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Edgar Morin
Jean-Louis Le Moigne
A inteligência da complexidade
Tradução
Nurimar Maria Falei
Ano: 2000
ISBN: 9788585663421
SUMÁRIO
Conclusão
Da análise, da complicação à concepção da complexidade. ·············· 249
Posfácio
''Trabalhar para bem pensar. .. " - Pragmática e ética da compreensão. 255
Agradecimentos e referências ............................................ .. 261
-
l. Edgar Morin. La tête hie11 faite. Repen.rer la réfor111e - reformer la pt1w!e. Collcction "L'Histoire
lmmediace'". Éditions dn Scuil, Paris, 1999, p.18.
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Propõe então uma reforma: "(... )Éa reforma do pensamento que permi
tiria o pleno emprego da inteligência para responder a esses desafios e a ligação
das duas culturas disjuntas. Trata-se de uma reforma, não programática, mas
paradigmática, que concerne à nossa aptidão de organizar o conhecimento". E
complementa:
"(... ) A reforma do ensino deve conduzir à reforma do pensamen
to e a reforma do pensamento deve conduzir à reforma do ensino" 2.
A inteligência da complexidade é um livro, um tecido cujos fios de
diversas cores se entrelaçam, oferecendo-nos uma rara oportunidade de
tomarmos contato, através de uma única obra, com vários textos, arti
gos, conferências, colóquios e diálogos de Edgar Morin, de 1983 a 1998,
dispersos - alguns publicados em revistas e esgotados, outros inéditos -
que foram cuidadosamente aqui reunidos. Num verdadeiro exercício de
complexidade, uma gama de pesquisadores e profissionais de diferentes
áreas participam deste livro, dentre eles: o filósofo e educador Jacques
Ardoino, o astrofísico Hubert Reeves, Mounique Mounier-Kuhn, encar
regada das relações parlamentares e públicas do CNRS (Centro Nacional
da Pesquisa Científica), Paris, e Jean-Louis Le Moigne*, responsável
pela publicação original deste livro, ele próprio contribuindo com dois
capítulos, um dos quais apresenta sua proposta pessoal sobre a modeli
zação da complexidade. Num outro momento ainda, Le Moigne destaca
a necessidade de bem compreender a concepção, o ponto de partida, a inteligência
humana, para aprender a conceber a complexidade. Trata-se, sob o ponto de
vista de Le Moigne, da proposição de· uma ação inteligente para com
preender o pensamento complexo proposto por Morin, justificando
desse modo, o título do livro: A inteligência da complexidade.
É no problema do conhecimento, do ponto de vista cognitivo, que
se centra a reflexão de Edgar Morin:
"Existe uma inadequação cada vez maior, profunda e grave
entre os nossos conhecimentos disjuntos, partidos, compartimen
tados entre disciplinas, e, de outra parte, realidades ou.problemas
cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais,
ll
PREFÁCIO
Uma nova reforma do entendimento:
a inteligência da complexidade"
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3. E. Morin, na Terre-Patrie (Éd. Scuil, 1993, p. 216), reconheceu aqui o ""princípio da toupeira".
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4. Alusão ao tículo ela obra publicada sob esse título em 1991 por Morin, em colaboração com
G. Bocchi e M. Ceruti (Écl. Senil).
5. Pascal. Pemée.r, 200-347.
6. G. Bachelard. Em,i 111r la connaimmce approchie. Écl. Vrin, 1927, p. 9.
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16. Coordenação de Acias eJ.-L. Le Moigne, Éd. de la Librairie de l'Université d'Aix-en-Provence, 1984.
l 7. "Cc11ninante,, no hay c,múno, se hace e/ camino ai andar." Esses versos de Antonio Machado, que
Morin evocava desde as primeiras páginas do Método para salientar que "o método só pode ser for
mado durante a pesquisa", tomaram-se o lema do Programa Europeu de "Modelização da Com
plexidade".
