que extrai um objeto fora do seu meio para conhecê-lo, foi invalidado
no seu próprio princípio para a vida animal com o aparecimento da
etologia. Segundo o método experimental, acreditava-se conhecer os
animais, notadamente os macacos superiores, isolando-os em jaulas,
onde eram submetidos a testes.
Janet Lawic Goodal propôs-se a estudar os chimpanzés no seu meio
natural. Depois de meses de paciência, começou a descobrir traços que
eram ocultados no isolamento e no cativeiro: os chimpanzés estabele­
cem entre eles relações complexas de ajuda mútua e/ou de rivalidade;
tornados adultos, eles não cometem incesto com a mãe, cortam galhos
dos quais se servem como armas ou como instrumentos, caçam ocasio­
nalmente, praticam tipos de danças desordenadas - em síntese, houve
a descoberta de fenômenos cognitivos, psicológicos, sociais, técnicos
não percebidos até o momento. O desenvolvimento da etologia animal
após os anos 60 confirma para todas as espécies estudadas que a obser­
vação, que percebe os seres no seu meio social e natural, é não somente
superior à experimentação que os separa, mas esclarecedora com relação
à experimentação cega.
Em resumo: uma segunda revolução científica começou em meados
de 1960 (tendo como antecedente o conceito de ecossistema formulado
nos anos 30), faz surgir um certo número de novas ciências, operando o
remembramento de disciplinas até então compartimentadas e muito

11 O
A inteligência da complexidade

freqüentemente separadas radicalmente pela grande disjunção entre


ciências naturais e ciências humanas. Ela permite o desenvolvimento de
"ciências sistêmicas", ou ciências das Unidades Múltiplas (a partir do
cosmos), que reúnem aquilo que foi separado pelas disciplinas tradicio­
nais, cujo objeto é constituído pelas interações entre elementos e não
mais pela sua separação.
Ela produz o restabelecimento dos conjuntos constituídos a partir de
interações, retroações, inter-retroações, que constituem um tecido com­
plexo, organizando-se a si própria (mesmo quando os elementos simples
estão ligados por interações e cada um deles obedece aos princípios ou
leis simples, essas interações são complexas). De repente, essa complexi­
dade do objeto ressuscita as grandes noções do senso comum eliminadas
pela ciência clássica: a natureza e o cosmos.
Uma das conseqüências da segunda revolução é que ela rompe o iso­
lamento dos objetos, que são restituídos ao seu contexto, e o contexto,
podendo ele mesmo ser situado no seu contexto; assim sendo, ela per­
mite situar-se no horizonte do próprio universo.
Desse modo, são reveladas a inanidade do reducionismo, que dissolve
os sistemas para considerar somente suas partes, e a inanidade do ato­
mismo, que concebe seus objetos de maneira isolada.

A inseparabilidade microfísica
A revolução mais considerável do ponto de vista ao mesmo tempo
da redução e da inseparabilidade ocorreu na microfísica; aí mesmo, onde
a ciência clássica tinha sonhado atingir o primeiro objeto, substancial,
indivisível, ela encontrou um objeto alucinante, depois fantasma.
A partícula é não somente um objeto lodoso que se manifesta tanto
como onda quanto como corpúsculo. É uma entidade cintilante, uma
espécie de microburaco negro, uma "fronteira" entre o percebido e o
não-percebido, o detectado e o não-detectado, a realidade tridimensio­
nal e a realidade quântica (Bearden, janeiro de 1977, p. 15). E eis que
como constituinte da partícula aparece o quark: empiricamente não iso­
lável, ele só existe teoricamente, é puramente matemático e conceituai.
É um objeto fantasma.
Einstein havia destacado o absurdo, segundo ele, de uma das con­
seqüências da mecânica quântica, que era permitir que as partículas,
já tendo interagido por força, embora muito afastadas uma da outra,

111
Edgar Morin

permanecessem em relação a uma velocidade quase infinita no


momento em que qualquer comunicação no espaço de tempo é incon­
cebível além da velocidade limite da luz. Einstein supunha, portanto,
que a teoria quântica era incompleta e que era preciso completá-la
pela colocação em evidência das variáveis escondidas.
Entretanto, Bell estabelecia em 1963 um teorema que excluía
qualquer possibilidade de variáveis escondidas, com um caráter local
e determinista: não existe teoria local que possa se sujeitar às previsões
da teoria quântica; se as predições da teoria quântica são mesmo apro­
ximativamente corretas, nenhum princípio permite às partes espe­
cialmente separadas da realidade serem independentes. A experiência
do Aspecto consegue finalmente demonstrar a correlação imediata,
além da velocidade da luz, entre duas partículas que estão separadas.
Desde o momento em que um Bernard d'Espagnat pode afirmar: "A
não-separabilidade é um fato independente de qualquer teoria. Nós
devemos reconhecer abertamente que o atomismo, pilar do ensina­
mento das ciências... não pode ser considerado como uma descrição
adequada do que quer que seja a que possa ser dado o nome de ser 3 6 ".
As "partículas" parecem fazer parte de uma dimensão (o termo é
impróprio) da totalidade que, associada a qualquer coisa separada, aí
compreendido o quantum da ação, é totalmente estranha aos princípios
da física clássica e àqueles do nosso entendimento. Como diz Beynen:
"O localizado explícito (relativamente independente) e o não-localizado
(implicado, globalmente interconectado) coexistem e não podem
existir separadamente".
O espaço-tempo é o mundo da separação, mas se existe, como diz
David Bõhm, uma "realidade primária em estado de interconexão
indivisível", onde nada está separado, então essa "realidade primária"
subconteria e transcenderia o mundo do espaço e do tempo... resultaria
que a "nature naturante não é descritível pelos nossos conceitos correntes
precisamente porque ela está situada fora dos quadros do espaço e do
tempo"37. O espaço e o tempo haviam cessado de ser noções separadas

36. D'Espagnat, in Q11ant11m mecha11ics, a half century, Reide!, 1977, p. 147.


37. R. Lesrienne. "L'espace perdu et le remps retrouvé", in Co1mmmicatiom n2 44.

112
A inteligência da complexidade

com Einstein, mas o espaço-tempo tornou-se a última realidade abso­


luta e absolutamente separadora. Hoje em dia é o caráter absoluto do
espaço-tempo e da separação que está em causa.
Dessa maneira, a crise da separação é ao mesmo tempo a crise do
objeto fechado e isolado. É como havia indicado Bachelard: a crise da
noção cartesiana das naturezas simples e absolutas (Nouvel esprit scien­
tifique, pp. 107-108), e isso em todo campo dos conhecimentos. Do
objeto fechado, ele nos faz passar ao objeto contextualizado e ao siste­
ma. Das coisas separáveis ou separadas, é preciso conceber também
sua inseparabilidade.

A crise da separação observador/observação,


sujeito/objeto
Já vimos que a ciência se fundava na idéia de que o estabeleci­
mento de dados objetivos pelo consenso dos cientistas de diferentes
opiniões lhe permitia eliminar o espírito conhecedor do conhecimento.
Immanuel Kant tinha no entanto muito bem demonstrado no fim
do século XVII que o conhecimento objetivo dos fenômenos não
podia ser estabelecido sem a intervenção dos a priori e das categorias
do espírito humano, mas a ciência clássica permanecia fiel à idéia de
que suas teorias matematizadas constituíam um espelho da lingua­
gem da natureza.
Uma recolocação em causa da disjunção entre o observador e sua
observação surgiu de maneira inesperada lá onde a ciência parecia a
mais objetiva e desligada de todas as "aderências" antropomórficas: a
física. Na microfísica, Niels Bohr e os seguidores da Escola de
Copenhague sustentaram que não se pode disjuntar o sujeito e o
objeto do conhecimento e que o mundo de nossa observação não
pode ser purgado de seu observador. E, em experiência de laborató­
rio, Heisenberg estabeleceu as relações de incertezas que resultam
da interferência do observador em sua observação. Em cosmologia,
alguns astrofísicos, como Brandon Carter, enunciaram o "princípio
antrópico", tentativa filosófica (em suma contestada) para situar
reciprocamente o homem com relação ao universo e o universo com
relação ao homem.

1 13
Edgar Morin

O surgimento das contradições, incertezas,


irresolubilidades lógicas
O quarto pilar da ciência clássica, o da lógica indutivo-dedutivo­
identitária, parecia inabalável porque inerente à racionalidade.
As teorias racionais são efetivamente sistemas de idéias: 1) coeren­
tes, ou seja: a) cujos diferentes elementos são estreitamente ligados
entre eles segundo os procedimentos lógicos de dedução ou/e indução;
b) cujos enunciados obedecem ao princípio da não-contradição; 2) esta­
belecem uma relação verificável e não-arbitrária com o mundo objetivo
ao qual elas se aplicam.
Vê-se, portanto, que existe uma forte conexão entre a racionalidade
e os princípios, axiomas ou operações lógicas. A questão é saber o que
ocorre quando existe o divórcio entre a lógica e o mundo objetivo.
Tanto para o racionalismo como para a ciência clássica, um tal divórcio
é inconcebível, porque o programa hilbertiano de axiomatização das
teorias científicas e o programa do Círculo de Viena de assentar todo o
conhecimento sobre a base do positivismo lógico deviam coroar de
maneira definitiva o edifício da razão científica. Ora, como vamos ver,
parece que esses princípios comportam brechas irredutíveis.
No momento mesmo em que, no decorrer dos anos 20, a infabilidade
lógica parecia dever se impor nas ciências, a incerteza e a contradição
irromperam no coração da rainha das ciências, a física, do mesmo modo
que no reino soberano da lógica, a matemática.

A brecha da contradição que nunca se fecha


A contradição pode apresentar-se como uma tentativa ao bom
senso (paradoxo), como um conflito entre duas proposições igualmente
demonstráveis (antinomias), como afrontamento de duas soluções
incompatíveis uma com a outra (aporias), e mais largamente como o
acoplamento de dois termos que se excluem um ao outro.
Do ponto de vista estrito da razão clássica, uma contradição causa
absurdidade ao pensamento onde ela aparece. Ora, no início deste
século, a microfísica chegou de maneira racional a uma contradição
maior, afetando o fundamento mesmo da realidade empírica e o fun­
damento mesmo da coerência lógica, quando pareceu que, segundo as
condições experimentais (the two slit experiment), a partícula se comportava

1 14
A inteligência da complexidade

tanto como uma orida quanto como um corpúsculo. O aspecto ondu­


latório da partícula permite a previsão de um certo número de fenô­
menos, e seu aspecto corpuscular dá conta de mudanças de, energia
pelas quantidades brandas. A partícula não possui, pois, somente dois
tipos de propriedades complementares, ela relevaria logicamente
também duas identidades que se excluem uma à outra. Não se trata
de modo nenhum de um antagonismo entre duas entidades associa­
das, a onda e o corpúsculo: trata-se de uma contradição numa mesma
realidade cujas duas manifestações se excluem logicamente uma à
outra. O reconhecimento dessa contradição intransponível na noção
de partícula atinge indiretamente os princípios da identidade, da
contradição e do terceiro excluído.
Alguns microfísicos acreditaram fugir à contradição, seja dissolven­
do a noção de partícula nas equações matemáticas da teoria 38, seja asse­
gurando que a partícula não era nem onda, nem corpúsculo, mas outra
coisa, que Bunge nomeou "quanton". Mas no primeiro caso foge-se pura
e simplesmente aos conceitos e às palavras que têm um sentido, e no
segundo caso a entidade misteriosa do quanton continua a comportar
uma contradição interna. Em todos os casos, os axiomas de identidade,
de contradição, do terceiro excluído são inoperantes.
Quando Niels Bohr aceitou o acoplamento das noções contrárias de
onda e de corpúsculo, declarando-os complementares, deu o primeiro
passo de uma formidável revolução epistêmica: a aceitação de uma con­
tradição pela racionalidade científica.
A associação complementar onda/corpúsculo não nasceu de um ilo­
gismo do pensamento. Ela nasceu de um ilogismo da realidàde. O que
nos leva a pensar que certos aspectos fundamentais da realidade micro­
cósmica não obedecem à logica dedutivo-identitária 39. Como se viu

38. De fato, essa contradição fundamental foi ocultada, contornada pelas gerações seguintes de
microfísicos, que retiraram o problema conceitua! e lógico em proveito das formulações matemáti­
cas operacionais.

39. O gato de Schriidinger (de memória): um gato é colocado num caixa lacrada provida de um bura­
co que permite a entrada de um único fóton. O fóton bate num espelbo semitransparente. Se ele é
refletido, nada acontece; se ele passa através dele desencadeia um mecanismo que maca o gato (as
chances são iguais). Nós fizemos a experiência. O gato está vivo? A resposta - e o paradoxo - é que,
antes da observação, o gato está ao mesmo tempo morto e vivo. E quando uma alternativa é atuali­
zada não se sabe aquilo que advém da outra.

l l5
Edgar Morin

precedentemente, uma nova antinomia surgiu desde então da física


quântica: coisas separadas/realidade inseparável.
Niels Bohr havia genialmente compreendido que a contradição
entre os termos complementares de onda e de corpúsculo eram apenas
contradições ou antinomias do mesmo tipo já encontradas noutro lugar
da aventura do mesmo conhecimento, que tinham sido esquivadas pri­
vilegiando um dos dois termos opostos:
contínuo/descontínuo;
espécie/indivíduo;
sociedade/indivíduo.
Quando se consideram os indivíduos, eles parecem sozinhos, reais, e
a espécie como a sociedade se tornam uma abstração; quando se consi­
dera a espécie ou a sociedade, o indivíduo se torna uma entidade fugaz,
que se dissolve na realidade da organização social.
Como veremos adiante, quando abordarmos a auto-eco-organização
viva, o ecossistema está no interioir do ser vivo que está no interior de
seu ecossistema; o ser vivo é ao mesmo tempo produto e produtor, meio
e fim, operador e operado da organização viva.
É preciso, portanto, chegar à idéia complexa, contraria sunt comple­
menta: duas proposições contrárias podem ser também complementares.
Não se trata somente de associar conjuntamente duas verdades con­
trárias para chegar a uma verdade mais completa. Trata-se também de
ver que a verdade pode encontrar-se no vazio, insondável, na brecha
lógica que abre uma contradição "forte". Evidentemente, esse ponto de
vista só vale, repetimos, lá onde o pensamento empírico-racional chega
inevitavelmente a uma contradição; senão toda a incoerência teria esta­
tuto de verdade superior. E o importante é a inadequação entre a
coerência interna de um sistema de idéias aparentemente racio­
nal e a realidade à qual ele se aplica: a coerência lógica impede a
adequação, e a adequação impede a coerência lógica.
Não existe pensamento que possa assimilar logicamente o escânda­
lo da contradição, a não ser numa prestidigitação que tornaria "lógica"
a contradição. As lógicas "enfraquecidas" podem integrá-lo sem quali­
ficá-lo. Além do mais, o problema da contradição alimenta uma con­
tradição interna em seu seio: de uma parte, o raciocínio nos pede que
tentemos excluir a contradição reencontrada, porque ela desemboca

116
A inteligência da complexidade

numa incoerência; de outra parte, ele nos pede que a salvaguardemos


para ultrapassar as oposições que esterilizam o pensamento.
A incerteza da contradição vem também daquilo que não sabemos de
antemão: as contradições que se podem superar e ultrapassar e aquelas
que é preciso manter e salvaguardar. Cada uma das contradições que
surgem no percurso do conhecimento deve ser encarada em sua singu­
laridade e sua própria problemática. O pensamento é uma aventura.
Não existe regra lógica ou metalógica para decidir, nessa aventura, a
aceitação ou a recusa de uma contradição.
Em todo pensamento e em todo discurso os axiomas aristotélicos
permanecem indispensáveis, não segundo o modo soberano da lógica
clássica, mas de acordo com o modo instrumental, analítico, para efe­
tuar os exames segmentários e para verificar os enunciados parciais;
eles são indispensáveis para controlar passo a passo, de maneira retros­
pectiva, os enunciados de um discurso ou de uma teoria. Mas eles se
tornam inflexíveis e asfixiantes em todo o seu enunciado complexo ou
global. Desse modo, por exemplo, pode-se de maneira aristotélica
verificar segmento a segmento o enunciado heraclitiano "Viver de
morte, morrer de vida": a organização viva necessita de um trabalho
ininterrupto, ou seja, uma degradação ininterrupta da energia, que
arrasta inevitavelmente à morte, mas essa organização é capaz de se
regenerar tirando a energia fresca do seu meio ambiente; ele não
impede que com o tempo o processo de degradação/regeneração será
alterado e conduzirá irremediavelmente à morte; portanto, vive-se
(regeneração) de morte (degradação), em seguida se morre de vida
(pela degradação final do processo de regeneração).
Assim, legitima-se de maneira não contraditória a fórmula heraclitia­
na logo que a decompomos, mas, enquanto enunciado global, esta leva
consigo o paradoxo e a contradição, porque ela alimenta uma da outra as
duas noções antinómicas por execelência de vida e de morte. Dessa
maneira, a asserção complexa pode-se decompor em diversas asserções
controladas pelos axiomas aristotélicos, mas a asserção complexa global
formula-se de maneira dialógica e metadialógica, não excluindo a con­
tradição. Digamos, para resumir: a complexidade pode ser decomposta,
mas não composta segundo os axiomas que excluem a contradição.
Como, portanto, tratar a contradição sem dissolvê-la? Tal é o desa­
fio a ser relevado.

117
....
Edgar Morin

A incompletude lógica: as irresolubilidades


São das margens do Círculo de Viena que partiram os golpes
mortais para as certezas do positivismo lógico. Karl Popper operou uma
reviravolta epistemológica decisiva: insistindo na insuficiência da indução
e na insuficiência da verificação, ele destruiu as bases do caráter universal
da certeza que uma e outra podiam conter. Quando não é trivial, a
indução comporta sempre um risco. Como diz Radnitzky (1981), a apli­
cação da indução a um domínio acabado é não problemática, mas não
interessante. Sua aplicação a um domínio incontável, infinito é interes­
sante mas incerto. De seu lado, o último Wittgenstein (De la certitude)
havia assinalado que a indução se baseia na idéia de leis da natureza, aquela
que se baseia na indução. Com a indução e a lei da natureza se entrefun­
damentando, não existe Fundamento para uma e outra ...
Do lado da dedução, o paradoxo do Cretense (que diz que todos
os cretenses são mentirosos) já havia destacado, como havia dito
Tarski, um afrouxamento e um "desvio" não acidentais, mas intrin­
secamente ligados ao funcionamento lógico. Mas a infabilidade da
dedução parecia absolutamente assegurada no domínio da formaliza­
ção matemática. Ora, essa dedução devia ser enfraquecida. Abrindo
uma brecha que nunca mais se fecha na lógica matemática, o vienense
Godel determinou o golpe de aniquilamento do mito de uma lógica
soberana e auto-suficiente.

A brecha/abertura gõdeliana
Desde que disputavam no campo fechado da metamatemática o
intuicionismo de um Brouwer e o formalismo de um Hilbert, tinha-se
por inúmeras vezes notado que é impossível levar a um termo final a
obra de axiomatização, isto é, a redução do intuitivo por sua reabsorvição
final na lógica; sempre sobrevive "alguma coisa anterior, um intuitivo
precedente" (R. Blanché, 1967, p. 65). Arend Heyting, matemático
"intuicionista", havia defendido em 1930 a impossibilidade de uma
completa formalização pela razão profunda e essencial de que "a possi­
bilidade de pensar não pode ser reduzida a um número definido de
regras construídas anteriormente".
Mas podia-se acreditar, e muitos acreditam ainda, que, se existia um
resíduo final, não logificável, numa axiomatização, pelo menos o reino

118
A inteligência da complexidade

formalizado, inteiramente submetido ao controle lógico, podia ser con­


siderado como · imarcescível. Ora, o teorema da irresolubilidade de
Gõdel veio, em 1931, abrir uma brecha precisamente no coração da for­
malização, e a conseqüência - lógica - do teorema é que o ideal, dito
racional, de uma teoria absolutamente demonstrável é, na sua parte
lógica mesmo, impossível.
O teorema formulado por Kurt Gõdel em 1931 40 demonstra que
todo sistema formalizado que comporta a aritmética (muito poderoso -
poderosa, riqueza em meio de demonstração - para formalizar a aritmé­
tica) comporta necessariamente os enunciados irresolúveis (nem
demonstráveis nem refutáveis), e que a não-contradição do sistema
constitui uma proposição não-demonstrável com a ajuda dos seus únicos
recursos. Ele toca todo o sistema formal da incompletude e da incapa­
cidade de demonstrar sua consistência (não-contradição).
Gõdel reconheceu muito bem a acessibilidade do seu teorema: "A
completa descrição epistemológica de uma linguagem A não pode ser
dada à mesma linguagem A porque o conceito de verdade das proposi­
ções de A não pode ser definido em A". (Gõdel, in Von Neumann,
1966, p. 55). Tarski, por seu lado, conduziu a um resultado análogo
estudando o problema da verdade nas linguagens formalizadas (Tarski,
1972, pp. 15 7-269). Ele demonstra a inconsistência das linguagens
semanticamente fechadas (isto é, em que todas as proposições que
determ_inam o uso adequado dos termos podem ser afirmadas nessa lin­
guagem) e que o conceito de verdade relativo a uma linguagem não é
representável nessa linguagem.
Daí resulta "que a dualidade do pensamento e do objeto não pode
ser abolida, que o sistema do inteligível não pode ser cortado de sua
referência a uma experiência, não pode se absorver na sua objetividade
fechada" (Ladriere, pp. 413).
A falha gõdeliana e tarskiana foi depois expandida através de uma
proliferação de teoremas que nos mostram que as questões simples
desembocam na irresolubilidade, como o teorema de Cohen sobre o axio­
ma da escolha e a hipótese do contínuo (1962). De seu lado, o teorema

40. U ber formal 1menlscheidbare Siilzen der Principia 111athematica. (On formally 1mdecidable Propositions o/
Principia Mathematica and Related Systems).

1 19
Edgar Morin

de Arrow sobre a impossibilidade de agregação das preferências indivi­


duais demonstra que não se pode calcular uma escolha coletiva a partir
das preferências dos indivíduos (cf. O Método, 2, p. 324). O teorema de
Gibbard e Satterthwarte (1973) sobre a não-manipulação. Enfim,
Chaitin (1975) demonstrou que é impossível decidir se um fenômeno
releva ou não o acaso, ainda que se possa definir rigorosamente o acaso
(incompreensibilidade algorítmica).
Assim, paradoxalmente, o movimento da matemática, que "produziu
um complexo de conceitos e de métodos de natureza a precisar e a afinar
os instrumentos teóricos próprios a soltar e a dominar as estruturas à obra
nos textos demonstrativos", é aquele mesmo "que produziu os teoremas
da limitação interna, restringindo por aí o domínio onde se podem legi­
timamente colocar os problemas de fundamento" (J. T. Desanti, 1975,
p. 261). Se a formalização, fase suprema da lógica clássica, não pode encon­
trar nela própria um fundamento absolutamente certo, então a lógica não
pode encontrar em si própria um fundamento absolutamente certo.
Como disse, sem todavia ter ainda entendido, O. Morgenstern, uma
das maiores descobertas científicas de todos os tempos, feita precisa­
mente no domínio da lógica matemática, o grande teorema da irresolu­
bilidade de Godel, não foi assimilada ainda pela filosofia, ainda que seu
efeito a longo prazo deve sem dúvida se revelar irrefutável.

As duas lições: o limite e a abertura


As brechas lógicas abertas no formalismo por Godel e Tarski, no
conhecimento científico pela física contemporânea, nos mostram que só
existe certeza lógica em baixos níveis de demonstração, e mesmo esses
baixos níveis podem comportar suas armadilhas, como nos mostra o
paradoxo do Cretense.
Elas nos levam a reconhecer um limite do conhecimento. Desse modo:
• um sistema conceitua! inclui necessariamente questões às quais
não se pode responder fora desse sistema;
• um sistema explicativo não pode explicar a si mesmo;
• aquilo que define não pode se definido por si mesmo.
A descoberta de um limite abre paradoxalmente um caminho novo
ao conhecimento, muito claramente indicado por Godel e Tarski.

120
A inteligência da complexidade

O teorema de Godel desemboca na idéia de que a demonstração da


consistência do sistema pode-se fazer eventualmente recorrendo a um
metassistema que comporta precedentes de demonstração exteriores ao
sistema. Dessa maneira, as demonstrações de não-contradição foram
efetivamente dadas por sistemas submetidos ao teorema de Godel,
como a demonstração da não-contradição da aritmética. Conclui-se que
a brecha é também uma abertura.
Tarski, por seu lado, demonstra que se podem tornar resolúveis
todos os enunciados de uma· linguagem sob a condição de os colocar
numa metalinguagem mais rica. Assim: "Todas as proposições cons­
truídas segundo o método de Godel têm uma propriedade tal que se
pode, sob o terreno da metaciência de uma ordem superior, sob a con­
dição de que ela possua uma definição correta da verdade, constatar se
elas são verdadeiras ou falsas, e assim encontrar igualmente, com rela­
ção a essas proposições, uma decisão" (Tarski� 1972, t. I, p. 265). Isso
significa que existe uma possibilidade de "ultrapassar" uma incerteza
ou uma contradição, constituindo um metassistema; este deve abran­
ger nele o sistema (a teoria), mas deve ser ao mesmo tempo mais rico
(enriquecido pelas "variáveis da ordem superior", segundo a lingua­
gem tarskiana), e incluir necessariamente os termos e uma problemá­
tica lógica que oferecem a definição da verdade para o sistema (teoria)
- objeto considerado.
Esse enunciado tarskiano, assim como o godeliano, não podem ser
interpretados no sentido de que o metassistema se constituiria em tri­
bunal superior capaz de fechar-se sobre si próprio. Com efeito, um
metassistema comporta até os enunciados irresolúveis, e teria a necessi­
dade de um metametassistema em que se apoiariam, num nível superior,
os mesmos problemas. Uma insuficiência a se considerar se reencontra­
ria então igualmente no nível do metassistema, depois de todo metas­
sistema de metassistema - isso no infinito. O conhecimento permanece
inacabado, mas isso quer dizer ao mesmo tempo que ele pode ser per­
seguido. Isso quer dizer, enfim e sobretudo, que os progressos da eluci­
dação e da problematização estarão de agora em diante dialeticamente
ligados, que nenhum dispositivo não poderá jamais colmatar a brecha.
Chegamos então à idéia complexa de progresso do conhecimento, que
se efetua não pelo recuo ou dissolução, mas pelo reconhecimento e
afrontamento do irresolúvel.

121
"1

Edgar Morin

A perda do absoluto é ao mesmo tempo o convite ao metaponto de


vista. Se no campo dos problemas humanos não podemos nos tornar
meta-humanos nem metassociais, podemos elaborar os "metapontos de
vista": por exemplo, para conhecer minha sociedade, posso comparar as
sociedades contemporâneas, estudar pelos contrastes as sociedades da
Antiguidade, ou mesmo imaginar as sociedades possíveis. Isso me per­
mite edificar um tipo de mirante, a partir do qual posso observar outras
sociedades exteriores e examinar melhor a minha, permanecendo com­
pletamente no interior. Mas em nenhum caso existe um metassistema
teórico que permitisse ultrapassar a nossa condição social ou a nossa
condição humana.
Toda descoberta de um limite ao conhecimento é ela própria um
progresso de conhecimento. Toda introdução de contradição e de incer­
teza pode-se transformar em ganho de complexidade; é nesse sentido
que a limitação trazida pela física quântica ao conhecimento determi­
nista/mecanicista se transforma numa ampliação complexificadora do
conhecimento, e toma um sentido inteiramente epistemológico.
A lógica dedutivo-identitária se articula perfeitamente sobre tudo
aquilo que é isolável, segmentário, parcelado, determinista, mecânico;
ela se aplica adequadamente às máquinas artificiais, aos caracteres
mecânicos e deterministas do mundo, do real, da vida, da sociedade, do
homem, às entidades estáveis, cristalizadas, dotadas de identidade sim­
ples, a tudo aquilo que é segmentário ou fragmentário no discurso e no
pensamento. De mesmo modo que as moléculas são os elementos não­
vivos constitutivos da vida, os fonemas, as letras, consideradas isolada­
mente, são os elementos "não-vivos" da vida·do discurso, os segmentos
dedutivo-identitários são os elementos não-vivos da vida do pensamento.
Podemos concluir com Novalis: "A lógica está unicamente ocupada de
cadáveres do pensamento racional". (Pléiade, 2. 52).
A lógica dedutivo-identitária abre-se não à compreensão do complexo
e da existência, mas para a inteligibilidade utilitária. Ela corresponde
às nossas necessidades práticas de superar o incerto e o ambíguo para
levar a um diagnóstico claro, preciso, sem equívoco. Ela corresponde,
aceita alterar os problemas, as nossas necessidades fundamentais de separar
o verdadeiro do falso, opor a afirmação à negação. Sua inteligibilidade
repele a confusão e o caos. Essa lógica é também prática e intelectual­
mente necessária. Mas ela enfraquece justamente quando a ambigüidade

122
A inteligência da complexidade

é desfeita, quando duas verdades contrárias se ligam, quando a complexi­


dade só pode ser dissolvida ao preço de uma mutilação do conhecimento
ou do pensamento. De fato, a lógica dedutivo-identitária corresponde
não a todas as nossas necessidades de compreensão, mas àquelas que
estão ligadas às nossas necessidades instrumentais e manipulatórias, qual
seja a manipulação dos conceitos ou a manipulação dos objetos. Como diz
Suzuki, "a lógica é o instrumento mais útil para a vida prática... o
supremo instrumento utilitário mediante o qual treinamos as coisas
que pertencem à superficialidade da vida". Também sua osmose com a
ciência clássica permitiu o desenvolvimento de múltiplos e formidáveis
poderes de manipulação.
. Os limites dessa lógica apareceram necessariamente na crise do meca­
nicismo e do atomismo e mais amplamente na crise da concepção clássica
da ciência, quando ao sonho einsteiniano de um universo que obedecesse
a uma lei determinista absoluta se opôs a lei mecânica quântica de início,
depois a complexidade física do caos organizador (cf. O Método, 1, pp.
45-83); quando à certeza do positivismo lógico se opuseram todas as
incertezas positivas e todas as incertezas lógicas; quando ao sonho hilber­
tiano de conclusão lógica da teoria se opôs a irresolubilidade godeliana;
quando a Wittgenstein 1 da linguagem logificada se opôs o Wittgenstein
2 dos jogos da linguagem. Essa lógica permite pensar antecipadamente
no tempo determinista, mas ela deve correr depois do tempo aleatório,
do tempo transformador, do tempo inovador.
Dessa maneira, se nós podemos passar da lógica indutivo-deduti­
vo-identitária, essa não pode ser o instrumento da certeza e da prova
absolutas. O pensamento complexo convoca não ao abandono dessa
lógica, mas a uma combinação dialógica entre sua utilização segmen­
tos por segmentos e à sua transgressão nos buracos negros, onde ele
cessa de ser operacional.

O inacabamento das novas revoluções científicas


Vimos que a ciência reina onde reinavam a ordem, o princípio de
separabilidade, o princípio de redução, a soberania da verificação lógica
e da verificação empírica: tornou-se a ciência "avant-gardista" onde a
desordem e a indeterminação se tornaram ilumináveis, onde uma estra­
nha inseparabilidade surgiu entre as coisas separadas, onde a pesquisa
reducionista conduziu ao irredutível, onde a lógica entrou em crise.

123
r
Edgar Morin

Vimos que as ciências que reuniam as disciplinas muito diversas e


freqüentemente muito distanciadas apareceram e se desenvolveram
tomando por objetos os sistemas naturais complexos, como a ecologia
ou as ciências da terra; e a cosmologia tomou como encargo o objeto
mais complexo de todos, que é mais e menos que um sistema que com­
porta o todo comportando os sistemas: o cosmos.
Não citamos ainda as ciências biológicas, que no entanto sofrem,
desde 1950, uma revolução considerável (cf. O Método, 2), nem as
ciências humanas, que tardiamente adotaram as concepções da física
do século passado, mas que, ao mesmo tempo, manifestaram a resis­
tência e o avant-gardismo numa batalha suprema entre a destruição e
o tratamento do complexo.

A ambigüidade da "revolução biológica"


Tomemos rapidamente o caso das ciências biológicas.
No decorrer do século XIX, no momento em que a física ignora a
organização e só descobre o tempo de maneira parcial e unilateral
(segundo o princípio da termodinâmica), a biologia, estudando o orga­
nismo, leva consigo o problema da organização e integra o tempo à
idéia de evolução.
Em 1950, a elucidação do código genético e a emergência da bio­
logia molecular constituem um progresso fundamental. Parece que
não existe matéria viva, mas sistemas vivos, ou seja, uma organização
particular da matéria físico-química. Parece ainda aos biólogos que
essa descoberta proporciona uma vitória decisiva ao reducionismo
(que reduz os fenômenos vivos aos fenômenos físico-químicos)
enquanto, de fato, trata-se de uma vitória organizacionista que
demonstra a especificidade ela organização viva. No entanto, a biolo­
gia molecular encontra seu próprio reducionismo: a organização viva
está sob a dependência do gene, unidade informacional/programado­
ra de base; a pesquisa se concentra de maneira intensa justamente
sobre os processos químicos dessa organização (ADN-ARN-proteí­
nas), mas negligencia intensamente, injustamente a problemática da
auto-organização, proposta desde o final dos anos 504l.

41. M. C. Yovirs e $. Cameron. Sef/ organizing systeim, proceeding of an interdisciplinary conference,


Pergamon Press, 1960.

124
A inteligência da complexidade

O império do gene reina sobre a biologia molecular dos anos 60.


Contudo, a idéia, inicialmente simplificadora, de urna adição de genes
que controlam, cada um separadamente, os caracteres do ser vivo se
complexifica progressivamente até o reconhecimento de um complexo
genético, comportando suas reorganizações e suas praias desconhecidas,
aparentemente virgens, e a descoberta da Transcriptase Reversa mostra
que o ARN pode retroagir sobre o ARN. Ao modelo organizacional do
ser celular menos evoluído, a bactéria, acrescenta-se a idéia de uma
integração de vários níveis de organização com os policelulares, como
indica a noção de integração de François Jacob 4 2.
Outro progresso importante: a ultrapassagem da alternativa entre a
unidade e a multiplicidade: a unidade do código genético em todos os
seres vivos leva com ela a possibilidade da diversidade das espécies e dos
indivíduos, em nome da diversidade das espécies quase ilimitada de
combinações entre as quatro "letras" químicas constitutivas desse código.
Dessa maneira, impõe-se de fato um princípio de unidade geradora de
múltiplas diversidades. Do mesmo modo, impõe-se um princípio gené­
rico que assegura a singularidade das espécies através da singularidade
de seus patrimônios genéticos e da singularidade dos indivíduos que
são oriundos da reprodução sexual, isto é, de uma combinação de dois
estoques genéticos. Se a singularidade dos indivíduos é reconhecida, a
noção do indivíduo, diminuída com relação à idéia de reprodução, é
negligenciada tanto quanto ela.
Depois do abandono do fixismo das espécies, não existe mais
ordem soberana em biologia: a evolução via mutação/seleção reconhe­
ce um motor dialógico em que o acaso e o acontecimento singular
(todos os dois inseparáveis da mutação) desempenham um papel deci­
sivo. A idéia de mutação ao acaso, única explicação proposta para as
inovações evolutivas, conduz à deificação do acaso. Restam ainda as
insuficiências enormes no neodarwinismo, notadamente a incapacidade
de conceber a criatividade na história viva. Certamente, a considera­
ção ecológica introduz os fatores locais e as condições mutantes dos

42. "ºA aproximação reducionista não parou de levar ao sucesso, ela não tem o menor limite. Nos inú­
meros casos, ela é necessária, mas não suficiente. Segundo qualquer verossimilhança, ver-se-á nos
anos seguintes desenvolver paralelamente uma outra aproximação mais integrativa e 'organímica' no
estudo dos grandes problemas da biologia." (F. Gros, F. Jacob, P. Royer, 1979).

125
Edgar Morin

ecossistemas, do mesmo modo que a idéia de co-evolução. Mas o pen­


samento biológico não dispõe sempre de meios para ultrapassar a
alternativa entre uma virtude criadora quase providencial e o jogo
aleatório das transformações.
Enfim, enquanto a biologia molecular se esforça para reduzir todos
os comportamentos vivos a jogos genético-moleculares, desenvolveu-se,
no outro horizonte das ciências biológicas, uma visão etológica que des­
cobre a complexidade das estratégias não somente animais mas vegetais,
a inteligência e a complexidade das relações entre macacos superiores,
notadamente os chimpanzés, a existência não de hordas mas de verda­
deiras sociedades, especialmente entre os mamíferos, e a parasitologia
descobre as assombrosas estratégias dos parasitas que se infiltram de
uma espécie a outra, sem que esse comportamento tão complicado
possa ser redutível a um acaso genético.
Assim, as ciências biológicas progridem nos múltiplos fronts, mas
estes não são coordenados uns com os outros, e eles conduzem a idéias
divergentes. É que permanece o buraco negro no coração do pensamento
biológico, que oculta o problema da auto-eco:.organização. O buraco
negro impede a concepção da relação espécie-indivíduo, assim como o
laço bioantropológcio.

Um exemplo da caminhada ziguezagueante


do simples ao complexo: a história
das idéias sobre o câncer
A célula cancerosa foi desde o início identificada como uma célula
cada vez menos diferenciada, cujo crescimento era acelerado e a prolife­
ração, desordenada. O tratamento médico consistia na supressão dos
tumores ou na sua destruição por radiação.
No final dos anos 70, a crença dominante na pesquisa é que a anar­
quia proliferativa do processo canceroso é provocada por um vírus.
Essa crença (típica da concepção simplificadora de que um mal inte­
rior provém necessariamente de uma agressão exterior) é fortalecida
porque a presença do vírus está associada a um certo número de cân­
cer. No início dos anos 80, os progressos da biologia molecular e da
genética levam a descobrir os vírus chamados "oncógenos", que deter­
minam as estruturas da proliferação. Mas, sempre que se procuravam

126
A inteligência da complexidade

os vírus, descobre-se a similaridade entre a estrutura dos oncógenos


virais e a de certos elementos construtivos do genoma celular normal.
Descobre-se que os oncógenos estão presentes em todos os vertebra­
dos e desempenham um papel primordial na manutenção dos processos
vitais, e descobre-se igualmente que eles podem operar uma transfor­
mação cancerosa sem a intervenção de um vírus. As células normais
podem tornar-se malignas e as celulas malignas, tornar-se normais. A
partir de então impõe-se a idéia complexa de que aquilo que regula o
crescimento celular é também aquilo que o desregula e que o câncer é
mais a expressão de uma doença devida a um agente exterior.
Nos anos seguintes, torna-se evidente que as células cancerosas apre­
sentam poucos defeitos genéticos, assemelham-se muito às células nor­
mais e respondem normalmente aos sinais exteriores que advêm de
outras células do corpo. Trata-se, pois, de procurar a chave do processo
canceroso no enfr aq uecimento da organização das regulações.
Paralelamente, há uma descoberta surpreendente. Enquanto se acredi­
tava que a morte das células no seio do organismo provinha de um enve­
lhecimento fatal, parece que ela resulta mais de uma "morte orquestrada":
as células que se tornaram inúteis se autodestroem. Do mesmo modo que
certas árvores provocam a morte de suas folhas por um processo de corte
do caule, os nossos organismos determinam a morte de suas células "pro­
gramando-as geneticamente" para o suicídio. Digamos mais exatamente:
para o sacrifício. Com efeito, tão logo recebe a ordem por um sinal exte­
rior, a célula sacrifical se afasta das outras células, autodesmantela-se e
autodestrói-se; os restos são absorvidos pelos fagócitos.
Parece que a célula recebe múltiplos sinais da comunidade das
outras células - alguns são somente anúncios de morte -, e ela então
"decide" sua morte ou sua sobrevivência. Mas, num organismo multi­
celular, "quase todas as células estão permanentemente à beira do pre­
cipício" (Harriet Coles, in Nature, reproduzido in Le Monde, l º de
março de 1996, p. 21).
O axioma de Heráclito "Viver de morte, morrer de vida" Ja era
ilustrado pelo reconhecimento do processo incessante de renovação
das células senescentes pelas células novas, produzindo desse modo a
regeneração permanente do organismo. Doravante, damo-nos conta
de que se trata de um sistema muito refinado e muito mais comple­
xo do que se poderia imaginar.