18. Religação' A palavra é, acredito eu, criada ou restaurada por M. Bolle de Bal em Voyage a11 coeur
des JcienceJ hwnaines, de la Reliam<, Éd. L'Harmatran, 1996. Ela exprime a conjunção do ato e do resul
tado de religar e de se religar, de tornar a ligar.
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19. Função de vigília epistêmica proporcionada por encontros, oficinas e publicações diversas, cujo
,ite na Internet - www.mcxapc.org - conserva a marca de consulta atual.
20. Fórmula de Bachelard em No11vel e,prit 1cientifiq11t, p. 148. Diremos sem dúvida hoje: a proble
mática.
21. H. A. Simon, Ret11on in h11111t1n ajft1irI, Scanford Universicy Press, 1983.
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Capítulo 1
Ciência e consciência
da complexidade
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ciência com consciência se refere evidentemente à célebre frase de
Rabelais, frase pedagógica por excelência: "Ciência sem consciência é
somente a ruína da alma". Na Renascença, quando nasce a Ciência
moderna, antes mesmo que ela tenha sua autonomia e seu grande
desenvolvimento, na visão humanista da Renascença, a sociedade sabe
que a Ciência tem sempre qualquer coisa a ver com a consciência, no
sentido ético e moral do termo. Um puro saber operacional é somente
a ruína da alma. Mas deve ser bem entendido que Rabelais não pensava
num puro saber operacional tal como aquele manipulado, por exemplo,
em uma bomba termonuclear, que, mais do que a ruína da alma, talvez
seja também a ruína do Ser.
Mas essa óptica de Rabelais, essa visão antiga, não era necessário des
menti-la para que se pudesse desenvolver a ciência moderna? Era pre
ciso que o conhecimento científico, para se desenvolver, colocasse como
princípio fundamental a disjunção absoluta entre o julgamento de valor
e o problema de dever moral.
Isso equivale a dizer que o conhecimento deve ser tornado público e
pesquisado quaisquer que sejam as conseqüências morais. O sentido
desse princípio é efetivamente aquele de uma vontade autónoma da
pesquisa científica com relação ao enorme poder que representava então
a Igreja, poder de inibição que dizia: "Não vá pesquisar nessa direção
porque ela contradiz a Bíblia", ou: "Não vá pesquisar nessa direção pois
isso já está escrito em Aristóteles e a teologia integrou Aristóteles. Nós
já temos a visão do mundo".
Em outras palavras, o conhecimento científico se coloca então de
maneira absolutamente necessária como conhecimento amoral: ele
implica uma disjunção entre ciência e consciência no sentido moral
do termo. Mas a essa disjunção se acrescenta uma segunda, formulada
de maneira exemplar por René Descartes. Com efeito, Descartes, ao
propor o problema do conhecimento, determina dois campos de
conhecimento totalmente separados, totalmente distintos. De um
lado, o problema do Sujeita, do ego cogitans, do homem que por
assim dizer reflete sobre si mesmo, e esse problema vai ser, deve ser
aquele da filosofia. De outro lado, o problema daquilo que ele chama
de res extensa, quer dizer, dos objetas que se encontram num espa
ço, e o universo da extensão do espaço é aquele oferecido ao conheci
mento científico.
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isso não nos explica por que a pulga é uma pulga e o elefante é um
elefante. De modo semelhante, eu falo uma linguagem; com essa lin
guagem sustento o meu discurso e vocês, com a mesma linguagem,
sustentam um discurso talvez contraditório. Está claro que a pesquisa
de leis ou de princípios universais e a pesquisa dos elementos de base
fecundaram o progresso e o conhecimento. Desse modo, a obsessão
pelo elementar fez descobrir a molécula, depois o átomo, depois a par
tícula; mas, quando nos apercebemos de que a partícula era não uma
noção de base, mas uma noção de fronteira, bruscamente nos depara
mos com algo duvidoso: não sabermos ao certo o que é uma partícula.