127

-
f
Edgar Morin

O excesso de mortes de células caracteriza certas doenças como a


Aids, o mal de Parkinson, a doença de Alzheimer. A insuficiência de
mortes de células provoca a osteoporose, diversas escleroses e certos cân­
ceres em que as células tornadas "amortais" se reúnem, formam tumo­
res e vão colonizar os órgãos do corpo.
Hoje em dia, atribui-se a uma mutação genética o enfraquecimento
que torna a célula incapaz de dar-se a morte, e favorece, por conseqüência,
a proliferação cancerosa.
Assim, a partir da concepção unilateral e insuficiente que atribuía ao
câncer uma origem viral, desenvolveu-se, segundo as descobertas fre­
qüentemente imprevistas, uma concepção cada vez mais complexa não
somente do câncer, mas também da organização policelular no seio do
organismo. Chega-se à idéia de que a causa do câncer não está sempre
na agressão externa de um agente cancerígeno, mas também num enfra­
quecimento de um sistema que regula de maneira extremamente com­
plexa a relação vida/morte das células. Sentimos que a pesquisa ainda é
prisioneira de uma concepção em que a mutação do gene seja a ultima
ratio para explicar o curso patológico, enquanto seria preciso, sem dúvi­
da, considerar o complexo somatopsicossociocultural, em que as pertur­
bações sofridas numa ou noutra dessas instâncias possam provocar os
desregramentos que finalmente favorecem a mutação do gene e de
outros processos cancerígenos.
Mas, sobretudo, parece-nos que, se o espírito pesquisador tivesse imagi­
nado desde o início que a vida, na sua luta contra a morte, utiliza a morte
nessa luta, mas tendo-a sob controle, ela teria progredido mais rapidamen­
te porque teria sido possível conceber que um excesso de vida pudesse ser
mortal e que a perda do controle da morte celular fizesse o organismo cor­
rer o risco de morte pela proliferação de vida, que constitui o câncer.
Este último exemplo nos mostra que a revolução biológica, ainda inaca­
bada, está em andamento por caminhos diversos, mas ainda não rejuncados.

A tragédia das ciências antropossociais


As ciências humanas sofreram a invasão do modelo oriundo da
física clássica, e tudo aquilo que resistisse a esse modelo pareceu retró­
gado. Ora, são justamente essas ilhotas retrógradas de resistência que
correspondem hoje ao pioneirismo de uma complexidade que emerge
nas ciências naturais.

128
A inteligência da complexidade

Antes de tudo, é preciso constatar que as ciências humanas sofreram,


desde o seu nascimento, a marca da grande disjunção que as separou das
ciências naturais, o que inibiu qualquer possibilidade de considerar o
complexo bioantropológico que constitui a realidade humana. É através
de desenvolvimentos recentes, a partir dos anos 60, de uma concepção
multimensional da hominização no seio dos estudos pré-históricos, mas
somente no interior desses estudos, que se começa a colocar em relação
cérebro/espírito, natureza/cultura, desenvolvimento biológico (anatô­
mico, genético) e desenvolvimento mental/social/cultural.
A invasão dos princípios da ciência clássica infligiu ao complexo psi­
cossocio-histórico propriamente humano os cortes e as divisões em
compartimentos, abstratas e arbitrárias. A sociologia, dizendo-se cien­
tífica, esvaziou-se de toda a história e de toda a psicologia, a psicologia
objetiva behaviorista esvaziou todo o ser humano de sua parte subjetiva,
cultural e histórica. Chegou-se mesmo ao paradoxo estruturalista que
liquida a noção de homem e evidentemente a de sujeito.
A história, ainda que durante um tempo esvaziada da noção de acon­
tecimento, de acaso e de "grandes homens", enriqueceu-se de profundi­
dade. Desse modo, a tendência ilustrada na França pela Escola de
Annales teve por virtude, não como ela acreditou, desvencilhar-se do
acontecimento e do contingente, mas tornar-se multidimensional, inte­
grando nela o substrato econômico e técnico, a vida cotidiana, as cren­
ças e os ritos, as atitudes diante da vida e da morte de uma época. Ela
apenas começa a reconhecer o acontecimento e o contingente que para­
doxalmente foram, após trinta anos, reencontrados na cosmologia, na
física, na biologia.
É nos setores periféricos do estudo das civilizações distantes que a
complexidade do tecido antropossocial foi respeitada. Os grandes sinó­
logos, de Maspero a Silvayn Levi, os grandes estudiosos da cultura
islâmica, de Massignon a Berque, estudaram não somente uma língua,
mas também uma sociedade, uma história, uma filosofia, uma ou mais
religiões, os ritos, os usos, e tentaram conceber seus laço_s mútuos. Tais
estudos dé civilizações são cada vez mais animados não somente pela
preocupação com o conhecimento objetivo de um mundo estrangeiro,
mas também por uma vontade de compreensão interior.
Em antropologia social e cultural, foi depois que a Europa parou de
ser o centro hegemônico do planeta que a crise da razão ocidental e a

129
Edgar Morin

autocrítica proveniente da racionalidade européia colocaram em relevo


o ocidental-centrismo da ciência das civilizações arcaicas. Levy-Bruhl,
no início do século, via na mentalidade "primitiva" infatilismo, misti­
cismo, irracionalismo, e era incapaz de perceber a extraordinária racio­
nalidade que essa mentalidade manifestava nas suas estratégias de caça,
fabricação de utensílios, construções de moradias. Lévi-Strauss, Jaulin e
muitos outros realizaram uma revisão radical, considerando as riquezas
humanas, intelectuais e culturais da humanidade arcaica.
Em sociologia, apesar de uma tradição de sociólogos preocupados
em pensar sua época, comprometendo-se com ela, houve durante alguns
decênios a caça a todo aquele que não fosse determinista, quantificável,
redutível às categorias sócio-econômicas. Ainda hoje, o establishrnent
sociológico rechaça a etnometodologia segundo a qual o pesquisador
deve pesquisar também a própria pesquisa e estudar os seres humanos,
não como objetos manipulados, ou como cretinos culturais, mas como
pessoas que têm uma experiência e um conhecimento, parcial certamen­
te, mas não necessariamente deformado. Parecerá cada vez mais evidente
que nenhum sociólogo possa ocupar o trono, tal qual um sol, acima da
sociedade. Ele é um fragmento do interior dessa sociedade, e a sociedade,
sendo um todo, está no interior dele.
De toda maneira, houve uma resistência dos sociólogos/ensaís­
tas/pensadores (Friedmann, Aron) à invasão da sociologia quantitativa,
da qual eles exploraram, por outro lado, os dados, mas que se atribuí­
ram como missão de compreender e refletir sobre seu tempo.
Mais profundamente ainda, houve as resistências oriundas da tradição
alemã das "ciências do espírito", para quem qualquer conhecimento da
história ou da sociologia passa pela interpretação de um sujeito conhece­
dor e para quem o problema da compreensão, ou seja, de um modo de
conhecimento de sujeito para sujeito, é específico às ciências humanas.
Enfim, o conhecimento científico, que se acreditava numa torre de
marfim supra-social, tornou-se um objeto para a história e para a
sociologia, que situam o desenvolvimento das idéias científicas no seu
contexto histórico e social, estudam as condições de emergência das
teorias, pesquisam a vida concreta nos laboratórios e nos meios cien­
tíficos. Tais estudos poderiam permitir conceber o laço entre a auto­
nomia e a dependência da atividade científica, os caracteres ao mesmo
tempo históricos e trans�históricos das teorias, mas nesse domínio

130

A inteligência da complexidade

como em outros os sociólogos sofreram a lei impiedosa da alternativa


simplificadora: para alguns, as verdades da ciência transcendem as
condições históricas da sua formação; para outros, a ciência é redutí­
vel a essas mesmas condições, e outros a reduzem (pensando dessa
maneira desmistificá-la) à ideologia.

O novo mundo
A invasão dos princípios da ciência clássica nas ciências humanas
e sociais não foi total. Paradoxalmente, as ciências naturais estão em
vias de reencontrar uma problemática de complexidade que as ciências
humanas puderam aqui e lá proteger. As últimas conquistas das ciên­
cias naturais e sobretudo físicas abalam o paradigma da simplificação:
a complexidade torna a invadir o mundo por caminhos que a tinham
rechaçado. A maior parte das ciências descobre campos diversos em que
os enunciados simples são falsos e "em que o prejulgamento em favor da lei
se torna prejudicial" (Hayek). Existe a ressurreição dos objetos globais
como o cosmos, a natureza, o homem que haviam sido esquartejados,
finalmente desintegrados, seja porque eles relevavam o sentido ingênuo
pré-científico da realidade, seja porque eles comportavam no seu seio
uma complexidade insuportável.
A ciência clássica pode tratar os problemas cujos fatores julgados
predominantes obedeciam às leis da lógica clássica e são para a maioria
mensuráveis. Ela se encontra bloqueada diante dos problemas onde essa
lógica é desafiada e onde a medida é incerta.
O calculável e o mensurável não são mais do que uma província no
incalculável e no desmedido. E perder a Ordem do mundo para os cien­
tistas formados na religião dos quatro pilares é tão desesperador quanto
para um crente perder Deus. Efetivamente, a Ordem do mundo era o
grandioso relicário da divina Perfeição.
Há o desmoronamento epistemológico do atomismo, do elementaris­
mo, do positivismo, lógico ou não, da antiga certeza absoluta. "Único
ponto pouco próximo ao certo nesse naufrágio: o ponto de interrogação",
diz o poeta Salah Stetié.
Segundo as palavras de Hegel, estranhamente reatualizadas mas de
maneira nova: "Qualquer massa de idéias e de conceitos que ocorreram
até aqui, os laços do mundo estão dissolvidos e se desmoronam neles
mesmos como numa visão de sonho".

131
Edgar Morin

Um mundo se arruína, o mundo novo não emergiu. Uma revolução


se opera, mas ela está inacabada.

A perda dos fundamentos


A ordem que se dilacera e se transforma, a onipresença da desor­
dem, o surgimento da organização, a incompletude da lógica, tornada
um instrumento e não mais soberana do pensamento, tudo isso não
somente ocasiona brechas enormes no sistema da inteligibilidade clás­
sica, não somente desloca os quatro pilares dessa inteligibilidade, mas
suscita uma crise de fundamentos.
Embora no momento final do século precedente a ciência estivesse
segura de ter encontrado o indubitável fundamento empírico-lógico
dos seus enunciados, parece-nos hoje que nem a verificação empírica
nem a verificação lógica são suficientes para estabelecer um fundamento
seguro às suas teorias. Popper mostrou a insuficiência da verificação
empírica, Godel, a insuficiência da verificação lógica. O incerto funda­
mental está escondido atrás de todas as certezas locais. No lugar dos
fundamentos perdidos não existe um vazio mas um "vaso" (Popper),
um "mar de lama semântico" (Mugur-Schachter), sobre o qual se levan­
tam as estacas do conhecimento. A crise dos fundamentos científicos
(da qual bem poucos cientistas pelo menos têm consciência) rejunta a
crise dos fundamentos filosóficos, anunciada por Nietzsche 43 .
Também na crise dos fundamentos e do desafio da complexidade do
real, todo conhecimento tem necessidade de reconhecer-se, refletir-se,
situar-se, problematizar-se a partir de agora.

A complexidade-esfíngie
Mais ela se desenvolve, mais o pensamento encontra o complexo.
O complexo surge como impossibilidade de simplificar lá onde a
desordem e a incerteza perturbam a vontade do conhecimento, lá onde a
unidade complexa se desintegra se a reduzirmos a seus elementos, lá onde
ser perdem distinção e clareza nas causalidades e nas identidades, lá onde
as antinomias fazem divagar o curso do raciocínio, lá onde o sujeito obser­
vador surpreende seu próprio rosto no objeto de sua observação.

43. Cf. O Método, e. 3.

132
A inteligência da complexidade

O complexo é o não-reduzível, o não-totalmente unificável, o não­


totalmente diversificável.
O complexo é aquilo que é tecido simultaneamente, aí subentendi­
dos ordem/desordem, um/múltiplo, todo/partes, objeto/meio ambien­
te, objeto/sujeito, claro/escuro.
Tudo é complexo: a realidade física, a lógica, a vida, o ser humano,
a sociedade, a biosfera, a era planetária...
Não são somente os fenômenos da superfície que são complexos; os
princípios que os regem são complexos; o inframundo e a retaguarda­
mundo são eles próprios complexos - a complexidade não está apenas
nas interações, inter-retroações, ela não está somente nos sistemas e
organizações. Ela é a base do mundo físico.
Nós somos confrontados pela insustentável complexidade do ser,
pela insustentável complexidade do mundo.
A complexidade recusa deixar-se definir imediata e certamente de
maneira simples.
Existem dois pólos de complexidade: um pólo empírico; outro, lógico.
O pólo empírico é aquele das desordens, acasos, confusões, inter­
retroações nos fenômenos.
O pólo lógico é aquele da causalidade retroativa, das contradições
incontornáveis às quais conduz o conhecimento racional-empírico,
das irresolubilidades no seio dos sistemas lógicos, da complexidade
de identidade.
A incerteza brota de um e de outro pólo. Ela diz respeito não somente
ao nosso conhecimento dos fenômenos, da nossa capacidade de predi­
ção, ela diz respeito mais profundamente ainda à natureza da realidade,
e nos obriga até a rever nossas evidências, aí compreendidos o tempo e
o espaço. O reconhecimento da complexidade desemboca desse modo
no mistério do mundo.
A complexidade se reconhece, portanto, pelos traços negativos:
incertezas, regressão do conhecimento determinista, insuficiência da
lógica. Ela se reconhece também pelos traços positivos: o tecido comum
em que se ligam o um e o múltiplo, o universal e o singular, a ordem,
a desordem e a organização.
Existem múltiplas complexidades, aquelas propriamente físicas,
aquelas propriamente biológicas, aquelas propriamente antropossociais,
e, no mundo contemporâneo, as complexidades da era planetária.

133
r
Edgar Morin

O desafio
Desse modo, a complexidade é desafio e não solução.
Existem três desafios maiores, simultâneos e freqüentemente liga­
dos, que são lançados pela complexidade.

l - Como reunir. É o desafio próprio da inteligibilidade e da


compreensão em situação de complexidade, visto que intelligere signifi­
ca "entreligar", e comprehendere, "apreender juntamente".
• reunir o acontecimento, o elemento, a informação ao contexto;
eventualmente reunir entre eles os contextos diversos;
• reunir o parcial ao global e ligar o global ao parcial, segundo a
exigência já formulada há mais de três séculos por Pascal:
"Todas as coisas sendo causadas e causadoras, ajudadas e aju­
dantes, mediaras e imediatas, e todas se sustentando por um
laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais
diferentes, eu julgo impossível conhecer as partes sem conhe­
cer o todo, não mais do que conhecer o todo sem conhecer par­
ticularmente as partes";
• reunir o um ao múltiplo, o universal ao singular, a autonomia
à dependência;
• reunir o elemento organizado à organização e reunir a organi­
zação àquilo que ela organiza;
• reunir a ordem, a desordem e a organização reconhecendo intei­
ramente seus antagonismos;
• reunir o separado e o inseparável, o descontínuo e o contínuo, o
indivíduo à espécie, o indivíduo à sociedade. No mundo revela­
do pela física quântica, o inseparável não deve ocultar, mas fazer
reencarar o separado que perde sua evidência e se torna proble­
ma. O problema da complexidade é não substituir a separabili­
dade pela inseparabilidade, mas inseri-las uma na outra;
• reunir aquilo que é antagônico ou contraditório desde quando o
antagonismo ou a contradição apareçam como complementares;
• reunir a lógica e aquilo que ultrapassa a lógica;

134
A inteligência da complexidade

• reunir a observação ao observador, a concepção ao conceicuador,


o conhecimento ao conhecedor,
- ou seja, conceber o complexus (aquilo que é tecido conjuntamen­
te) nas organizações e entre os organizadores, nos indivíduos,
entre indivíduos, entre indivíduos e sociedades, entre sociedades,
- ou seja, restituir as relações, as interdependências, as articula­
ções, as solidariedades, as organizações, as totalidades,
- ou seja, colocar-se em condição de tratar a complexidade orga­
nizacional, a complexidade viva, a complexidade humana
(bioantropopsicossócio-histórica).

2 - Como tratar as incertezas?

3 - Como realçar o desafio lógico? Como tratar os paradoxos e as


antinomias que surgem no processo de investigação racional' Como
aceitar as contradições ou antagonismos lógicos? Como reuni-los?
Como manter a lógica transgredindo-a completamente? Como integrar
a indissolubilidade?
O problema é não tanto de quantidade de conhecimento do que de
organização do conhecimento.
O problema não é tanto abrir as fronteiras entre as disciplinas como
transformar aquilo que gera essas fronteiras.
(Vê-se aqui a diferença de natureza com a complicação: a complicação
é como uma meada que poderia ser desenrolada se o operador dispusesse
de suficiente sutileza nos seus meios de observação e de análise, paciência
suficiente e habilidade, o que permitiria reencontrar o fio correto dos ele­
mentos simples e das noções simples; a complexidade requer uma outra
forma de pensamento para articular e organizar os conhecimentos.)

O desafio do Método
Nós também temos necessidade de um método que reúna o sepa­
rado, afronte o incerto e supere as insuficiências lógicas;
• que restitui, reconstitui ou recompõe os conjuntos/sistemas e
Unidades complexas;

135
r
Edgar Morin

• que possa reconhecer a ressurreição do cosmos, da natureza, da


vida, do homem, que haviam sido desintegrados;
• que possa operar a reemergência dos seres, dos indivíduos lan­
çados no lixo pela ciência clássica;
• que possa conduzir-nos a um necessário refundamento conceitual.
Um método que ultrapasse as alternativas provenientes da grande
disjunção, notadamente espírito/matéria, dependência/autonomia,
determinismo/liberdade, homem/natureza/cosmos, e que obedece à
demanda de Heráclito: "Juntem aquilo que concorda e aquilo que dis­
corda, aquilo que está em harmonia e aquilo que está em desacordo".
Porque a concórdia e a discórdia formam o tecido do complexus.
O desafio é amplo e premente: a necessidade de um pensamento
que reúna é cada vez maior porque os problemas são cada vez mais
interdependentes e cada vez mais globais, e ao mesmo tempo porque
sofremos cada vez mais do excesso de parcelarização e de comparti­
mentalização dos saberes.
O método que serviu como objeto deste trabalho há vinte e cinco
anos, e continua a servir, é uma ajuda à estratégia de pensamento e não
uma metodologia, ou seja, um programa a ser aplicado. Ele leva seu
próprio paradoxo: todo aquele que pense segundo o método da comple­
xidade pensa por ele mesmo e incita o outro por si próprio.
Ele concerne a nossa maneira de pensar em todos os domínios do
conhecimento.
Ele deve determinar um refundamento conceituai e conduzir ao
pensamento complexo.
O pensamento complexo deverá levar a marca da desordem e da
desintegração, relativizar a ordem e a desordem, nuclear o conceito de
organização, operar uma reorganização profunda dos princípios que
comandam a inteligibilidade.
Uma tal empresa suscita uma formidável resistência: os espíritos
foram formados para eliminar a ambigüidade, para se satisfazerem com
verdades simples, para praticar a oposição maniqueísta do bem contra o
mal, e isso por todos os lados, aí subentendida a cúpula da Universidade.
Como disse Tocqueville, "uma idéia simples, mas falsa, terá sempre mais
peso no mundo do que uma idéia verdadeira mas complexa".

136
A inteligência da complexidade

Um tal empreendimento suscita também enormes mal-entendidos.


Ainda que em tomos precedentes do Método eu tenha insistido sobre
a idéia de que o tratamento da complexidade revela e sublinha as
incertezas inerentes a todo conhecimento, e ainda que eu tenha indi­
cado que o pensamento complexo comporta a consciência do inacabado
de qualquer pensamento, os espíritos simplificadores nos atribuem
um sistema coral de caráter hegeliano. Ora, o pensamento complexo
não pode e nem quer elaborar um sistema de inteligibilidade univer­
sal porque ele se diz ser dialógico, aberto, e admitir em seu seio a
incerteza; em compensação, ele utiliza a noção de sistema para com­
preender a organização.
Por outro lado, pudemos ver que não basta querer destacar o desafio
da complexidade para efetivá-lo. Existem concepções pobres ou muito
simples da complexidade, que recaem na rotina que eles tentaram dei­
xar. Dessa maneira, um Waddington (Toois for thought, 1977) focaliza
somente a complexidade das interações no seio de um sistema. Certos
pesquisadores do Instituto de Santa Fé estão pesquisando as "leis da
complexidade", ignorando que a própria noção de lei só vale para um
universo simplificado... Como disse Hayek, "a pequisa das Leis não é
um rótulo de procedimento científico, mas somente um caráter próprio
às teorias dos fenômenos simples".
Trata-se, portanto, não de procurar leis ou·um novo sistema, mas um
método que permita ao mesmo tempo reunir e tratar a incerteza, um
método que, ao mesmo tempo que é integrado pelo espírito, permitia
o desenvolvimento de um pensamento complexo.
A reforma do método é inseparável de uma reforma do pensamento,
ela própria inseparável de uma reforma do ensino.

137
r
Capítulo 3
Universalidade, incerteza,
educação e complexidade:
Diálogos com Edgar Morin

--
3.1 O homem e o universo, o homem e a ciência

Diálogo com Hubert Reeves e Monique Mounier-Kuhn


Monique Mounier-Kuhn (encarregada das relações parlamentares e públicas
do CNRS): As estrelas nascem, vivem e morrem. Os homens também ... Hubert Ree­
ves, o senhor explica a vida das estrelas e a história do universo, e o senhor, Edgar
Morin, medita com prazer sobre "o homem e a morte", sobre o homem no ·universo
e na nossa sociedade. De um lado, o estudo da natureza; de outro, das ciências
do homem - duas caminhadas aparentemente opostas. O que é que os aproxima?
Edgar Morin: Acredito que Hubert Reeves, interrogando o universo,
interroga necessariamente o homem, reflete sobre o lugar do homem no
universo, e que eu, interrogando o homem e o homem social, inevita­
velmente chego a me perguntar qual é o lugar desse homem no universo.
Nós desembocamos, um e outro, na questão do homem inseparável da
questão do mundo.
Hubert Reeves: E encontro em Edgar Morin essa mesma paixão da
síntese que reconheço na minha caminhada científica. O conhecimento
frag mentado, especializado não nos satisfaz. Nós somos curiosos de
todo o universo. Eu abordo o problema da faceta física, mas sinto que é
preciso englobar as realidades psíquicas. Nossos domínios são conexos.
Nós nos reencontramos no território intermediário - o das relações
entre o homem e o universo.

M. Mounier-Kuhn: Qual é a sua visão do universo, à luz da ciência em


1982? E qual é o lugar do homem nesse universo?
H. Reeves: Nesse ponto, não tenho as idéias muito claras. Sobretudo,
tenho questões que não consigo nem mesmo formular convenientemente.
É fácil para mim definir minha posição com relação a outras "visões".
Por exemplo, aquela de Jacques Monod, quando ele escreve que "a
matéria não é a parte importante da vida e a vida não é a parte impor­
tante do homem". Ou, ainda, aquela de Lévi-Strauss: "O universo nasceu
sem o homem e morrerá sem o homem". Parece-me, ao contrário, que o
ser humano é uma parte essencial da economia do universo. O físico
Freeman Dyson me toca mais perto: "O universo, alguma parte, sabia
que o homem ia chegar".

141
Edgar Morin

Trata-se, evidentemente, de uma visão pessoal e não de uma infor­


mação baseada na argumentação rigorosa. Mas existem, ainda assim,
elementos que nos aparecem de aquisições recentes da ciência (física,
química, bioquímica, biologia, astronomia). É um grande fenômeno da
organização progressiva da matéria. É o tema do meu livro Patience dans
razur. Desde o início do universo, a matéria se organiza. Ela o faz asso­
ciando entidades simples para fazer entidades cada vez mais complexas
e cada vez mais performáticas. Passa-se sucessivamente do nível das
"partículas elementares" (quarks, elétrons, fótons) ao nível dos nú­
cleons, depois aos núcleos, depois aos átomos, depois às moléculas, sim­
ples e cada vez mais complexas (biomoléculas), a seguir às células, depois
aos organismos pluricelulares, escalando progressivamente até o cume
da árvore darwiniana. Sobre nosso planeta, o "fruto" mais avançado desta
gestação cósmica é o ser humano capaz de tomar consciência de sua pró­
pria existência, capaz de conhecer o universo que o engendro u...
Não é absurdo dizer que o universo evoluiu "como se ele quisesse
engendrar um ser capaz de tomar consciência de sua própria existência
(reconhecendo inteiramente o caráter perfeitamente antropomórfico
dessa proposição). Pode-se atualmente, sem se degradar intelectual­
mente, fazer sua a idéia de que o universo é definitivamente uma
máquina de fabricar consciência. E que isso leve quinze mil anos. Mas
por quê' Com que finalidade 1 Disso, não tenho a menor idéia. Dos ecos
que não estão em dissonância com essa visão do mundo vem-nos a teo­
ria da medida em física quântica. O postulado da objetividade absoluta
"nunca indemonstrável" de Jacques Monod não é mais sustentável
enquanto tal. Não se pode dissociar do resultado da observação a vontade
do observador quanto àquilo que ele decidiu mensurar. Em outras pala­
vras, não se pode pensar no universo sem fazer intervir a presença
daquele que pensa, não somente enquanto observador separado e "obje­
tivo", mas igualmente interventor para transformar suas potencialidades
em realidade, através do próprio fato de sua intervenção. As leis da física
descrevem muito mais a nossa interação com o mundo que o mundo ele
próprio (Heisenberg). É a intuição kantiana que retorna a nós com o
peso e o vigor que propiciam um formalismo matemático rigoroso.
E. Morin: Concordo com Hubert Reeves num ponto fundamental: o
universo que conhecemos não é o universo sem nós, é o universo conosco.
Nós conhecemos bem as coisas objetivas do universo, ou seja, as coisas

142
A inteligência da complexidade

que são verificadas pela observação e pela experimentação. Mas essas


coisas objetivas estão inscritas nas teorias que são estruturadas e elabo­
radas pelos nossos espíritos: não se pode pretender conhecer um universo
não-humano. O nosso conhecimento mais objetivo é também alguma
coisa de humano, de cultural e de inscrito num tempo. Desse modo,
podemos nos dessolidarizar do universo no momento em que possamos
distinguir do universo. Estou, pois, de acordo e generalizo esse princípio
de uma certa física: não podemos conceber a observação excluindo o
observador. Em todos os domínios - sociológico, histórico - o observador
deve estar incluído na observação.
Aquilo que as ciências sociais nos trouxe há séculos, e isso conti­
nua... é nos fazer perder esse privilégio central que nos dava a religião,
que fazia do homem uma criatura criada especialmente por um criador
e colocada no centro do universo. Perdemos esse privilégio de ser de
substância diferente daquela dos outros seres viventes, porque somos
um produto da evolução biológica; a vida foi feita com a matéria cós­
mica, que começou antes que existissem as estrelas. Portanto, fazemos
"parte" desse universo, mas somos muito marginais. Perdeu-se o privi­
légio de ser o centro do mundo.
· Isso me leva a pensar no prolongamento daquilo que Reeves diz,
numa passagem extraordinária, para mim, do matemático Spencer
Brown. Ele diz mais ou menos isso: "Supondo que o universo tenha tido
vontade de tomar consciência dele próprio, seria preciso que ele se dis­
tanciasse dele próprio para poder se considerar". Seria preciso pois que
ele lançasse fora dele uma espécie de pedúnculo ou pseudopedúnculo que
seja estranho ao universo para que ele possa se olhar. Em outras palavras,
o universo não é capaz de refletir a si próprio se ele não se distanciar com
relação a ele próprio. É como a nossa consciência - ela tem necessidade
de se desdobrar. Portanto, se nós estamos lá e se nós tomamos consciên­
cia do universo, tornamo-nos de uma certa maneira "estranhos" a esse
universo. O universo enquanto tal tem necessidade de exilar uma parte
dele mesmo se ele quiser tomar consciência, para ficar nessa hipótese.
Isso, de repente, vai no sentido da idéia de que somos muito marginais
no universo, e que a vida, ela própria, é marginal. Posteriormente aos
nossos conhecimentos, talvez essa vida só tenha aparecido uma única vez
sobre a Terra, o que nos sugere a unicidade do código genético para
todos os viventes e o caráter levogiro da molécula do carbono.

143
Edgar Morin

H. Reeves: Sim. Mas existem opiniões divergentes sobre esse assunto.


E. Morin: As razões a favor do caráter único são mais forces atualmente
do que aquelas a favor da pluralidade dos nascimentos. Se houve diferen­
ces nascimentos de vida sobre a Terra, não pode aí ter havido mais de
dois ou três. Não se pode eliminar, contudo, a idéia de que as condições
de nascimento da vida foram suprimidas pelo próprio desenvolvimento
do primeiro tronco vivo, que teria consumido toda a matéria orgânica.
H. Reeves: Admite-se que se hoje em dia todos os seres vivos pos­
suam moléculas levogiras é porque eles eliminaram aqueles que pos­
suem moléculas dextrogiras.

M. Mouníer-Kuhn : "Levogiras", "dextrogiras"... vocês podem explicar esses


termos para os nossos leitores não-científicos?
H. Reeves: Trata-se de moléculas que não são simétricas. Suponhamos
uma molécula que se enrola sobre ela mesma com a forma geométrica
de uma hélice ou de um caracol. O enrolamento pode ser feito no sen­
tido dos ponteiros de um relógio ou no sentido oposto. Essas moléculas
não absorvem a luz da mesma maneira. Fala-se aqui de moléculas dex­
trogiras e levogiras. Os açúcares, por exemplo, existem no laboratório
sob duas variedades. Mas nos seres vivos somente existem os açúcares
levogiros. No início havia verdadeiramente as duas espécies. Mas
somente uma sobreviveu.
E. Morin: Enquanto ficarmos sozinhos, enquanto não tivermos uma
mensagem de algum lugar, penso que devemos nos considerar sós. Creio
que o mundo é bastante trágico, que somos as crianças desse universo,
mas que pela nossa cultura, nossa consciência, cornamo-nos muito estra­
nhos. Insisto: é preciso que reencontremos a nossa comunidade matricial
com o universo. Estou entre Prigogine e Monod: "Tornamo-nos um
pouco os ciganos do universo", como dizia Monod.
H. Reeves: Eu gostaria de retomar essa idéia da existência de outras
civilizações. Não temos até o momento nenhuma certeza sobre esse tema.
No entanto, pode-se estabelecer uma argumentação a seu favor que pes­
soalmente me agrada muito. Ela é baseada, de um lado, na uniformidade
das leis da natureza e, de outro, na uniformidade das composições físicas
e químicas de todo o universo observável. Os testes a respeito desse assun­
to são cada vez mais precisos e cada vez mais passíveis de serem provados.

144
A inteligência da complexidade

As densidades da luz, dos átomos, das moléculas interestelares, de uma


parte, das estrelas e das galáxias, de outra parte, mostram que a natu­
reza se organiza por toda parte da mesma maneira. Não existe
nada de especial conosco... É razoável pensar que mesmo nos níveis
mais avançados da organização (que estão fora da nossa alçada de inves­
tigação) as coisas se passam ainda de uma maneira análoga.
E. Morin: E não se trata de uma simples questão de observação, não se
trata mesmo de uma questão de hierarquia, nem mesmo o fato de que o
ser vivo mais elementar ou o menos complexo, digamos, uma protobac­
téria, é constituído de centenas de milhares de macromoléculas. Existe o
fato de que é preciso um salto extraordinário para passar da organização
macromolecular a uma organização informacional, comunicacional e
computacional de um ser-máquina vivente, capaz de autoproduzir-se, de
auto-reproduzir-se, de autoperpetuar-se. E esse salto extraordinário é
fabuloso! Compreende-se essa tese que é há muito tempo defendida por
biólogos moleculares: a vida nasceu de um acaso tão improvável como o
macaco datilógrafo que escreve Hamlet sem querê-lo.
Creio que a única coisa que agora é corrigida com relação à idéia de
Monod é que não existe somente a visão estritamente química que
importe: existe também a visão termodinâmica, a constituição por tur­
bilhões de estruturas complexas, como demonstra a termodinâmica de
Prigogine. Mas até nesse caso existe um salto formidável de criatividade
da mais importante das moléculas à mais miserável das células.
H. Reeves: Acredito que exista uma verdadeira continuidade. A vida
é improvável? Para calcular a probabilidade da vida seria preciso saber
exatamente como se desenvolvem as etapas intermediárias. É um prin­
cípio geral do cálculo das probabilidades. É preciso, de início, estabelecer
o espaço da "amostragem", ou seja, conhecer o número de "acontecimen­
tos" que levam à vida com relação ao número de acontecimentos que não
levam. Senão, c_ometemos enormes erros. Eu lhes dou dois exemplos.
O primeiro se refere às moléculas interestelares. Os radioastrônomos
ficaram surpresos por descobrir no espaço moléculas que contêm até
dez ou doze átomos. Esperava-se encontrar moléculas simples de dois
ou três átomos. Por quê?
Poder-se-ia, às avessas, formular aproximadamente uma argumenta­
ção implícita como esta: "O espaço é vazio e frio, as probabilidades de

145
Edgar Morin

encontro são raras". Não se supunha, na época, a importância catalítica dos


grãos de poeira interestelar. E, como conseqüência, subestimava-se enor­
memente a probabilidade de formação de moléculas complexas, tão lar­
gamente expandidas na nossa galáxia bem como nas galáxias vizinhas...
Um segundo exemplo: as experiências de Urey e Miller. Trata-se da
estimulação das condições físicas e químicas no oceano terrestre primi­
tivo. Aí, ainda, os resultados são estupefantes: álcoois, açúcares e
mesmo certos ácidos aminos formam-se "espontaneamente" a partir das
moléculas simples. Pode-se acreditar, depois disso, que a "matéria não
é a parte importante da vida" ...
E. Morin: Espero que o senhor tenha razão. Mas acrescento que a ilusão
no jogo das probabilidades não é em sentido único. De início, poderia
parecer muito provável que existam outros espaços habitados, tanto que
não se sabia que a estrutura viva era de uma complexidade tão fabulosa.
E até Pasteur parecia muito provável que a vida nascesse sem parar sobre
a Terra. Portanto, a incerteza segue nos dois sentidos. Espero que exis­
tam outros seres pensantes e sobretudo mais inteligentes do que nós!
H. Reeves: Acredito que se pode dizer que a vida é essa tendência
misteriosa da matéria se organizando. Essa tendência se exprime em
física pela existência e ação das quatro forças da natureza. Temos todas
as razões para pensar que essas forças existiam já no início do universo.
Três dentre elas se diferenciam a partir de uma força única antes do pri­
meiro microssegundo. (No momento, a quarta, a gravidade, foge ainda
aos esforços da reunificação.) Essas forças já possuíam as propriedades
que lhes permitem hoje construir os edifícios que servem de base à
complexidade e à consciência.
E. Morin: Posso oferecer uma objeção: a matéria gosta de se organi­
zar, tende a se organizar, mas existe uma parte muito desorganizada no
universo físico; portanto, ela é organizada de maneira minoritária.
H. Reeves: Ela deve pagar. A segunda lei da termodinâmica diz: "Todo
ganho da organização será pago por um ganho de desorganização".
E. Morin: De início, a matéria organizada é minoritária no universo
e a matéria organizada da maneira mais complexa é ela própria minoritá­
ria com relação a essa matéria organizada. Em seguida, quando refletimos
sobre a evolução biológica, Darwin quis mostrar que ela era em forma
arborescente. A evolução biológica parte em todos os sentidos, vegetal

146
A inteligência da complexidade

e animal. Temos uma forma organizada extraordinária, não somente


entre os homens e os animais, mas também entre as plantas, as formi­
gas, as sociedades das formigas, mamíferos, macacos, que são nossos
primos. Mas esse fenômeno próprio ao homem, com esse nosso enorme
cérebro, com essa possibilidade de ter uma consciência, que se concebe
ela própria pela linguagem, com nossas sociedades, nossas civilizações,
apareceu num único ramo da evolução. Se a vida quisesse ir em direção
à consciência de uma maneira um pouco "teillardiana", ela teria tomado
três ou quatro caminhos para chegar lá. Ora, só existe um único cami­
nho ao qual essa consciência ascendeu. Então, existe certamente uma
tendência à cornplexificação, onde, a meu ver, o acaso terreno não é o
mestre de tudo...
H. Reeves: Absolutamente de acordo quanto ao papel do acaso.
E. Morin: Tudo aquilo que acontece num estágio mais complexo é
cada vez mais minoritário.
H. Reeves: O senhor descreveu muito bem quando evoca "as ilhas de
organização num oceano de desordem". São as exigências da segunda lei
da termodinâmica: "Se vocês quiserem criar a ordem, é preciso criar
também a desordem". Certamente, sobre o plano quantitativo, existe
pouca matéria organizada em relação à matéria desorganizada. O
importante é que existe matéria organizada, ainda que seja preciso
pagar muito caro como desordem para poder criar essa ordem.
É como se a natureza fizesse um grande esforço para se organizar.
Certas caminhadas falham, outras estão no caminho certo. Gosto muito
dessa imagem da natureza que joga: ela experimenta quantidades de
coisas, e, quando isso não funciona, ela as descarta, passa para outra
coisa. Ela destrói os dinossauros com um meteorito porque não é uma
boa carta. Então, ela tenta novamente com uma outra carta. É o lado
lúdico da natureza.
E. Morin: É um jogo bobo.
H. Reeves: Esse jogo rima com quê? É urna outra questão.

M. Mounier-Kuhn: O que representa para o senhor, hoje em dia, a ciência?


Como o senhor define pesquisa?
E. Morin: O conhecimento científico é diferente das outras formas
de conhecimento em virtude da sua obsessão de verificação. Se não se

147
Edgar Morin

pode verificar pela expenencia, verifica-se pela multiplicação das


observações. A ciência é a aventura da razão humana que tenta dialo­
gar com os dados e os fatos. É um diálogo entre a razão humana e o
universo. O universo, de fato, é sempre mais fabuloso e incompreen­
sível do que acreditava a razão. A ciência não é a razão somente por­
que a razão sozinha faz os sistemas muito lógicos nos quais ela se
fecha. A ciência caminha sobre quatro patas. As duas patas dianteiras
são a imaginação e a verificação, as duas patas traseiras, o racional e o
empírico. De repente, quatro unipatistas diferentes podem fazer um
excelente cientista ...
H. Reeves: Uma criança que observa o mundo descobre muito cedo
uma coerência. Não é o caos. Quando se esconde seu brinquedo, ela o pro­
cura. E, quando ela o encontra, compreende que entre seu espírito e a rea­
lidade exterior existe um cerco laço. Imagino que a caminhada científica
nasceu a partir de acontecimentos semelhantes com os nossos ancestrais.
Estamos fundamentalmente ainda na mesma caminhada. Nossos instru­
mentos se afinaram formidavelmente, tanto no plano da instrumentação
como no da conceicuação. É o acoplamento íntimo entre a experiência
e a sua formulação lógica, que é o próprio coração da ciência. Sei que os
elétrons "existem" porque a luz se acende no teto quando eu aperto um
botão. Embora eu saiba que jamais verei os elétrons.
E. Morin: Vê-se até que um cerco número de dados estabelecidos
pelos astrônomos caldeus e gregos continuam a ser válidos depois que
se abandonou o sistema de Ptolomeu.
H. Reeves: Exatamente. O conceito de verdade se associa à eficácia.
Ptolomeu não estava errado. Embora digam algumas vezes que seu sis­
tema é falso, não é falso: ele era favorável a predizer os eclipses, como
faziam os gregos e os egípcios. Mas isso não era verdadeiramente
"bom". Aquilo que podemos dizer a favor de Copérnico e de Newton é
que isso está "melhor".
Por que se adotaram Copérnico, Newton, Einstein?
Trata-se cada vez de um conjunto teórico que explica muitas coisas
e que as explica cada vez melhor. Por exemplo, a teoria de Newton
explica as quantidades das coisas; mas, se vocês tentarem compreender
por que a órbita de Mercúrio gira em torno dela mesma, a teoria de
Newton não tem resposta; isso não é previsto. Quando vocês adotam

148
A inteligência da complexidade

uma nova teoria, que é fundamentalmente diferente, aquela de Eins­


tein, na qual vocês colocam novamente em questão as noções de tempo
e espaço, vocês não ganham nada se se tratar de prever eclipses. Mas
vocês podem saber qual é a órbita de Mercúrio. A verdade científica
está ligada à eficácia. A quantas questões vocês podem responder pelo
mesmo preço? Mais vocês têm boas respostas, mais a teoria é boa.
E. Morin: E essa verdade pode ser provisória. Aquilo que é· muito
bonito na ciência é que uma teoria científica não é absolutamente
certa, ao contrário daquilo que se acreditou durante muito tempo,
porque ela aceita ser requestionada, como mostraram Popper e os
cientistas. Aquilo que é certo são os dados sobre os quais são obriga­
dos a estarem de acordo as pessoas de opiniões, de ideologias e de
crenças diferentes. A ciência progride através do jogo entre as teorias
e os fatos.

M. Mounier-Kuhn: Qual é o papel da intuição?


E. Morin: A intuição, a imaginação, o sonho desempenham um
papel enorme. Mas, vocês sabem, é um papel que não se pode colocar
em fórmulas matemáticas; não existe nos manuais científicos. Na bio­
grafia desses que "encontraram", vê-se bem que a "inspiração" é muito
variada. Poincaré dizia que ele encontrou a solução dos problemas
durante o sono. O papel do fantasma, do imaginário, é absolutamente
inacreditável, sob a condição de que ele esteja em diálogo com o tra­
balho da lógica e seja coerente.
H. Reeves: A intuição e a imaginação são de qualquer maneira os
motores da ciência. Mas é preciso, em seguida, o controle da racionali­
dade. Mas num sentido mais aberto. Orientado mais sobre a eficácia do
que sobre a lógica. Em ciência, é-se pragmático. Se isso "funciona" é
"bom", mesmo se conceitualmente isso se mantenha mais ou menos
bem. Tomemos a noção de "força" tal qual foi introduzida por Newton.
Estritamente falando, as leis de Newton são tautológicas.
O gue é uma força? É aquilo que altera um movimento regular?
É um corpo gue não está submetido a nenhuma força. No entanto,
é vantajoso adotar o conceito de força: vocês poderão em seguida com­
preender o movimento dos planetas.

149
Edgar Morin

M. Mounier-Kuhn: Sábio, cientista, pesquisador: esses termos que estiveram


em uso alternadamente correspondem- a uma evolução das concepções da pesquisa,
a seu ver, Hubert Reeves?
H. Reeves: Não gosto do termo "sábio". Ele evoca, a meu ver, a ima­
gem daquele que "sabe" e esse título possui um certo poder sobre aqueles
que não sabem. É o novo padre, aquele da nova religião, que é o "cien­
tifismo". "Cientista", sim, é mais neutro. Prefiro "pesquisador".

M. Mounier-Kuhn: Por quê?


H. Reeves: Porque é esse o nosso trabalho: pesquisar, experimentar as
coisas. A palavra "pequisador" implica que estamos longe de ter encon­
trado tudo: aquilo que sabemos é uma ínfima parte daquilo que se
poderia eventualmente conhecer sobre o universo.

M. Mounier-Kuhn: E o senhor, Edgar Morin, tem alguma preferência?


E. Morin: Incontestavelmente, prefiro a palavra "pesquisador". De
toda maneira, não posso adotar o termo "cientista", ainda que eu qui­
sesse, porque aquilo que chamamos de "ciências do homem" não são
"ciências" no sentido das ciências chamadas "exatas". Para mim, cien­
tista corresponde às instituições, não aos espíritos. Um "sábio" que tem
um espírito científico no seu laboratório, nos seus trabalhos, não o tem
necessariamente na sua vida pública, nas suas opiniões. É um abuso
dizer: "Eu, que sou um espírito científico".
Em compensação, "pesquisador" é qualquer coisa de plenamente
humano, porque a espécie humana é uma espécie pesquisadora. É essa
necessidade de curiosidade de que toda criança ressente. Temos o privi­
légio, se gostamos da pesquisa, de realizar o nosso desejo de infância.

M. Mounier-Kuhn: Os senhores pensam dever desempenhar um papel na vida


intelectual do século XX?
E. Morin: Quando tomo posições sobre um problema, faço questão de
fazê-lo enquanto indivíduo e não como "Edgar Morin, sociólogo". Evi­
dentemente, tento servir-me do meu saber sociológico para dar minha
opinião, mas sem usar esse título. O papel de um pesquisador na socie­
dade é talvez sobretudo o de estimular seus contemporâneos aos proble­
mas fundamentais da curiosidade humana de saber, de impedir também

150
"4'
A inteligência da complexidade

que as pessoas andem em círculo. Isso não está inscrito em nenhum esta­
tuto. São coisas que sentimos em nós mesmos. Sou pesquisador do CNRS,
uma instituição científica, e, por outro lado, tenho o direito, enquanto
pessoa, de ter opiniões sobre diferentes sujeitos. E posso me enganar!
H. Reeves: É uma distinção importante. O público tem tendência a
dar à personagem do "sábio" um esplendor, uma espécie de universali­
dade: arriscamo-nos a cair no cientismo. Quando perguntam minha
opinião, por exemplo, sobre a energia nuclear, insisto sempre em dizer
que estou dando um ponto de vista pessoal. Trata-se de um problema
muito complexo, em que intervêm variáveis, imponderáveis e compo­
nentes. A resposta não está nos livros. Posso emitir uma opinião porque
conheço bem a técnica. Mas posso também me enganar: é independente
daquilo que sei, ou não sei, sobre a física nuclear. Saber se é preciso uti­
lizar a energia nuclear ou não é um problema social muito extenso.
E. Morin: Devemos a qualquer preço evitar nos servir da nossa auto­
ridade como pseudomagos ou pseudopadres.

M. Mounier-Kuhn: A pesquisa está cada vez mais ligada a diversas ativi­


dades de nossas sociedades, que ela fecunda. Como pesquisador, o que senhor traz
para o mundo atual?
H. Reeves: Contar às pessoas a visão que emerge da ciência moderna
é certamente um objetivo válido. As pessoas se interrogam muito sobre
esse assunto. É importante dar-lhes os elementos indispensáveis a essa
reflexão, evitando totalmente desempenhar o papel de guru.
E. Moriri: O pesquisador das ciências naturais traz uma revolução
para a visão do mundo. Em quarenta anos, mudamos o cosmos, aban­
donando a mecânica laplaciana para um universo fabuloso, e mudamos
a nossa idéia de vida. Estou seguro também de que devemos mudar a
nossa idéia de homem.
No domínio das ciências sociais e humanas, existe um mal-estar de
uma ciência que gostaria de nascer e que não consegue jamais nascer.
Nosso papel é dizer: não joguemos os jogos "Diafoirus" ou "Trissotins".
Nós não somos "doutores" que sabem o que é a sociedade. O que se
pode dizer é que são precisos pesquisadores. Meu papel é dizer que a
sociologia faz parte da sociedade que ela quer conhecer.

151
P"

Edgar Morin

M. Mouníer-Kuhn: Como vocês analisam a responsabilidade do pesquisador?


E. Morin: É um problema muito difícil. Nós somos embalados entre
a irresponsabilidade e a culpabilidade. A irresponsabilidade é ver a
ciência como um eremita admirável num universo mau. Se a bomba
atômica ameaça destruir a civilização, a culpa é evidentemente dos
maus políticos e não nossa! Ora, ciência, técnica, sociedade são certa­
mente coisas distintas, mas não separadas. Elas se entre-influenciam e
se entretransformam e produzem forças de manipulação enorme que
dão à humanidade um poder demiúrgico - o conhecimento científico
também produziu as forças potenciais de submissão e aniquilamento.
Então, nós nos arriscamos a cair na culpabilidade. Houve um mani­
festo surrealista muito bonito nos anos 50, depois das primeiras bombas
atómicas, que dizia: "Fechem os laboratórios". Mas isso não é possível.
O verdadeiro problema é que nós devemos tomar consciência de nossa
responsabilidade na sociedade; nós fazemos parte de uma sociedade, nós
não estamos numa redoma, "vítimas" da sociedade. A verdadeira dificul­
dade é conceber o papel que nós desempenhamos e não ter os utensílios
mentais para isso. É o problema que coloco no Método. Do meio cientí­
fico, era preciso que nascesse qualquer coisa de mais amplo que o movi­
mento que já se chama "Movimento da responsabilidade científica".
H. Reeves: Sou talvez um pouco mais pessimista do que o senhor.
Estou surpreso com aquilo que se poderia chamar "a logística da des­
truição". Assim que uma técnica se desenvolve, ela é imediatamente
dirigida a finalidades destrutivas. A experiência "Los Álamos" me
impressiona. Os melhores cérebros do planeta para construir a bomba
atômica o mais rápido possível. Com todas as boas razões do mundo.
No início, era Hitler; depois os japoneses; depois Mascou e a guerra
fria. Os historiadores do pós-guerra nuclear (se ainda existirem...)
explicam como isso se desenvolveu com a precisão de um relógio.
Pergunta: por que não recebemos mensagens provenientes de civili­
zações extraterrestres?
Resposta possível: o desenvolvimento da tecnologia conduziria irre­
mediavelmente à autodestruição?
1?u procuro em torno de mim razões para esperar.
E. Morin: Acredito que exista um movimento de feedback positivo da
destruição pela destruição, que é terrível. O problema da ciência hoje em

152
A inteligência da complexidade

dia não é mais, como disse um filósofo, controlar o controle. Ninguém é


controlado. Nós não conseguimos controlar as coisas que saem dos labo­
ratórios, e os políticos que se servem disso, eles próprios são incontrolá­
veis: existe uma espécie de força incontrolável, mas que controla a morte:
é a morte, o controlador. É terrível. Não sabemos dar a resposta. Alguma
coisa que mantenha até a compartimentalização da instituição científica
nos torna irresponsáveis. Quando se dizia a Wernher von Braun: "Ouça,
quandos os mísseis são disparados e se vão, o que o senhor pensa?", ele
respondia: "Isso não é um assunto do meu departamento".
H. Reeves: Trata-se acima de tudo de palavras de uma música de
Tom Lehrer 44 . Ele diz a Von Braun: "When the rockets are up ... who cares.
Where they fali, it is not my department".
E. Morin: Isso não faz parte do meu "pequeno papel", como se dizia
numa comédia de Moliere. Essa compartimentação do seu "universo",
essa afirmação: "Não tenho nada a ver com isso", é a lógica de Eich­
mann também: "Eu somente obedeço às ordens". Como poderíamos nós
romper essa lógica se não tomamos consciência dessa lógica e se não
entramos na crise para procurar uma outra lógica?

M. Mouníer-Kuhn: Os senhores evocam a angústia diante do drama com


o qual o mundo contemporâneo é confrontado. Podemos pensar que se está tam­
bém no momento de colher os frutos da ciência, no domínio da vida cultural
ou do desenvovimento sócio-econômico, sem que se seja, certamente, a cada vez
ganhador. Certas sociedades são mais dotadas do que outras para absorver o
progresso dos conhecimentos?
H. Reeves: A ciência tem um aspecto ao mesmo tempo muito posi­
tivo e muito negativo. O lado nocivo da ciência foi ignorado durante
todo o século XIX. O único que soou o alarme foi Nietzsche. Ele escreveu
textos muito pertinentes sobre o lado pernicioso da ciência. É o primaz
da racionalidade contra as outras visões do universo. O livro Tristes tró­
picos ilustra bem aquilo que acontece com a chegada da tecnologia a
uma civilização que vive em harmonia com seu meio ambiente: a vida
não tem mais sentido. A civilização ocidental lhe dá as roupas quentes,

44 . Compositor americano e professor de matemática em Boston.

153
Edgar Morin

mas ela destrói a cultura. É um enorme problema para a hierarquia da


humanidade encontrar a harmonia com a tecnologia. A tecnologia não
traz harmonia. Ela escava as bases antigas. Vejo aí um problema maior
de sociologia: quais são os valores da recolocação para o ser humano
numa sociedade tecnológica? Devemos aceitar a tecnologia, não pode­
ríamos retroceder, mas como conviver com ela?
E. Morin: A grande dificuldade é conceber ao mesmo tempo o "bom"
e o "mau" lado da ciência, essa profunda ambivalência. Em geral, os espí­
ritos se dividem: uns dizem que a ciência traz benefícios à humanidade -
medicina, vacina, agronomia, etc. Tecem uma enorme lista desses bene­
fícios indubitáveis. Outros fazem uma lista também indubitável de
ameaças e de flagelos. Na realidade, existe um jogo dialético de um e de
outro: a medicina diminui a mortalidade infantil em numerosos países do
Terceiro Mundo, mas essa diminuição agravou o problema demográfico
e o problema da fome, que ela própria destaca, evidentemente, com o
crescimento das culturas e dos rendimentos, mas também dos problemas
ligados à organização social. O drama é que temos pensamentos compar­
timentados, enquanto os problemas são solidários. Um problema cientí­
fico é também um problema político, e ele próprio reconduz à ciência.
A ciência mais humana, a antropologia, foi durante muito tempo
uma ciência bárbara. No início do século, Lévy-Bruhl falava dos "pri­
mitivos", os "povos-crianças", que não eram racionais. Eles eram "mís­
ticos" e "alógicos". Questionava-se como eles chegaram a fazer armas
tão refinadas e utensílios tão notáveis. Supondo-se repentinamente que
a nossa civilização era racional e lógica, o que efetivamente era total­
mente irracional. Claude Lévi-Strauss soube demonstrar que existiam
tesouros, verdades, virtudes nas chamadas culturas "primitivas". Hoje,
damo-nos conta daquilo que é a barbárie da nossa sociedade civilizada.
Nós só sairemos da nossa barbárie mental quando formos capazes de
considerar a complexidade dos fenômenos. É a nossa maneira de ver
quem deve mudar.
H. Reeves: Exatamente. Ret0mamos o contexto do observador e do
observado. Acreditou-se sermos os observadores saídos do contexto que
olhavam os seres humanos como átomos. Descobriu-se que éramos seres
humanos, com nossas próprias mitologias, nossa própria irracionalidade.

154
A inteligência da complexidade

E. Morin: E no momento em que pensávamos ser os mais racionais, ou


seja, proprietários monopolistas da razão, que éramos os mais irracionais.

M. Mounier-Kuhn: A ciência é neutra?


H. Reeves: Não, não há nada menos neutro do que a ciência. O mito
da neutralidade da ciência é uma maneira de inocentar a consciência.
E. Morin: A palavra "neutro", a meu ver, não tem sentido. A ciência
é feita de teorias, que correspondem a um ponto de vista sobre o
mundo, o qual depende das obsessões de tal ou qual cientista; elas
podem ser verificadas ou anuladas. Mas uma teoria não é neutra, já que
ela impõe um certo ponto de vista. A ciência dá resultados que não são
neutros, esses resultados vão ser imediatamente utilizados para ação,
para melhor ou para pior, freqüentemente para melhor e ao mesmo
tempo para pior. Então, não existe nada de neutro na ciência.
O que existe na ciência é uma objetividade: que ela seja feita de espí­
ritos subjetivos, ainda que as teorias reflitam necessariamente as condi­
ções culturais da sua produção, eles conseguem apreender um cerco
número de fenômenos objetivos. Objetividade, sim; neutralidade, não.

M. Mounier-Kuhn: A época atual é marcada por um desenvolvimento cien­


tífico e tecnológico considerável. Ela pode ser considerada como "científica"? O
que o senhor pensa dos movimentos anticiência e da sua influência?
H. Reeves: Acabamos de atravessar um longo período de "cientismo"
que se estende desde a Renascença até o início do século XX. A mais
vibrante testemunha é sem dúvida aquela de um poeta, Victor Hugo:
"A imensa felicidade do progresso é inevitável". Quem assinaria agora
esses versos'
Hoje em dia, a religião da ciência é pelo menos violentamente tão con­
testada como as grandes religiões tradicionais. Acabei de morar seis meses
na Califórnia. O poder e o fanatismo de certos movimentos anticiência
atingem níveis estarrecedores. Sente-se um crescimento de força do irra­
cionalismo, tão inquietante como o movimento nazista dos anos 30.
Trata-se, creio eu, de uma reação invejosa à hegemonia que a racio­
nalidade tinha imposto a todas as formas de pensamento havia vários
séculos. Os excessos racionalistas (que confiam no computador) e a
negação dos valores irracionais (visão poética e mística) conduziram

155
Edgar Morin

esses excessos de irracionalidade que queriam nos levar à idade pré­


científica. É uma ilusão perigosa que dá direito a Jim Jones e aos suicidas
coletivos da Guiana. A ciência e a tecnologia estão entre nós - é preciso
que aprendamos a conviver com elas.
Mas, ao mesmo tempo, é preciso reintegrar esses valores intuitivos,
imaginativos, criativos, que foram considerados ultrapassados. A razão
pura leva ao enxugamento; a irracionalidade pura, à loucura. Tudo isso
não tem nada de novo. É a sabedoria antiga. Mas hoje em dia importa,
mais do que nunca, dizê-lo novamente.
A personalidade humana tem numerosas facetas. Todas elas têm
direito à existência, ao reconhecimento. Elas devem desenvolver-se
em harmonia.
E. Morin: O que é cientismo? É preciso inicialmente defini-lo. É uma
visão fechada da ciência, é pensar somente nela, ela é tudo. Enquanto exis­
tem dimensões humanas que fogem à visão científica, outros modos de
conhecimento. A poesia existe também, não é pura fumaça... Além disso, o
cientismo está presente, sobretudo no final do século XIX, como o proprie­
tário absoluto da verdade, de uma nova religião de salvação. Era a época em
que se acreditava que o "cientista" equivalia à "certeza absoluta", enquanto
"cientista" quer dizer "sempre dúvida". Essa _forma de cientismo implicava
a identificação da ciência com o progresso automático, conduzindo ao pro­
gresso da humanidade. Chegamos novamente a tudo isso. O conceito cien­
tista permanece como um ídolo moderno: o nazismo se pretendia fundado
na biologia científica; o stalinismo se pretendia proprietário da ciência his­
tórica. O cientismo é a pretensão indevida ao monopólio da verdade, no
momento em que a própria ciência está dizendo: não existe monopólio.
O problema da racionalidade também é importante. Eu oponho for­
temente a racionalidade à racionalização, embora elas tenham a mesma
raiz: o espírito querendo esclarecer aquilo que há de lógico no universo.
Na racionalização, se existe uma contradição entre sua lógica e aquela
do universo, é sempre o universo que está errado e o sistema lógico
quem tem razão. Se vocês tomarem como exemplo a astronomia e a
astrologia, a astrologia representa uma racionalização fantástica. A
astrologia nos diz que o nosso destino, enquanto indivíduos, é determi­
nado. A obra-prima da visão determinista da humanidade é a astrolo­
gia, visto que, pela leitura do nosso mapa astral, podemos dizer quem
somos e quem seremos. É uma racionalização.

156
A inteligência da complexidade

Por quê 1
Porque as ciências nos deixam incertos sobre nós mesmos: "Quem
sou eu?"
Dessa maneira, cada um tem um grande prazer em ler seu horóscopo,
ainda que ele não acredite nele ... Nós somos tão diversos, tão múltiplos!
O maior inimigo da racionalidade é a racionalização. Os maiores ini­
migos estão no interior. O maior inimigo do homem é evidentemente o
homem. O maior inimigo da ciência é essa forma de cientismo. É
inquietante esclerosar-se, compartimentar-se, fechar-se na especialização,
que destrói a própria seiva do espírito da pesquisa.
Os movimentos anticiência se desenvolvem a partir dos evidentes
perigos do desenvolvimento científico no domínio das manipulações de
todas as espécies, não somente físicas. Eles se desenvolvem também
porque a todos os problemas que eles ressentem enquanto seres vivos:
"O que fazer? Como viver? Com que moral, com que ética?" A ciência
não responde - o que é pior: despreza essas questões.
Essa situação é acima de tudo dramática, na medida em que estamos
numa época em que a ciência reabriu todos os grandes problemas meta­
físicos que dormiam: o problema do universo, o problema do lugar do
homem no universo são "reabertos" de uma maneira que nenhum espí­
rito, tão grande como Platão, Descartes, pode conceber. Do mesmo
modo para a máquina viva, tal qual a conhecemos hoje em dia. A
"máquina" de Descartes. É através da reflexão sobre a ciência que pode­
mos avançar no nosso desenvolvimento propriamente humanista, sob a
condição de conceber um novo humanismo. Eu digo "reflexão". Quer
dizer que o conhecimento científico não é somente um produto que se
coloque nos computadores para ser manipulado pelas forças anônimas.
O conhecimento científico deve ser feito para ser refletido e pensado
por qualquer cidadão.
H. Reeves: Estou plenamente de acordo. A descoberta do faro de que
o universo tem uma história é um acontecimento de uma importância
capital no plano filosófico. Essa tese foi confirmada de maneira espeta­
cular há menos de vinte anos através da observação da irradiação fóssil.
Para o cientista dos séculos passados, o universo não tem história. Ele
está na eternidade das leis imutáveis da física.
E. Morin: Sim, o cosmos havia sido suprimido em favor da physis.

157

--
Edgar Morin

H. Reeves: Não era de bom-tom para um físico falar de "cosmolo­


gia". Antes do século XX, a "visão" do mundo, a Weltanschauung, era
reservada aos filósofos, aos poetas, às pessoas "não sérias". Mas, hoje em
dia, ela volta com força, na física e na astronomia.
E. Morin: Tudo é historizado, é uma mudança radical. Antes, pensa­
va-se que não houvesse aventura humana. Depois de Darwin, mesmo
com Lamarck, aprendeu-se que a matéria era histórica, que o cosmos era
histórico. Nós estamos num evolucionismo generalizado. A evolução
não é privilégio de uma espécie - é o que existe em tudo aquilo que é
criado no universo.
H. Reeves: É a história do universo.

M. Mounier-Kuhn: No desenvolvimento da sua obra científica e das suas


reflexões, suponho que os senhores passem por momentos de entusiasmo e por fases
de ceticismo. Eu gostaria de saber se os senhores têm, cada um, pelo período que
vivemos e pela pesquisa, esperança?
H. Reeves: Aquilo que me interessa é tentar "compreender", no
sentido mais amplo possível, tudo o que se passa, em todos os níveis
do universo. É muito ambicioso, e eu bem sei que jamais vou conse­
guir. Mas, de qualquer maneira, não posso me isentar disso. É uma
paixão, uma obsessão.
O problema mais difícil é o do horror. O horror existe, coexiste no
universo com o "sentido". Existem andorinhas nascidas há quinze
milhões de anos de evolução. Isso é bonito. Isso faz "sentido". Mas existe
também Auschwitz, e isso não consigo compreender, integrar. Existem
a morte, a opressão e a guerra nuclear que nos ameaçam. É preciso ler
as páginas da autobiografia de Jung sobre esse assunto.
E. Morin: Penso exatamente como Huberc Reeves. Os progressos do
conhcimento não são completamente regressões da ignorância, mas
comportam a criação de uma nova ignorância. Essa nova ignorância
difere da antiga porque sabemos que é ignorância. Nossa consciência da
ignorância faz com que a ignorância da qual somos conscientes não seja
a mesma que aquela da qual somos inconscientes.
Antes, éramos pretensiosos. Hoje, temos conhecimento de que o
saber caminha por fronteiras do indizível, de qualquer coisa que foge,
sem duvida, da nossa lógica. O mais comovedor na idéia de pesquisa é

158
A inteligência da complexidade

passar ligeiramente o limite do indizível. Talvez, à sua maneira, os


místicos, como São João de la Cruz, tivessem seus cantatas muito pri­
vilegiados com o desconhecido, com o inexprimível.
O conhecimento científico não é de modo nenhum místico nos
seus caminhos, nos seus modos; ele é muito reflexivo. É o jogo com o
desconhecido do universo. Chega-se a essa idéia tão bem expressa por
Shakespeare:" Existem mais coisas entre a terra e o céu do que em
toda a nossa filosofia". Felizmente, o mundo é de tal modo rico que
temos sempre que aprender e avançar. Eis o que me anima!
Sou um pessimista otimista. Evocamos os processos desastrosos que
se desenvolvem no universo, segundo parece, uma mecânica que foge às
nossas vontades. Ora, na evolução do universo é sempre o improvável
que chega, o improvável para o "espectador" que está lá, antes do novo
salto evolutívo. Esse espectador, nos primeiros segundos do universo,
teria dirn: "Que catástrofe!" Alguns milhões de anos mais tarde, ele
teria dito: "É fantástico, existem galáxias... " Também para a história da
vida, não teria visto as pequenas células que conseguiram se formar.
Antes do nascimento do olho, como imaginar o 01h0 1 Esse mesmo
espectador, no tempo dos dinossauros, não teria podido pressentir que
os pequenos mamíferos teriam o futuro diante deles...
Aquilo que é criador, inovador é imprevisível, improvável e mesmo
invisível. Ninguém possui os meios de concebê-lo. É o motivo pelo
qual sou otimista: penso que o improvável tem sua chance. Essa espiral
de morte na qual estamos, o improvável é que ela se destrua. Einstein
dizia, em termos um pouco estatísticos, que apenas dez por cento de
nosso espírito é utilizado: vivemos um período muito primitivo, uma
espécie de "pré-história" do espírito humano - todas as suas potencia­
lidades não estão ainda desenvolvidas.
Somos bárbaros não somente nas ideologias da vida corrente, da vida
política, mas até nas nossas teorias científicas: é Chomsky e Piaget,
incapazes durante um debate de captar o ponto de vista do outro, de
responder ao argumento do outro. Somos ainda bárbaros. Estamos na
Idade do Ferro não somente da humanidade mas da ciência. Portanto,
temos a chance, talvez, de nos civilizar. Esse progresso é improvável.
No entanto, podemos acreditar nele.

O pesquisador deve abrir-se aos problemas e à caminhada do seu tempo. Essa


"comunicação" necessária entre os pesquisadores e os diversos componentes da

159
Edgar Morin

sociedade contemporânea era um dos temas do colóquio sobre a pesquisa e a tec­


nologia. Edgar Morin e Hubert Reeves exprimem seus pontos de vista sobre a
"popularização" da ciência e as chances de reconciliação entre a cultura cientí­
fica e a técnica, freqüentemente inacessível, devido às terminologias cada vez
mais especializadas e à cultura banhada de humanismo à moda antiga.

H. Reeves: Certos domínios da ciência são mais facilmente acessíveis que


outros. Isso depende da formulação matemática inerente. A física quântica,
por exemplo, exprime-se fundamentalmente por uma linguagem matemá­
tica. Podemos adotar uma linguagem metafórica para descrevê-la, mas
é conveniente advertir o público: alguma coisa se perde na explicação.
Em astronomia, é diferente. Talvez porque não se atingiu ainda o
mesmo grau de sofisticação da mecânica quântica, talvez também por­
que planetas, estrelas e galáxias são mais acessíveis aos nossos sentidos
do que os elétrons. Outros domínios da ciência estão numa situação
análoga. Muitos cientistas empregam uma linguagem de classe, cons­
ciente ou inconscientemente. Muitas vezes, para preservar seu domí­
nio contra as intromissões territoriais. Aquele que "sabe" possui um
"poder". Além do mais, a linguagem obscura pode mascarar uma
ignorância ou uma ausência de reflexões profundas. Freqüentemente
tenho descoberto minhas carências quando tento explicar os fenôme­
nos científicos às crianças curiosas. Fui levado a retomar o problema
com profundidade. Einstein dizia: "Só entendemos bem aquilo que
podemos explicar às crianças". Fiz várias vezes essa experiência. Expe­
riência algumas vezes muito frutífera porque me levou a buscar novos
domínios de pesquisas.
E. Morin: Esse problema da "popularização" da cultura científica
apresenta muitas dificuldades.
Os cientistas devem ser proprietários, nos seus laboratórios, de seus
instrumentos, de seus aparelhos, de seus arquivos, de suas gavetas e até
de suas teorias - no sentido de que eles fazem teorias muito sofisticadas
que, no plano matemático, não são inteligíveis a todos. Mas eles não são
proprietários das idéias que se encontram nessas teorias. Essas idéias
deveriam poder ser discutidas por todos, sem que acontecesse aquilo
que chamamos de "vulgarização", uma espécie de subproduto do saber,
ou seja, um malogro.

160
A inteligência da complexidade

Quando se faz um esforço de comunicação de seu próprio pensamento,


chega-se a resultados muito felizes. Os livros de Hubert Reeves são um
bom exemplo, como também as obras de Jacques Monod, de François
Jacob, de Crick, de Luria, de outros grandes biólogos, de homens que
refletiram sobre sua ciência e criaram alguma coisa de "comunicável".
Damo-nos conta de que o problema da comunicação reaparece desde
que exista reflexão. Onde não existe reflexão, há incomunicação e orgu­
lho dos proprietários...
Diz-se: "Minhas idéias? Somente eu posso discuti-las, não vocês!"
Acredito que qualquer idéia possa ser discutida, que todas as grandes
idéias da ciência deveriam ser objeto de discussões. Se mais filósofos se
interessassem pelas ciências, eles lançariam seus debates como sempre
fizeram na história da filosofia.
Não se trata somente de idéias, mas também da nossa visão de
mundo: a astronomia moderna, a biologia moderna mudam a nossa
visão de mundo. E a nossa visão de mundo vai mudar ainda. Portanto,
é capital que tenhamos esse debate, essa comunicação entre o mundo
dos laboratórios e o mundo do público, sob a condição de que aí exista
esse elemento maior, que é a reflexão.
O humanismo é o verdadeiro problema. Nós tínhamos uma cultura
humanista que era fundamentada num saber bastante limitado, no
tocante ao homem e ao universo. Esse saber limitado podia ser discutido
pelos espíritos tão diversos como o de Montaigne, Pascal, La Bruyere, La
Rochefoucauld ... A dificuldade surgiu quando o saber se tornou quan­
titativamente, praticamente ilimitado, sempre mudando, e do mesmo
modo compartimentado.
Não se pode, por conseguinte, falar de cultura científica nem de cul­
tura humanista. A cultura humanista é aquela que faz com que todas as
esferas do saber se comuniquem. A cultura científica é até o presente
momento uma cultura compartimentada. O grande problema é o da
comunicação das duas culturas, e essa comunicação implica a transfor­
mação de uma e de outra.

Hubert Reeves concorda plenamente com essa análise de Edgar Morin: "São
as enzimas da comunicação e da reflexão entre os setores que são absolutamente
necessárias para que exista comunicação entre a cultura científica e a nova cul­
tura humanista, que deve, a meu ver, nascer. Senão, caminhamos em direção a
uma nova barbárie".
161
r

Edgar Morin

3.2. Complexidade, consciência do incerto


Diálogo com François Ewald
F. Ewald: Como o senhor encontrou a noção do incerto tão presente em sua obra?
E. Morin: Talvez eu tivesse desde o início uma predisposição pessoal. A
fórmula de Niels Bohr, "O contrário de uma verdade profunda", corres­
ponde à minha forma de espírito. Sou tentado pelas idéias opostas que
parecem se excluir. Minha vida não é guiada por uma certeza originária,
senão por aquela de lutar corpo a corpo com a incerteza. É preciso dizer
também que não sou herdeiro de uma cultura que me teria dado uma
crença absoluta sobre a qual eu teria podido assentar minhas idéias. Tal­
vez existam razões biográficas. Tive de afrontar o problema do risco, aos
dezenove anos, em 1941, sob a Ocupação: de um lado, eu sentia que era
preciso arriscar minha vida e entrar para a Resistência; de outro, tinha
medo de arriscar a minha vida. Tive de exercer o ofício muito incerto de
militante clandestino e um afrontamento com o risco e com a incerteza.
Escrevi meu primeiro livro importante, O homem e a morte, partindo
da idéia de que é precisamente porque não sabemos nada sobre a
morte, e que não podemos falar com propriedade, nada dizer, que é
interessante conhecer as atitudes dos seres, das culturas, das religiões
e das filosofias diante desse problema profundamente incerto. Como
conseqüência, quando fiz meus estudos de sociologia concreta, como
aquela sobre a comuna de Plozevet, eu sabia que não existia metodo­
logia certa e que eu tinha de construir uma estratégia aleatória. Quando
estudei os fenômenos eruptivos, como o Maio de 68, aquilo que me
motivou foi a surpresa, o inesperado do acontecimento, a ausência de
chaves explicativas a priori: era preciso tentar compreender um fenô­
meno que o nosso espírito não tivesse previsto. Como conseqüência, no
final dos anos 1968 e 1970, trabalhando sobre os princípiós do conhe­
cimento, fiquei impressionado com os desenvolvimentos do conheci­
mento científico moderno, que desintegrou a visão da ciência clássica,
aquela de um mundo mecânico, determinista, ordenado para fazer apa­
recer por todos os lados a desordem, o acaso, a agitação térmica, as
colisões, as obstruções, o imprevisível. Acredito que se pode entrar
num jogo de inúmeras incertezas locais, mas elas estão em arquipéla­
gos num oceano de incerteza. Mais abertamente, estou persuadido de

162
A inteligência da complexidade

que conhecer ou pensar não consiste em construir sistemas sobre as


bases certas - é dialogar com a incerteza.
Essa idéia reúne o trabalho de aplainamento concluído depois de
Nietszche; é preciso fundamentar seu pensamento na ausência de fun­
damento. A cosmologia moderna mostra que o mundo não tem funda­
mento: ele saiu do "vazio". Até mesmo a ética só se fundamenta nela
própria. Nesse sentido, uno-me a Pascal, para dizer que só existem
apostas. Nosso mundo é um mundo onde existem a imprevisibilidade
e a desordem, ou seja, o incerto. Não somente o incerto empírico, mas
também o incerto cognitivo, porque as nossas categorias mentais não
chegam a compreender as realidades propriamente inconcebíveis como
a origem do mundo. No Método, tentei o trabalho de um pensamento que
sabe que nunca poderá fugir da negociação com a incerteza, que é um
ingrediente da complexidade.
Quando, em Para sair do século XX, quis olhar o mundo atual, tive
a consciência de que estamos, de agora em diante, na Noite e nevoeiro,
que o futuro do mundo não pode ser predito, que o conjunto do jogo
das inter e das retroações nos foge.
Cada vez mais a previsão econômica se mostra enfraquecida, a des­
peito de uma enorme sofisticação matemática.
Por quê?
Precisamente porque ela é muito sofisticada, muito fechada nela
mesma; ela esquece que o econômico está ligado ao não-econômico,
quer dizer, a todos os outros fenômenos. A incerteza fundamental do
mundo, a incerteza do futuro que diagnostiquei ao falar da "crise do
futuro", o desmoronamento das certezas ligadas à idéia de progresso
garantido,· o desmoronamento da idéia de que ciências e técnicas só
sejam benéficas, introduziram em todos os lugares o verme da incerteza.
Mas, em vez de isso me levar a uma espécie de ceticismo ou de nii­
lismo generalizado, acredito que seja preciso tentar negociar com a
incerteza e não se deixar submergir por ela. A humanidade conviveu
sempre com a incerteza. Para os nossos ancestrais caçadores-coletores, a
caça era algo aleatório. Para as sociedades históricas, a guerra necessita
de uma estratégia, ou seja, uma conduta na incerteza. O mundo da
política é um mundo de incerteza. Talvez se pôde mascarar a incerteza,
desenvolvendo-se concepções deterministas planas, que só queriam
ver na· história uma espécie de máquina econômica guiada pelas leis;

163
Edgar Morin

pretendeu-se apagar as batalhas, os reis, os golpes de Estado, dizendo


que se tratava apenas do superficial das coisas. Sempre reagi contra
isso, não para negar determinações ou deterministas, mas para mos­
trar que toda a história deve ser concebida em virtude de um coque­
tel de ordem, de desordem e de desorganização, sempre flutuante,
incerto e variável.
Desse modo, fui levado a formular os princípios de uma ecologia da
ação: toda ação entra num jogo de interações que faz com que ela escape
muito rapidamente da intenção e da vontade dos seus autores. Se bem
que, se a eficácia de uma ação pode ser forte no seu início, ela só pode
diminuir com o tempo, e ninguém pode prever as últimas conseqüên­
cias. É ao mesmo tempo ingênuo e maniqueísta acreditar que basta ter
boas intenções para que a ação se realize. Não é preciso rejeitar mas
interrogar novamente com ceticismo a idéia da mão invisível ou das
armadilhas da razão. Os atores acreditam seguir seus interesses egoístas
ou suas idéias altruístas, mas, apesar de tudo, através das inter-retroa­
ções, aquilo que se faz transcende seu egoísmo ou foge do seu altruísmo.
No início de Fausto, Mefistófeles diz: "Eu sou essa parte do todo que
quer sempre fazer o mal e que faz o bem". A consciência da ecologia da
ação me parece necessária. Ela pode desmoralizar aqueles que querem
estar seguros antes do resultado. Ela me parece saudável porque significa
que se age, que se aceitam seus riscos, que se tenta corrigir seus erros
no decorrer do caminho. A teoria dos jogos de Von Neumann, na sua
simplicidade extrema, já revela a complexidade: se nós queremos mini­
mizar seus riscos, minimizamos suas chances; se queremos maximizar
suas chances, maximizamos seus riscos. Os jogadores devem imaginar
a estratégia um do outro, e isso num jogo de dois jogadores suposta­
mente racionais. Ora, na realidade os jogos são para vários, e os jogadores
não são racionais. De certa forma, é essa consciência que alimentou
minha reflexão: não se pode evitar o risco.

F. Ewa/d: O senhor se considera como aquele que na conjuntura intelectual


contemporânea reintroduziu a incerteza no pensamento?
E. Morin: Um entre vários. Sendo polivalente, pude reintroduzi-la nos
diferentes níveis da reflexão, enquanto, por exemplo, Monod ou Atlan
só o fizeram no seu domínio, a biologia. Quis reintroduzir o aconteci­
mento, a desordem, a bifurcação na nossa história social e humana.

164
A inteligência da complexidade

Nwn projeto semelhante, "transdisciplinar", fomos ajudados pelo fato de


que outros tenham pensado a mesma coisa em outros níveis. Quando,
por exemplo, Prigogine introduziu na física a idéia de bifurcação, per­
guntou-se por que os historiadores baniram essa idéia enquanto o mundo
físico é menos complexo do que o mundo social e humano. De fato,
associo a reintrodução da incerteza e a reintrodução da complexidade.