Ela está no limite da materialidade, e aparece tanto como onda quan
to como corpúsculo. Alguns teóricos dizem que a partícula não está
separada de um boostrap (uma teoria que postula um tipo de continui
dade, de não-separabilidade na base mesma da realidade material).
Outros dizem que na partícula existem os quarks e que estes não
podem aparecer em estado isolado. Chegamos pela própria ciência ao
não-simples; chegamos ao que é complexo. Durante longo tempo, o
ideal do conhecimento científico foi aquele que Laplace havia formu
lado com a sua idéia de universo totalmente determinista e mecanicista.
Segundo ele, uma inteligência excepcional dotada de uma capacidade
sensorial, intelectual e computacional suficiente poderia determinar
qualquer momento do passado e qualquer momento do futuro. É essa
visão extremamente pueril e talvez louca do mundo que está prestes
a desmoronar, mas ela ainda reina, e efetivamente excluiu todo o pro
blema da reflexividade.
Paralelamente aos fantásticos desenvolvimentos do conhecimento
científico, houve um extraordinário desenvolvimento do poder oriundo
do conhecimento científico. Vemos hoje que a física, em particular a
física nuclear, apresenta um enorme poder de destruição, que o conhe
cimento em biologia molecular e em genética permite entrever as
manipulações genéticas, uma nova indústria genética, onde não se
pode distinguir muito bem se é a indústria que vai se biologizar ou se é
a vida que vai ser industrializada. De todo jeito, convocaremos as
bactérias ao trabalho! O conhecimento biomolecular e bioquímico do
cérebro, que está nos estágios iniciais, permite entrever fantásticas
manipulações do cérebro. Os fenômenos das próteses, como a recente
prótese do coração, nos mostra que os poderes oriundos da ciência são
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Daí essa idéia ser tão importante - a cientificidade não está na cer
teza teórica. Ao contrário, já Whitehead, o grande filósofo das ciências
anglo-saxônicas, havia observado que a ciência é mais mutável que a
teologia. Com efeito, o envelhecimento das teorias científicas é sem
dúvida incrível. As teorias se desatualizam e ainda assim a ciência con
tinua! É que a verdade científica não está na certeza teórica. Uma teoria
é científica não porque ela é certa, mas, ao contrário, porque ela aceita
ser refutada, seja por razões lógicas, seja por razões experimentais ou de
observações. Isto é, uma teoria científica não é o substituto, num
mundo laico, da verdade teológica e religiosa. É o contrário!
Uma teoria científica tem sempre a incerteza, ainda que ela possa
fundar-se em dados que possam ser certos. A biodegradabilidade da
teoria científica é um fato fundamental que nos mostra que a fecundi
dade do conhecimento científico é uma luta de teorias. É uma luta de
diversidades que aceitam uma regra comum. Quando a aplicação da
regra comum pode ser bem feita, como nas ciências físicas, isso não
caminha mal! Mas, quando não se pode encontrar a verificação, como
nas ciências sociais, evidentemente isso caminha muito menos bem!
Mas eu diria quase: felizmente! Porque, se houvesse hoje uma ciên
cia social que fosse manipuladora e redutora, e também eficaz, como a
física, então, nesse caso, seríamos completamente, e muito em breve,
"orwellizados"! As teorias científicas são produções do espírito, as
ciências físicas são espirituais, mas não no sentido do colóquio de Cor
doue, a meu ver. Elas são espirituais porque produtos do espírito
humano, e elas são sociais porque emanam das atividades sociais.
Outros já observaram: o fato de querer negar que as ciências físicas
sejam ciências sociais é um empreendimento obscurantista, porque,
efetivamente, o terreno das ciências físicas é a sociedade, a história.
Não quero dizer que as ciências físicas sejam pura e simplesmente
ideologias produzidas pela sociedade, como qualquer outra ideologia.
De maneira nenhuma: as ciências físicas assim como as ciências bioló
gicas têm um modo de relação verificável com o mundo exterior que
advém das experiências, das observações, etc. Mas elas não podem escapar
de uma dependência com relação à sociedade que as produz. Tomemos
como exemplo a energia que nos parece evidente. Mas ninguém viu a
energia com seus próprios olhos. A energia deve ter sido construída
por um esforço de dezenas e dezenas de anos unindo a noção de força
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Capítulo 2
A epistemologia da
complexidade
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2.1 Sobre a "paradigmatologia"
A questão sobre a complexidade é complexa!
A questão havia sido colocada às crianças numa escola: "O que é
complexidade?" Resposta de uma aluna: "Complexidade é uma com
plexidade que é complexa". É evidente que ela havia tocado o cerne da
questão. Mas, antes de abordar essa dificuldade, devemos dizer que o
dogma, a evidência subjacente ao conhecimento científico clássico, é,
como dizia Jean Perrin, que o papel do conhecimento consiste em
explicar o visível complexo pelo invisível simples. Atrás da agitação, da
dispersão, da diversidade, existem as leis. Por conseguinte, o princípio
da ciência clássica é evidentemente legislar, colocar as leis que regem os
elementos fundamentais da matéria da vida; e para legislar ela deve dis
juntar, isto é, isolar os objetos sujeitos às leis. Legislar, disjuntar, redu
zir - esses são os princípios fundamentais do pensamento clássico. Não
se trata absolutamente, do meu ponto de vista, de decretar que esses
princípios sejam doravante abolidos.
Mas as práticas clássicas do conhecimento são insuficientes. No mo
mento em que a ciência de inspiração cartesiana ia muito logicamente
do complexo ao simples o pensamento científico contemporâneo tenta
ler a complexidade do real sob a aparência simples dos fenômenos. De
fato, não existe fenômeno simples. Tomemos como exemplo o beijo.
Pensem naquilo que é preciso de complexidade para que nós, humanos,
a partir da boca, possamos exprimir uma mensagem de amor. Nada
parece mais simples, mais evidente. No entanto, para o beijo, é preciso
uma boca, emergência da evolução do focinho. Foi preciso que houvesse
a relação própria dos mamíferos, na qual a criança mama na mãe e a mãe
dá de mamar à criança. Foi preciso, portanto, toda a evolução comple
xificadora que transforma o mamífero em primata, depois em humano;
e, anteriormente, toda a evolução que vai do unicelular ao mamífero. O
beijo, além do mais, supõe uma mitologia subjacente que identifica a
alma ao sopro que sai da boca: ele depende das condições culturais que
favorecem sua expressão. Desse modo, há cinqüenta anos, o beijo no
Japão era inconcebível, incongruente.
Em outras palavras, essa coisa extremamente simples surgiu de uma
hinterland de uma complexidade surpreendente. Acreditou-se que o
conhecimento tinha um ponto de partida e um fim; hoje penso que o
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Parte A*
1 - Podemos dizer que o princípio da ciência clássica é legislar.
Isso corresponde talvez ao princípio do direito. É uma legislação, mas
não é anônima, porque se situa no universo, é a lei. E esse princípio é
um princípio universal que foi formulado pela lei comum - "Não há
ciência senão no geral" -, o que comportava a expulsão do local e do
singular. Ou seja, o interessante é que, no próprio universo, no univer
sal, a localidade interveio. Quero dizer que hoje o nosso universo nos
aparece como fenômeno singular, comportando constrangimentos sin
gulares, e que as grandes leis que o regem - que nós podemos chamar as
leis das interações, como as interações gravitacionais, as interações ele
tromagnéticas, as interações fortes, no seio dos núcleos atômicos -, que
essas leis das interações não são leis em si, mas leis que só se manifes
tam, só se atualizam a partir do momento em que existam elemenros em
interação. E, se não houvesse partículas materiais, não haveria gravitação,
* (N. do Editor) 11lseri111os no início do parágrafo os mí111eros dos "Mandamentos do paradigma da simplifi
ca;ão" apresentados SIICÍnlamtnte por E. Morin 110 caplt11l0 "Os mandame11fos da complexidade" de Ciência
com consciência.