F. Ewald: Quais as grandes referências intelectuais que o senhor nos dá? Em


que tradição o senhor gosta de se colocar?
E. Morin: De um lado, considero-me inscrito num tecido cultural
francês e europeu e, de outro, um pouco como um aerólito. Não estamos
jamais certos, mesmo quando denominamos Nietzsche wn puro aerólito.
Meu âmago cultural é primeiramente Heráclito, porque Heráclito
afronta de maneira absolutamente marginal as contradições com a von­
tade de vê-las de frente: é também Montaigne, o Montaigne da análise
de si misturada com a análise do mundo que o cerca, o elo entre a auto­
crítica e a crítica, essa espécie de energia crítica que faz com que ele não
admita nada a priori; é mais profundamente Pascal, porque Pascal une
nele o ceticismo de Montaigne, a racionalidade científica e a mística; é
o Pascal do homem situado entre os dois infinitos, mistura de loucura
e de sabedoria; é ainda Hegel, porque Hegel é um espírito que quis
afrontar as contradições dizendo que o espírito deve levar a morte em
si, olhar a morte, e porque existe nele a idéia positiva da negatividade;
é, enfim, Marx, agora muito provincializado, mas que permanece ins­
crito nessa constelação. Tal é o horizonte intelectual no seio do qual me
situo muito bem, que tenho tomado muitas coisas para outros pensa­
mentos. Aerólito, não me inscrevo numa tradição única, uno as influên­
cias aparentemente antagônicas.

F. Ewald: No seu livro Terra-Pátria, o senhor reafirma suas convicções fun­


damentais. Podemos ficar surpresos que elas conduzam à evocação de uma religião.
O futuro da incerteza seria a religião?
E. Morin: Precisemos inicialmente que a modernidade religiosa com­
porta o diálogo com a dúvida. Pensemos em Pascal ou em Unamuno.
Precisemos ainda que existem dois tipos de religião: as religiões com
Deus, as religiões de salvação, que são aquelas do mundo ocidental, e as

165
r
Edgar Morin

religiões do segundo tipo, escondidas atrás das ideologias. O comunismo,


por exemplo, era uma religião de salvação, terrestre; a providencialização
do progresso e da ciência é também um fenômeno de natureza religiosa.
A fé missionária dos professores do início da República tinha um
componente religioso, acreditando-se científica e racional. Em outras
palavras, a racionalidade e a ciência podem ser a camuflagem de uma
atitude religiosa. O marxismo acreditava-se absolutamente científico,
científicidade que o ajudava a camuflar a si mesmo, a natureza mística
e religiosa de sua fé.
Em Terra-Pátria, é com muita hesitação que utilizo a palavra "reli­
gião", do terceiro tipo, quer dizer, fazendo o pleno emprego da raciona­
lidade, estando completamente aberto ao abismo e ao desconhecido, e
cuja função seria simplesmente juntar.
Aí, faço um paralelo, sem querer deduzi-los, do princípio do pensa­
mento complexo, que é o pensamento que junta as coisas separadas e
compartimentadas, e da idéia de uma ética da solidariedade, que é ela
própria uma ética que reúne. Quando se compreende que o fato religioso
pode desenvolver-se fora das religiões oficiais, podem me compreender.
Ao contrário das religiões que trazem a certeza, eu preconizo a fraterni­
dade na incerteza. Mas permaneço prudente; somente abordei essas
idéias de religião no final de um capítulo cuja idéia central é aquela do
"evangelho da perdição" e do "viver por viver".

F. Ewald: O termo "religião" é um pouco provocador numa época em que se


poderia pensar estar vivendo o "desencantamento do mundo".
E. Morin: Contrariamente a Malraux que anunciava que o século XXI
seria religioso, eu digo que o século XX foi um século hiper-religioso.
Sempre fui tocado por aquilo que Toynbee disse da nação: "A nação é uma
noção religiosa, uma noção com culto, com heróis, mártires, sacrifícios,
ritos. A modernidade criou a religião da nação, que não se conhece
enquanto tal. O século XX foi uma época de religião, de salvação ter­
restre com o comunismo: é uma época de religão nacional com suas for­
mas exacerbadas, como aquelas adotadas pelo Terceiro Reich, e que
vemos tornarem-se um pouco virulentas por todos os lados. Tudo isso era
e permanece muito religioso. Eu pediria que deixássemos essas religiões.

166

-
A inteligência da complexidade

F. Ewald: O tema da perdição é um tema muito desesperador.


E. Morin: Talvez, mas, se fosse preciso recusar as idéias em razão de
suas conseqüências, nada mal se recusarem as idéias justas. O tema da
perdição é desesperador, mas acrescento à palavra o termo evangelho,
que quer dizer "boa novidade". A perdição é uma novidade má que é
preciso ser aceita. A idéia procede da constatação da situação do homem
no mundo, sobre este planeta, do qual não se sabe nem de onde ele vem,
nem para onde ele vai, de um homem que não sabe por que nasceu, cuja
vida não obedece a nenhum sentido preestabelecido e nenhum sentido
providencial. Estamos perdidos nos dois sentidos: perdidos no universo
gigantesco, perdidos porque não existe nada além das nossas vidas ter­
restres. Apesar ou a partir dessa constatação, digo que existe uma boa
novidade: temos uma casa, um jardim que podemos cultivar - Cândido
na escala planetária. Não é o pequeno jardim da nossa casa, mas o jar­
dim coletivo da humanidade, a Terra. A boa novidade é dizer: "Sejamos
orgulhosos não porque seremos salvos juntos, mas porque estamos per­
didos juntos".
É um pouco daquilo que Buda dizia: uma vez que somos todos vol­
tados para o sofrimento, tenhamos um pouco de comiseração para
com os nossos companheiros de miséria, compreendendo que nesta
vi�a existem possibilidades de alegria, de felicidade. Mas elas não
conseguirão jamais excluir a infelicidade e a dor. Ao contrário, quanto
mais se experimenta a felicidade de viver com alguém que se ama,
maior é a infelicidade se essa pessoa se afasta. São. essas coisas da expe­
riência de cada um, que nós tentamos repelir. Não posso separar a
esperança da desesperança.

F. Ewald: Qual é o diagnóstico que o senhor faz da atitude das nossas socie­
dades desenvolvidas do ponto de vista da incerteza, em que a necessidade de segu­
rança parece ser tão forte que as pessoas pedem sempre mais proteção, segurança
e securidades sociais?
E. Morin: À medida que as antigas formas de solidariedade, familiares
e locais, desapareceram, é preciso solidarizar a sociedade no seu conjunto
por caminhos administrativos e burocráticos. Essa exigência legítima
teve efeitos morais e intelectuais perversos, notadamente uma mentali­
dade securitária que pretende eliminar da existência a idéia de risco.

167
Edgar Morin

Cada um esquecendo que sua própria vida é uma aventura, o acidente


que não se sabe afrontar se torna uma perda que exige sistematica­
mente compensação.
Durante milhares de anos, a humanidade foi constituída de povos
caçadores e coletores. Eles viviam num mundo incerto e aleatório. Se
ocorresse um incêndio na floresta onde viviam, eles mudavam de
lugar. As sociedades que praticavam a agricultura se tornaram tribu­
tárias de uma colheita, de coisas que podiam degradar-se, de reservas,
de celeiros. A humanidade sempre viveu com o afrontamento do risco.
Mas, nas nossas sociedades, como alguém poderia viver sem ser susten­
tado pelos nossos seguros sociais? Remexendo latas de lixo? Mendi­
gando? O indivíduo desprovido não tem recursos para encontrar suas
possibilidades de vida por si próprio. Existe uma tensão entre as neces­
sidades justas de uma solidariedade social face ao risco e a necessidade
de uma atitude de vida capaz de afrontar o risco tanto mais que o
mundo se encontra doravante numa situação de muito risco. Não
esqueçamos jamais que todo destino humano comporta uma incerteza
e um trágico fundamental.

F. Ewald: Qual é o futuro da incerteza? O senhor pensa que o século XXI


será o século da incerteza? Tanto mais que o século XX terá sido aquele dos pla­
nejamentos, dos grandes projetos?
E. Morin: Que sejam todos destruídos, Fos-sur-Mer, a barragem de
Assuã, o desvio dos rios siberianos. Todos os projetos tecnológicos
foram incapazes de contextualizar e de multidimensionalizar os proble­
mas existentes. A pesquisa da certeza do fechamento tecnocrático foi e
permanece uma das nocividades da época; ela conduziu a muitas catás­
trofes. Este século ofereceu meios muito mutiladores de dar certezas que
são falsas certezas. Hoje em dia essas falsas certezas desmoronam.
Encontra-se a incerteza. Mas a incerteza não é jamais total. Existem
vagas de certeza e zonas de incertezas de acordo com as quais podem
construir-se a estratégia de pensamento e a estratégia da ação. Na incer­
teza absoluta não existe estratégia - é preciso jogar cara ou coroa.
Entramos numa época em que as certezas se desmoronam. O
mundo está numa fase particularmente incerta porque as grandes
bifurcações históricas não foram ainda apreendidas. Não sabemos para
onde vamos. Não sabemos se haverá grandes regressões, se as guerras

168
A inteligência da complexidade

em cadeia não irão desenvolver-se. Não sabemos se um processo civi­


lizatório conduzirá a uma situação planetária mais ou menos coopera­
tiva. O futuro é muito incerto.
Ao supor que chegamos a civilizar esta Terra, o que não seria feito
da noite para o dia, disporíamos de novo de um mínimo de tranqüili­
dade que permitiria refletir sobre a incerteza metafísica. Em outras
palavras, se na vida concreta vocês estão na incerteza, tendem a elimi­
nar as grandes incertezas fundamentais, filosóficas ou outras; no
momento em que vocês estão numa situação tranqüila, poderão de novo
se interrogar sobre as grandes incertezas.

F. Ewald: Que relação estabelecer entre incerteza e complexidade?


E. Morin: No sentido banal, a palavra "complexidade" quer dizer:
"é confuso, não posso lhes responder".
Por que não se pode responder?
Primeiramente, porque o pensamento não chega a encontrar a fómula,
a palavra, o enunciado que possa, da maneira clara e distinta, formular:
"Eis do que se trata". O problema da complexidade é antes de tudo
afrontar uma incerteza conceitual com relação aos nossos hábitos de
pensamento que supõem que para todos os problemas pode apresentar
uma resposta clara e distinta. Ao método cartesiano que diz: dividamos
as dificuldades e tratemo-las uma a uma, responde um outro método
para o qual o conhecimento das partes só tem sentido se o ligamos ao
conhecimento do todo, que, enquanto todo, merece ele próprio ser
estudado. A complexidade está num emaranhado de coisas que faz com
que nós não possamos tratar as coisas, parte a parte. Isso corta aquilo
que une as partes e produz um conhecimento mutilado. O problema da l
complexidade parece imenso porque nós estamos num mundo onde só
existem determinações, estabilidades, repetições, ciclos, mas também
perturbações, obstruções, aparecimentos, o novo. Em toda a complexi­
dade existe a presença de incertezas, sejam empíricas, sejam teóricas, e

..
mais freqüentemente ao mesmo tempo empírica e teórica.

F. Ewald: Existe uma ética do incerto?


E. Morin: Uma ética para o incerto, sim.
O incerto nos obriga a complexificar a ética. Ele nos coloca em situa­
ções de double bind de que fala Bateson, em que é preciso caminhar bei-

169
Edgar Morin

rando dois imperativos contrários. A mulher do beduíno assassinado vê


um fugitivo chegar ao cair da tarde, o assassino de seu marido, que pede
asilo. Essa mulher tem duas opções: vingar o esposo e oferecer hospita­
lidade. Ela oferece hospitalidade à noite e no dia seguinte trama com
seus irmãos para executar a vingança. Ela foi confrontada no mesmo
momento com duas obrigações contrárias e teve de encontrar uma solu­
ção que satisfaça a uma e depois a outra.
A incerteza coloca-nos o problema das contradições éticas. A ética, nela
própria, não coloca problema. Ouve-se dizer que precisamos de uma nova
ética. Não vejo para quê. Nós conhecemos a ética: faça o bem, evite o mal,
seja responsável. A idéia da ética, da responsabilidade de Hans Jonas, não
traz nada de fundamentalmente novo. Quando ele diz: sejam responsáveis
para as gerações futuras, ele não traz uma revolução ética. A verdadeira
questão são as contradições éticas. Por exemplo, em tal momento devo
parar de ajudar meus próximos para ajudar a humanidade, deixar aquilo
que me engana acreditando ajudar a humanidade, ou, ao contrário, devo
me restringir a ajudar os meus próximos deixando cair aquilo que é exte­
rior? Seja ainda os problemas colocados pela eutanásia e pela doação de
órgãos: é preciso prolongar indefinidamente a vida segundo o imperativo
hipócrita que determina que a vida dos doentes é sagrada? Mas essa vida
que deixou de ser consciente, uma vida vegetativa, é a mesma vida? Não
é melhor transplantar os órgãos desse indivíduo condenado para salvar
alguém? Os problemas éticos são problemas de incerteza.

F. Edwald: Como resolvê-los?


E. Morin: Nesses domínios, os cidadãos deveriam ser consultados. As
"mães de aluguel" são toleradas, depois proibidas, sem que a decisão
deixe as cúpulas. Nem os partidos políticos, nem os cidadãos foram
inseridos nessa problemática, que, com os bancos de esperma, a fecun­
dação in vitro, etc., coloca em causa os fundamentos, até o momento
inalteráveis, da paternidade, da maternidade e da filiação. Deve haver
um debate e então poderemos, em um dado momento, chegar a uma
solução intermediária. Para a questão do aborto, dos fetos, alguns
dizem: o feto só é humano quando ele entra no mundo; outros susten­
tam que ele se torna humano a partir do momento em que é formado.
E existe uma coisa que François Jacob diz e que eu acho muito justa:
"A vida não nasce jamais, ela continua".

170
A inteligência da complexidade

É preciso fazer uma escolha necessariamente arbitrária, é preciso


saber que tomamos uma decisão provisória.
É preciso levar em conta a vontade da mulher que tem o direito de
não sofrer a fatalidade de ter um filho que ela não quer.
O direito da sociedade regulou o problema dos nascimentos e tam­
bém o direito à vida do embrião. Além da posição tradicionalista que
consiste em dizer: é um assassinato, e da posição moderna, que só vê a
liberação da mulher, existe uma posição incerta, que opera duas esco­
lhas provisórias. O problema ético se apóia naquilo que é confrontado
com os imperativos contraditórios, e devemos tomar decisões que com­
portam sempre alguma coisa de negativo.

3.3. Eduçação e complexidade


Diálogo com Jacques Ardoino
J. Ardoino: Ciências humanas, ciências sociais, ciências do homem... tantas
denominações. Estas últimas encobririam diferenças mais sutis? O que você
pensa de seu estatuto epistemológico comum?
E. Morin: Atualmente, refiro-me às ciências antropossociais ou de
domínio antropossocial justamente para evitar essa oposição. É evidente
que, em princípio, a idéia de ciências humanas seja mais geral. Aí se
englobam então as ciências sociais. Mas a irresponsabilidade, do meu
ponto de vista, do humano e do social conduz a uma preferência mar­
cada para falar de uma realidade antropossocial. É verdade que aí trata-se
de um domínio multidimensional, apresentando vários aspeccos, bastante
diferentes, dos quais alguns estão situados fora das disciplinas, geral­
mente consideradas como ciências humanas, por exemplo, a biologia.
A noção de domínio an:tropossocial inclui as dimensões biológicas
entre outras. É legítimo privilegiar os ângulos ou os aspectos genético,
orgânico, demográfico, histórico, psicológico, etc., sob a condição de
saber que a colocação entre parênteses, correspondente a outros aspec­
tos ou dimensões, é somente provisória e heurística. A razão de tais
escolhas é que, num dado momento, é preciso, para poder ser mais rigo­
roso, saber circunscrever o campo do seu trabalho. Um grande erro de
efeito perverso, a meu ver, ê a substantificação das disciplinas. Acaba­
mos por acreditar que a psicologia é uma coisa em si, a história é uma
coisa em si, que a economia é uma coisa em si.

171
Edgar Morin

Evidentemente, existe um ângulo sob o qual é interessante olhar os


fenômenos como econômicos, mas será preciso, em seguida, estudar
correlativamente o econômico do ponto de vista duplo, da sua especifi­
cidade e da sua não-especificidade (ou seja, aquilo que na economia
assinala o não-econômico). Nesse exemplo, a crise atual do económico
me parece deter o fato de que ela não somente afinou seus instrumentos
formalistas e seus modelos, no sentido mais abstrato, mas ainda que ela
não soube conciliar o lugar das paixões, dos desejos, da libido, que tam­
bém fazem parte da economia.
Logo, a minha idéia do estatuto epistemológico das ciências antro­
possociais é que elas correspondem bastante a um tipo de realidade que
podemos dizer emergente (no decorrer da evolução primara e hominiana),
e onde a sociedade histórica (do Estado) é relativamente recente (menos
de dez mil anos), conduzindo a formas de organização hipercomplexas,
de onde surgem fenómenos que não existem em parte nenhuma. Desse
modo, não se poderá jamais reduzir os conflitos humanos ou os choques
entre nações, ou a luta de classes, aos conflitos existentes com os primatas,
ainda que aí se encontrem, certamente, algumas raízes. Por seu lado, a
nação não é um fenómeno especificamente humano, é antes de mais
nada um fenómeno especificamente social recente (não existia pratica­
mente nação no sentido moderno do termo antes do século XVIII; agora,
após as duas primeiras, França e Inglaterra, a noção de nação emigrou
um pouco para todos os lados no mundo). Por conseguinte, a nação
bem como o Estado necessitam de seus níveis de análise próprios, mas
que conduzam, evidentemente, a aspectos que não sejam específicos
(o poder, a organização, a hierarquia, a especialização, etc.).

J. Ardoino: Você me permite esclarecer um ponto? Não estou certo de haver


compreendido. Você falou sucessivamente, de maneira misturada, de duas coisas,
ou, mais exatamente, de dois pontos de vista. Primeiro, de um ponto de vista
epistemológico: tal e tal ciência é definida .como uma visão particular, ou seja,
de uma certa maneira de ver as coisas. Mas, em outros momentos, você fala de
realidades emergentes e se trata, então, de realidades, de formas de organizações
percebidas, de arranjos da natureza.
E. Morin: Sim, você tem realmente razão de colocar essa questão. Isso
me leva a tornar mais precisa a minha locução. A realidade antroposso­
cial existe enquanto tal e no entanto ela não existe "em si". Ela não

172
A inteligência da complexidade

pode, com efeito, existir sem se fixar sobre uma organização biológica
e física da qual ela dependa. Em outras palavras, não haveria uma rea­
lidade antropossocial se não houvesse a organização física e biológica
que lhe servissse de apoio. Trata-se, pois, de um tipo de realidade que
somente emerge como tal a partir de um determinado nível de comple­
xidade de organização biológica. Nesse sentido, existe um escoramento
de uma pela outra. Mas o mais importante ainda é a noção de emergên­
cia que significa que, num dado momento, os elementos constitutivos
de um sistema fazem aparecer, pela virtude da complexidade de sua
organização, as propriedades e as qualidades que não existiam de modo
nenhum, nem mesmo potencialmente, no nível das partes isoladas. Além
disso, essa realidade não existe jamais como um dado constituído para
sempre. Ela não é inerte. É uma tensão mantida, recomeçada a cada ins­
tante pelas totalidades organímicas e sociais nas quais nos inserimos. Se
a palavra inventada quer designar que essa realidade autoproduz-se a si
própria, então podemos dizer que ela foi inventada. Por oposição a essa
realidade, as visões são aquelas das disciplinas que cortam essa realida­
de para chegar a se justificar. Essas partes são, enfim, legítimas, sob a
condição de jamais esquecerem seu caráter relativo.

J. Ardoino: Sim, mas na expressão das ciências antropossociais é o plural


"os" que é significativo de um novo partido considerado como interdisciplinar e,
como conseqü'ência, menos estreito. Nesse caso, existe a pluralidade de visões arti­
culadas ou conju gadas.
E. Morin: É preciso retornar ao objeto considerado na sua globalidade
e na sua multidimensionalidade. Retomemos o conceito "homem"
(muito freqüentemente reduzido à idéia de indivíduo). É um conceito
trinitário. Ele comporta a dimensão social, a dimensão biológica e a
dimensão psicológica. Esses três caracteres são consubstanciais, e, ape­
sar de tudo, temos a tendência de querer isolá-los. A sociologia é, por
exemplo, uma ciência geral que concerne não somente às sociedades
humanas mas também às sociedades animais. Os modos de organização,
as relações, as interações complexas constituem os objetos distintos já
entre os primatas, os insetos, etc. Nesse sentido, a sociedade não é uma
invenção humana. Não obstante, se o desenvolvimento da hominização
é inconcebível sem uma sociedade primara, que se tornou caçadora, é
igualmente inconcebível que esse desenvolvimento sociológico possa

173
Edgar Morin

efetuar-se sem uma evolução genética da qual, contudo, ele não saberia
justificar-se, etc.
Por sua vez, a evolução genética é inconcebível sem a hipótese de
transformações ecológicas (regressão da floresta), etc. Reencontramos
aqui a idéia-chave de interdependência.
É preciso, pois, dar-se conta de que ela exprime, freqüentemente
mascarando, o aspecto mais importante e, poderíamos dizer, essencial
da realidade estudada. Os biólogos dizem naturalmente, hoje em dia:
nós não estudamos mais a vida, mas os comportamentos, organismos,
processos dos genes, moléculas, etc.
Ora, o conceito de vida compreende o conjunto das qualidades e
das propriedades que encontramos em todos os seres vivos, a come­
çar pelas bactérias (capacidades de auto-organização, de auto-repro­
dução, de computação, ou seja, de tratamento de informação, de
comunicação, etc.). Mas esse conjunto de qualidades, de proprieda­
des, não existe jamais no nível da molécula isolada, no nível dos
constituintes. Ele só existe no momento em que a totalidade funciona
efetivamente nessa coleção de estudos em que cada um, finalmente, é
definido pelas modalidades de seu corte - são os "buracos", os inters­
tícios poupados pelos cortes, os "não-objetos" de conhecimento que
conservam intacto o essencial.
E aí segue adiante a idéia do homem como noção de vida. Você pode
fazer abstração do homem, dos pontos de vista da econometria ou da
estatística; você pode até fazê-lo pela economia na qualidade de psi­
canalista, se você faz do inconsciente uma linguagem anônima. Cada
disciplina pode finalmente fazer mais ou menos a economia da noção do
homem e chegaremos a uma visão tipicamente diaforética para a qual o
homem não existe, porque os conceitos disciplinares jamais o encontra­
ram. O importante, do ponto de vista que eu sustento, é reabilitar certos
conceitos molares (que não podem ser moleculares), conceitos que rea­
grupam um número muito grande de funções e de propriedades, insis­
tindo no caráter global da organização que permite a emergência e a
articulação dessas múltiplas funções. A disciplina dissolve, destrói
aquilo que a realidade antropossocial faz. Retornamos aqui a um pro­
blema fundamental: o de uma certa visão que oculta mais ainda do que
permite ver.

174
,..,
A inteligência da complexidade

J. Ardoíno: Você se refere ao pensamento redutor.


E. Morin: Sim, o maior erro do nosso tempo é o do pensamento redutor.
Ele só apresenta a realidade daquilo que pode isolar como aparentemente
elementar; ele dissolve (magicamente, negando-a) a complexidade. O
pensamento simplificador tem dois caracteres; ele é redutor e, de outra
parte, disjuntivo, ou seja, ele não pode estabelecer a menor medida
comum, ou relação, entre duas noções como aquelas que nos ocupam
nesse momento: sociedade e indivíduo. Tudo se passa como se uma
excluíssse a outra. Muito diferente da sociologia de Durkheim, fundada
a partir da hipótese de uma transcendência do social, da de Gurvitch,
que quer manter uma reciprocidade das perspectivas. Para tomar uma
imagem moderna: um holograma, em que cada uma das perspectivas
contém a outra. O indivíduo contém a sociedade, esta contém os indi­
víduos. Mais profundamente ainda, são as interações entre os indiví­
duos humanos que produzem a sociedade na qual estes se inserem, ou
seja, que a fazem literalmente existir. É bem evidente que a sociedade
não tem nenhuma existência fora dos jogos de interações que a geram
e a suportam. Se uma bomba de nêutrons viesse a destruir toda a vida
humana num determinado raio, preservando todas as máquinas, todas
as estruturas naturais da organização, não haveria mais sociedade nem
vida social nesse perímetro, apesar dos ministérios, dos arquivos, dos
museus subsistentes, ou seja, os vestígios. Mas, se as interações produzem
a sociedade, essas retroagem, por sua vez, sobre os indivíduos para co­
produzi-los tais como são: socializados pela linguagem, pela educação,
pela cultura, etc. Esse movimento rotativo é um movimento permanente,
que não se detém jamais, marcando uma inseparabilidade que somente
o pensamento recursivo permite explicitar.

J. Ardoíno: Parece-me que aqui tocamos num ponto metodológico muito


importante: a hipótese da inseparabilidade não exclui a necessidade da distinção.
É importante não confundir essas noções.
E. Morin: Exatamente. Não se trata de fusão, nem de confusão, mas
de distinguibilidade. Nãs se pode confundir distinguir, operação
necessária a todo pensamento, e isolar, que é a operação de simplifi­
cação que não chega a estabelecer a comunicação entre aquilo que ela
separou e mais ainda que distinguiu. Aquilo que, ao contrário, faz o

175
Edgar Morin

encanto e a riqueza do pensamento é a capacidade de estabelecer as dis­


tinções e as relações, ou seja, jogar com esses dois registros contraditó­
rios. É a frase de Pascal que eu aprecio muito: "Eu julgo impossível
conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes, e conhecer as
partes sem conhecer o todo". Essa frase deve ser evidentemente lida
como um círculo, de maneira rotativa. O conhecimento me. parece
caracterizado por esse movimento de vaivém.

J. Ardoino: O círculo, por outro lado, se faz em espiral.


E. Morin: Sim, não é jamais um círculo perfeito. O ponto de retorno
não é jamais exatamente o mesmo que o ponto de partida - ele é des­
locado, desviado. É ainda mais claro na escala do cosmos onde os deslo­
camentos se fazem a velocidades inauditas. Girando com uma certa
regularidade de relógio em torno do Sol, no momento do retorno, qual­
quer que seja o ciclo, não se está jamais no mesmo ponto do cosmos.
Existe aí uma idéia absolutamente capital que permite esclarecer a
natureza dos laços entre os indivíduos, o jogo de suas interações e o
caráter recorrente da organização propriamente social, para distingui-los
mais precisamente, sem, contudo, isolá-los. É plausível, senão certo,
que no decorrer da história, no decorrer da evolução antropossocial,
houve uma acumulação de experiências no mesmo movimento que ia
das partes, dos elementos em direção ao todo.
Mas essa acumulação, que não é outra coisa senão a cultura nas socie­
dades primitivas, é armazenada nos elementos que compõem o todo:
indivíduos, crianças, adultos, velhos, sábios, padres, magos, etc. Mas
existe uma etapa capital a partir do momento em que aparecem a escrita
e o Estado. Dispondo dos arquivos, das leis, das instituições, o aparelho
estatal vai, doravante, poder retroagir sobre os indivíduos, tendo uma
força formidável, que é o poder organizador e coercitivo. Sob essa óptica,
o Estado aparece não como uma coisa em si, necessária para toda a
eternidade, mas como um aparelho que emergiu na história e, talvez,
desaparecerá em outro momento da história.

J. Ardoino: Nesse ponto, existe uma outra questão que eu gostaria de discu­
tir: para tentar combater os efeitos esterilizantes do pensamento disjuntivo, são
delineadas tentativas, sempre redutoras, de invasão de um campo disciplinar em
outro. Assim, Moreno e a ilusão psicossociológica de um continuum entre o

176
A inteligência da complexidade

microssocial e o macrossocial. Não buscamos homogeneizar o heterogéneo mais do


que reconhecê-lo? Não é esse o perigo de toda empreitada globalizante?
E. Morin: Parece-me que existe aqui um erro devido à ignorância das
diferentes escalas. Eu gostaria de precisar, antes de voltar a este último
ponto, que para mim também o "holismo" é sempre uma forma de
redução. O ponto de vista da totalidade privilegiando o todo, ignorando
partes, é uma perspectiva reducionista. É o sentido da frase de Pascal
que citei anteriormente. Nesse vaivém do todo às partes, que requer,
relembremos, um pensamento recursivo para explicitar, não existem
continuidade, linearidade: existem saltos, patamares, escalas. O problema
da escala é um problema fundamental de qualquer conhecimento. Nós
o vemos mais claramente no nível microfísica.
O tipo de realidade apreendida não cem grande coisa a ver com a rea­
lidade da escala mesofísica que muitos preferem chamar de "macrofísica".
(Para mim, o verdadeiro macrofísico é o domínio da astrofísica, do cos­
mos.) Ao problema da escala se acrescenta o problema do ângulo de
visão. É capital. A realidade é de tal modo complexa. Sob um certo
ângulo, a partícula, por exemplo, aparece como uma onda, ou seja, uma
entidade material, contínua, e sob outro, como um corpúsculo ou uma
entidade discreta, material e descontínua. O ângulo de visão, a escala
lembram-nos que é preciso ter em conta o ponto de vista do observador.
Não existe observação sem observador, e, além do mais, a posição do
observador muda necessariamente de acordo com o tamanho do fenômeno.
Você citava Moreno. Existem fenômenos que ocorreram em peque­
nos grupos, devido a interações entre indivíduos que se conheciam um
pouco. Doze pessoas que se conhecem podem trabalhar juntas. Vinte e
quatro, já é muito difícil. Os problemas de organização se tornam tanto
mais abstratos quanto maiores forem os grupos, pois as semelhanças são
mais importantes. Nesse momento, são necessários mediadores, repre­
sentantes. Existe uma burocracia.
Aí está o erro de Moreno. Ele não é menos baseado numa exatidão
de observação, mas é essa ambição de extrapolação que peca. Descobrindo
o funcionamento específico de pequenos grupos: classe de escola, equi­
pe de trabalho, ele podia muito legitimamente perceber e determinar
um sistema de redes de atrações e de repulsões extremamente interes­
sante, que só existe quando as pessoas se conhecem, numa cerca escala da
distância social. Evidentemente, o sistema de atração e repulsão pode-se

177
Edgar Morin

encontrar em uma maior escala. Haverá linhas de força, de ligações, de


filiações mais do que de afinidades, mas os tipos de relações são com­
pletamente diferentes. Não se pode extrapolar. Os enunciados são ver­
dadeiros ou falsos, nos seus níveis particulares, locais, singulares. É
possível que as necessidades, as propriedades, as capacidades das par­
tes sejam superiores àquelas do todo, e necessitam até da falência do
todo. Meu pensamento não quer, pois, privilegiar a totalidade com
relação à parte. É uma questão de visão de �rnndo. Numa linguagem
antiga, eu diria, ainda à maneira de Pascal, da dignidade específica do
homem. Desse ponto de vista, o caniço pensante contém mais do que
todo o mundo que o produz e que o esmaga. No espanto diante dos
espaços infinitos do cosmos, existe alguma coisa mais do que espaços
infinitos. Vemos que no universo os fenómenos caracterizados pelos
mais altos graus do desenvolvimento vital, os mais complexos, a vida,
a humanidade, são os fenómenos marginais, desvios, portanto raros,
improváveis com relação ao conjunto. Mas nessas pequenas saídas,
algumas vezes ínfimas, houve respeito ao conjunto, há mais riqueza.
No todo existe muito desperdício, caos.

J. Ardoíno: Eis um ponto em que você se encontra em afinidade muito clara


com o pensamento de Moscovici.
E. Morin: Efetivamente, Beautiful is small. Esse é um sentimento que
experimento com profundidade. Podemos retomar essa hipótese: admi­
tamos que a totalidade do cosmos possa conhecer-se a si própria. Ela
terá então necessidade de se exteriorizar na qualidade de conhecimento
consciente, para se refletir. Isso significa que ela teria necessidade de
enviar um pedúnculo pequenino para bem longe de si própria, a ponto
de ele se tornar desconhecido. Essa consciência da totalidade seria loca­
lizada, doravante, nesse pequeno ser desconhecido. É o nosso estatuto.
Nós fazemos parte dessa natureza que nos faz nascer. É por esse motivo
que não estou totalmente de acordo com as formulações da Nova Aliança,
que me pareciam muito eufóricas.
No fenómeno social, a consciência reflexiva, ética, não existe no
nível das instituições, dos Estados. Ela existe somente no nível dos
indivíduos. Quando um indivíduo, presidente da República, indulta
um condenado à morte, ele indulta de acordo com o seu direito a ele,
real talvez, mas, entretanto, individual, e o Estado, enquanto Estado,

178
A inteligência da complexidade

não faz jamais um indulto. Por sua vez, o Estado pode querer anistias,
atos globais devido aos cálculos de uma política. O que quero dizer é
que o que há de mais importante, de mais elevado, ao mesmo tempo de
mais duvidoso e de mais vil, a consciência, o sentimento, só existe
verdadeiramente no nível do indivíduo, da pessoa humana. Há uma
capacidade, uma potencialidade de dignidade incomensuráveis do indi­
víduo em relação ao todo, ainda que esse indivíduo, com sua consciência,
aquela do mundo, não existiria evidentemente sem o todo, ou seja, sem
a cultura, a história acumulada pelas sociedades, pelas nações, etc.
Tudo isso para mostrar que não existe privilégio epistemológico
importante da totalidade. O único caráter epistemológico importante
da totalidade é que o conhecimento de um tal ponto de vista deve ser
o menos mutilante possível e, como conseqüência, definido explicita­
mente como multidimensional (mais ainda que total). A totalidade,
nos fatos, está sempre mais ou menos quebrada. Ela é inacessível. É o
exemplo que utilizei no Método para mostrar que subsistiam buracos
nas zonas de sombra da totalidade. Quando Antônio declara seu amor
a Cleópatra, nenhum dos trinta milhões de células que constituem
Antônio ou Cleópatra sabe que eles são constituídos por trinta milhões
de células. O que significa que existe uma espécie de relação de estra­
nheza, em nós mesmos, entre aquilo que nós acreditamos ser - nossa
alma, nosso amor, nossa simpatia, nosso engajamento - e essa máquina
formidável composta de outros seres, que é o nosso ser corporal. O que
existe entre o indivíduo e suas células é um pouco como a sociedade e
seus indíviduos, ou seja, que as interações entre essa república de trin­
ta milhões de células nos produzem, sem parar, mas nós retroagimos
organizando nossos comportamentos. Aí está, se você quiser, o que
posso dizer sobre a idéia do todo e das partes. A parte enquanto parte
não dever ser considerada irreversivelmente como subordinada ao todo
enquanto todo.

J. Ardoino: Você pode juntar tudo isso à questão da heterogeneidade?


E. Morin: Compreendo a heterogeneidade sobretudo como dificuldade
de pensar um universo múltiplo: o unitas multiplex, o um e o múlti­
plo. A questão interessante é a unidade da heterogeneidade e a hetero­
geneidade da unidade. Na coisa que é a mais "una", o "meu", existe
uma formidável série de multiplicidades. Sobre o plano do mim-eu, ou

179
Edgar Morin

seja, não das constituintes, mas dessa unidade que é a pessoa, existe
uma certa espécie de jogo entre um cérebro reptiliano, um cérebro
mamífero, um cérebro primara, um cérebro humano, e tudo isso é uma
espécie de jogo permanente conflitual e (ou) cooperativo entre vários
extratos dessa totalidade que é o nosso cérebro. O nosso cérebro é dual
na sua divisão entre dois hemisférios que não são absolutamente simé­
tricos; existe uma outra multiplicidade entre aquilo que é consciente,
subconsciente e inconsciente. Eu digo: eu sou ego, mas o "ego" não é
exatamente idêntico ao "eu", porque o Eu é o locutor instantâneo que
ocupa um certo lugar exclusivo, e o ego é a maneira que ele tem de se
objetivar para se recuperar; o ego é múltiplo, o ego é dividido, o ego é
heterogêneo, mas, ao mesmo tempo, ele é um.
Na sociedade criam-se fatores formidáveis de heterogeneidade. No
princípio, os indivíduos são muito heterogêneos uns em relação aos
outros, mesmo quando pertencem à mesma cultura. Um estudo de Niel
me havia chamado muito a atenção porque ele me mostrava que numa
pequena sociedade de índios do Amazonas, que vivia pelo menos havia
vários séculos em estado de isolamento genético, os indivíduos eram tão
diferentes do ponto de vista intelectual, afetivo, uns dos outros, apesar
dessa endogamia permanente, como numa grande metrópole moderna.
A formidável diferença psicoafetiva de indivíduo a indivíduo é um
fenômeno que se tende a subestimar porque só levamos em consideração
as diferenças mais banais (o tamanho, a pele). Por outro lado, o que
existe no nível de um indivíduo não é mais verdadeiro da mesma
maneira do que num nível de um grupo de doze pessoas não é mais ver­
dadeiro do que no nível de uma empresa. Tudo isso é absolutamente
heterogêneo e é preciso tomar consciência dessa heterogeneidade sob a
condição de que vejamos também a unidade e a identidade nas diferenças,
até mesmo na oposição.

1. Ardoino: Inteiramente de acordo, a heterogeneidade não suprime mas supõe


a articulação.
E. Morin: Podemos dizer que um todo somente pode ser constituído,
na sua complexidade, por elementos diferentes uns dos outros. Um
todo constituído por elementos perfeitamente idênticos é o cristal, ou
seja, qualquer coisa muito pobre. O erro, no sentido do pensamento e
do método - aquele de Emile Meyerson -, é acreditar que explicar é

180
A inteligência da complexidade

somente identificar, unificar, homogeneizar. É uma tendência do espí­


rito humano porque é evidente que ficaríamos muito contentes de ter
uma fórmula mestra do universo e até, eu diria, que a genialidade de
Newton é ter podido unificar os fenômenos tão heterogêneos na aparên­
cia: por exemplo, o movimento da Lua em torno da Terra, o fato de que
a Lua não cai sobre a Terra, o movimento das marés. Aí está uma lei da
unificação e da homogeneização. Mas é evidente que uma tal lei não
suprime a heterogeneidade, isto é, a Lua é a Lua e a maçã é a maçã. Fre­
qüentemente as aproximações reducionistas se contentam em acreditar
que a lei ou o princípio da unidade, o algoritmo, constituem o ponto
final do conhecimento. Dessa maneira, por exemplo, a fantástica des­
coberta do código genético é um princípio da unificação que permite
explicar como a mesma _l inguagem genética, como dizia Monod, pro­
duz a bactéria, a pulga, o elefante, o homem.
É uma lei da unidade absolutamente fantástica. Isso significa que
não sabemos como a disposição dos elementos (daquilo que equivale
analogicamente às letras do alfabeto) faz com que o elefante tenha uma
tromba e a ameba não tenha patas.
É certo que acerca disso se recoloca o problema do um e do múlti­
plo. Por outro lado, o código genético permite a organização do ser sin­
gular, mas não é a organização do ser singular. Com a lei do código
genético, encontramos um ponto de partida do conhecimento e não um
ponto de chegada. É preciso agora tentar saber como se faz o heterogê­
neo. Esse princípio unificante se faz assim mesmo, a partir de um certo
número de elementos químicos heterogêneos e diferentes, do mesmo
modo que uma linguagem se faz a partir de signos e de sons diferentes,
etc. É verdade que retornamos a esse problema da unidade e do seu con­
trário (o que não pode e não deve ser unificado). Esse contra o qual é
preciso, creio eu, coloca em atenção - enfim, coloca em atenção, não!
Não gosto dessa palavra porque considero que o pensamento não deva
incitar a prudência, ele incita a aventura, acredito que aquilo que é
importante compreender é que o objetivo do conhecimento não é
encontrar a fórmula única e definitiva do universo. Mesmo que alguém
encontre hoje aquilo que Einstein tinha esperado, ou seja, que permiti­
ria unificar as interações gravitacionais, as interações eletromagnéticas
e as interações nucleares fracas ou fortes, quatro formas de interações
diferentes (parece que hoje em dia a eletromagnética e as interações

181
Edgar Morin

fracas estão unificadas); mesmo que encontremos a fórmula que unifica


tudo isso, não teríamos do mesmo modo a chave do universo no bolso.
Isso se juntaria ao mistério do universo porque seria preciso compreender
como tal unidade é compatível com tal diversidade.
O que existe de extraordinário finalmente é que a microfísica acre­
ditou inicialmente que existia somente uma ou duas espécies de partí­
culas, enquanto agora nós distinguimos um número absolutamente
inacreditável. As mais expandidas no universo são evidentemente aquelas
que têm maior número de oportunidade de sobrevida, enquanto as
outras têm somente uma existência efêmera.
O sonho louco do conhecimento é homogeneizar o universo. É um
sonho que sempre teve o conhecimento como idéia fixa. É querer que
atrás do múltiplo e do diverso exista um monótomo mas é um, final­
mente, é o nada. É justamente aquilo que a filosofia da Índia tinha
visto, não é? Não podemos dizer que o heterogêneo, o múltiplo, o
mutante, o provisório estejam no domínio das aparências, enquanto a
realidade é o um 1 o eterno, a essência. É uma visão falsa. Os dois são ao
mesmo tempo verdadeiros.