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a gravitação não existe em si. Essas leis não têm um caráter de abstração
e estão ligadas às coações singulares do nosso universo; poderia ter
havido outros universos possíveis - talvez existam - que teriam outras
características singulares. A singularidade está, doravante, profunda
mente inscrita no universo; e, ainda que o princípio da universalidade
permaneça no universo, ele vale para um universo singular onde apa
recem os fenômenos singulares, e o problema consiste em combinar o
reconhecimento do singular e do local com a explicação universal. O
local e o singular devem cessar de ser rejeitados ou despejados como
resíduos elimináveis.
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Parte B
O segundo problema é o da epistemologia complexa, que, no
final, tem quase a mesma natureza do problema do conhecimento do
conhecimento. Ele retoma os pontos daquilo que eu já disse, mas
ultrapassando-os, englobando-os. Como conceber o conhecimento do
conhecimento?
Pode-se dizer que o problema do conhecimento científico poderia
ser colocado em dois níveis. Haveria o nível que se poderia chamar de
empírico e de conhecimento científico, que, graças às verificações obti
das por observações e experimentações múltiplas, esclareceria dados
objetivos e, sobre esses dados objetivos, induziria a teorias que, pensa
va-se, "refletiam" o real. Num segundo nível, essas teorias se funda
mentariam na coerência lógica e assim fundamentariam sua verdade do
sistema de idéias. Haveria, portanto, dois tronos: o trono da realidade
empírica e o trono da verdade lógica, de onde se controlava o conheci
mento. Os princípios da epistemologia complexa são complexos: não
existe um trono, não existem dois tronos; não existe absolutamente
nenhum trono. Existem instâncias que permitem controlar o conheci
mento; cada uma delas é necessária e cada uma delas é insuficiente.
A primeira instância é o espírito. O que é o espírito? O espírito é a
atividade de qualquer coisa, de um órgão que se chama cérebro. A
complexidade consiste em não reduzir o espírito ao cérebro, nem o cére
bro ao espírito. O cérebro, evidentemente, é um órgão que se pode ana
lisar, estudar, que nós nomeamos como tal pela atividade do espírito.
Complementando, nós temos qualquer coisa que podemos chamar
de espírito-cérebro ligado e recursivo, visto que um co-produz o
outro de uma certa maneira. Mas, de toda maneira, esse espírito-cére
bro surgiu a partir de uma evolução biológica, via hominização, até o
homo dito sapiens. Desde então, a problemática do conhecimento
deve absolutamente integrar, cada vez que elas aparecem, os valores
adquiridos fundamentais da bioantropologia do conhecimento. E
quais são esses valores adquiridos fundamentais?
O primeiro valor adquirido fundamental é que a nossa máquina
cerebral é hipercomplexa. O cérebro é um e múltiplo. A menor palavra,
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P.: Nessa revolução cultural que o senhor deseja, pois trata-se de uma revolução
cultural, o problema entre a Alemanha e a França é que nós temos estruturas que
são verdadeiramente paranóicas, o que torna evidentemente impossível fazer esse tipo
de experiência. Nós estamos aqui, alguns - eu diria por acaso da conjuntura -,
mas é absolutamente impossível fazer a interdisciplinaridade, senão ficticiamente,
no papel. E algumas reformas que estão atualmente em curso no CNRS me deixam
* Homem íntegro e culto dos séculos XVI, XVll e XVII. (N. da T.)
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cético sobre esse ponto. Creio que aí existe um obstáculo contra o qual nós mesmos
nada podemos. Mermo nas universidades que juridicamente associam os literatos e
os erpecialistas em ciências sociais, nós não temos jamais um debate sobre epistemo
logia. Eu me pergunto se não estamos em face de um obstáculo que é a tal ponto claro
que necessitaria, no mínimo, romper as ertruturas da universidade?
R.: Acredito que a pior resistência das estruturas não seja de modo
nenhum a resistência administrativa - é a estrutura dos espíritos. É por
isso que se pode fazer as mais belas reformas da universidade no papel,
sempre as fazemos nos planos da administração, nos centros de deci
são... e jamais no plano do espírito, porque, evidentemente, há este
famoso problema: quem educará os educadores? Quando se fazem pro
gramas em matéria disciplinar, eles não vão mais longe do que aqueles
da ONU. Na realidade, cada um confirma seu território. Fazem corre
ções de território e de fronteira com algumas magras trocas. A solução,
a meu ver, não é destituir a universidade. Há uma crise nas estruturas
do pensamento e eu tenho a impressão de que um gênero de perguntas
que coloquei no Método teria sido totalmente rejeitado há uns vinte
anos. Por que, pois, não foi totalmente rejeitado?
Porque existe uma crise em diferentes meios. No fundo, é a mesma
crise que toma aspectos de particular gravidade com os físicos porque
eles têm problemas de manipulação, de energia atômica... tanto quan
to os biólogos que têm dificuldades ligadas à manipulação genética.
Mas existe uma crise da validade, dos problemas que o conhecimento
científico coloca, das insuficiências, do poder. E é essa crise (onde tudo
é solidário) que obriga a refletir. Atualmente é bem conhecida a idéia
de que uma falsa teoria não se destrói jamais a si própria - é preciso
esperar a morte de seus defensores. No plano da antropologia, é certo
que há vinte anos existe um número de dados novos que destroem o
paradigma que separa natureza e cultura: a hominização é um processo
que transforma a natureza em cultura. Mas tudo isso permanece letra
morta porque a antiga óptica não pode perceber o interesse dessa cami
nhada. Há sempre a vontade de manter a fronteira fechada. É preciso
que exista a crise e é preciso trabalhar para aprofundar essas crises e é
difícil dizer àqueles que estão presos à sua segurança mental que é pre
ciso aderir à insegurança. Dizer às pessoas: "Coloquem-se em crise, quer
dizer, joguem suas idéias para o ar, coloquem-se na merda". Nesse
momento, eles não estão nada contentes. Eles querem antes de tudo que
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P.: Sobre esse ponto, já que o senhor falou de consciência moral, existe aí tam
bém um problema moral da ação. O curioso é que muito freqüentemente o senhor
tem uma atitude metafísica, diria eu. Quer dizer, o senhor tem postulados tão
inverificáveis quanto os postulados científicos que o senhor denuncia. Por exem
plo, a incapacidade da ciência de refletir sobre ela mesma. Evidentemente, o
senhor cita Adorno, a Escola de Frankfurt, Popper, Husser/... Acredito que exis
ta com o senhor um postulado e isso bloqueia a ação. Isso que o senhor chama de
"consciência moral" não é simplesmente a falsa consciência em um certo momento?
Um segundo exemplo: o senhor tem constantemente a visão de contra-ordem, no
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sentido musical do termo, a idéia de que a submissão das ciências sociais, que
seriam científicas, é mais grave. De minha parte, penso que a libera[ão pela ciên
cia é simplesmente um postulado que é também um problema, com excefão de Popper.
Em outras palavras, o senhor está sempre na articula[ão, e aí suas respostas são
mais claras do que o seu discurso, numa articulafãO que faz com que o senhor
tenha retirado o aspecto metafísico dos seus paradigmas. Eu gostaria que o senhor
me esclarecesse esse ponto. O senhor se ilude a si próprio com o seu sujeito?