J. Ardoino: Simultaneamente e contraditoriamente.


E. Morin: É porque acredito que a complexidade, o princípio da com­
plexidade sobre o qual eu trabalho, obriga a abandonar o sonho de uma
fórmula única. Haverá sempre alguma coisa de não redutível. Haverá
sempre uma brecha no conhecimento, uma dualidade, uma plurarida­
de, e devemos trabalhar com essa pluralidade, sem nos resignarmos,
mas ao mesmo tempo sem pensar que o nosso espírito poderá fazer
entrar finalmente o mundo nas categorias lógicas que ele fabricou para
manipular aí os utensílios.

J. Ardoino: Podemos falar aqui de uma especificidade antropossocial?


E Morin: Encontramos em toda parte o problema da heterogeneida­
de. A meu ver, é somente o problema do um e do heterogêneo que é
propriedade da complexidade das ciências antropossociais? Não é um
tipo de problemática que encontramos em toda parte. Se houvesse uma
especificidade, eu a situaria ainda além, mais profundamente. As
ciências naturais, quaisquer que elas sejam, apesar de sua pretensão à

182
A inteligência da complexidade

objetividade, não podem abrir mão de um observador. Quero dizer que


é preciso introduzir o observador na observação, ou seja, que a observa­
ção física tem necessidade de uma preparação, de um dispositivo, de
uma planilha de leitura. É preciso admitir a idéia de que uma visão de
objetividade tem necessidade de um contexto organizador dessa objeti­
vidade. Mas, no plano das ciências antropossociais, é completamente
diferente porque não se trata mais somente de um observador mas de
um sujeito. O sociólogo, por exemplo, colocando-se o problema do seu
lugar na observação, coloca-se ao mesmo tempo a questão do sujeito
que é ele próprio. Ele diz a si mesmo: em que medida, eu, sociólogo,
sendo dada a interação indivíduo/sociedade (ou seja, produzido por essa
sociedade mas produzindo sua própria visão do mundo, ao mesmo
tempo em nome de sua originalidade e em nome dos estereótipos do
meio ambiente), posso conhecer a verdade que estudo :> O pseudocientí­
fico vai dizer: "Ciência sociológica fala na minha boca, fala pela minha
boca, porque eu conheço a mim, as leis da reprodução da minha socie­
dade". Ora, o sociólogo da complexidade deveria se dizer: Qual é o lugar
de onde eu pretendo observar? Como posso encontrar um lugar, visto
que faço parte dessa sociedade que me produziu e que minha visão do
mundo produz por sua vez, visto que projeto aí minha singularidade?
Eu tenho necessidade de me observar a mim mesmo enquanto sujeito.
E não somente eu sou sujeito individual, mas eu faço ainda parte de
uma subjetividade coletiva. Ser sujeito não é poder não ser, de uma
certa maneira, ego-etnocêntrico, ou seja, não poder fugir da tendência
natural de se colocar no centro do mundo, aquilo que a maior parte dos
sociólogos faz, você bem sabe. Ora, é evidente que o primeiro ato real­
mente científico é fazer uma revolução hipercopernicana: eu não sou o
centro do mundo. Não existe um centro do mundo. (Pelo menos na
época de Copérnico era proibido haver um centro do mundo, enquanto
lá não existia verdadeiramente o centro.) Ocorre então a pesquisa per­
manente para se reconhecer como sujeito limitado, particular e situado.
Ocorre um trabalho de auto-exame capital sem o qual o sociólogo, as
ciências sociais e humanas são pura brincadeira.
Segundo, ele não é nem mesmo contestado. Quando você examina
problemas de um ponto de vista quantitativo, estatístico, organizacional,
aquilo que você trata são dos outros sujeitos humanos, capazes de rea­
ções, de iniciativas, de inteligência, de astúcia. Tratando-os como objetos,

183
Edgar Morin

você ignora tudo isso, mutila a realidade antropossocial, que tem sempre
um componente subjetivo.

J. Ardoíno: Você sublinha aqui o caráter comprometido, no sentido de


esforço, da pesquisa antropossocial.
E. Morin: Totalmente. Como bem sabemos, a observação não é pura.
É bem pior na relação de Heisenberg. O conhecimento das sondagens
que você efetua sobre uma população para descobrir suas intenções
retroage sobre essa int�nções.
Em outras palavras, existe a interação do conhecimento, mesmo
supostamente puro, com o processo estudado.
Terceiro, essa qualidade de sujeito que nós próprios temos enquanto
pesquisadores e que por sua vez têm aqueles que constituem nossos obje­
tos de estudo traz problemas de comunicação quanto à compreensão. E eu
emprego, para exemplificar, o termo "compreensão weberiana", quer dizer,
o tipo de explicações válidas para conhecer o humano. Existem modos de
compreensão simpáticos, miméticos ou empáticos, porque temos com os
outros relações de ego a ego-alter (estranheza) ou alter-ego (identificação).
Devemos compreender, portanto, o fato de dar ou de receber um
soco ou um beijo. São coisas que compreendemos. Existe uma série de
processos de compreensão. Aí eu acredito que exista um nível de espe­
cificidade que mantém o nosso extraordinário entrosamento no sistema
em que queremos pensar. E a dificuldade se encontra transformada e
agravada quando se trata de pensar nos sistemas exteriores, a fortiori,
das sociedades chamadas "arcaicas".
Vemos melhor agora o grande erro de Lévy-Bruhl e de outros pen­
sadores do início do século, que era acreditar deter espontaneamente, por
eles próprios, a medida da racionalidade ocidental, que não é nem
mesmo toda a racionalidade ocidental, segundo a qual se viam, não
seres de uma outra civilização nas sociedades de caçadores-coletores,
mas espécies de crianças grandes às quais denominavam "primitivos".
Do mesmo modo, o fato de projetar nossa medida daquilo que cha­
mamos hoje de o desenvolvimento para as sociedades que serão chamadas
por isso de "subdesenvolvidas", ou em "via de desenvolvimento", coloca
questões de que os melhores antropólogos atualmente tomaram cons­
ciência das avenidas pelas quais eles aí chegaram.
Chego a uma outra distinção bastante conhecida, que opõe as ciências

184
T
A inteligência da complexidade

humanas às ciências naturais: as ciências naturais são exatas, elas são


duras; as ciências humanas são moles. A meu ver, existe nessa proposição
uma parte de verdade que oculta uma parte de erro. A parte de erro se
inclina à lenda, destruída por Popper, de que as ciências exatas são as
ciências que necessitam efetivamente dos espíritos superiormente racio­
nais e objetivos para se desenvolver.
Assim sendo, qualquer um que trabalhe no campo das ciências exa­
tas tem uma superioridade em matéria de rigor de pensamento com
relação a um simples sujeito. Popper demonstrou que não existe ciên­
cia pura, destituída de qualquer ideologia. No campo das ciências, existe
a competição entre as teorias; e todas têm conteúdos ideológicos clan­
destinos. Aquilo que distingue as ciências exatas são as regras do jogo,
bastante rigorosas, que permitem selecionar entre as teorias, dar vere­
dictos, que fazem, por exemplo, quando se faz com autonomia, a
demonstração de que não existe geração espontânea, existem sem dúvida
tipos que brigam durante alguns anos, que dizem que Pasteur era um
impostor, mas, em seguida, a coisa é provada.
Agora, o que se passa efetivamente é que as regras do jogo científico
se aplicam muito mais dificilmente ao domínio antropossocial, não
somente por causa da complexidade dos objetos, mas também por causa
da relação sujeito-objeto, em que o objeto é também sujeito, e a grande
dificuldade é auto-objetivar-nos.
Dito isso, os cientistas das ciências exatas são seres que não são mais
rigorosos nem mais racionais do que os outros, dizia Popper, muito jus­
tamente. Quando vemos que um grande físico, um grande bióiogo,
toma posição politicamente, apercebemo-nos, muitas vezes com espan­
to, da ingenuidade e da irracionalidade das posições em questão. Os
prêmios Nobel puderam dizer muitas coisas sobre a paz, sobre a guerra,
sobre a URSS. Einstein, grande cientista da nossa época, passou parte
da sua vida a lutar contra os armamentos, pela desmilitarização, mas,
no final da vida, ele leva sua contribuição à bomba atómica. Com isso,
compreendemos todo o resto. Não se trata de condenar Einstein, mas
de perguntar: onde mora a lucidez 1
Quando examinamos O Pensamento, revista da época stalinista, reu­
nindo uiversitários de nível, pesquisadores científicos, especialistas de
ciências exatas, ela exibe uma visão política bastante aflitiva. Não exis­
te a superioridade lógico-racional nas ciências· exatas. O verdadeiro

185

Edgar Morin

problema da científicidade é o das condições dos conflitos de idéias,


tanto nas ciências sociais como nas ciências chamadas "duras".
É muito ruim querer que uma teoria reine por toda a vida. É preciso
uma pluralidade de doutrinas (uma psicanálise ao lado da psiquiatria,
muitas psicanálises em frente umas das outras, etc). O que não quer
dizer que todas sejam igualmente boas. É a conflitualidade que é boa,
nessa matéria, o debate das idéias com as regras do jogo varia de acordo
com a complexidade dos objetos e dos estatutos epistemológicos dos
pesquisadores (observação-implicação).

J. Ardoíno: Concluindo, o pesquisador não pode pretender ser o centro do


mundo, ele permanece, contudo, no centro da sua pesquisa enquanto sujeito
implicado. Tudo aquilo que você acaba de dizer sublinha, de passagem, a
necessidade de uma forma de pensamento paradoxal, para permitir uma
melhor intuição.
E. Morin: Acredito que hoje todo problema de científicidade se
torna paradoxal e só pode ser formulado paradoxalmente. As ciências
físicas produzem seus objetos a partir de uma história, de uma cultura
e de instituições científicas. Tudo isso é produzido de uma evolução de
origem física. Assim, somos produzidos pelo universo físico-biológico,
mas produzimos nós mesmos o nosso saber físico. Evidentemente,
naquele círculo, não se trata do mesmo tipo de produção. Por sua vez,
sua compenetração não é menos objeto do saber.

J. Ardoino: Mas a emergência do pensamento paradoxal é mais tardia nas


ciências exatas, levando em conta sua longa história, enquanto ele é a entrada
do jogo nas ciências humanas.
E. Morin: Exatamente. Ele se impõe enquanto fizemos tudo para
rechaçá-lo.

J. Ardoíno: No fundo, tudo isso que voce diz me faz pensar na oposição fun­
damental entre a ordem do ím-plicado e a ordem do ex-plicado. Retornando
os termos de Dilthey, poderíamos falar de ciências da implicação com relação às
ciências da explicação. Dilthey falava de compreensão.
E. Morin: Exato. É preciso encontrar os meios racionais de dar conta
do implicado e não explicar, acreditando-nos "desimplicados".

186
A inteligência da complexidade

J. Ardoino: Agora eu gostaria de lhe perguntar, de esclarecer, qual O lugar


que você dá, qual a importância que você concede às dimensões temporal, histó­
rica para a compreensão dos fenômenos antropossociais?
E. Morin: Gostaria primeiramente de recordar que a historicidade é
um ponto de vista muito recente para o conjunto do pensamento
científico. Se existe alguma coisa que foi generalizada depois de Dar­
win é antes de mais nada a idéia de evolução. Se ele não a inventou,
é o primeiro a ter proposto um tipo de explicação coerente, tornado
desde então fundamental. Darwin só tratava da evolução biológica das
espécies. O universo físico permanecia estável, fora de uma tal pers­
pectiva, e foi assim até estes últimos anÓs. Demo-nos conta de que o
conjunto do nosso universo tinha uma história. O cosmos depende
hoje da hipótese plausível e histórica de uma deflagração original que
pode, antes de mais nada, deixar supor qualquer coisa. A constituição
da matéria física é reconhecida temporalmente, bem como a formação
das estrelas, dos núcleos, das partículas, etc. A idéia profunda da física
contemporânea é que a menor parcela da matéria é também um frag­
mento da história.

J. Ardoino: E as noções de limites, de emergência...


E. Morin: Vou chegar a esse ponto. Aquilo que quero dizer é que a
idéia de evolução é de qualquer maneira transcósmica. Ela atravessa
tudo. Mas o que é particularmente interessante é que, para falar a lin­
guagem de Meyer, existe de fato uma combinação de evolução e de
revolução. Quando a vida aparece, a evolução biológica não pode, a par­
tir de então, ser reduzida às leis e aos princípios da evolução física.
Naturalmente, traços comuns subsistem. O desenvolvimento da com­
plexidade organizacional se efetua sempre nas zonas minoritárias, mar­
ginais, e é também isso que pode acontecer na história humana. As
regras da evolução são completamente diferentes (seleção natural,
mutaçoes genéticas, etc.). Existe um modo de criação, um modo de pro­
dução novos. Não é, portanto, demais postular uma ruptura radical
entre a organização biológica e a organização pré-biológica. A meu ver,
a computação interessa às capacidades de tratamento da informação e
de comunicação. Sob essa óptica, a bactéria já é um ser computante,
capaz de acolher por um longo tempo um certo número de dados, aco-

187
Edgar Morin

lhendo tanto o seu universo interno como o seu universo externo. O


fato de computar, que está evidentemente na origem da consciência e
do conhecimento, é um fenômeno que não existe, até na mais ampla
informação no universo físico. Existe desse modo a revolução na evolução.
A hominização representa qualquer coisa de relativamente rápido.
Alguns milhões de anos de uma evolução genética, anatômica, socio­
lógica considerável que vê a aparição do ser com um grande cérebro. A
partir daí, a evolução sociológica torna-se inseparável da evolução bioló­
gica, ocorre uma nova revolução. A cultura vai juntar seu papel e seus
efeitos ao movimento geral. A cultura torna-se um fator que se transfor­
ma no fator de suspensão da evolução biológica. Temos então um
período de evolução cultural, mas, em seguida, o fenômeno totalmente
novo que emerge à evidência é a evolução histórica. Dessa vez, não é mais
a cultura que evolui, mas as sociedades que se constituem, cujas relações
são totalmente instáveis, urnas com relação às outras, que a história apa­
rece constituída de inúmeros acontecimentos: guerras, pilhagens, rapi­
nas, conquistas, destruições, criações, inovações fantásticas. O tipo de
evolução histórica inteiramente de eventos como a nossa é até mesmo, de
tempos em tempos, uma evolução sociocultural tanto mais notável que,
repito, não existe mais evolução biológica significativa desde o Homo
sapiens e talvez mesmo desde o Neanderthal, ou seja, há cem mil anos.
Então, é evidente que através das revoluções a evolução mude de
caráter, que seus vetores sejam diferences. Agora, aquilo que vai evo­
luir, sem dúvida, não somos nós enquanto indivíduos, mas nossas
inteligências, nossos espíritos, nossa cultura tornados inseparáveis.
Existem portas abertas em direção a uma nova evolução muito mais
noológica ainda. Estamos ainda na era bárbara das idéias, das ideolo­
gias, dos sistemas de idéias. A maneira de pensar o real, o pensamento
científico, principalmente, permanece bárbaro, porque é redutor,
mutilante. Para mim, o tema da complexidade ao qual permaneço
ligado não é uma fórmula mágica, encantadora, que deve resolver
tudo - é uma caminhada preparatória à evolução em direção a uma
civilização de idéias, a uma era noológica.·

J. Ardoino: A inteligência da dimensão temporal, da duração daquilo que


ela tem de específico, do fazer social-histórico, é portanto importante, do seu
ponto de vista, no domínio antropossocial.

188

A inteligência da complexidade

E. Morin: Não. Enfim, sim. Eu diria sim e não porque é importante


notar, de preferência, a historicidade de qualquer coisa do universo. O
tempo está doravante presente. O interessante é que se trata também de
um tempo complexo, fator de desintegração e de desordem, assim como
de criação. Ele abre, sem dúvida, desde o início do universo. É o tempo
do segundo princípio da termodinâmica (o tempo ligado ao calor). Ao
mesmo tempo que o nosso mundo nasce, ele começa a morrer, a se desin­
tegrar, e é a agitação térmica que produz interações que conduzem à
desorganização. Essa espécie de dialógica, a do desenvolvimento da
complexidade da organização e aquela antagônica da desorganização e da
desordem, é fundamental. Bergson é o primeiro pensador da vida que
afrontou verdadeiramente as conseqüências do segundo princípio da ter­
modinâmica. Até aí os biólogos eram totalmente "metafísicas" e prefe­
riam ignorar que a vida fosse também constituída de matéria não viva.
Eles viam a vida como derrogante no segundo princípio, manifestamen­
te evolutiva. Mas os vivos morrem, não é mesmo? As espécies morrem.
Quando fugimos dos modelos do pensamento redutor e simplificador,
a função do tempo se torna importante. Tanto que sem saber o que fazer
com a consciência, com o espírito, com a autonomia, com a vontade, com
a inteligência, logo os eliminamos do campo científico. Ora, eliminar a
inteligência, a consciência ou a vontade do universo físico não é tão grave,
mas eliminá-los da visão da humanidade, das sociedades, é lamentável.
Quando se decide reintegrá-los, deve-se compreender que é preciso deixá­
los com seus fundamentos físicos e biológicos, renunciando, contudo, a
reduzi-los a esses fundamentos. Somente nesse momento damo-nos conta
de que o problema da consciência e da pessoa é mais particularmente
atravessado pelo tempo e tornado trágico pela morte. Meu primeiro tra­
balho antropológico falava justamente sobre "o homem e a morte". A ori­
ginalidade do Homo sapiens é ser marcado pela consciência dessa tragédia
da morte, inventar os mitos para negá-la, ou para encontrá-la, pensando
inteiramente enquanto vive nos meios intelectuais para aceitá-la. A cons­
ciência do tempo retroage à nossa maneira de viver no tempo.
É preciso então falar do imaginário pelo qual tentamos resolver os
problemas e traduzir nossos desejos, nosso apetite de gozo. É evidente
que tudo isso não existe no espaço matemático. Nossa consciência do
tempo é um elemento absolutamente irredutível. A idéia de limite é
também uma emergência. É conveniente para o domínio antropossocial

189
Edgar Morin

reconstituir um tríptico, onde as antigas visões do Homo sapiens privile­


giavam um monótico: aquele do Homo sapiens-faber. É a visão do homem
racional, produtor de ferramentas, eliminando o homem biológico para
se situar fora da natureza, literalmente sobrenatural. Ela eliminava tam­
bém, evidentemente, o fantasma, o sonho, o imaginário; é conveniente
que reintroduzamos aí dois termos: a biologia e a mitologia. A morte é
o cruzamento; é na medida em que somos seres inteiramente biológicos,
vivos, não nos isentando da morte, que ao mesmo tempo podemos nos
tornar seres totalmente mitológicos. Os mitos negam a morte e a trans­
mutam. Nesse caso, reintroduzir o imaginário e o mitológico na definição
fundamental do humano é capital. Por isso, é preciso falar do Homo
sapiens-demens. Cada um dos termos reconduz ao outro sem que se saiba
jamais muita bem qual é o momento em que se é sapiens ou demens.
Minha segunda obra se chama, aliás, O homem imaginário. Isso é para
dizer que considero esse aspecta capital. É preciso ampliar e enriquecer a
noção de homem por todos os lados, por baixo e por cima. O biológico,
o racional, o imaginário. Não se trata somente da consciência e do espí­
rita, mas dos fantasmas, dos sonhos, das utopias, dos projetos. Temos, no
momento, a impressão de que o domínio dos fantasmas explodiu, que a
pequena porção do sono se liberou de uma maneira completamente louca.
Vivemos nossos sonhos despertados. Somos sonâmbulos.
Há pouco, você usou a palavra "sentido". Acredito também que ele
seja muito importante porque ele nos remete à linguagem. A linguagem
é essa máquina extraordinária da qual somos produtores incontestáveis e
sem a qual nada teria nascido de nós mesmos, sem essa possibilidade de
criar palavras, de produzir o sentido, de comunicar. Uma vez mais, a lin­
guagem é produto e produtor. Todos os produtos são produtores. É essa
a idéia recursiva. Produzimos os mitos pelos quais a sociedade se produz
a si própria. É aí que eu sinto uma convergência profunda com Castoria­
dis, por exemplo. A sociedade humana tem necessidade de fundar sua
comunidade sobre os mitos. Nós mesmos vivemos hoje sobre o mito
mais abstrato da pátria ou qualquer coisa parecida.
Portanto, no fundo, a revolução intelectual é a visão que eu chamo
de "recursiva"; os produtos são necessários à produção daquilo que os
produz. É esse o meu ponto de vista, a noção mais fundamental de toda
a concepção humana. Até o presente, víamos os mitos ou as manifesta­
ções do imaginário como fantasmas, escórias, válvulas pelas quais as

190
A inteligência da complexidade

fumaças se desvaneciam, a não ser as superestruturas; e concordáva­


mos, se tivéssemos um pouco de senso da complexidade como Marx,
como os grandes marxistas, que as superestruturas podem retroagir,
até certo ponto, às infra-estruturas. Mas não existia, nesse momento, o
conceito de retroação. A retroação não é somente como em N. Wiener,
o retorno da informação do produto ao produtor. É o retorno criador,
ele próprio produtor.

J. Ardoino: A interpretação faz, portanto, parte das ferramentas das ciên­


cias antropossociais. Mas, para retomar o título de uma das obras de Ricoeur,
existe o conflito das interpretações entre as perspectivas mais estruturalistas e as
perspectivas hermenêuticas.
E. Morin: Eu diria primeiramente que a idéia de estrutura é uma
idéia pobre com relação à idéia de organização, a qual engloba a estru­
tura e contém qualquer coisa mais. A estrutura privilegia as constantes
e as invariantes, as regras, assegurando a estabilidade � as transforma­
ções do sistema. A noção de organização é muito mais rica porque ela
compreende ao mesmo tempo as interações entre as partes que retroa­
gem entre elas e sobre o todo. Numa visão onde se concebe não mais
coisas ou objetos mas sistemas organizados, devemos saber que, embora
esses fenômenos de organização sejam objetivos - e mesmo a única
espécie de coisa à qual possamos dar o ser, porque somente damos o ser
àquilo que é organizado em sistema: o átomo, a estrela, o vivo; lá onde
não existe organização visível não se vê o ser -, a organização depende
de um observador e, por conseqüência, de um sistema de inter­
pretação. O observador vai, com efeito, cortar os fenômenos de acordo
· com as considerações heurísticas. Posso muito bem estudar, se você quiser,
uma célula da minha epiderme, e, nesse momento, o resto do meu
corpo será um ecossistema. Mas posso ainda considerar meu corpo,
tomado no seu conjunto, como o subsistema de uma sociedade. Existe
sempre na nossa leitura das coisas uma projeção de nossos interesses, de
nossas necessidades, de nossas interpretações.
Ainda nos conhecimentos físicos mais objetivos, com interesse no jogo
dos átomos ou das moléculas, tudo isso não pode ser estabelecido sem a
aparelhagem da observação e sem o observador. Uma vez constituída a teo­
ria, podemos talvez, em seguida, liberar de uma certa maneira o sujeito;
ainda que ele subsista, ainda que tivesse sido necessária a imaginação de

191
Edgar Morin

um sujeito, até mesmo de seus fantasmas e de seus sonhos sublimados,


para constituí-la. Visto se tratar de fenômenos humanos ou sociais, o cará­
ter preeminente da interpretação é ainda mais flagrante. É porque o pro­
dutor do conhecimento faz parte integrante do produto do conhecimento.

J. Ardoino: Agora, eu gostaria de interrogá-lo sobre as possíveis conseqüên­


cias de tudo isso sobre o qual você acaba de insistir no nível da educação, esta
não sendo reduzida, como usualmente, ao sistema de ensino escolar, mas enten­
dida como função social global de aculturação, de entt·ada permanente na vida
e na sociedade.
E. Morin: Sua pergunta me intimida porque pensei, sobretudo,
transversalmente nos problemas da educação. Em princípio, não esrou
verdadeiramente no sistema educativo. De fato, sou autônomo, um
pesquisador do CNRS.

J. Ardoino: Sim, mas se olho as prateleiras da sua biblioteca, vejo livros.


Certamente, eles são escritos também por você, para colocar suas idéias em ordem.
Mas eles se destinam também aos outros. Eles obedecem à intenção de divulga­
ção, de popularização.
E. Morin: Somente à medida que eu escrevo livros me sinto conduzido,
como todos os seres vivos da natureza, para a caminhada da semente. Eu
produzo os germens. Eles são disseminados com sorte ou má sorte.

1. Ardoino: Você deseja ou não fazer escola?


E. Morin: Escola, realmente não! A palavra "escola" me dá medo. Eu
escrevo para todos e para uma pessoa. Escrevo para os anônimos, note
bem. Escrevo para os alter ego que não conheço. Evidentemente, creio
muiro profundamente naquilo que escrevo, naquilo que digo. Penso
que a aceitação, a chegada de um pensamento da complexidade é vital
para a humanidade! As forças da destruição e da sujeição são tamanhas
que efetivamente é muito importante contribuir para o desenvolvimento
do ponto de vista que é o meu. Tenho uma fé muito profunda a esse res­
peito. Desejo que esse tipo de pensamento seja, não digo difundido,
mas dividido, porque não basta dizer uma coisa - a complexidade não
se aprende como uma metodologia. É uma maneira de ver o mundo, de
pensá-lo, de se repensar a si próprio.

192

A inteligência da complexidade

Eu diria, visto que você me pergunta, duas palavras simplesmente


da formação, da educação. Essa não é necessariamente uma visão inteli­
gente. É antes um eixo, um ângulo de aproximação. É o problema do
heteroautodidatismo. O único conhecimento verdadeiro é aquele que
adquirimos por nós mesmos, devido às apostas em que investimos (seu
desejo de aprender, sua vontade de juntar sua experiência, sua maneira
de desempenhar sua vida). Mas o autodidatismo não existe em estado
puro. Temos sempre necessidade dos outros. Se o autodidata chegar a
ler os livros, ele sentirá sempre a falta de um ou de mais mestres que o
terão guiado ou assistido; ele terá somente utilizado o método da ten­
tativa e erro que o terá feito perder muito tempo. O verdadeiro problema
me parece o da combinação em círculo, do auto e do heterodidatismo.
Eu mesmo jamais tive mestres. Sempre lamentei isso. Não falo, certa­
mente, de um mestre que se impõe ou que é imposto, mas daquele que
escolhemos por um tempo, por aquilo que ele possa nos trazer. Aquilo
que a instituição escolar ou universitário produz é a falsificação dessa
necessidade. Você deve respeitar alguém porque ele ocupa tal função, tal
cargo, etc. Isso se tornou uma lamentável caricatura. Como Illich mos­
trou muito bem, colocando à sua maneira o problema do autodidatismo,
a escola, a universidade tornaram-se máquinas para matar a curiosidade e
a inteligência, canalizando-as em direção a todos os pequenos domínios
mináveis, análogos a qualquer coleção de selos. Inscrevemo-nos·desespe­
radamente num sistema de especialização produtivo.
É preciso, portanto, uma reflexão autocrítica sobre os nossos sistemas
de educação, que se tornaram destrutivos e mutilantes. De passagem,
poderíamos tirar da contemplação das múltiplas reformas escolares a
idéia de que as reformas institucionais apenas não resolvem os problemas.
A verdadeira reforma seria a dos espíritos, que não é evidentemente
promulgável, que depende de uma formidável tomada de consciência,
que deve vir de um certo número de indivíduos marginais, no início,
porque eles sentem os problemas onde a maior parte não vê problema;
porque eles discernem os caminhos lá onde os outros só vêem os impasses.
Evidentemente, devemos procurar, individual e coletivamente, abrir,
colaborar com o desenvolvimento do espírito crítico. Mas a revolução
dos espíritos é improgramável. Ela depende das sinergias, dos acidentes
mais complexos da história do que dos efeitos das ciências ou das técni­
cas do engenheiro. Não se pode prever uma maneira operacional de 1

193 1
11
Edgar Morin

resolver tais problemas. É o problema da revolução social do século


XIX. Pensou-se que se tratava de um problema de educação. Pergun­
tou-se, em seguida, como educar os educadores. Depois, Marx acentuou
a importância da mudança das estruturas de produção. Mudaram-se as
estruturas de produção sem suprimir as classes. Criaram-se novas classes.
Para os fenôrnenos que requerem urna renovação total, as mudanças, se
elas surgem, a farão de urna maneira que parecerá retrospectivarnente
necessária, lógica, compreensível, mas que antes era impensável. A apa­
rição do Homo sapiens era absolutamente impensável há dez milhões de
anos para um observador inteligente, surgido na Terra naquele momento.
A existência do olho, muitas vezes delineada no decorrer da evolução
biológica, é realmente difícil de conceber. Para que o olho exista
como totalidade, é preciso que existam partes especializadas, que elas
próprias não possam precisar senão a partir do plano diretor de urna
totalidade. Apenas vemos corno a partir simplesmente de uma certa
sensibilidade fotoelétrica que se especializaria nervosamente podería­
mos chegar à complexidade de um tal órgão. E, no entanto, ele exis­
te! Então, não creio muito nas virtudes dos programas de mudança. É
preciso mergulhar na noite densa, com a vontade de trabalhar com a
possibilidade do fracasso, com o sentimento de que existe uma tarefa
importante a ser executada. A ausência de solução pré-programada
não deve desencorajar, mas relembrar que um trabalho tem uma rea­
lidade complexa.

J. Ardoino: Você rejeita, com justificativa, a instituição educativa naquilo


que ela leva consigo de esclerosante. Mas a função educativa ultrapassa muito
largamente essa instituição. Não é a cultura, finalmente, tomada no seu con­
junto, que na sua visão é realmente educativa?
E. Morin: Plenamente de acordo. A esse respeito, estamos no cami­
nho. A formação permanente, a educação dos adultos fazem também
parte desse conjunto. Sempre pensei que a ascensão ao conhecimento
era muito arbitrariamente detida em certas idades. Como a revolução,
a educação deve ser permanente. Se ela não encontra a seiva original,
definha. É o sentido extrapolado por Trótski. Podemos ter as mais belas
instituições, mas elas não são suficientes para suscitar a vida que as deve
animar. Tome para a democracia o exemplo de certos cantões suíços. É
preciso seiva, que é completamente diferente de acumulação do saber,

194

A inteligência da complexidade

que é, no fundo, a aventura humana. Desse ponto de vista, o fenômeno


do conhecimento, os processos educativos são fenômenos propriamente
antropológicos que não saberíamos enquadrar neste ou naquele setor. A
cultura é um laço orgânico entre a educação e a antropologia.

195
Capítulo 4
O pensamento complexo,
um pensamento que pensa
Edgar Morin
-- - -
4.1 O paradigma da complexidade
Pensar a complexidade - esse é o maior desafio do pensamento contem­
porâneo, que necessita de uma reforma no nosso modo de pensar.
O pensamento científico clássico se edificou sobre três pilares: a
"ordem", a "separabilidade", a "razão". Ora, as bases de cada um deles
encontram-se hoje em dia abaladas pelo desenvolvimento, inclusive a
das ciências, que originalmente foram fundadas sobre esses três pilares.

Os pilares da ciência clássica


A noção de "ordem" se depreendia de uma concepção determinista
e mecânica do mundo. Qualquer desordem aparente era considerada
como o fruto da nossa ignorância provisória. Atrás da desordem aparente
existia uma ordem a ser descoberta.
A idéia de ordem universal foi posta em causa primeiramente pela
termodinâmica, que a reconheceu no calor de uma agitação molecular
desordenada, em seguida pela microfísica, depois pela cosmofísica e
hoje pela física do caos. As idéias de ordem e de desordem param de se
excluir simultaneamente. De um lado, uma ordem organizacional pode
nascer em condições vizinhas da turbulência; de outro, processos desor­
denados podem nascer a partir �e estados iniciais deterministas.
O pensamento complexo, longe de substituir a idéia de desordem
por aquela de ordem, visa colocar em dialógica a ordem, a desordem e
a organização.
O segundo pilar do pensamento clássico é a noção de separabilidade.
Ela corresponde ao princípio cartesiano segundo o qual é preciso, para
estudar um fenômeno ou resolver um problema, decompô-lo em ele­
mentos simples. Esse princípio se traduziu cientificamente, de um
lado, pela especialização, depois pela hiperespecialização disciplinar, e
de outro, pela idéia de que a realidade objetiva possa ser considerada
sem levar em conta seu observador.
Ora, após um quarto de século, desenvolveram-se "ciências sistêmi­
cas", que reúnem aquilo que é separado pelas disciplinas tradicionais e
cujo objeto é constituído pelas interações entre elementos e não mais
pela sua separação. A ecologia-ciência tem por objeto os ecossistemas e
a biosfera, que são conjuntos de constituintes tratados separadamente
pela zoologia, pela botânica, pela microbiologia, pela geografia, pelas

199
Edgar Morin

ciências físicas, etc. As ciências da terra encaram o nosso planeta como


um sistema complexo que se autoproduz e se auto-organiza; elas arti­
culam entre elas as disciplinas outrora separadas, como eram a geolo­
gia, a meteorologia, a vulcanologia, a sismologia, etc.
Um outro aspecto da separabilidade, o da disjunção entre o observador
e a sua observação, foi colocado igualmente em causa pela física contempo­
rânea. Em microfísica, sabemos, desde Heisenberg, que o observador inter­
fere com sua observação. Nas ciências humanas e sociais, parece cada vez
mais evidente que nãos existe nenhum sociólogo ou economista que possa
reinar, como Sírius, acima da sociedade. Ele é um fragmento no interior
dessa sociedade, e a sociedade, enquanto totalidade, está no interior dele.
O pensamento complexo não substitui a separabilidade pela insepa­
rabilidade - ele convoca uma dialógica que utiliza o separável mas o
insere na inseparabilidade.
O terceiro pilar do nosso modo de pensar é o da lógica indutivo-dedu­
tivo-identitária identificada com a Razão absoluta. A Razão clássica
repousava sobre três princípios: da indução, da dedução e da identidade
(quer dizer, a rejeição da contradição). A primeira resposta contestatária
foi dada por Karl Popper contra a indução, que permitia chegar a leis
gerais por exemplos particulares. Popper, justamente, ressaltou que não
se podia, em todo o seu rigor, impor urna lei universal, tal como "Todos
os cisnes são brancos", pelo único fato de que não se tenha jamais visto
um negro. A indução tem incontestavelmente um valor heurístico, mas
não um valor de prova absoluta.
O teorema da incompletude de Gõdel mostra por outro caminho
que um sistema dedutivo formalizado não pode encontrar nele próprio
a demonstração absoluta de sua validade. É isso que mostrou igualmente
Tarski na sua lógica semântica: nenhum sistema dispõe de meios sufi­
cientes para se auto-explicar a si próprio. Em certos casos é possível
encontrar a prova ou a explicação nos metassistemas, mas estes compor­
tam igualmente neles uma brecha.j Podemos certamente elaborar os
"metapontos de vista": por exemplo, para conhecer minha sociedade,
posso comparar as sociedades contemporâneas, estudar por contraste as
sociedades da Antiguidade ou ainda imaginar as sociedades "possíveis".
Isso me permite edificar uma espécie de observatório a partir do qual
posso observar outras sociedade exteriores, permanecendo no interior da
minhaJ Mas, em nenhum caso, existe um metassistema teórico que

200

A inteligência da complexidade

permitiria ultrapassar nossa condição social ou nossa condição humana,


quer dizer, fazer de nós seres metassociais e meta-humanos.
Enfim, o desenvolvimento de certas ciências como a microfísica ou
a cosmofísica chegou, de maneira empírico-racional, a contradições
insuperáveis, como a que se refere à aparente dupla natureza contradi­
tória da partícula (onda-corpúsculo) e as que se referem à origem do
universo, da matéria, do tempo, do espaço.
Desse modo, se nós não podemos nos privar da lógica indutivo­
dedutivo-identitária, ela não pode ser o instrumento da certeza e da
prova absoluta. O pensamento complexo convoca não ao abandono
dessa lógica, mas a uma combinação dialógica entre a sua utilização,
segmento por segmento, e a sua transgressão nos buracos negros onde
ela pára de ser operacional.

As três teorias
Ordem, separabilidade e razão absoluta - esses três pilares, do
nosso ponto de vista, foram, portanto, abalados pelo desenvolvimento
das ciências contemporâneas. Assim, como se conduzir num universo
onde a ordem não é absoluta, ou a separabilidade é limitada, onde a
lógica comporta buracos?
Esse é o problema com o qual se defronta o pensamento da com­
plexidade.
Uma primeira via de acesso é que podemos chamar hoje em dia
de "as três teorias", que são a teoria da informação, a cibernética e a teo­
ria dos sistemas. Essas três teorias, primas e inseparáveis, surgiram no
início dos anos 40 e se fecundaram mutuamente.
A teoria da informação é uma ferramenta para o tratamento da
incerteza, da surpresa, do inesperado. Desse modo, �iE(���':..ção que
indica o vencedor de uma batalha resolve uma incerteza; aquela que
anuncia a morte súbita de um tirano traz o inesperado e, ao mesmo
tempo, a novidade.
Esse conceito de informação permite entrar num universo onde exis­
tem ao mesmo tempo a ordem (a redundância), a desordem (o bruto), e
extrair o novo (a informação). Além do mais, a informação pode assu­
mir a forma organizadora (programadora) no seio de uma máquina
cibernética. A informação torna-se, pois, aquilo que controla a energia
e aquilo que dá autonomia a uma máquina.

201
Edgar Morin

A cibernética é uma teoria das máquinas autônomas. A idéia de


retroação, introduzida por Norbert Weiner, rompe o princípio da causali­
dade linear e introduz a idéia de círculo causal. A age sobre B e B age, em
retorno, sobre A. A causa age sobre o efeito e o efeito sobre a causa, como
num sistema de aquecimento, onde o termostato regula o movimento da
caldeira. Esse mecanismo, denominado "regulação", é que permite a auto­
nomia de um sistema, no caso a autonomia térmica de um apartamento
com relação ao frio exterior. Como Cannon muito bem mostrou no The
wisdom o/ body (1930), no caso de um organismo vivo, "a homeostasia" é
um conjunto de processos reguladores baseados em múltiplas retroações.
O círculo de retroação (denominado feedback) permite, sob a sua forma
negativa, estabilizar um sistema, reduzir o desvio, como é o caso da
homeostasia. Sob sua forma positiva, o feedback é um mecanismo amplifi­
cador, por exemplo, na situação de agravamento dos extremos de um con­
flito armado. A violência de um protagonista conduz a uma reação violenta,
que, por sua vez, leva a uma reação ainda mais violenta. Essas retroações,
inflacionistas ou estabilizadoras, são legiões de fenômenos econômicos,
sociais, políticos ou psicológicos. A idéia de retroação havia sido pressen­
tida por Marx, quando ele dizia que a infra-estrutura material de uma
sociedade produz a superestrutura (social, política, ideológica), mas, em
troca, a superestrutura retroage à infra-estrutura material...
A teoria dos sistemas lança igualmente as bases de um pensamento
de organização. A primeira lição sistêmica é que "o_todo é mais do que a
soma das partes". Isso significa que existem qualidades emergentes que
0ascem da organização de um todo e que podem retroagir às partes.
Assim, a água tem qualidades emergentes com relação ao hidrogênio e ao
oxigênio que a constituem. Acrescento que o todo é igualmente menos
do que a soma das partes porque-as partes podem ter qualidades que são
inibidas pela organização do conjunto.
A teoria dos sistemas nos ajuda igualmente a pensar as hierarquias
dos níveis de organização, os subsistemas e as suas imbricações, etc.
O conjunto dessa três teorias - teoria da informação, cibernética e
teoria dos sistemas - nos introduz num universo dos fenômenos orga­
nizados em que a organização é feita com e contra a desordem.