Outra pergunta: o senhor tomou como exemplo "[eh bin". Por exemplo, os
místicos mu[ulmanos são mais sutis do que isso. Eles dizem: eu sou Deus; e não
existe o atributo. E é muito curioso também na mística mufulmana... Então,
coloca-se um problema, existe um meio perdurável de um conhecimento que nós
teríamos estocado e de formas tiradas a partir do seu esquema, com o qual estou
inteiramente de acordo, com certeza/
R.: Acredito que toda teoria, toda visão de mundo comportam pos
tulados sob a forma de intuições fundamentais, inverificáveis, que
podem ser fecundos ou maus. Mas aquilo que você chama de "ciência
sem consciência", não chamo de postulado. Considero como um diag
nóstico. Eu chamaria antes de postulado essa idéia de que o mundo é
trágico, é um tecido de contradições e que, no entanto, a harmonia
comporta a discórdia. Tenho essa espécie de intuição fundamental.
Cada um tem os seus postulados. Muitos pensam no fundo que o uni
verso seja uma máquina que tem ordem, que tem um sentido. Outros
pensam que o universo não tem sentido. Isso faz parte dos postulados
inverificáveis. Mas a idéia de que o desenvolvimento do conhecimento
científico é um desenvolvimento inteiramente centrado no objeto pela
eliminação do sujeito não é um postulado. É um problema da história
das idéias. Isso é que é interessante. Tudo aquilo que se denomina
"ciência clássica" cessa de ser válido nesta época de metamorfose em que
vivemos. E, aliás, é por isso que tomo o cuidado de citar sempre essa
frase de Bronowsky: "O conceito de ciência que nós temos não é nem
absoluto nem eterno". Em outras palavras, existe uma aventura muito
específica que começa sem dúvida no século XVI-XVII, mas essa aventura
chega hoje a um momento de metamorfose total. Essa metamorfose
comporta uma parte de autodestruição dos princípios do conhecimento
que têm desembocado nesse processo de metamorfose. O que me sensi
biliza é o exemplo da metamorfose da lagarta em borboleta.
O que acontece nessa brava lagarta)
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universo, a teoria unitária. Mas é ele mesmo que a terá e não os outros
cientistas que apresentam outras teorias.
E chegamos ao segundo aspecto do dinamismo, o aspecco concorren
cial muito profundo que Popper destacou entre ideologias, a diversidade
dos espíritos, e que, no entanto, não é estéril; não é destruidor porque
se respeita uma regra crucial do jogo. E, de fato, a ciência conseguiu
conquistar um terreno de relativa autonomia na sociedade. Ela pode,
mesmo nas sociedades em que reinam as piores coerções ditatoriais ou
totalitárias, guardar uma relativa autonomia. É evidente que, por
exemplo, houve um tempo em que o Partido legislava; agora ele não
legisla mais nas ciências físicas porque, para a indústria da paz ou da
guerra, a ciência é muito útil ao poder, o que torna o problema da ciên
cia ainda mais inquietante.
Então, esse dinamismo tem causas intrínsecas, ou seja, a curiosidade
e a competição, e causas extrínsecas, que são a relativa autonomia e a
regra do jogo. Atualmente, a complexidade aparece como o retorno do
reprimido. Durante muito tempo, portanto, acredicou-se na explicação
simples, no princípio simples. Procurou-se o mesmo tipo de segurança
na pesquisa científica que se procurou na religião. Acredito que aquilo
que se chama de "cientifismo" não é outra coisa senão colocar a ciência
no lugar da religião, achando que ela vai desempenhar a mesma função,
que vai trazer a certeza. E, ainda hoje em dia, a crença "vulgar" é que a
ciência é a cerca. Evidentemente, é o certo sobre o plano dos dados. Mas
não é o certo no que diz respeito ao pensamento, à teoria. Esse movi
mento inquietante da incerteza e a descoberta de zonas do real onde a
lógica não funcionava mais puseram novamente em marcha a proble
mática da complexidade. Acredito que esse reprimido pôde vir porque
nós nos amparamos sobre as aporias, as perplexidades, as incertezas, as
contradições. A experiência precede a essência, a teoria. Foi de fato a
resistência do real que trouxe consigo a complexidade, e é isso que eu
acho muito bonito.