202
...
A inteligência da complexidade

A auto-organização
A essas três teorias é preciso acrescentar os desenvolvimentos con­
ceituais trazidos pela idéia de auto-organização. Aqui, alguns nomes
devem ser mencionados: Von Neumann, Von Foerster, Atlan e Pri­
gogine. Na sua teoria dos autômatos auto-organizadores, Von Neumann
colocou a questão da diferença entre máquinas artificiais e "máquinas
vivas". Ele apontou esse paradoxo: os elementos das máquinas artificiais
são bem fabricados, muito aperfeiçoados, mas se degradam assim que
começam a funcionar. Ao contrário, as máquinas vivas são compostas de
elementos muito pouco confiáveis, como as proteínas, que se degradam
sem ces�ar. Mas essas máquinas possuem as estranhas propriedades de
desenvolver-se, reproduzir-se e auto-regenerar-se substituindo justa­
mente as moléculas degradadas por novas e as células mortas pelas
novas. A máquina artificial não pode consertar a si própria, auto-orga­
nizar-se, desenvolver-se, enquanto a máquina viva se regenera perma­
nentemente a partir da morte de suas células segundo a fórmula de
Heráclito: "Viver de morte, morrer de vida".
A contribuição de Von Foerster reside na sua descoberta do princí­
pio da "ordem pelo barulho" ("Order from noise"). Desse modo, cubos
imantados nas duas faces vão organizar um conjunto coerente, por
agrupamento espontâneo, sob o efeito de uma energia não-direcional, a
partir de um princípio de ordem (a imantação). Assistimos, portanto, à
criação de uma ordem a partir da desordem.
Atlan pôde então conceber sua teoria do "acaso organizador". Encon­
tramos uma dialógica ordem/desordem/organização no nascimento do
universo, a partir de uma agitação calorífica (desordem), onde, em cer­
tas condições (encontros casuais), os princípios da ordem vão permitir
a constituição dos núcleos, dos átomos, das galáxias e das estrelas.
Encontramos ainda essa dialógica na emergência da vida pelos encon­
tros que se dão entre macromoléculas no seio de uma espécie de círculo
autoprodutor que acabará por se tornar auto-organização viva. Sob as
mais diversas formas, a dialógica entre a ordem, a desordem e a organi­
zação, através de inúmeras inter-retroações, está constantemente em
ação nos mundos físico, biológico e humano.
Prigogine, com sua termodinâmica dos processos irreversíveis,
introduziu de uma outra maneira a idéia de organização a partir da

203
Edgar Morin

desordem. No exemplo dos turbilhões de Benard, presenciamos como


as estruturas coerentes se constituem e se auto-sustentam a partir de
um certo princípio de agitação e aquém de outro princípio, em condi­
ções que seriam aquelas de uma desordem crescente. Evidentemente,
essas organizações precisam ser alimentadas de energia, para consumir,
"dissipar" a energia para se manter. No caso do ser vivo, este é bastan­
te autônomo para tirar a energia do seu meio ambiente e até para
extrair as informações e integrá-las na organização. Chamei a isso auto­
eco-organização.
O pensamento da complexidade se apresenta, pois, como um edi­
fício de muitos andares. A base está formada a partir das três teorias
(informação, cibernética e sistema) e comporta as ferramentas neces­
sárias para uma teoria da organização. Em seguida, vem o segundo
andar, com as idéias de Von Neumann, Von Foerster e Prigogine
sobre a auto-organização. A esse edifício, pretendi trazer os elementos
suplementares, notadamente três princípios, que são o princípio dia­
lógico, o princípio de recursão e o princípio hologramático.
O princípio dialógico une dois princípios ou noções antagónicas
que aparentemente deveriam se repelir simultaneamente, mas são
indissociáveis e indispensáveis para a compreensão da mesma realida­
de. O físico Niels Bohr, por exemplo, reconheceu a necessidade de
pensar as partículas físicas ao mesmo tempo como corpúsculos e como
ondas. Como disse Pascal: "O contrário de uma verdade não é o erro,
mas uma verdade ao contrário", que Bohr traduz à sua maneira: "O
contrário de uma verdade trivial é um erro estúpido, mas o contrário
de uma verdade profunda é sempre uma outra verdade profunda". O
problema é, pois, unir as noções antagónicas para pensar os processos
organizadores, produtivos e criadores no mundo complexo da vida e
da história humana.
O princípio da recursão organizacional vai além do princípio da
retroação (feedback); ele ultrapassa a noção de regulação para aquele de
autoprodução e auto-organização. É um círculo gerador no qual os pro­
dutos e os efeitos são eles próprios produtores e causadores daquilo que
os produz. Dessa maneira, nós, indivíduos, somos os produtos de um sis­
tema de reprodução oriundo de muitas eras, mas esse sistema só pode se
reproduzir se nós próprios nos tornarmos os produtores nos acoplando.
Os indivíduos humanos produzem a sociedade em e mediante as suas

204
A inteligência da complexidade

interações, mas a sociedade, enquanto um todo emergente, produz a


humanidade desses indivíduos trazendo-lhes a linguagem e a cultura.
O terceiro princípio, o "hologramático", enfim, coloca em evidên­
cia esse aparente paradoxo de certos sistemas nos quais não somente a
parte está no todo, mas o todo está na parte. Desse modo, cada célula é
uma parte de um todo- o organismo global-, mas o todo está na parte:
a totalidade do patrimônio genético está presente em cada célula indi­
vidual. Da mesma maneira, o indivíduo é uma parte da sociedade, mas
a sociedade está presente em cada indivíduo enquanto todo através da
sua linguagem, sua cultura, suas normas.
Como vemos, o pensamento complexo propõe um certo número de
ferramentas de pensamentos oriundos das três teorias, das concepções
da auto-organização, que desenvolve suas próprias ferramentas. Esse
pensamento da complexidade não é absolutamente um pensamento que
expulsa a certeza para colocar a incerteza, que expulsa a separação para
colocá-la no lugar da inseparabilidade, que expulsa a lógica para auto­
rizar todas as transgressões.
A caminhada consiste, ao contrário, em fazer um ir e vir incessante
entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separá­
vel e o inseparável. Do mesmo modo, utilizamos a lógica clássica e os
princípios de identidade, de não-contradição, de dedução, de indução,
mas conhecemos seus limites, sabemos que em certos casos é preciso
transgredi-los. Não se trata, portanto, de abandonar os princípios da
ciência clássica - ordem, separabilidade e lógica -, mas de integrá-los
num esquema que é, ao mesmo tempo, largo e mais rico. Não se trata
de opor um holismo global e vazio a um reducionismo sistemático;
trata-se de ligar o concreto das partes à totalidade. É preciso articular
os princípios da ordem e da desordem, da separação e da junção, da
autonomia e da dependência, que estão em dialógica (complementares,
concorrentes e antagônicos), no seio do universo. Em síntese, o pensa-­
mento complexo não é o contrário do pensamento simplificador, ele 1
integra este último - como diria Hegel, ele opera a união da simplici­
dade e da complexidade, e até no metassistema que ele constitui ele
faz com que a sua própria simplicidade apareça. O paradigma da com­
plexidade pode ser enunciado não menos simplesmente do que o da
simplificação: este último impõe disjuntar e reduzir; o paradigma da
-----
complexidade ordena juntar tudo e distinguir. _/
205
Edgar Morin

O fundo filosófico
Encontramos de fato na história da filosofia ocidental e oriental
inúmeros elementos e premissas de um pensamento da complexidade.
Desde a Antiguidade, o pensamento chinês se baseia na relação dialó­
gica (complementar e antagônica) entre o yin e o yang e Lao-tsé proclama
que a união dos contrários caracteriza a realidade. No século XVII,
Fang Yizhi formula um verdadeiro princípio da complexidade.
No Ocidente, Heráclito percebeu a necessidade de associar em con­
junto os termos contraditórios para afirmar uma verdade.
Na idade clássica, Pascal é o pensador-chave da complexidade.
Relembremos o princípio que ele formula nos seus Pensamentos: "Todo
objeto sendo ajudado e ajudando, causando e causador, sustento que é
impossível conhecer o todo sem conhecer as partes e conhecer as partes
sem conhecer o todo".
Mais tarde, Kant colocou em evidência os limites ou "aporias da
razão". Com Spinoza, encontramos a idéia da autoprodução do mundo
por ele próprio. Com Hegel, cuja dialética anuncia a dialógica, a auto­
constituição torna-se o romance-novela no qual o espírito emerge da
natureza para chegar à sua conclusão; Nietzsche foi o primeiro a colocar
a crise dos fundamentos da certeza. No metamarxismo, encontramos
com Adorno, Horkheimer e o Lukács da fase mais tardia não somente
os numerosos elementos de uma crítica da razão clássica, mas também
os alimentos de uma concepção da complexidade.
Na época contemporânea, o pensamento complexo começa seu
desenvolvimento na confluência de duas revoluções científicas. A pri­
meira revolução introduziu a incerteza com a termodinâmica, a física
quântica e a cosmofísica. Essa revolução científica desencadeou as refle­
xões epistemológicas de Popper, Kuhn, Holton, Lakatos, Feyrabend,
que mostraram que a ciência não era a certeza mas a hipótese, que uma
teoria provada não o era em definitivo e se mantinha "falsificável", que
existia o não-científico (postulados, paradigmas, themata) no seio da
própria científicidade.
A segunda revolução científica, mais recente, ainda indetectada, é a
revolução sistêmica nas ciências da terra e a ciência ecológica. Ela não
encontrou ainda seu prolongamento epistemológico (que os meus pró­
prios trabalhos anunciam).

206
A inteligênci a da complexidade

O pensamento complexo é, pois, essencialmente o pensamento que


trata com a incerteza e que é capaz de conceber a organização. É o pen­
samento capaz de reunir (complexus: aquilo que é tecido conjuntamente),
de contextualizar, de globalizar, mas, ao mesmo tempo, capaz de reco­
nhecer o singular, o individual, o concreto.

4.2 A necessidade de um pensamento complexo


No momento em que a cultura geral admitia a possibilidade de pesqui­
sar a contextualização de toda informação ou de toda idéia, a cultura
científica e técnica, devido ao seu caráter disciplinar especializado,
separa e compartimenta os saberes, tornando cada vez mais difícil sua
colocação em contexto. Além do mais, até a metade do século XX, a
maior parte das ciências tinha como modo de conhecimento a redução
(do conhecimento de um todo pelo conhecimento das partes que o com­
põem), como conceito-chave o determinismo, ou seja, a ocultação do
acaso, do novo, da invenção, e a aplicação da lógica mecânica da máquina
artificial aos problemas vivos, humanos, sociais.
A especialização abstrata, ou seja, que extrai um objeto de seu con­
texto e do seu conjunto, rej_eita os laços e as intercomunicações com seu
meio e o insere num compartimento, que é aquele da disciplina cujas
fronteiras destroem arbitrariamente a sistemicidade (a relação de uma
parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos; ela con­
duz à abstração matemática que opera dela própria uma cisão com o
concreto, privilegiando aquilo que é calculável e formalizável.
Desse modo, a economia, que é a ciência social matematicamente
mais avançada, a ciência social e humanamente que mais se encontra na
retaguarda, porque ela abstraiu-se das condições sociais, históricas,
políticas, psicológicas, ecológicas, inseparáveis das atividades econômicas.
É por isso que seus especialistas são cada vez mais incapazes de prever
e de predizer o curso econômico a curto prazo.
O conhecimento deve certamente utilizar a abstração, mas procu­
rando construir por referência do contexto. A compreensão dos dados
particulares necessita da ativação da inteligência geral e a mobiliza­
ção dos conhecimentos de conjunto. Marcel Mauss dizia: "É preciso
recompor o todo". Acrescentemos: é preciso mobilizar o todo. Certa­
mente, é impossível conhecer tudo do mundo, bem como apreender
suas transformações multiformes. Mas, por mais aleatória e difícil que

207
Edgar Morin

seja, o conhecimento dos problemas-chave do mundo deve ser perse­


guido, sob pena da imbecilidade cognitiva. Tanto mais que hoje o
contexto de todo conhecimento político, econômico, antropológico,
ecológico constitui o próprio mundo. É o problema universal para
todo cidadão: como adquirir a possibilidade de articular e organizar
as informações sobre o mundo. Mas para articulá-las e organizá-las é
preciso uma reforma do pensamento.

A falsa racionalidade
A falsa racionalidade, ou seja, a racionalização abstrata e unidi­
mensional, triunfa sobre a Terra. As mais monumentais obras-primas
dessa racionalidade tecnoburocrática foram realizadas na URSS. Aí, por
exemplo, foram desviados os cursos dos rios para irrigar mesmo nas
horas mais quentes os milhares de hectares de cultura de algodão, o que
causou a salinização do solo, a volatilização das águas subterrâneas, a
estiagem do mar de Aral. Infelizmente, depois da destruição do Impé­
rio, os novos dirigentes chamaram especialistas liberais do Ocidente,
que, ignorando deliberadamente que uma economia concorrencial de
mercado tem necessidade de instituições, de leis e de regras, não elabo­
raram a indispensável estratégia complexa que, como tinha indicado
Maurice Allais - economista liberal-, implicava planejar o desplaneja­
mento e programar a desprogramação.
De tudo isso, resultam catástrofes humanas cujas vítimas e as conse­
qüências não são indenizadas nem compatibilizadas como são as vítimas
das catástrofes naturais.
A inteligência parcelada, compartimentada, mecanista, disjuntiva,
reducionista quebra o complexo do mundo em fragmentos disjuntos,
fraciona os problemas, separa aquilo que está unido, unidimensionaliza
o multidimensional. É uma inteligência ao mesmo tempo míope, prés­
bita, daltónica, zarolha. Acaba cega, na maioria das vezes. Ela destrói
no embrião todas as possibilidades de compreensão e de reflexão, elimi­
nando também todas as chances de um julgamento correto, ou de uma
visão a longo prazo. Dessa maneira, quanto mais os problemas se tor­
nam multidimensionais, tanto mais existe a incapacidade de pensar na
sua multidimensionalidade. Quanto mais progride a crise, mais progride
a incapacidade de se pensar na crise. Quanto mais os problemas se tornam
planetários, mais eles se tornam impensáveis. Incapaz de visualizar

208
A inteligência da complexidade

o contexto e o complexo planetário, a inteligência cega torna-se incons­


ciente e irresponsável. Daí então damo-nos conta de que um proble­
ma-chave, que é complementar um pensamento que separa por um
pensamento que reúne. Complexus significa originariamente "aquilo que
é tecido em conjunto". O pensamento complexo é um pensamento que
procura ao mesmo tempo distinguir (mas não disjuntar) e reunir.
Ao mesmo tempo, um outro problema-chave é colocado: tratar a
incerteza.
Por quê?
Porque, por toda parte, nas ciências o dogma de um determinismo
universal se desmoronou e, ao mesmo tempo, a lógica, a pedra angular da
certeza do raciocínio, revelou as incertezas na indução, as irresolubilida­
des na dedução e os limites no princípio do terceiro incluído.
Desse modo, o propósito do pensamento complexo é simultaneamente
reunir (contextualizar e globalizar), relevar o desafio da incerteza. Como'

Os sete princípios
Podemos antecipar sete princípios guias para pensar a complexi­
dade. Esses princípios são complementares e interdependentes.

1 - O princípio sistêmico ou organizacional que liga o conhecimento


das partes ao conhecimento do todo, segundo a forma indicada por Pascal:
"Eu sustento que é impossível conhecer o todo sem conhecer as partes e
conhecer as partes sem conhecer o todo". A idéia sistémica, que se opõe à
idéia reducionista, é que "o todo é mais do que a soma das partes". Do
átomo à estrela, da bactéria ao homem e à sociedade, a organização de um
todo produz qualidades ou propriedades novas em relação às partes consi­
deradas isoladamente: as emergências. Então, a organização do ser vivo
produz qualidades desconhecidas no nível dos seus constituintes físico­
químicos. Acrescentemos que o todo é igualmente menos do que a soma
das partes, cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto.

2 - O princípio "hologramático" 45 coloca em evidência esse aparen­


te paradoxo dos sistemas complexos em que não somente a parte está

45. Inspirado no holograma onde cada ponto contém a quase totalidade da informação do objeto que
ele representa.

209

Edgar Morin

no todo, mas em que o todo está inscrito na parte. Desse modo, cada
célula é uma parte de um tado - o organismo global -, mas o tado está
na parte; a totalidade do patrimônio genético está presente em cada
célula individual; a sociedade está presente em cada indivíduo enquanto
todo através da sua linguagem, sua cultura, suas normas.

3 - O princípio do círculo retroativo, introduzido por Norbert


Wiener, permite o conhecimento dos processos auto-reguladores. Ele
rompe o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito e o
efeito sobre a causa, como num sistema de aquecimento onde o termos­
tatO regula a atividade da caldeira. Esse mecanismo de regulagem per­
mite a autonomia de um sistema, neste caso a autonomia térmica de
um apartamento com relação ao frio exterior. De maneira mais complexa,
"a homeostasia" de um organismo vivo é um conjunto de processos
reguladores baseados em múltiplas retroações. O círculo de retroação
(ou feedback) permite, sob sua forma negativa, reduzir o desvio e desse
modo estabilizar um sistema. Sob sua forma positiva, o feedback é um
mecanismo amplificador, por exemplo, na situação do aumento da gra­
vidade, de um conflito: a violência de um protagonista conduz a uma
reação violenta, que, por sua vez, leva a uma reação ainda mais violenta.
lnflacionadoras ou estabilizadoras, as retroações são legiões de fenôme­
nos econômicos, sociais, políticos ou psicológicos.

4 - O princípio do círculo recursivo ultrapassa a noção de regulagem


1 para a de autoprodução e auto-organização. É um círculo gerador no qual
os produtos e os efeitos são eles próprios produtores e causadores daquilo
que os produz. Dessa maneira, nós, indivíduos, somos os produtos de um
sistema de reprodução proveniente de várias eras, mas esse sistema só
pode reproduzir-se se nós próprios nos tornamos os produtores nos
acoplando. Os indivíduos humanos produzem a sociedade em e pelas suas
interações, mas a sociedade, enquanto emergente, produz a humanidade
desses indivíduos, trazendo-lhes a linguagem e a cultura.

5 - O princípio da auto-eco-organizafão: autonomia e dependência.


Os seres vivos são seres auto-organizadores que se autoproduzem inin­
terruptamente e gastam a energia para salvaguardar sua autonomia. Como
eles têm necessidade de gastar energia, de informação e de organização no

210
A inteligência da complexidade

seu meio ambiente, sua autonomia é inseparável dessa dependência, e é


preciso, pois, concebê-los como seres auto-eco-organizadores. O princípio
da auto-eco-organização vale, evidentemente de maneira específica, para
os humanos que desenvolvem sua autonomia, dependendo da sua cultura,
e para as sociedades que dependem do seu meio ambiente geoecológico.
Um aspecto-chave da auto-eco-organização vivente é que ela se
regenera permanentemente a partir da morte das suas células segundo
a fórmula de Heráclito "Viver de morte, morrer de vida" e que as duas
idéias antagônicas de morte e de vida são complementares, permane­
cendo antagônicas.

6 - O princípio dialógico acaba justamente de ser ilustrado pela


fómula heraclitiana. Ele une dois princípios ou noções que devem
excluir-se um ao outro, mas são indissociáveis numa mesma realidade.
Por conseguinte, devemos conceber uma dialógica ordem/desor­
dem/organização desde o nascimento do universo, ou seja, a partir de uma
agitação calorífica (desordem), onde, em certas condições (encontros
casuais), os princípios de ordem vão permitir a constituição dos núcleos,
dos átomos, das galáxias e das estrelas. Encontramos ainda essa dialógica
na emergência da vida pelos encontros entre macromoléculas no seio de
uma espécie de círculo auto-reprodutor que acabará por se tomar auto­
organização viva. Sob as mais diversas formas, a dialógica entre a ordem,
a desordem e a organização, através de inumeráveis inter-retroações, está
constantemente em ação nos mundos físico, biológico e humano.
A dialógica permite assumir racionalmente a associação de ações con­
traditórias para conceber um imenso fenômeno complexo. Niels Bohr,
por exemplo, admitiu a necessidade de reconhecer as partículas físicas ao
mesmo tempo como corpúsculos e como ondas. Nós próprios somos
seres separados e autônomos que fazem parte de duas continuidades
inseparáveis: a espécie e a sociedade. Quando consideramos a espécie ou
a sociedade, o indivíduo desaparece; quando consideramos o indivíduo,
a espécie e a sociedade desaparecem. O pensamento complexo assume
dialogicamente os dois termos que tendem a se excluir um ao outro.

7 - O princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento. Esse


princípio opera a restauração do sujeito e coma presente a problemática
cognitiva central: da percepção à teoria científica, todo conhecimento é

21 l
Edgar Morin

uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa cultura e num


tempo determinados.
Esses são alguns dos princípios que guiam as marchas cognitivas do
pensamento complexo. Não é absolutamente um pensamento que elimi­
na a certeza pela incerteza, que elimina a separação pela inseparabilidade,
que elimina a lógica para permitir todas as transgressões. A caminhada
consiste, ao contrário, em fazer um ir e vir incessante entre as certezas e
as incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o insepará­
vel. Do mesmo modo, ela utiliza a lógica clássica e os princípios de iden­
tidade, de não-contradição, de dedução, de indução, mas conhece seus
limites, e sabe que, em cercos casos, é preciso transgredi-los. Não se trata,
pois, de abandonar os princípios de ordem, de separabilidade e de lógica,
mas de integrá-los numa concepção mais rica. Não se trata de opor um
holismo global e vazio ao reducionismo mutilante; trata-se de ligar as
partes à totalidade. Trata-se de articular os princípios de ordem e de
de
desordem, de seRaração e de j�ão, de autonorrua e dependência, que
estão em dialógica (complementares, conco.r:rentes e antagônicos), no seio
do universo. Em suma, o pensamento complexo não é o contrário do
pensamento simplificante, ele o integra - como diria Hegel, ele opera
a união da simplicidade e da complexidade, e mesmo, no metassistema
que ele constitui, ele faz aparecer sua própria simplicidade. O paradigma
da complexidade pode ser enunciado não menos simplesmente do que
o da simplificação: este último impõe a disjunção e redução; o paradigma
da complexidade prescreve reunir tudo e distinguir.

Ao final de uma longa história...


Na época contemporânea, o pensamento complexo é elaborado
nos interstícios entre as disciplinas, a partir de pensadores matemáticos
(Wiener, Von Neumann, Von Foerster), termodinâmicos (Prigogine),
biofísicos (Atlan), filósofos (Castoriadis).
A primeira revolução introduziu a incerteza com a termodinâmica,
a física quântica e a cosmofísica e desencadeou as reflexões epistemo­
lógicas de Popper, Kuhn, Holton, Lakatos, Feyerabend, que mostra­
ram que a ciência não era a certeza mas a hipótese, que uma teoria
provada não o era definitivamente e permanecia "falsificável", que
existia a não-científicidade (postulados, paradigmas, themata) no seio
da própria científicidade.

212
w

A inteligência da complexidade

A segunda é, já assinalamos, a revolução sistêmica. Ela introduz a orga­


nização nas ciências da terra e na ciência ecológica; ela se prolongará sem
dúvida como revolução da auto-eco-organização em biologia e sociologia.
O pensamento complexo é, portanto, essencialmente um pensamento'\
que trata com a incerteza e que é capaz de conceber a organização. É o
pensamento apto a reunir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo
tempo a reconhecer o singular, o individual, o concreto.
O pensamento complexo não se reduz nem à ciência, nem à filosofia,
ma�comurucação, como se fosse uma naveta que tr�balha
para unir o�fi_os.
� O m;-do complexo de pensar não tem somente a sua utilidade para os
problemas organizacionais, sociais e políticos. O pensamento que afron­
ta a incerteza pode esclarecer as estratégias do nosso mundo incerto. O
pensamento que une pode esclarecer uma ética da reunião e da solidarie­
dade. O pensamento da complexidade tem igualmente os seus prolon­
gamentos existenciais que postulam a compreensão entre os humanos.

213
Capítulo 5
Sobre a modelizacão da
complexidade
Jean-Louis Le Moigne
"'
"TI
rodemos dizer, sobre o tema da complexidad e, alguma coisa
que não seja trivial, sendo suficientemente geral?" 1 Uma escrupulosa
exploração da literatura consagrada a esse conceito, presumidamente
complexa pela construção (podemos voltar desde a origem até os
Cahiers de P. Valéry e até o tratado de tectologie de A. Bogdanov 2, 1913,
1920, que só se desenvolverá a partir do artigo de W. Weaver 3 na
América e do livro manifesto de G. Bachelard anunciando Le nouvel
esprit scientifique na Europa), suscita naturalmente essa perturbadora
interrogação: Lá, onde pesquisamos a complexidade entendida como
"o" conceito científico por excelência, não iremos encontrar a trivialida­
de esclerosante de tantos discursos escolásticos? Tentando propor uma
resposta positiva a esta inquietante questão, Herbert Simon propõe aos
pesquisadores atentos ao mesmo tempo algumas razões a serem empreen­
didas e preservadas - eles estão em boa companhia - e alguns caminhos,
ou alguns métodos, que eles irão adquirir, sem dúvida, para privilegiar
suas pesquisas, fazendo do objeto do seu estudo o método desse estudo
("0 problema de agora em diante é transformar a descoberta da comple­
xidade em método da complexidade", argumentará Edgar Morin 4 .)
Desde o início, portanto, é preciso que nos reconheçamos contidos
num desses círculos cognitivos que os lógicos clássicos execram (os
quais, nós sabemos, se instituem naturalmente em cães de guarda que
uivam agressivamente contra os pesquisadores que tentem, seja por um
minuto, se afastar dos caminhos delineados pela Ciência Normal do
momento). Reconhecer a complexidade, compreendê-la, portanto apre­
sentá-la de maneira inteligível para e pelo espírito humano conhecedor
é propor uma inteligência desse conceito abstrato e, sem dúvida, artifi­
cial, novo, advindo paradoxalmente para a história da Ciência. Ela não
propõe justamente eliminar ou ocultar, à força de explicação ou de sim­
plificação, a complexidade da nossa consciência da Natureza e da Vida?
"Nada é simples, nada é natural - eis o fruto do conhecimento patoló­
gico", sublinhava P aul Valéry em 1924. "Mas o nosso automatismo é a

1. H. A. Simon, 1977.
2. A. Bogdanov, 1921.
3. W. Weaver, 1947.
4. O Método, t. 1, Europa-América, Portugal.

217
Jean-Louis Le Moigne

absorção do complexo e a ocultação do complexo. Por isso, complexo


torna-se simples pela educação" 5.
Mas, por uma espécie de perversidade semântica perturbadora, a pri­
meira metáfora sobre a qual vamos nos apoiar para propor a inteligência
da complexidade será, sem dúvida, a da complexidade da própria
inteligência. Pela prática familiar do sujeito conhecedor, ele exerce sua
inteligência, e ele sabe por experiência íntima e muitas vezes inefável da
complexidade desse exercício, da complexidade de sua inteligência.
Quanto mais uma situação for percebida como complexa, maior deverá
ser a inteligência que será solicitada para dominá-la! E vice-versa. Os
dois conceitos parecem indissociáveis! A inteligência da complexidade,
a complexidade da inteligência! Círculo vicioso e, portanto, inútil, gri­
tarão os nossos lógicos? Círculo estranho 6 , antes de mais nada, e talvez
fecundo, sugerirão como resposta os pesquisadores atentos aos artifícios
refletidos e tão múltiplos do espírito humano conhecedor. Atravessando
alegremente o Rubicon dos interditos da lógica clássica, não podemos,
"razão atenta", tentar o exercício? O jogo não o justifica? As complexi­
dades percebidas do mundo onde vivemos são tão freqüentemente
opressoras e nossas inteligências são tão freqüentemente consideradas
impotentes para dominá-las 1

5.1. Inteligência da complexidade,


complexidade da inteligência
Esse círculo estranho que junta mais do que enreda os conceitos da
complexidade e da inteligência vai compor nosso projeto, que é utilizar
a inteligência à maneira de uma alavanca para erguer e descobrir as
faces escondidas da complexidade 1 Vai nos limitar à compreensão da
complexidade pela qual aprendemos a nos servir desse instrumento
complexo que seria a inteligência?

5. Cahiers, edição Plêiade, t. 1 , p. 988.


6. A noção de "círculo estranho"' foi introduzida e admiravelmente ilustrada por D. R. Hofstadter,
numa obra de agora em diante essencial a todo o empreendimento de inteligibilidade da complexi­
dade: Gódel, Escher and Bach, an eternal golden braid. Basic Book, 1979, Penguin Book, 1980. Ele pro­
porá chamar de "círculo estranho" a relação sobre a qual se consrroem os paradoxos auto-referenciais
que a lógica clásssica bane (p. 21 ).

218
...
A inteligência da complexidade

Como duas serpentes que se entrelaçam regularmente para supor­


tar o caduceu, cada um desses dois conceitos pode ser identificado na
sua autonomia, com a identificação de um não guiando irreversivel­
mente
1
a identificação do outro senão em direção do reconhecimento
do signo que o envolve: reconhecimento que se espera ao término
dessa exploração. O exercício começa, portanto, através dessas iden­
tificações tranqüilizadoras.

Da complexidade
Quaisquer que sejam as definições, a complexidade surpreende
pela irrealidade, ou melhor, pela irreversibilidade do seu conteúdo. É
uma noção não-positiva por excelência. Compreendemos que os posi­
tivistas de todas as tendências a evitam (sem ousar, no entanto, recu­
sá-la, porque ela é gratificante, caução indiscutível de tantos fracassos).
Difere da complicação, com a qual ela é confundida, por preguiça
intelectual ou por galanteria retórica, que se caracteriza facilmente por
sua visibilidade. A complexidade está para a complicação do mesmo
modo que_ a entropia está para a energia: uma espécie de avaliação do
"valor de mercadoria", definida pelo observador, de um lingote de
mistura metálica, com determinado peso e imposto a este observador.
O "muito complicado" pode não ser "muiro complexo" e o "muito
simples" (o grão da matéria!) pode ser dado como muito complexo.
Gaston Bachelard lembrava: "Nós vimos despontar a idéia da comple­
xidade como essencial aos fenômenos elementares da microfísica con­
temporânea. Enquanto a ciência de inspiração cartesiana construía
muito logicamente do complexo ao simples, o pensamento científico
contemporâneo tenta ler o complexo real sob a aparência simples, for­
necida pelos fenômenos compensados... Quanto menor o _grão da
_!11até_!ia .Qlªis_realidade substancial existe: diminuído o volume, a maté­
ria se aprofunda" 7.
A complexidade talvez não tenha realidade ontológica: ela é uma
propriedade intrínseca de cercos componentes do universo, ou de certos
sistemas? Ou, ainda, ela é uma propriedade atribuída a certas descrições
de cercos sistemas? Colocada nesses termos, a questão não será sem

7. Le no1J1)e[ uprit scientifique, 1934, pp. 143-144.

219

i
Jean-Louis Le Moigne

dúvida resolvida. Mas ela suscita debates muito bem-vindos para a


nossa compreensão de conceito... complexo! 8
Mas esse conceito não seria necessário 1 Aquilo que não chegamos a
explicar, ainda que através das exposições mais complicadas, deveria
doravante nos oprimir com seu aparente absurdo? Mais do que recorrer
a certos fetichismos, não seria mais judicioso constituir a classe de acon­
tecimentos complexos? O caótico ou errático sendo por natureza não
inteligíveis, e, portanto, não representáveis pelo espírito humano, são,
de qualquer maneira, insuportáveis. O artifício - ou, mais corretamente,
o artefato - da complexidade permite transformar o ininteligível per­
cebido num potencialmente inteligível concebido. Desse modo, "a
imprevisibilidade essencial" 9 se torna tolerável e o homem ativo pode
ficar contente com o término de sua pesquisa, doravante vã, do grande
plano de montagem que um Criador malicioso teria dissimulado. Será
com lexo o ue certamente não é totalmente previsível e às vezes não
...!29!gient�ntecipável. Definição âúalda anterior, guelevava emconta
a complexidade para a propriedade dos acontecimentos não exaustiva­
mente explicáveis (ou determinados), mas potencialmente inteligíveis
(ou modelizáveis): não mais um obstáculo ao conhecimento ou à descrição,
mas coadjuvante da experiência cognitiva ativa 10.
Dessa maneira, elaboramos uma concepção cientificamente assegura­
da da complexidade, que implica sem dúvida alguns deslizes explícitos
dos referenciais epistemológicos sobre os quais se fundamentam as
pesquisas científicas contemporâneas. Deslizes fatais, visto que o para­
digma analítico e determinista institucional só tolera a complexidade
como um substituto distinto da complicação. A linguagem científica
corrente parece aceitar comodamente a designação "muito complicado"

8. Os escudos de R. Rosen, ··complexity as a system propercy", e de L. Lofgren, "Complexity of des­


cription of systems" (publicado no International]01trnal o/ General Systems, consagrado à complexidade
sistêmica, em 1977, vol. 3, nº 4), ilustram muito bem esse ponto.
9. "A imprevisibilidade essencial" é , sem dúvida, a característica mais geral que associamos à com­
plexidade. A noção foi introduzida por Paul Valéry (Cahien) e retomada por M. Bessis num ensaio
original, "Valéry e a célula viva", publicado em Fonctiom de l'esprit -13 savants redécortvrent Valéry, sob
a direção de J. Robinson-Valéry, 1983, Hermano Edireur, Paris, p. 14.
10. Michel Serres, "A complexidade não é mais um obstáculo ao conhecimento, ou, pior, um julga­
mento descritivo, ela é o melhor dos adjuvantes do saber e da experiência" (Henne.r 1, Lc, comm11nica­
tion, Les Éditions de minuir, Paris, 1968, p. 20).

220
A inteligência da complexidade

como "complexo", assim como ele concede o uso de "a dinâmica" no


lugar de "cinemática". (O que seria a audiência de "A dinâmica dos
sistemas", proposta por J. Forrester, se o chamássemos corretamente
pelo seu nome: "a cinemática" dos sistemas?) É preciso convir que essa
"galanteria" inconsciente mostra-se muitas vezes benéfica ao desenvol­
vimento dos métodos de modelização da complexidade. Os modelos
ultracomplicados levam em conta os processos de causalidade em cír­
culo, exaustivamente descritível, rompendo, portanto, os modelos
sofisticados de causalidade linear da Mecânica. Eles se revelam natural­
mente na origem das poderosas heurísticas de modelização de fenômenos
manifestados como complexos. O modelo matricial ISM, proposto por
J. N. Warfield 11, constitui o exemplo talvez mais persuasível. Numa
menor escala, Principies of systems de J. Forrester (1972) e Theory of
modeling and simulation de B. P. Ziegler 12 corroboram esse argumento,
propondo métodos de modelização pela simulação de modelos dos
fenômenos complicados (e presumidos exaustivamente descritíveis).
As teorias das grandes redes de conexões são igual e freqüentemente
apresentadas como as "teorias da complexidade", porque elas propõem
modelos originais que associam o tamanho de um sistema complicado
a seus níveis de desempenho 13 .
Concepção que certamente induzirá os modelizadores dos fenôme­
nos tidos como complexos a tirar um grande partido dos instrumentos
elaborados pelos analistas que propõem os modelos - por vezes poderosos
- explicativos de fenômenos complicados (mas sempre tidos por previ­
síveis - ou descritíveis). Isso, da mesma maneira como nós utilizamos,
como numa heurística (programável, mas com resultado incerto), qual­
quer algoritmo eventualmente complicado, sem jamais ter assegurados
os resultados desses cálculos ou desses raciocínios. Modos de modelização,
entre outros, por vezes catalisadores, inibidores na medida em que a

11. Societal IJifemI, pla11ning. policy and complexity, J. Wiley & Sons, 1976.
12. J. Wiley & Sons, 1976.
13. J. Voge propôs várias ilustrações convincentes desses modelos apresentados, nocadamcnte por M.
J. Marcus: The 1heory o/ connecting networkI and their complexity: A revietll (Proceeding of lhe IEEE., vol.
65, ng 167, setembro de 1977, pp. 1263-1271), e por Pippenger, Complexity theory, Scientific American,
1978, pp. 90-100).

221
Jean-Louis Le Moigne

referência ao Tipo - Ideal - ou ao Gaz - Perfeito 14 - implique alguma


representação do mundo arbitrariamente privilegiada. A glorificação da
homomorfia em modelização científica talvez seja a mais importante
idéia que a Sistêmica tenha trazido para a pesquisa científica nestes
últimos anos. Isso ocorreria talvez porque ela torna admissível, a priori,
o próprio princípio da modelização da complexidade (com a diferença
da Mecânica, que não tolera senão as correspondências isomórficas para
caucionar os modelos que ela justifica 15).
Concepção que acusa o caráter deliberadamente artificial (não natural,
ou não independente, do modelizador) da complexidade: nós só podemos
defini-la como a propriedade de uma representação elaborada por uma
ação cognitiva. Ela é, pois, necessariametne dependente, a priori, desse
modo de construção da representação, processo cognitivo por excelência.
Representação que é ela própria uma ação, ação de representação do
nome - totalmente - previsível, ação fundadora, talvez, da complexidade
dos modelos: o processo pelo qual a complexidade é reconhecida.

Da inteligência
Se a complexidade é o produto de um exercício cognitivo (pro­
duzir o inteligível), o reconhecimento desse exercício nos diz respeito
imediatamente: o produto é muito dependente de um produtor para
que nós possamos disjuntá-los por muito tempo. A inteligência, aqui,
torna-se nossa questão, na sua compreensão mais ampla, e sem dúvida
a mais usual. A ação de se compreender mutuamente e o resultado
dessa ação, asseguram os dicionários, sugerem o caráter freqüente­
mente recursivo dessa ação. A ação de compreender-se a si mesmo (de
refletir, portanto!) e, por conseqüência, a ação de representar uma
situação, a ação de conhecer, a ação de ajustar essa representação, é um

14. A inibição - até mesmo a ameaça - suscitada por essas referências à linguagem da física é desta­
cada pelo economista Henri Guitton num importante ensaio: De l'imperfection en économie /Calmann­
Lévy, Paris, 1979), que poderíamos entender como um "Elogio da complexidade".
15. Desenvolvi esse argumento no artigo "Systémique et epistémologie", que retoma La notion de ,y,­
teme darZJ /e, ,cienm contemporaine, (t. II), sob a direção de J. lesourne, Édition de la librairie de 11.Jru­
versité, Aix-en-Provence, 1982. Ver também "Une axiomatique: les regles du jeu de la modélisation
systémique", no riúmero especial TMorie de, ,y,temu et théorie du jeux de "Economie et Sociétés",
Cahim de l'ISMEA, série EM, nº 6, t. XIV, n� 10, outubro de 1980, pp. 1157-1178.

222
A inteligência da complexidade

conhecimento permanente que se dá através dos processos que o sus­


tentam, desde Piaget, para "a forma mais geral da coordenação das
ações ou das operações".
Essa capacidade (ação e resultado) de representar uma situação e de
elaborar os programas de ajustamento (hipóteses e estratégias), entre as
quais as escolhas serão possíveis, define de maneira suficientemente sus­
tentável os processos cognitivos que designam de maneira geral a
inteligência de um sistema. Edgar Morin, definindo as funções a serem
asseguradas por um aparelho neurocerebral que seja capaz de exercer
inteligência o suficiente para permitir uma liberdade efetiva de um sis­
tema, relembra que ele deve ser "capaz de representar uma situação, de
elaborar a hipótese e de elaborar as estratégias; enfim, é preciso que aí
exista a possibilidade de escolha..." 16
"Representar, elaborar ou conceber, escolher ou selecionar..."
Encontramos sem surpresa as três funções fundamentais de um sistema
de decisão inteligente, que já era lembrado por H. A. Simon no seu
ensaio de 1960 17, funções cuja conjunção vai fundar a teoria da
Inteligência Artificial.
Essa definição funcional - ou psicológica - permitiu a construção do
paradigma chamado de Inteligência Artificial ou dos Sistemas de Trata­
mento da Informação (STI). Ela é, com efeito, independente dos supor­
tes neurológicos pelos quais éramos anteriormente e freqüentemente
tentados a descrever ou a definir a inteligência. Ao contrário, ela se
presta livremente a uma modelização funcional e genética dos processos
cognitivos pelos quais interpretamos livremente os comportamentos
humanos, e àquela dos processos "computiques" 18 pelos quais interpretamos
os comportamentos de sistemas artificiais, como os computadores.
Interessa-nos aqui destacar que ela não postula nenhum determinismo
a priori, no exercício da inteligência (ou os processos cog'oitivos chamados

16. Ciência com consciência, 1996, Bertrand Brasil.


17. The new .rciena of management decision (cf. pp. 40-44 da edição revista, 1977, Prentice Hall).
18. Comp11tiq11e et prowsw comp11tiq11e: a confusão suscitada pelo neologismo francês lnfonnatique con­
cebida para designar simultaneamente e uniformizando-os, pelo menos três conceitos que a língua
inglesa designa: "compnter science", "ddtd processing" e "infonnati on processing" 1 nos incita a propor ares­
tauração do neologismo "co111p11tique" (a ciência comp1ttiq11e, os processos comp11tiq11es) derivado da com­
putação: o sistema das ações pelas quais são manipulados os símbolos físicos ou o cálculo entendido
por rodos os tipos concebíveis de símbolos e não mais restriro somente aos símbolos numéricos.

223
Jean-Louis Le Moigne

de "inteligentes"). Ela permite sua descrição e, em particular, a descrição da


liberdade - ou da autonomia - do seu comportamento: esses podem ser
imprevisíveis, mas eles são descritíveis e portanto, a priori, inteligíveis.
Essa concepção geral da inteligência se confirma desse modo com­
patível - em termo instrumental - com a concepção geral da Com­
plexidade que acabamos de citar anteriormente: os procedimentos de
representação de uma situação potencialmente invisível e imprevisível
devem, elas próprias, não serem determinadas (visível ou previsivel­
mente), a fim de poder, a cada instante do processo de modelização,
adaptar-se a qualquer ocorrência não prevista, eu não programada ini­
cialmente. O programa da escritura dos modelos é um programa
capaz de se reprogramar a si próprio, devido a resultados anteriores de
sua execução e da sua capacidade de reconhecer as formas das singu­
laridades - ou das "diferenças", dirá G. Bateson - que essa execução
pode revelar.
Desse modo, ele pode construir novas representações, emergentes,
que se traçam, por sua vez, no sistema de imagens 19 pelo qual se reco­
nhece a complexidade da situação modelizada. Essa função de adapta­
ção que as ciências da cognição - "ciências dos sistemas inteligentes",
dirá H. A. Simon 20 - desejariam privilegiar para dar conta dos processos
de computação e de cognição será igualmente entendida como uma
função de equilíbrio* nos referenciais da psicologia cognitiva e genética 21.
O encontro das duas escolas que contribuíram mais acentuadamente
para a nossa inteligência da inteligência aceita em sua complexidade a

19. K. Boulding, The image, The University of Michigan Press, 1956. Teremos ocasião de evocar
novamente essa obra pioneira quando abordarmos o conceito do "nível de complexidade".
20. 1-I. A. Simon, "Cognitive science, the newest of the artificial", Cognitive Science, vol. 4, 1980, pp.
33-46. O argumento central de Simon é o da definição da inteligência de um sistema por sua adap­
tabilidade, sua capacidade de decidir (de computar, portanto) sobre seus próximos comportamentos:
nesse sentido, "a ciência da cognição", conclui, Simon, "é uma ciência do artificial". Tomemos a defini­
ção de inteligência que o dicionário inglªs Webscer dá: "The power o/ ,neeting any sit11ation, especially a
novel sit11atio11, s11ccessfully by proper behavior adjmtewent" (1956).
21. Jean Piagec, "L equilibration des stmctures cognitives, PUF, Paris, 1975. A noção englobante de "iqui­
libration", introduzida, desenvolvida por J. Piaget, permite gue nos informemos da vasta classe de pro­
cessos de desenvolvimento, sem a restrição da concepção um pouco estatística de adaptação.
* "Éguilibration": colocar em ação os diferences meios empregados pelo organismo para manter o
equilíbrio, conforme Le Petit Robert 1 - Dictionnaire, 1991. (N. da T.)

224
A inteligência da complexidade

da Inteligência Artificial e das ciências da cognição (em tomo das obras


fundadoras de H. A. Simon e A. Newell) e a da epistemologia genética
(ou construtivista), e da psicologia cognitiva (em romo da obra funda­
dora de J. Piaget), é suficientemente reconhecido hoje, para que possa­
mos apresentar na mesma problemática a Inteligência-Adaptação e a
Inteligência-Equilíbrio, a primeira privilegiando a modelização sincró­
nica e a segunda, a modelização diacrónica. Desde o célebre "Eu sou
suíço", com o qual H. A. Simon tomou partido "ao lado do professor
Piaget", essa convergência parece definitivamente adquirida. Não me
parece que Piaget tenha percebido imediatamente a importância dessa
convergência, mas consideraremos significativa a importância que sua
"escola" concorde com ele hoje em dia 22.
Uma e outra foram progressivamente formuladas como reação con­
tra o axioma terrivelmente simplificador da constância do meio interior
ou (mais geralmente) contra a existência de um estado estável único ou
privilegiado, próprio a qualquer fenómeno suscetível de ser modelizado
e, portanto, a qualquer inteligência modelizadora. "Tempo virá", escre­
via o dr. R. Dubos, pouco antes de sua morte, "em que nos daremos
conta de que a teoria... da firmeza do meio interior, tal qual foi descri­
ta e concebida por Claude Bernard... não é mais válida. Penso que essa
reversibilidade, esses estados de equilíbrio aos quais o corpo e o espíriro
retomam após terem sido transformados... isso não se produz jamais,
rigorosamente jamais. Acredito que 23 cada vez que nós 'consertamos' o
indivíduo não será jamais o mesmo de antes. Se bem que para mim a
medicina de Claude Bernard é o equivalente da física newtoniana, e que
nós assistimos ao seu fim. Os cientistas vão se dar conta de que tudo se
transforma... " Num contexro aparentemente diferente, o mesmo argu­
men_to é retomado por H. von Foerster, em termos que desejamos
relembrar aqui porque eles esclarecem certos argumentos sobre a com­
putação. "Embora esse computador (computer) tenha computado, esse

22. Como testemunha o importante fascículo dos Cahiers de la Fondation Archives jean Piaget (Genebra,
junho de 1982, n� 2-3) que apresenta notadamente alguns estudos pertinentes à nossa discussão,
graças a H. A. Simon, H. von Foerster, A. Sloman, L. Apostei, M. A. Boden e G. Henriques (esta
última se intitulando precisamente: "La modélisarion des systemes cognitifs").
23. Em Co-Evol11tion (Paris, n° 6, pp. 28-32, outono, 1981. "II va falloir échapper à Claude Bernard".

225
-
Jean-Louis Le Moigne

computador mudou; é essa a noção de uma "machine de Turing"; é a


noção de uma máquina não trivial, é a noção de um autômato geral" 24.
Adaptação e equilibração prestam-se, a priori, igualmente ao jogo
da modelização da complexidade, a qual se funda, precisamente,
sobre sua irredutibilidade a uma única forma, estável, invariante e
previsível. Adaptação e equilibração não implicam Representação da
Situação, Concepção - Elaboração de hipóteses e de Estratégias,
Escolhas, enfim, os projetos de ação, finalidades de referência e de
modos de seleção - condensação das representações 25; em outr�s
palavras, as grandes funções pelas quais identificamos o Paradigma
STI: uma matriz de definições - interpretações de Inteligência - e,
portanto, da Complexidade - pelas quais propomo-nos compreender
a Inteligência da Complexidade e reconhecer a Complexidade da
Inteligência.
Definições - interpretações exclusivamente funcionais - e geno­
funcionais - podemos dizer acionais? - desses dois conceicos: elas
não nos dizem de que eles são feitos, mas aquilo que eles fazem e
aquilo que eles poderiam fazer. Nenhum órgão essencial, nenhum
axioma de existência ontológica: os conceicos descritivos, que per­
mitem conceber as funções - à maneira do fisiologista ou do gene­
ticista, e de modo algum os órgãos, ou os objetos, que deveriam
usualmente procurar e reconhecer o anatomista ou o analista. Assu­
mindo a Inteligência complexa, já que não é totalmente previsível
ou antecipável, ainda que inteligível nas suas manifestações, podemos
agora propor a enriquecer nossa inteligência funcional de inteligência
"funcionante e evoluinte" (ou se adapta e se equilibra). O exercício
nos indicará também algumas pistas pelas quais caracterizamos essa
consciência na ação e que são aquelas pelas quais procuramos reco­
nhecer a Complexidade.

24. "A construccivisc epistemology", em Cahiers de la Fondation Archives Jean Piaget, n� 2-3, Gene­
bra, l982, p. 205.
25. H. A. Simon, cap. II, Reason in hm11an affairs, Scanford Universicy Press, 1983.

226
A inteligência da complexidade

5.2. O exercício da inteligência: a organização

"No princípio era a ação"26


O mérodo evolutivo implícito mas espontâneo, ao qual nos referimos
quando definimos a Inteligência - ou a Complexidade - não por aquilo que
ela é ou deveria ser (uma definição ontológica), mas por aquilo que ela faz
ou se torna, ou poderia fazer ou se rornar, deve agora ser explicitado. Essa
passagem do orgânico e do analítico ao genofuncional e ao sistêmico deve
ser desdobrada, já que é sobre essa revolução paradigmática que vão se legi­
timar os enunciados constitutivos de uma teoria científica instrumental da
complexidade e da modelização inteligente dos fenômenos reconhecidos
como complexos. Nem elementos elementares, nem conjuntos, nem espaços,
nem números em si, nem causas, nem... Só existem operações - ou seja, os atos 27. Esse
postulado implícito de uma equivalência entre a Substância invariante e a
Forma em movimento permite modificar o quadro de referência que é
interpretado pela inteligência em ação: não se trata mais de tentar enumerar
exaustivamente os estados, presumidos como invariantes e talvez inumerá­
veis pelos quais o fenômeno modelizado é suscetível de transitar. Trata-se
de reconhecer os atos, as ações, os funcionamentos, os comportamentos -
pelos quais se manifestarão a atividade e a evolução desse fenômeno. Os
índices, que permitem o acesso aos enunciados dessas descrições, não serão
mais estabelecidos como referência aos substantivos (indicadores das subs­
tâncias a considerar - no sentido hegeliano do termo), mas como referência
aos verbos, indicadores das ações (processos, processadores, funcionamentos,
movimento, transformação, evolução).
Essa transformação do olhar do modelizador - que surgiu no mundo
moderno cóm Leonardo da Vinci fazendo de suas descrições anatômi­
cas os primeiros exercícios de interpretação fisiológica 28 dos sistemas

26. Retomo de bom grado aqui o exergo goethiano (Famto 1., o gabinete de estudo) que E. Morin colo­
ca no começo da segunda parte do Método, t. 1: "A organização".
27. Paul Valéry, in Cahien 1919, Éd. Pléiade, t. 1, p. 562.
28. "Ele não escudava mais a anatomia, mas a fisiologia", sublinhava O. Spengler em 1917. "Leonardo
descobriu a circulação do sangue. Nem Michelangelo, nem Rafael não teriam chegado aí, porque a
anatomia dos pintores só considerava a forma ou a posição, não a função das partes ... " (Anotado na
"La galerie de la Pléiade", consagrada à obra pintada por Leonardo da Vinci, NRF, 1950, p. 166).
Paul Valéry recordava com muito gosto o mesmo argumento: "Meu pensamento recorda sempre
Leonardo - um desses homens para quem a vida não é coisa passiva, mas ato ... Desenhar, depois da
função de desenhar: compreender" (Cahim, Éd. Pléiade, t. 1, p. 1463. Nota de 1943).

227
Jean-Louis Le Moigne

complexos - fornece as razões da inteligibilidade dos conceitos da


Inteligência e da Complexidade que foram reconhecidas anteriormente.
A célebre metáfora do itinerário da formiga (anatômica e aparente­
mente muito "complexa" e pouco inteligível como um movimento
browniano, para um observador-analista não advertido) basta aqui para
evocar esse argumento, de uma efetiva simplicidade, ainda que de
modo algum simplificador. A combinação de algumas ações mutua­
mente ordenadas ou articuladas dão conta inteligivelmente desse iti­
nerário e, portanto, desse comportamento tido como complexo: atingir
um objetivo - aqui o buraco onde será estocado o grão -, contornar os
obstáculos intransponíveis, escalar obliquamente as rampas abruptas,
etc. Em poucas palavras, desde quando nós conhecemos o local do
buraco (o projeto da formiga) e a representação auto-referente da
situação (o contexto da ação; uma areia grossa, pedregosa, modelada
pelo vento e juncada pelos galhos - imagens que o sistema formiga
presumiu perceber!), podemos propor um modelo reproduzível, inte­
ligível e mesmo programado desse itinerário 29. Modelo suscetível de
ser, por sua vez, simulado e com a ajuda do qual poderão ser gerados
outros modelos simuladores que permitam antecipar de maneira bas­
tante inteligível os itinerários possíveis e plausíveis para todo o sistema
finalizado, equivalente a outros nos mesmos termos.
Nenhuma mutilação, pois, da complexidade desse meio ambiente
descoberto, ou da complexidade desse sistema presumido, suficiente­
mente inteligente para evitar qualquer comportamento duravelmente
errático; mas um outro olhar, um outro modo de representação, que
privilegia o ato e não mais o ser, o movimento e não mais a substância
imóvel. Essa outra representação (que poderia ser, sugere não sem

29. H. A. Simon apresenta e inrerprera essa metáfora do itinerário da formiga na introdução do capítulo
sobre "a psicologia do pensamento", La science des systemes, Jcience d, lartifiâ,l (1969/1997, tradução francesa
de 1991, Écl. Dunod). Ele conclui sua interpreração para uma fórmula que condensa talvez o essencial do
argumento modelizador que queremos aqui desenvolver e que reproduzo de propósito, porque ela foi muito
freqüencemente mal traduzida pelos intérpretes mal-intencionados ou desatentos, sobre a diferença entre
wn modelo funcional (ou "behaviorista") e um modelo orgânico ou anatômico. "A formiga considerada
como um sistema animado (behaving symm) é um ser relativamente simples. A aparente complexidade das
evoluções de seu comportamento é, em grande parre, o reflexo da complexidade do meio ambiente no qual
ela se encontra." O resto do capítulo consistirá em "explorar essa hipórese, substituindo a palavra 'formiga'
pela palavra 'homem'", assegura H. A. Simon.

228
A inteligência da complexidade

humor H. A. Simon, aquela da caminhada do_ pensamento no espírito


de um estudante que tenta demonstrar um teorema de geometria!), será
ela simplificada ou simplificadora? Em que ela o seria 1 Ela não oculta
nada da imprevisibilidade essencial do fenômeno, ela respeita sua com­
plexidade descoberta; ela propõe uma representação inteligível de um
fenômeno, itinerário de uma formiga aqui, exercício de uma inteligência
no campo de um problema.

Da inteligência do movimento
à inteligência da ação
Essa concepção da percepção e da ação de perceber e de modelizar
os fenômenos complexos, e a da Inteligência tentando apreendê-los
através da sua "Ação", e não através do seu "Estado", suscita necessaria­
mente um empreendimento da inteligência da ação.
Paul Valéry já destacava essa indivisibilidade do ato de criar e o
conhecimento compreensível quando ele interrogava o método modeli­
zador de Leonardo da Vinci. "Criar, construir, era para ele indivisível de
conhecer e de compreender" 30.
Ninguém sintetizou melhor essa inteligência da ação, entendida como
o conceito central da modelização sistémica da complexidade, do que
Edgar Morin desde o primeiro tomo de O Método. Hoje, podemos interpre­
tar essa síntese em termos instrumentais, tomando-lhe emprestado alguns
conceitos-chave de toda representação não mutilante da Complexidade,
vivificando-as por aqueles que nos propõem J. Piaget e H. A. Simon.
Uma reflexão de A. Lichnerowicz, meditando sobre a obra cientí­
fica de Paul Valéry, pode aqui esclarecer o nosso projeto. O principal
obstáculo ao progresso da Ciência solidamente baseada na obra da
Grécia antiga foi, segundo ele, "ao longo dos séculos, a inteligência
do movimento e da elaboração dos instrumentos necessários a forne­
cer uma representação fiel" 3 L. Era preciso que fossem elaborados os
conceitos de força, de inércia, de aceleração, a diferenciação da cine­
mática e da dinâmica, a formalização do cálculo diferencial, entre

30. Prefácio de Paul Valéry para a edição francesa dos CametJ de Léonard de Vinci, NRF, Paris, l 942.
31. A. Lichnerowicz em Fonctions de /'eJprit, treize JttvttntJ redlcouvrent Paul Valéry, l983, p. 2l4. Cf. supra.

229
Jean-Louis Le Moigne

Galileu e Newton, para que o movimento nos tornasse inteligível,


não explicável, mas compreensível, e por vezes previsível e controlável.
O jogo, hoje em dia, pode apresentar-se em termos equivalentes? Nós
temos necessidade dos instrumentos que nos permitam elaborar uma
inteligência das formas em movimento, uma representação da Ação
que descobrimos através da sua complexidade, corno era entendido
como complexo o Movimento por Aristóteles ... e a Forma (ou Estado)
por Heráclito. O que podem ser esses novos instrumentos de repre­
sentação, ferramentas de uma nova inteligibilidade, de novos modos
de raciocínio? 32 A esperança que se colocava há alguns decênios nos
caminhos da modelização conjunta ou burbaquista, assim como nos
caminhos da modelização estruturalista, parece se definhar hoje em
dia, enquanto são reveladas as contingências de suas referências epis­
temológicas. Ao mesmo tempo, a conjunção dos esforços dos pesqui­
sadores na ciência da vida (A. Bogdanov, P. Weiss, L. von Bertalanffy,
J. Piaget) e nas ciências da engenharia (N. Wiener, C. Shannon, H. A.
Simon) vai, em alguns anos, conduzir a uma conceitualização instru­
mental da Ação, articulando-se em torno da noção central de Orga­
nização e mais especificamente ga Organização-Método: a Organização
entendida corno o conceito metosdológico fundamental de toda a modeli­
zação das ações (e portanto dorlenôrnenos discernidos como ativos pelo
seu comportamento e pela sua evolução, observados e rebatidos).
Podemos recapitular aqui sucintamente algumas características
instrumentais essenciais do conceito matricial - ou genérico - pelo
qual Edgar Morin propõe descrever e interpretar aquilo que ele cha­
mará de Hipercomplexidade, que requer, afirma ele, "a Inteligência,
ainda a Inteligência, sempre a Inteligência" 33. Não é o cerne da
nossa proposta?

32. O título adotado por R. Mattesich, para sua obra epistemológica que apresenta alguns dos fun­
damentos da modelização sistêmica, me parece muito significativo dessa "nova inteligibilidade",
desses "novos modos de raciocínio": "imtmmemal reaJoning and J)Jltm.J methodology" (D. Reide!, 1978).
La mod{/isation systé111iq11e se vmt "raiJonnemmt imtmmental". Poderemos igualmente nos referir à
primeira das célebres "theses bietm" de Stafford Beec em "Platform for change" (J. Wiley & Sons, Nova
York, 1975). "A complexidade é a própria substância do mundo organizador contemporâneo. A fer­
ramenta para manejar a complexidade é a ORGANIZAÇÃO" (p. 15).

33. E. Morin, O Método, t. 2, Europa-América, Lisboa

230
A inteligência da complexidade

A Organização-Método: as grandes conjunções


A concepção de um universo constituído de estados, de formas
invariantes, percebidos tão complexamente, incitava o modelizador a
fazer da separação, da disjunção, da análise o instrumento privilegiado
de sua ação de representação para a inteligibilidade. O bisturi ou o
microscópio são as metáforas mais familiares da instrumentalização
modelizadora: modelizar aqui é primeiramente traçar uma distinção 34
entre os estados ou as formas, desde então considerados como diferen­
tes. Creio ter sido A. Bogdanov o primeiro, e durante muito tempo o
único no mundo científico contemporâneo, a ter a forte intuição da
necessidade de uma alteração da perspectiva. Se o importante não é
mais a identificação seletiva dos estados ou das formas, mas o (re)conhe­
cimento das ações, o ato modelizador fundador de toda a descrição não
seria talvez a disjunção, mas a conjunção: "Constatou-se depois de
muito tempo que a atividade humana, tanto prática como cognitiva, é
juntar e separar... mas esses dois atos não desempenham o mesmo papel
na atividade humana: um dos dois é primário; o outro, derivado ... O ato...,"
de juntar é a base da formulação... que or sua vez é a juoção_decom�
plexos. Nós o_chfilnaremos de-cofijun.ç�5. é
-É surpreendente que esse axioma tenha conduzido A. Bogdanov a
identificar (ao mesmo tempo parece que P. Valéry, nos seus Cahiers, tão
desconhecido por seus contemporâneos) o conceito central de Organização
: aquele conexo do Sistema. Sabemos que ele falava mais naturalmente de

34. "Draw " dútinction." Essa injunção simbólica, freqüentemente citada, deve-se ao lógico G.
Spencer-Brown ("Laws of form", 196911994,. Cognizer Co., p. 3), que ia assim, paradoxalmente,
introduzir" conjunção no centro do ato modelizador, propondo um operador de distinção. Com efei­
to, F. Varela vai remarcar, na sua exposição sobre um formalismo de auto-referência que este opera­
dor é ao mmno tempo (ou conjunção de) uma operação (no ato de distinguir) e um valor (o conteúdo
dessa distinção! (Principies of biological a11tonomy, 1979, North Holland, p. 111).
35. A. Bogdanov, EJ1ays in tektology (tradução inglesa de C. Gorelik), Incersystems Publication, Sea­
side, Califórnia, 1980. O texto original em russo foi publicado por volta de 1921, recomando o essen­
cial de seu Trdité de tectologie (três volumes, 1913, 1917, 1920); durante muito tempo banida da União
Soviética, a obra de A. Bogdanov foi redescoberta na América do Norte em 1975 graças ao seu tradu­
tor R. Mattesich e M. Zeleny em particular, e na URSS por uma equipe de teóricos do sistêmico: I.
Blaouberg e V. Sadovsky, Systems theory, philosophical and methodological problems. Tradução inglesa,
1977, Progress Publisherss, Mascou. A citação mencionada no texto aparece nas páginas 63-64 da tra­
dução de C. Gorelik. Leremos mais adiante (p. 65), por exemplo: "Na base do mecanismo de modeli­
zação sistêmica (tecnológica, na formulação de Bogdanov), existe a conjunção dos complexos".

231
Jean-Louis Le Moigne

complexo do que de sistema, o que não seria hoje em dia surpreendente,


mas, por volta de 1910, revelava uma excepcional acuidade de discer­
nimento metodológico.
Esse reconhecimento do papel da conjunção na empreitada da modeli­
zação vai suscitar muitas questões propriamente instrumentais que ainda
não receberam respostas satisfatórias. Trata-se essencialmente daquelas tão
freqüentemente ocultadas desde A ciência da lógica de Hegel 36, que trata
da formalização das lógicas que desenvolvem um axioma da inclusão ou da
recursão, não se restringindo, pois, aos axiomas da exclusão, com os quais
as lógicas formais não nos acostumaram, exclusivamente, há um século
(Boole, Fregge, Russell). Mais do que chegar passivamente à formalização
hipotética de algumas novas lógicas cuja economia manipuladora poderia
se comparar àquela das lógicas exclusivas -(as lógicas do "ou", ou da dis­
junção), podemos considerar a legitimidade cognitiva do ato de conjunção
na ação modelizadora espontânea e exercer essa ação de maneira auto­
referencial, observando coletivamente seu próprio funcionamento. O
que, no exercício da inteligibilidade da Complexidade pela Organiza­

Í
ção-Método, que aqui nos diz respeito, levou a alguns importantes
enunciados que lembramos, sem comentá-los, neste momento._

A organização, conjunção das ações


l!}.tcr;=ação, Transação� Retro-ação e Re-açã� se articulam em uma
ação inteligível em outro nível: a organização, rpais especificamente a
organização ativa, ou Organisaction, proporá Edgar Morin.
....----., O!l. t A....,.,-� )A--
A organização: conjunção de um observado
e de um observador
A representação de um fenômeno modelizado como e por um
sistema é necessariamente dependente do sistema observador que o
estabelece. A compreensão do sistema observado (a complexidade) é
da mesma natureza que aquela do sistema observador (a inteligência):
são um e outro organização37.

36. Ver especialmente a interpretação proposta por G. J arczyk no Sy,tême e/ /iberti dam la logiqtte de
Hegel, Aubier-Montaigne, Paris, 1980, pp. 149-164 em particular.
37. Ver nocadament H. von Foerster, Observing sysleim, Intersysterns Publicacion, 1981, e em particular
a introdução de F. Varela.

232
A inteligência da complexidade

A organização, conjunção da ordem


e da desordem
O reconhecido como complexo é aquilo que não é, a priori, redu­
tível a uma ordem (lei, estrutura, explicação).
A complexidade é a conjunção do ordenado previsível e do deso;: J)
denado não-previsível, de uma estrutura espacial instantânea, visível
e descritível, de programas de comportamento invisíveis e eventual­
mente não-predizíveis: é essa combinação que denominamos tam­
bém organização3B,

A organização, conjunção do autônomo


e do solidário
O sistema autônomo é aquele que se comporta referindo-se a seus
próprios projetos, fugindo, a priori, da ordem determinante que preten­
dia explicar. E ele é também aquele que depende de suas relações com
os ambientes, com os quais é solidário, ambientes talvez determinados.
Essa ação é a organização 39.

A organização, conjunção do articulado e do jogo


A ação implica qualquer forma de articulação inteligível. O exer­
cício da articulação implica qualquer forma de jogo (ou de intermediação),
de "liberdade de ação" (que simboliza a cartilagem, o lubrificante, o
intermédio, o armazenado, a memória ... ). A existência desse jogo pode
suscitar a ocorrência de comportamentos imprevisíveis e inteligíveis.
Essa conjunção do mecanismo algorítmico e da flexibilidade heurística
se entende por organização 40 _

38. Ver notadamente J. P. Dupuy, Ordre et déJordr,, enq11ête sur 1m no11vea11 paradigme (Édition du Seuil,
1982l e a primeira parte de E. Morin, O Método, t . 1, intitulado "A ordem, a desordem e a organização".
39. Ver notadarnente Y Barel, Le paradoxe et !e systeme, Presses Universitaires de Grenoble, 1979, e
E. Morin: "Podemos conceber uma ciência da ãutonomia?", em Ciência com comciência, Bertrand
Brasil, 1996.
40. Ver nocadarnente P. Vendryes, Vers la théorie de l'homme, PUF, Paris, 1973, em particular o capítu­
lo 3consagrado à "relation artiwlaire". Ver também M. Crozier e E. Friedberg, L 'acteur et !e systeme, Éd.
du Seuil, Paris, 1977, em particular o capítulo 3: "Le jeu comme instrumenc de l'action organisée".

233
Jean-Louis Le Moigne

A organização é teleológica, conjunção


de um projeto e de um contexto
A passagem da causalidade linear (trans-ação) para a causalidade
circular (retro-ação) modifica o axiomático da modelização. Não procu­
ramos mais uma causa explicativa do estado no ambiente. P rocuramos
a compreensão do comportamento com relação a qualquer projeto (cf. a
metáfora da formiga de H. A. Simon). A ação suscitada pelo caráter de 1
um projeto no meio ambiente torna-se teleológica, é organização 41 .

A organização, conjunção do organizado


e do organizador
Um siste_!!1_a Eepresentado "organizado" (o operante) é a ação e
como tal deve dispor de alguma capaciáade "organizadora" (o opera­
dor). Para poder ser "organizador", um sistema deve articular um certo
número de ações possíveis (com o "jogo") segundo o modo organizado.
"A organização", dirá P. Valéry em 1920, "a coisa organizada, o produ­
to dessa organização e o organizante são inseparáveis" 42. É essa insepa-_
rabilidade (freqüentemente insuportável até para os matemáticos 43)
que exprime precisamente o conúito de organização.

A organização, conjunção do sincrônico


e do diacrônico
Formulação pouco diferente da precedente quanto ao conteúdo,
mas que merece ser explicitada porque ela se desenvolveu numa cultura
e numa linguagem diferentes e sem dúvida mais familiares. Retomemos

41. A restauração da noção kantiana de teleologia (formação crítica de projetos) na condução da


modelização científica é, sem dúvida, atribuível a um artigo capital dos fundadores da cibernética:
"Behavior, purpose, and teleology" de A. Rosenblueth, N. Wiener eJ. Bigelow, em Philosophy o/Sci­
ence, vol. 10, 1943, pp. 18-24. A dialética do projeto e do meio concebida como um exercício de
modelização (design) é ilustrada por H. A. Simon em La science des systlmes, science de I artificiei; ver em
particular o capítulo sobre "a ciência da concepção".
42. Paul Valéry, Cahiers 1920, Édition Pléiade, t. 1, p. 562.
43. L Wittgenste.in, em Les remarq11e.r mr les fondements de.r mathé111atiq11es (1956, tradução francesa,
Gallimard, Paris, 1983), c;onfessa: " ... na matemática e na lógica, o processo e o resultado são equi­
valentes" (82, p. 64).

234
..
A inteligêncià da complexidade

J. Piaget: " ... O conceito de organização, noção central... ao mesmo


tempo sincrônico (a totalidade racional do organismo acabado) e diacrô­
nico (sucessão de reequilibração que caracteriza qualquer desenvolvi­
mento) 44. Idéia funda.mental, concluirá J. Piaget, a organização!

- /
, ,✓----- a��
/ A organização, conjunção da
tl/V'. tj-r.K�

1 informação e da ação

t D� mesmo modo �ue podema� interpretar a relação da matéria e


da energia como medrat1zada pela ª'iª0, podemos propor uma represen­
f tãção da relação da informação e da organização como mediatizada pela
\
1 ação. Daí ocorrer uma conjuntura fecunda: a matéria é para a energia
o·que a informação é para a organização 45_

'-......____A Organização-Método:
manter e reunir e produzir
As_con.junções-constitutivas que acabamos de_evocar .2_�ª­
mente, ao revelarem a pertinência do conceito de org�n�t..::­
gurara inteUgibili.9ade_do conceito de compJexo (_g�é�mente
percebido_12or _ess_as conjunções_habituaJf!!ente considf!ada�adoxais
o; contraditórias!), não fornecem diretamente uma definição op�racio­
�.tl da Organização-Mé!odo. Esta pode ser facil�ente inferido a partir
da experiência modelizadora da ciência dos sistemas; a representação de
um processo (de uma ação, portanto) pode ser feita num referencial uni­
versal familiar; para que exista conjunção de modificações potenciais no
Tempo e no Espaço, e na sua Forma, deste objeto (o referencial TEF) 4 6.
Edgar Morin, procurando agrupar algumas noções arquetípicas cuja

44 . Jean Piaget, Biologie et connaissance, Gallimard, Paris, 1967, p. 140.


4 5. A correspondência "Informação-Organização" é desde N. Wiener o coração da teoria da Orga­
nização ("a quantidade de informações num sistema é uma medida de seu grau de organização" -
Cybernetics, 1948, p.11) e desde H. von Foerster (1959) o coração da Te(}Yia da A11to-Organização.
Essa correspondência estará na origem da formação do "Paradigme lnforgethiqtte" que apresentamos
em "La modéliJation des ,y,temes complexes, Éd. Dunod, 1990/95, e na "Organisation Intelligente" (em
colaboração), Éd. Economica, 1996.
46. O referencial TEF (Tempo, EspafO e Forma) de modelização sistémica dos processos (ou das ações)
é apresentado em La théorie dtt systeme général, théorie de la modélúation, PUF, Paris, 1977, cap. 4.

235
Jean-Louis Le Moigne

conjunção constitui precisamente a definição de organização, encontra­


rá naturalmecne apoio nesse referencial, quando diz: A organização é a
ação �o resultado dessa ação) de, ao mesmo tempo�nter_, reunir e
produzir (ou Transforrnar)47.
Detinição "mínima", mas operacional, desde que prestemos atenção
para não separar a priori essas três ações arquetípicas cuja conjunção irá
constituir a Organização-Ação.
Definição, no entanto, insuficiente, como mostrará mais tarde E.
Morin, se ela ignorar o caráter potencialmente recursivo desse conceito.
Será preciso reconhecer a natureza auto-referencial dessa definição para
0<--0,W'VJ�
lhe conceder toda a sua força instrumental, o que conduzirá à sua espe-
cificação nesses termos perfeitamente manipuláveis: �� Organização é a/
.-1,1 �IJ;;rrJ,
ação de_, ao mesmo tempo, manter e S!:._manteE_, reunir e se reunir, pro- 1
<luzir e se produzir.
O reconhecimento da natureza auto-referencial desse instrumento vai,
contudo, nos obrigar a uma reflexão difícil ainda sobre a inteligibilidade
dessa auto-referência: qual é a capacidade de um sistema para se manter
a si próprio (e portanto se reconhecer, auto-regular-se, auto-equilibrar-se),
juntar-se a si próprio (e portanto auto-adaptar-se), autoproduzir-se
(auto-poiese), auto-organizar-se? Não é de admirar que essas interrogações
tenham de alguma maneira explodido na pesquisa científica contempo­
rânea depois que o conceito de organização começou a ser entendido,
depois do célebre ensaio de W Weaver (1947) sobre La science et la com­
plexité, uma complexidade que ele só entendia quando organizada... e
não ainda como organizante! A noç� �istema auto-organizante iria
aparecer pouco depois (J. von Neumann, 1956, H. von Foerster, 1959, R.
Asfiby, 1962 48). Mas foi preciso ainda quase vinte anos para que se
pudesse levar em conta a conjunção dos caracteres sincrônico (eco-orga­
nização) e diacrônico (re-organização) no seio do conceito de organização;
Edgar Morin proporá sintetizar a representação dessas conjunções
recursivas, constitutivas de Organização, por um paradigma que se
verifica como bastante operacional para a Inteligência modelizadora:

47. E. Morin. O Mitodo, t. 1, PEA, Portugal.


48. R. Ashby. "Principies of the self-organizi ng system (1962), in R. Conanr, Mechanism.r of intelli­
00

gence: RoJI Ashby turiting on cybernetia (Inrersysrems Publicacion, Seaside, Califórnia, 1981).

236
A inteligência da complexidade

A AUTO-ECO-RE-ORGANIZAÇÃ0 49, arquétipo e desse modo ponto de


referência das três funções constitutivas (manter a AUT0-nomia, pelas
ECO-relações e as RE-produções).
O aparelho conceitual construído em torno da idéia central de Orga­
nização-Método que acabamos de descrever sucintamente deve ser colo­
cado agora em ação por uma inteligência ativa, propondo-se modelizar
os fenómenos reconhecidos como complexos.

5.3. Complexidade artificial e jogos de inteligência


A represe�tação da complexidade por uma inteligência que reconhece
a si própria como complexa (primeira parte) é concebível como referên­
cia à modelização da organização, conceito cuja complexidade aparente
não dissimula a inteligibilidade, visto que se demonstra eçonomica­
mente descritível, pelo menos no seio do Paradigma Sistêmico5°
(segunda parte). O processo pelo qual uma inteligência (ou, mais geral­
mente, um sistema inteligente) pode elaborar os modelos operacionais
de um fenómeno considerado éomplexo, não somente como, mas tam­
bém por sua organização, pode agora ser descrito em linhas gerais: é
preciso introduzir os conceitos derivados de códigos e de esquemas, de
símbolos e de informação, de computação e de programação, de memo­
rização e de traços, de desenho e de cognição.

A codificação da complexidade
É preciso, entre outras circunstâncias, agrupar e interpretar os
numerosos trabalhos que postulam uma certa realidade da complexi­
dade. Propusemos algumas teorias da medida e da complexidade,
substitutos pragmáticos de uma eventual teoria da complexidade,
muito retórica talvez. Eles têm, na nossa opinião, o mérito precioso de
propor alguns modelos possíveis de organização da complexidade e nos
servem também de heurísticas bem-vindas para guiar o nosso traba­
lho. Inúmeros dentre eles se referem, sabemos, à teoria da informação

49. E. Morin. O Método, e. 2, PEA, Portugal.


50. O Paradigma Sistêmico (herdeiro da invenção da retórica), apresentado nos seus contrastes fun­
damentais com relação ao Paradigma Analítico (herdeiro dos preceitos cartesianos), é apresentado de
maneira sintética no capítulo 2 de L, théorie d11 systeme général, théorie de la modélisation, PUF, Paris,
1977, 4• ed., 1994, e no artigo "Systémigue et Epistémologie".

237

--------
Jean-Louis Le Moigne

(C. Shannon) e à cibernética (N. Wiener), referência explicitamente


sugerida pelos pais das duas únicas "teorias formalizadas da comunica­
ção" das quais dispomos ainda hoje. 1 Sedutoras, a priori, na medida em
que elas implicam uma dependência que disjunta o modelizador (o
resultado da medida não deve depender do observador), esses modelos
negligenciam uma das características fundamentais da complexidade,
sublinhada por H. A. Simon: a representação - e portanto a eventual
medida - da complexidade de um sistema (ou de uma mensagem) é
inteiramente baseada num esquema de codificação ("the encoding sche­
me"). O código muda e o modelo mudará e por conseguinte o valor da
medida 51 . Se a escolha do código pertence ao modelizador, não pode­
mos, portanto, pretender a objetividade da medida. Em contrapartida,
somos convidados a prestar atenção àquilo que deve ser o primeiro
passo da elaboração do modelo inteligível de um fenômeno complexo:
o processo pelo qual são criados ou selecionados os códigos que vamos
utilizar. A elipse, o elétron ou a função da onda não são conceitos
inventados pela inteligência humana para representar inteligivelmente
os fenômenos inicialmente distinguidos como complexos?, pergunta
judiciosamente J. Pearl 52_
O problema da complexidade torna-se desse modo o problema da
inteligência, que J. Piaget sublinhava, e ele se encontra até antes da
construção de esquemas de assimilação mental. Construção que é ao
mesmo tempo indefinida e solidária "de uma organização interna...
refletindo antes de tudo as propriedades das coordenações das ações" 53.
É portanto esse processo de produção e de reconhecimento dos sím­
bolos, ou dos códigos, ou dos patterns, ou dos signos e das combinações
dos signos, que se verifica na base do processo de modelização da com­
plexidade por uma inteligência. Sobre esse processo de construção de
símbolos por uma organização inteligente, vai pouco a pouco se desen­
volver, a partir da noção piagetiana de esquema, e sobretudo a partir da
"hipótese do sistema de símbolo físico, capaz de uma ação inteligente

5 1. H. A. Simon, Complexity and the repmenJation o/patterned seq11encu o/ symboú (1972), retomado em
ModtlJ of 1ho11gh1, Yale Universjry Press, 1 979, pp. 292-306.
52. J. Pearl, Complexity and credibifity o/ inftrtd modelJ, IJGS, 1978, vol. 4, pp. 255-264.
53. J. Piagec, Biologie et connaiuance, Gallimard, 1967, p.75.

238
A inteligência da complexidade

geral" de A. Newell e H. A. Simon 54, um corpo de pesquisas a ser reco­


nhecidas como decisivas, não somente para os desenvolvimentos da
Inteligência Artificial, em andamento, mas também para a instrumen­
talização da modelização da complexidade.

O código das ações: a computação


O axioma fundamental para alcançar a inteligibilidade da com­
plexidade, aquele do re-Conhecimento da Ação oferece-nos uma chave
bem-vinda: os esquemas, as estruturas simbólicas são atos que repre­
sentam os atos. O argumento é sem dúvida ainda surpreendente, pois
estamos acostumados a representar por símbolos os estados ou as situa­
ções: assim, usamos os números. Sabemos muito bem nos exprimir
através de símbolos os operadores ou as regras de operação e articular
de diferentes maneiras esses símbolos - atores para dar conta da fecun­
didade inesgotável dos esquemas lógico-matemáticos. H. von Foerster
mostrou, numa célebre homenagem a J. Piaget, que o ato de observar
era exprimível por um símbolo poderoso e manipulável, o da coorde­
nação recursiva dos observáveis:

Coordenação

t
Essa representação simbólica das ações, ainda que se trate das ações
observáveis representadas ou de representações simbólicas da manipu­
lação de símbolos, constitui uma função complexa e geral, a computação.
(É preferível não nos atermos à palavra "cálculo", freqüentemente uti­
lizada ainda em francês, para designar essa função - isso se deveria talvez
ao fato de que ela se restringe, na maioria das vezes, apenas à manipu­
lação dos símbolos numéricos).

54. A. Newell e H. A. Simon. "Computer science as empírica! inquiry: Symbols and search", in
Co,mmmication ofthe ACM, março de 1976, vol. 19, n2 3. O conceito geral de ação inteligente e o para­
digma do sistema de Tratamento da Informação foram desenvolvidos em várias etapas, em particular
por Simon: ver, por exemplo, na tradução francesa, o texto de uma conferência na Academia das Artes
e das Ciências dos Estados Unidos: "A unidade das artes e das ciências, a psicologia do pensamento e
a descoberta'", publicada no n� 15, janeiro de 1984, da revista AFCET-lnterfaceJ, Paris, PP· 3-16.

239
Jean-Louis Le Moigne

Sabemos hoje em dia construir essa função central da inteligência


modelizadora pela conjunção (ou organização ) de algumas ações cuida­
dosamente identificadas por H. A. Simon, notadamente no seio daquilo
que ele propôs chamar de "Paradigma do Sistema de Tratamento da
Informação", através do qual ele tenta representar a inteligência ativa
(ou artificial!). Criar os símbolos, reproduzi-los e destruí-los, lê-los e
escrevê-los, transformá-los, reuni-los e modificar as relações, armazená-los
(indexá-los) e alterá-los, transmiti-los, compará-los para dececção e
redução de uma diferença e atingi-los de acordo com o resultado da
comparação. Em poucas palavras (são eles que detalham as cinco opera­
ções de base de um "machine de Turing"55 ), só estamos surpresos pela
facilidade cognitiva, e pela simplicidade com que podemos descrever -
e reproduzir pela simulação - o comportamento e a transformação de
um sistema de computação, não importa tão complexo ele seja 56.
A codificação da computação é usualmente apresentada pelos pro­
gramas que simulam o comportamento de um sistema de estruturas
simbólicas, capaz de manipular os símbolos segundo as quinze ações
por nós mencionadas. Consideramos que tais programas reproduzem
artificialmente o comportamento e a transformação de um dado sistema
que sustentamos como legitimamente inteligente!

Da computação à cognição
É tentador generalizar o modelo de um sistema inteligente
capaz de manipular os símbolos físicos - manipulação simples ou com­
plicada, mas a priori reproduzível sob as condições clássicas de proto­
colos - para a representação de comportamentos possíveis e plausíveis
desse sistema original reconhecido como excepcionalmente complexo,
que entendemos como inteligência humana: um sistema cognitivo.
Uma tal generalização, embora conceitualmente inteligível, suscita
ainda algumas paixões curiosas numa comunidade científica que acre-

55. Sobre as cinco operações da máquina de Turing, ver, por exemplo, H. von Foersrer, Observing
systemJ, p. 208.
56. Edgar Morin: "Essa idéia de computação é a idéia capital que vai permitir compreender o cará­
ter logicamente original da Auto (Auto-Organização)"', em Ciência com co11sciê11cia", 1996, Bertrand
Brasil. Uma sólida apresentação dos modelos da computação - e portanto da cognição - é proposta
por H. A. Simon em "Information processing models of cognition··, Anntta! Review in Psychology,
1979, pp. 363-396.

240
A inteligência da complexidade

ditávamos estar mais acostumada a esses processos de elaboração de


hipóteses completas ou não, de corroboração pela observação. Para o
nosso objetivo, a objetividade dessa caminhada deve ser relembrada
pela evocação sucinta de um "teorema" de Von Foerster que fortalece
exatamente o argumento que eu desejava aqui ressaltar para esclare­
cer ... a Inteligência da Complexidade.
H. von Foerster propõe uma definição da cognição que ele justifica
satisfatoriamente:

Cognição-----"..
► computação da descrição de uma realidade

Essa realidade percebida, sendo ela própria o resultado de uma


representação simbólica (uma imagem), é oriunda de algum processo de
descrição. Podemos pois escrever:

Cognição --..:a..
► computação da descciç de ___..,►
t i

Uma descrição, por definição, é o resultado de um processo de com­


putação, o que se interpreta por esse "teorema" um pouco provocador:

Cognição ___..,_ compurnç de _----" .,►


t i

Não nos interessa aqui debater a legitimidade formal de um tal


"teorema" 57, mas chamar a atenção para a inteligibilidade metafórica
do ato de modelizar que ele nos propõe: não se trata de produzir estru­
turas simbólicas e de submetê-las a algumas computações identificá­
veis funcionalmente.

57. H. voo Foerster, em Observing systems: On comtmcting a reality (1973). Sugiro a denominação "teo­
rema de Von Foerster" para essa proposição que acredito ser de uma grande fecundidade potencial,
mas é preciso esclarecer que o autor não a qualifica com esse termo.

241
Jean-Louis Le Moigne

Sem precisar ressaltar as coerções que a neurobiologia, a biologia


genética, a sociobiologia, a psicologia social, a psicologia cognitiva e
tantas outras disciplinas vão sem dúvida acumular para definir organi­
camente a inteligência como um estado ou um resultado, dispomos de
um modelo de inteligência concebido como uma ação (a ação de mode­
lizar), que se reconhece ao mesmo tempo inteligível e manipulável: o
modelo de uma organização suscetível de se transformar... até mesmo
de se complexificar!

Inteligência cognitiva: registro *


e programação
As modalidades pelas quais um sistema inteligente elabora,
manipula e gera as representações das ações que ele percebe (ou sele­
ciona pela identificação de diferenças 59) podem ser representadas pelo
paradigma simoniano do Sistema do Tratamento de Informação - e,
portanto, por uma Organização no sentido em que foi introduzido no
capítulo 2, o da Organização-Método, conjunção da ação e de repre­
sentação da ação. Edgar Morin é sem dúvida o pesquisador que mos­
tra mais cuidadosamente a isoformia necessária dos dois paradigmas, o
do Sistema do Tratamento da Informação (que poderemos chamar de
Sistema de Construção dos Esquemas, se considerado pela óptica pia­
getiana), e o da Auto-Eco-Re-Organização. Ele denominou cuidadosa­
mente esse paradigma:

A Auto-Eco-Re-Organização-Computacional­
lnformacional e Comunicacional

introduzindo "a hipótese do computo", operador permanente da auto­


representação reflexiva 60 que ele define por suas funções nos termos
análogos àqueles sustentados por H. A. Simon para descrever as ações

59. Recordemos a definição fundamental de G. Bateson: "Dessa infinidade, selecionamos um número


muito limitado de diferenças que advém da informação - uma unidade elementar de informação - é
uma diferença que cria uma diferença" (Forme, 111bsta11ce e différence, 1970 - tradução francesa no
tomo 2 de Vers 11n, ecologie de l'esprit, Éd. du Seuil, 1972/1980, p. 210).
60. E. Morin, O Método, t. 2, PEA, Portugal.
* Em francês, engramme = traço, vestígio, regisrro. O texto original utiliza a palavra "engrammation;''
(N. da T)

242
A inteligência da complexidade

de um Sistema de Tratamento da Informação: unir, combinar, permu­


tar, reconhecer, etc. Essa definição permite, além do mais, ressaltar o
papel privilegiado de uma ação permanente de potencialização e de
atualização 61, de memorização. Algo que H. A. Simon apresenta usual­
mente de maneira mais orgânica pelas interações da memória a curto
prazo e da memória a longo prazo do Sistema de Tratamento da Infor­
mação. É essa função de memorização que nos propomos colocar em
evidência para enriquecer a inteligibilidade do processo modelizador da
computação-cognição.
A biologia, a neurofisiologia ou a psicologia cognitiva ainda nos
propõem somente hipóteses muito cautelosas sobre esses processos de
memorização: ("a memória, esse sujeito essencial sobre o qual nada foi
dito", já se interrogava P. Valéry em 1914). Mas, sem a hipótese da
memorização, nenhum sistema cognitivo inteligente seria inteligível; a
complexidade da inteligência ativa só nos é inteligível se representamos
essa inteligência dotada de algumas formas de memorização. H. A.
Simon dirá com lucidez: "A computação é inicialmente uma memó­
ria "62. Podemos, sem dúvida, representar essa função de memorização
pela conjunção de algumas ações de referências: construir os símbolos
(os esquemas ou os patterns), reuni-los, associá-los, lê-los, endereçá-los e
indexá-los, duplicá-los, escrevê-los, destruí-los ... todas as funções que
reconhecemos como pertencentes a um sistema inteligente 63.
Mas também somos inclinados a construir a hipótese de uma neces­
sária "mudança de nível interno": a memorização (potencialização-atua­
lização de símbolos) se estende como uma imagem construída por um
espelho do sistema de ação que ela memoriza em permanência mas que
ele não o reproduz. Essa memorização não é evidentemente fiel a priori,

61. A conjunção da potencialização e da atualização dos acontecimentos, atos que uma organização
processa, foi particularmente colocada em destaque por Y. Baruel em L, paradoxe el /e 1ysteme, Presse
Universitaire de Grenoble, 1979, e em La m a rgina/ité 1ocial, PUF, Paris.

62. H. A. Si_mon, The comp11t er iJ, fint o/ ali, a m,mory: "O computador é antes de cudo uma memória,
e só é uma calculadora por acréscimo". ln "Applying information rechnology to organization
design", em P11blú- Adminútration R eview, maio-junho de 1973, pp. 333-334.
63. Sobre as funções de um sistema de memorização, ver o último capítulo de Le1 procmm collectifi de
mémoriJati on: lvlém oire et orga nú ation, de D. Pascoe e J.-L. Le Moigne (ed.), Les Éditions de la Librairie
de L'Université, Aix-en-Provence, 1979.

243
Jean-Louis Le Moigne

não existe reprodução ou representação - o que existe é uma espécie de


transmissão temporal de um sinal com ruído, e nenhum metaobserva­
dor dispõe da capacidade de diferenciar o sinal de ruído! O sistema sabe
- esse reconhecimento é evidentemente capital - que as representações
de ações memorizadas pelos símbolos são carregadas de evocações de
ambigüidade 64 e que elas estão, talvez, expostas a algum processo de
desativação (envelhecimento) e reativação (juventude), processo que é,
muitas vezes, possível de ser modelizado de maneira hipotética.
Traços que se memorizam: a simplicidade - e talvez a ingenuidade -
do modelo de memorização permanente de um sistema inteligente pode
surpreender e até inquietar. Parece, no entanto, que não dispomos ainda
hoje de "teoria" mais sofisticada desse processo invisível e no entanto
indispensável à inteligibilidade da computação, da organização, da
inteligência da complexidade, e, portanto, esse será o cerne da nossa
tese. A produção permanente de memóriàs (traços de acontecimentos e
de atos) representadas pelos símbolos, esquemas e estruturas simbólicas,
ou shunks, potencializando-se (em um outro "nível", do outro lado de
um espelho metafórico), no seio do sistema, em condições identificáveis
e localmente modelizáveis: essa constitui a primeira hipótese que temos
a propor para guiar o modelizador e para interpretar seus modelos.
A segunda é muito mais familiar: o tratamento da informação - a
computação - é representado pelas operações de atualização dos registros,
potencializadas pelo sistema, operações que definimos correntemente como
relevante da programação: a ação de navegar num arquipélago de símbo­
los diversamente conectados, servindo-se de um pequeno número de
ações arquetípicas (comparar, ligar, etc.) e respeitando algumas "regras da
navegação" que propõem as lógicas colocadas em ação. A imagem, pro­
posta por H. A. Simon, é evocada precedentemente no itinerário que
representa a caminhada do espírito de um estudante que pesquisa a
demonstração de um teorema de geometria. Ela implica, certamente, a
não-redução da programação dos algoritmos, mas A. Newell e H. A.
Simon mostraram definitivamente o caráter fundamentalmente progra-

64. O modelo da transmissão da informação com ambigliidade e equivocação proposta pelo biólogo
H. Quastler a partir da teoria de C. Shannon aqui se confirma como pertinente: '"A primer on infor­
mation theory··, em Yockey Ed., lnfarmation theory in biology, 1956. Ver também The emergency o/ bio­
logica/ ordtr. Yale University Press, 1964.

244
A inteligência da complexidade

mável das heurísticas: os raciocm10s procedimentais são tão poderosa­


mente programáveis (conduzindo a ações) quanto os raciocínios decla­
rativos ou substantivos (conduzindo aos "estados").

Registro, programação em níveis múltiplos


A conceitualização do processo de registro de um sistema inteli­
gente necessita da hipótese do reconhecimento de uma mudança de
nível: a passagem do nível das operações de computação no nível das
representações dessas operações, a passagem do nível da atualização ao
da potencialização. Nada nos força a restringir essa diferenciação a dois
níveis, o das operações (que levam as representações) e o das represen­
tações das operações. Os níveis ajustados das representações das repre­
sentações das representações das ações, ou, para retomar os formalismos
de Piaget-Von F oerster, aqueles das coordenações das coordenações das
coordenações das observações, são todos, a priori, legitimamente candi­
datos. É a essa propriedade de encaixe dos níveis (que chamamos, desas­
tradamente, creio, de hierarquia) que atribuiremos, parece, uma das
chaves principais da inteligibilidade da Complexidade - e, portanto, da
Inteligência: a possibilidade de organizar (ou de desimbricar) a repre­
sentação de um sistema complexo em vários níveis de ação, segundo os
modos facilmente compreensíveis, desde então, que a articulação da
passagem de um nível a outro se exprime por uma função uniforme,
familiar. Agregar, dirá H. A. Simon; coordenar, dirá J. Piaget; distinguir,
dirão G. Spencer Brown ou F. Varela. A utilidade dessa propriedade, no
sentido valeriano do termo, aquele da comodidade ou da economia, é
muito certa para que a recusemos. Mas é talvez muito importante res­
saltar seu caráter legitimamente artificial, a p riori: o encaixe em níveis
funcionais múltiplos está à disposição do modelizador; não parece que
possamos argumentar pelo caráter consubstancialmente natura/ 65 dessa
propriedade, e, postulando-a, podemos incorrer na rotina epistemológica
do positivismo. Os critérios tidos por objetivos (independentes do

65 H. A. Simon sustentou o caráter "natural" dessa hierarquia: "A natureza está organizada em
níveis", in The org,m ization o/ complex systems (publicado em 197 3 e reeditado em Models o/ discovery,
D. Reide! Pub. Cy, 1977), mas aqui "hierarquia" significa simplesmente um jogo de "bonecas russas".
Hipótese plausível, mas talvez exclusivamente necessária?

245
Jean-Louis Le Moigne

observador), guiando a definição dos diversos níveis, são talvez depen­


dentes dos esquemas iniciais da representação, dos traços arbitrariamente
desenhados pela inteligência modelizadora (até o da estabilidade morfo­
lógica numa evolução morfogenética, tão freqüentemente sublinhada
por H. A. Simon): não é necessário reificá-los prematuramente.
Os níveis não estão talvez na natureza, mas no espírito dos homens, pode­
ríamos concluir, plagiando Claude Bernard. É, portanto, um modelo de
organização em níveis funcionais múltiplos que mereceriam quase ser
considerados naturais, na medida em que os desenvolvimentos da
embriologia nos últimos trinta anos tende a validá-lo experimental­
mente. A formulação epistemológica, a mais ambiciosa de que dispo­
mos, é sem dúvida a de K. Boulding, e poderíamos mostrar que o
desenvolvimento da Sistemática entendida como ciência da modelização
pelos sistemas repousa, para uma grande parte, sobre a sedutora inteli­
gibilidade desse paradigma. (Ele própriD rico de uma sólida tradição:
seu equivalente com o paradigma da complexidade crescente de P.
Teilhard de Chardin, notadamente, já foi ressaltado.)
A legitimação do modelo dos nove níveis de K. Boulding não .
deveria suscitar um problema epistemológico difícil (quanto à verdade
ou à naturalidade dessa filosofia), se ressaltamos que se trata de uma
articulação entre as funções: Fazer, Regular, Informar, Memorizar,
Decidir, Coordenar, Imaginar, Finalizar, e de modo nenhum entre os
órgãos, ou entre "as coisas"!

A modelização inteligível da complexidade


Reunimos alguns conceitos essenciais de uma instrumentação
modelizadora dos fenômenos complexos, não totalmente previsíveis e
portanto inteligíveis. Foi preciso que reconhecêssemos o caráter da
complexidade como instrumento modelizador, a inteligência capaz não
somente de cálculo, mas também de computação e de memorização por
registro, de criação. Foi preciso reconhecer a generalidade do conceito
de organização (Auto-Eco-Re-Organização, computacional, informa­
cional, comunicacional) e sua adequação à representação artificial desse
Sistema de Tratamento de Símbolos físicos que é um Sistema
Inteligente e, portanto, um Sistema Complexo.
Desse modo, estamos na altura de propor um modo de modelização
(mais do que um modelo) de um fenômeno reconhecido complexo, consi-

246
A inteligência da complexidade

derando-o a priori - a imagem da inteligência que o constrói - como uma


organização ativa, organizante [ou computante e sobretudo informante (ou
como registro)]. Um sistema complexo é inteligente a partir do reconhe­
cimento de sua (ou de suas) função(ões) de memorização-computação, que
não revelam tanto as determinações de seus comportamentos necessários,
mas sobretudo as condições de seus comportamentos possíveis e, portanto,
antecipáveis, no fio irreversível do tempo de sua ação e do registro.
Se for preciso concluir com uma receita simples, retenhamos aquele
que nos propõe a "Sistemografia" (representando o fenômeno conside­
rado "como e por um sistema geral" 66).
O estabelecimento de um modelo inteligível de um sistema consi­
derado complexo requer a caracterização da sua ação, o contexto no qual
o entendemos, a teleologia (os projetos modificadores) com relação aos
quais essa ação pode ser interpretada.
Em seguida, consideremos as modalidades plausíveis pelas quais ele
poderia registrar ou representar pelos sistemas de símbolos registráveis,
as representações que ele pode construir de sua atividade no seio de seu
sistema potencial de memorização.
Sobre a matriz desse modo concebida exerçamos algumas simulações
por computação, "jogando com esse modelo", ao sabor dos nossos pró­
prios projetos modelizadores, atendo-nos a descrever os comportamentos
e as transformações plausíveis e antecipáveis, exercício de inteligência
" explorando o campo dos possíveis", que não é tanto uma prescrição assegu­
rada da ação presumida como necessária.

66. Cf. La théorie dtt systet11e général, théorie de la t11odélisation, PUF, 4• ed., 1995, e La t11odélisation des
systhnes complexes, Éd. Dunod, 2" cd., 1994.

247
Conclusão
Da análise da complicação
à concepção da
complexidade
Jean-Louis Le Moigne

·-

1
A complexidade é ainda freqüentemente um conceito incon­
gruente no seio da pesquisa científica contemporânea que se oferece como
objeto: reduzi-la para persegui-la A confusão cartesiana entre a simpli­
cidade formal ou sintática e a clareza ou inteligibilidade semântica sus­
citou um tipo de empobrecimenteo da inteligência humana. G.
Bachelard falava da "degenerescência", destacando os "paradoxos episte­
mológicos" dessa inatenção: "O simples é sempre o simplificado ... mas
tão grande é a tentação da clareza rápida ..." que esquecemos "que não
existem fenômenos simples; o fenômeno é um tecido de relações. Não
há natureza simples, substâncias simples; a substância é uma contextu­
ra de atributos. Não existe idéia simples, porque uma idéia simples
deve estar inserida para ser compreendida num sistema complexo de
pensamentos e de experiências" 67.
Postulando o interesse científico intrínseco da complexidade e con­
tradizendo o caráter inutilmente complexificante das complexificações
presumidamente científicas, propomos "substituir a clareza em si, urna
espécie de clareza operatória" (G. Bachelard, 1934). Exercício que
requer uma ascese epistêmica permanente, exercendo-se na ação inten­
cional, seja ela de modelização ou de transformação. E. Morin nos con­
vidará a "uma ética da compreensão". Exercício que nos pede jamais
deixar de apoiar a argumentação epistêmica que legitima pragmatica­
mente a produção e o uso dos conhecimentos que se constroem na inte­
ração permanente da ação humana e da pesquisa. Procuramos chamar,
de maneira privilegiada, alguns grandes pioneiros que já desbravaram
o terreno no início deste século, referindo-se tão explicitamente quanto
possível aos fundamentos epistemológicos que eles próprios levanta­
ram, muitas vezes, em confronto com as epistemologias positivistas,
cujo peso sociocultural não deve ser ignorado se quisermos convencer e
servir. O leitor reconheceu o papel de primeiro plano que as contribui­
ções de J. Piaget, H. A. Simon e E. Morin desempenharam no nosso
trabalho, e reconheceu, sem dúvida, na retaguarda, as indubitáveis
influências Paul Valéry, A. Bogdanov, K. Boulding, I. Prigogine, H.
von Foerster e outros pioneiros. A conjunção dessas referências, mais do
que uma longa exposição, apresenta lealmente o quadro epistemológico

67. G. Bachelard, Le no11vel esprit scientifique, PUF, 1934.

251
Jean-Louis Le Moigne

construtivista, no seio do qual se constrói a nossa contribuição à "ciência


e à pratica da complexidade" 68.
Podemos no final desse exercício, reconsiderando a base epistemoló­
gica sobre a qual nos esforçamos por nos basear, interrogarmo-nos sobre
a relativa firmeza de seus componentes e tentar identificar as zonas no
seio das quais pareceria inútil , para progredirmos mais além com a
nossa inteligência da complexidade, injetar ainda um pouco mais de
concreto? Somos tentados a propor novas reflexões assegurando mais
especificamente os modos de representação dos fenômenos e dos projetos
concebidos. E. Morin identificará aqui o "Problema do Conceitu­
ador" 69 e a necessidade da Organização-Método. As ciências das quais
precisamos são as ciências da concepção ("the sciences of design"), portanto
ciências fundamentais da engenharia. A arquitetura nos relembrará:
"Uma obra responde sempre a vários fins e se apreende em vários níveis.
É possível assumir a complexidade e a contradição resultante desses
diversos fins, sem prejudicar a função de dotar uma obra de uma ambi­
güidade enriquecedora"70.
E nós nos inibimos cada vez que atendemos, por hábito, ao
chamado dos modos redutores da descrição analítica (a decomposição
das formas ou dos órgãos) que desenvolveram há três séculos as ciências
de análise, tão familiares nos dias de hoje. Conceber a complexidade,
e a Inteligência, pela conjunção de funções, por uma organização
organizada-organizadora, pela articulação de alguns jogos... o exercício
é asseguradamente artificial ainda, nós estamos pouco acostumados.
"As ciências da engenharia" reconhecem doravante a científicidade
das "ciências da cognição" 71_
Agora, é preciso que elas se apropriem também das novas "ciências
da complexidade", tirando partido de sua virtude modelizadora. Aju­
dando-nos a descrever intencionalmente os contextos nos quais possamos
intervir, elas nos serão de um grande auxílio se propuserem prescrever
soluções para os problemas que ainda não nos pusemos.

68. Universidade das Nações Unidas, Science et pratique da la complexité, atas do colóquio UNU de
Montpellier, 1984, Éd. La Documentacion française, Paris, 1986.
69. E. Morin. O Método, r. l.
70. R. Vencuti. De lámbig11ilé en architect11re, tradução francesa, Éd. Bordas, 1976.
71. H. A. Simon. "Cognicive science, the newesc science of artificial", in Cognitive Science, vol. 4, 1980.

252
A inteligência da complexidade

É preciso reconhecer que tanto a Complexidade, como a Inteligên­


cia, é suscetível de ser inteligível e praticável quando concordamos em
concebê-la evolutiva para suscitar, passo a passo, as ações e os possíveis
projetos. A Ciência da Complexidade é talvez a ciência da concepção
dos possíveis, e a inteligência, "a faculdade de pensar aquilo que pode­
ria ser tão bom", dizia R. Musil.
Assim, afirma-se o caráter necessariamente finalizador de todo
processo de modelização da complexidade e, portanto, de todo exer­
cício de concepção: modelizar o complexo não é tanto simplificá-lo
(analiticamente) como finalizá-lo (inteligivelmente). Esse exercício é
naturalmente recursivo: as finalidades que o modelizador atribui ao
fenômeno modelizado, ligando-se nas finalidades que o modelizador
se propõe a si próprio no seu exercício. Essa restauração "da teleolo­
gia, ciência crítica", nas nossas culturas científicas contemporâneas
será sem dúvida a contribuição mais fecunda da demonstração da
nossa inteligência da complexidade.
Dessa maneira, o caráter coletivo e pragmático da inteligência da
complexidade se assegura: só é inteligível aquilo que é praticamente
comunicável e, portanto, co-memoralizável num "tecido de relações...
o Complexus"... ciente de que não existe final para a adaptação, já que as
soluções conduzem sempre à ação e a novas dificuldades, a novos pro­
blemas. Edgar Morin nos incitará a essa inteligência da "ecologia da
ação coletiva", seguindo Montaigne, lembrando: "Eis-nos diante da
roda de fiar... "

253
Posfácio
"Trabalhar para
,,
pensar bem ...
Pragmática e ética
da compreensão
Jean-Louis Le Moigne
Qual será o próximo passo :> Meu próximo passo? O que fazer
aqui e agora? A ação que vamos empreender já está determinada, pro­
gramada, necessária porque foi imposta:> Ela já foi experimentada com
sucesso? Esse sucesso, o avaliamos com relação a quais fins? Esses fins
estão submetidos, predeterminados:> Ou podemos e queremos conceber
outros fins, inverter engenhosamente outras ações, outros meios? Em
seguida, passo a passo, escolhê-los, agir, fazer e conhecer tão freqüente­
mente o prazer de fazê-lo?
Encontraremos desse modo alguma ciência que nos ajude a tomar
consciência desses possíveis, a menos que ela nos, obrigue a assumir
conscientemente uma única finalidade? Antigas perguntas que cada ser
encontra entre a fé e a razão, e por vezes entre seus extremos, "integrismo"
debilitante e racionalismo delirante, origens de tanta barbárie.
Perguntas sobre as quais cada cultura e cada século renovam os ter­
mos. Edgar Morin nos relembrava há pouco, evocando um propósito do
filósofo tcheco Patocka: "Isso se manifesta porque Patocka o chama de
'problematização permanente'. Em outras palavras, não houve uma
parada na interrogação do problema geral (quem somos nós, o qµe é o
mundo, o real), porque essa problematização foi muito rica. A ela nós
devemos a racionalidade, não somente a racionalidade crítica, mas a
racionalidade autocrítica" 72.
Hoje em dia, não nos importaria perseguir essa "problematização
permanente" de maneira mais atenta, no momento em que as intitui­
ções que são formadas pela nossa sociedade parecem nos impor tanta
rejeição à complexidade :> Complexidade que, no entanto, percebemos
sem cessar diante dos nossos inúmeros atos, com uma angústia por
vezes insuportável, quando nossas escolhas são coletivas, e que gostaríamos
que elas fossem coletiva e efetivamente deliberadas.
Numerosos são os exemplos dessas negações da complexidade na
nossa vida cotidiana, e algumas vezes terrificantes na nossa vida de
cidadãos. Cada um, a cada dia, pode citar novas negações da complexi­
dade, indignando-se em silêncio com a própria incapacidade de relevar
tais desafios, no momento em que clamamos as maravilhas da razão
humana. Ontem "heróica", hoje ela não teria se tornado "bárbara".

72. Edgar Morin. "L'Europe, une communauté de destin", Le Monde de /'éd11catior1, janeiro de 1999.

257
Jean-Louis Le Moigne

Esses problemas não seriam no entanto criações humanas? Tendo sido


suscitados e percebidos agora na sua intensidade, não seríamos capazes
de compreender e por vezes transformá-los para "civilizar" nosso plane­
ta? "A sociedade humana é obra dela mesma", nos recordava G. Vico,
há três séculos, meditando sobre a história das sociedades humanas,
civilizando-se e destruindo-se, entre "corso et ricorso", entre o "heroísmo
do pensamento" (ou da razão "mente eroica") e a "barbárie da reflexão"
(ou da razão), sem que nenhuma fatalidade natural nos obrigue a tais
ciclos ou a tais espirais. "As possibilidades comprovadas pelos exemplos
históricos, mas de modo algum fatais", que incitavam G. Vigo a con­
cluir: "Eu não deixo de esperar... por outras razões muito fortes ..."73
Essas razões muito fortes, não são aquelas já citadas por Pascal?:
"O homem não é somente um caniço, o mais fraco da natureza, é um
caniço pensante ... Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento.
Trabalhemos, portanto, para pensar bem, eis o princípio da
moral"74.
"Trabalhemos pois para pensar bem" é hoje em dia o lema mais per­
tinente para exprimir essa inteligência da ação humana, estendendo a
sua práxis; em outras palavras, no seu empenho para tentar compreen­
der "aquilo que ela faz", de se perceber não errático nem fatal, mas
intencional, deliberada, consciente ao menos da sua própria cegueira e
da incerteza dos seus efeitos nos contextos nos quais ela atua.
Essa inteligência da ação humana ou da práxis, que hoje designamos
naturalmente como "Pragmática" (tentando desse modo conceder ao
"pragmatismo" as honras da nobreza semântica concedidas pelos seus
pais, os fundadores norte-americanos C. S. Peirce, W. James, J. Dewey...),
não simbolizaria nosso projeto tanto cívico como científico? Projeto que
convoca a "essa nova reforma do entendimento da complexidade", com a
qual coletivamente ... e pragmaticamente ... queremos contribuir.
"Eis-nos diante da roda de fiar", dizia Moncaigne, quando nos pro­
pomos "pensar bem"; em outras palavras, pensar em nossos projetos e
em nossos atos na sua complexidade, nos seus contextos, nas suas intenções,

73. Conclusão do artigo de A. Pons: "Vico ec la barbarie de la réflexion", em Figures italiennes de la


racionalitl, C. Menasseyre e A. Tossel (eds.), Éd. Kirné, 1997.
74. Blaise Pascal. Les pemées, Édicion I..afuma, Seuil.

258
A inteligência da complexidade

na sua reciprocidade, na sua irreversibilidade. Reunir sem parar a ela­


boração dos fins e a invenção ou a escolha dos meios, em vez de separá-los
nos nossos espíritos como nas nossas instituições, proibir essa simplifi­
cação mutilante, origem de tantas barbáries, não seria, portanto, o pro­
jeto desse "novo entendimento" que não quer disjuntar o Pensamento
e a Ação, o "Epistémé" e a Práxis'
Um entendimento que quer "compreender", apreender o pensamento
na ação e a ação no pensamento; um entendimento que seja "compreen­
são": Edgar Morin, meditando sobi;e a inteligível complexidade e a
pragmática construção dos nossos empreendimentos, dos conhecimentos,
das condições, dos nossos atos, convida-nos a uma "ética da ·compreen­
são ... uma ética que não impõe uma visão maniqueísta do mundo, ética
com fundamento somente em si própria, mas que tem necessidade de
apoio exterior a ela própria" 75.
Não é essa "religação" da ética da compreensão e da ação inteligen­
te que a Pragmática, entendida como "Ciência e Consciência da Com­
plexidade", nos convida hoje a ligar com "obstinado rigor" (ostinato
rigore, Leonardo da Vinci): a imaginação engenhosa e criadora daquele
que "trabalha para pensar bem" (Edgar Morin).
Pragmática da complexidade, inseparabilidade do "fato", que privi­
legiava o científico, e do "fazer", que privilegiava o prático: não podemos
em todos os domínios em que estamos engajados, os da pesquisa e os
do ensino, os da mediação social e os das responsabilidades econômicas
e cidadãs, atuar juntos para "trabalhar para pensar bem", para construir
esse próximo passo que constrói o nosso caminho 1

75. E. Morin. Me11s demônios, Bertrand Brasil, 1996.

259
Agradecimentos e referências
Este livro é um tecido cujos fios de diversas cores se entrelaçam
sobre diversos fusos: as obras e as revistas que publicaram inicialmente a
maior parte dos textos que aqui foram compilados para avivar a atenção
dos leitores pensantes. Estofo furta-cor cujos reflexos estarão mudando ao
bel-prazer dos projetos e dos humores de cada um. Mas esse tecido mes­
clado não nos deixa esquecer os fios com os quais ele foi tecido: o editor
e os autores desejam agradecer àqueles que construíram os primeiros
fusos que forneceram fibras em forma de textos, que tomamos empresta- ·
dos para reler e reunir esse exercício de inteligência da complexidade.
Se o prefácio foi redigido para esta edição, os outros capítulos reto­
mam, por vezes com algumas modificações, na sua maioria, os textos
escritos e quase todos publicados entre 1983 e 1998 por Edgar Morin,
por J.-1. Le Moigne, dois dentre eles.
Vários são os diálogos com Edgar Morin, diálogos nos quais não
pudemos conservar sempre os nomes dos parceiros (capítulo 2.3); mas
deixar novamente aqui os nossos agradecimentos a J. Ardoino (capítulo
3.3), a F. Ewald (capítulo 3.2) e a H. Reeves e M. Mounier-Kuhn (capí­
tulo 3.1), que suscitaram e animaram trocas com Edgar Morin e que
contribuíram para a formação da nossa inteligência da complexidade.
Agradecimentos sinceros que se dirigem também aos editores das
revistas e publicações diversas nas quais todos esses textos (artigos, con­
ferências e diálogos) se tornaram públicos pela primeira vez. Eles con­
tribuíram, desse modo, para a nossa capacidade coletiva de ''fazer ciência
com consciência, cum scientia". Nós os mencionamos abaixo, apresentan­
do-os na ordem de sua inserção nesta obra.

Capítulos 1, 2.1, 2.2: Esses três textos de Edgar Morin (duas conferên­
cias e um debate, em 1982, no Clube Epistemológico da Universidade
de Aix-en-Provence), foram publicados nos atos desse Colóquio do
Clube Espistemológico da Universidade pelas edições da Livraria da
Universidade de Aix, em 1984 (coordenação C. Attias e J.-1. Le
Moigne), sob o título Ciência e consciência da complexidade, em torno de
Edgar Morin (com diversos outros textos dos membros do clube). A obra
está esgotada atualmente. (Sob os títulos: cap.l, "Ciência com cons­
ciência, uma leitura, um projeto", pp. 27-44; cap. 2.1, "Epistemologia

261
Edgar Morin

da complexidade", pp. 47-80; cap. 2.2, "Trocas em torno da epistemo­


logia da complexidade", pp. 81-104).

Capítulo 2.3: Esse texto de Edgar Morin, regidido há pouco, não foi
ainda publicado e constitui o núcleo de um capítulo de uma outra obra
em preparação.

Capítulo 3.1: Essa conversação entre Edgar Morin e H. Reeves foi reali­
zada por M. Mounier-Kuhn, e publicada no Courrier do CNRS, nº 48,
novembro de 1982, pp. 7-16, sob o título L'Homme et la Science, dialo­
gue entre un astrophysicien et un sociologue. Ele foi retomado em Science et
conscience de la complexité, pp.152-176.

Capítulo 3.2: Edgar Morin, philosophe de l'incertain, recolhidos por


François Ewald, publicados em Le Magazine Littéraire nº 312, julho e
agosto de 1993, pp. 18-22.

Capítulo 3.3: Entretien avec E. Morin, recolhido e transcrito por J. Ardoino,


publicado na revista Pratique de formation - Analyses nº 4, dezembro de
1992, extraído da Science e conscience de la complexité, pp. 127-152.

Capítulo 4.1: E. Morin, "Vers un nouveau paradigme", editado na


revista Sciences Humaines nº 47, fevereiro de 1995, pp. 20 -23.

Capítulo 4.2: Edgar Morin, "la besoin d'une pensée complexe", publi­
cada na Magazine littéraire, Hors-Série, 1996: Un inventaire da la pensée
moderne, pp.120-123.

Capítulo 5: J .-1. le Moigne, "L'intelligence de la complexité" nas atas


do colóquio da UNU, Montpellier, 1994, publicadas sob o título Sci­
ences et pratique de la complexité, la Documentation francaise, Paris,
1996, pp. 47-48. Existe uma edição em língua inglesa, UNU,
Tóquio, 1986. O título foi mudado na presente obra (Sur la modélisa­
tion de la complexité); este texto foi significativamente modificado.

Posfácio: Esse texto foi extraído do editorial de La Lettre Chemin Faisant,


MCX-APC nº 33, janeiro de 1999; carta comum do Programme Européen

262
A inteligência da complexidade

Modélisation de la Complexité e da Association pour la Pensée Complexe, que


pode ser livremente consultada no site da Internet:
www.mcxapc.org

* Os autores agradecem em particular a Madame Evelyne Biausser pela parti­


cipação decisiva na concepção e na realização deste livro - testemunha do bem
das religações.

263
LEIA TAMBÉM

LITERATURA: ARTE, CONHECIMENTO E VIDA


SÉRIE NOVA CONSCl{NCIA

Nelly Novaes Coelho


2000 - 160 páginas
Numa visão abrangente, a autora nos apresenta a Literatura
enquanto linguagem artística e como ponto de partida para a
nossa compreensão do mundo. Um verdadeiro "fio de Ariadne",
capaz de servir como eixo ou como "tema transversal" para
a interligação de diferentes unidades de ensino, de acordo
com os novos parâmetros curriculares. Esse livro nos revela um
panorama complexo e transdisciplinar da poesia, da literatura
infante-juvenil como objeto novo, dos 500 anos de presença da
mulher na literatura em PortUgal e no Brasil, e da crítica da
literatura infantil.
"Edgar Morin é um dos principais participantes do plano mundial,
se não o mais destacado, a propor uma reforma
do atual sistema de pensamento."
Humberto Mariotti

"Esse é o milagre do livro, da leitura que permite que a gente conviva


com pessoas iluminadas que nos enriquecem a vida,
e nos afeiçoemos a elas como companheiras de jornada,
sem que cheguemos a conhecê-las pessoalmente. ( ... ) No meu mundo,
Morin é a presença iluminadora há já trinta anos."
Nelly Novaes Coelho

"A obra de Edgar,Morin é, desde o início do anos 50,


uma das tentativas fundamentais neste século de pensar e
descrever a complexidade humana."
Ernilio R. Ciurana

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