Vou responder agora à questão sobre o materialismo e o idealismo.
O que eu chamo de "idealismo", criticado como idealismo, é a preten
são de fazer entrar o real em um sistema coerente e simples do espírito. O
sistema dito materialismo é o exemplo típico desse idealismo. O extraor
dinário na aventura (e eu sou completamente apaixonado pela aventura
científica) é o real que nos relembra que o nosso espírito é muito pequeno,
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que existem mais coisas sobre a Terra e no céu do que em todas as teorias
e em todas as filosofias, e o real é sempre enorme. Ele não se deixa jamais
arrebatar pelo nosso espírito, pela nossa ideologia, e os estimula a se auto
ultrapassar. Ela não pode se auto-ultrapassar senão no jogo complexo.
Acredito que o grande estímulo é esse diálogo do espírito com o real.
P.: Feitas todas as contas, o complexo tal como o senhor o analisou não é a
própria expressão da natureza de tudo o que é concreto? Tudo o que é concreto é
complexo, mais problematizável do que o abstrato?
R.: Sim, mas o próprio abstrato resiste a se tornar complexo a partir
do momento em que existam limites à lógica clássica. Tome como
exemplo a teoria dos conjuntos flexíveis, que é tipicamente o abstrato
se tornando complexo. A partir do momento em que há conjuntos
leves, não existe uma fronteira clara entre eles. A teoria de Godel faz
surgir a complexidade no formalismo, e desse modo a complexidade
lógica surgiu no coração do pensamento abstrato.
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P.: É indiscutível que Ciência sem consciência seria uma grande lição
para os juristas. A priori, o jurista parece dever ser mais bem preparado do que
os químicos ou os físicos a aceitar o lado da incerteza, do acaso, do sujeito... e
no entanto, como resultado, ele é ainda mais fechado do que os outros. Ele acre
dita um pouco mais na objetividade do que os outros. E, aliás, existe o fato bruto
(o senhor me dirá que isso é somente um detalhe, talvez; ainda assim, é um enor
me indício): na enciclopédia Piaget, quase todas as disciplinas são abordadas.
Falta uma: o direito. Existe uma epistemologia da biologia, uma epistemologia
da sociologia, uma epistemologia da matemática... Não há a epistemologia do
direito. Não digo que não exista de modo nenhum uma epistemologia noutra
parte, mas noto que os juristas parecem, pela sua maneira de trabalhar, por
aquilo que eles estudam, mais próximos que os outros a admitir uma certa mar
gem de incerteza, e que eles ocultam essa margem de incerteza de uma maneira
que me parece verdadeiramente dramática.
Se os juristas chegam a fazer desaparecer tudo isso, é porque desde o início eles
fizeram desaparecer simplesmente, de uma maneira muito complexa, o estudo de
direito. Se há uma etapa que está hoje completamente encoberta, é o estudo do
direito. Fazer direito é participar da formação do direito. O objeto e o sujeito se
ajustam perfeitamente. Não existe mais nenhuma fase que pudesse ser percebida
pela epistemologia porque ninguém mais estuda o direito. Testemunho disso são as
extraordinárias mudanças dos significados da expressão "ciência do direito".
Ciência do direito, no século XIX, é a pesquisa do direito natural; a partir
do início do século XX, ciência do direito se torna a observação dos dados sociais
da fabricação do direito. Hoje, quando se observa aquilo que poderia caracteri
zar a epistemologia jurídica, não há nada aparentemente porque não existe mais
a reflexão sobre o estudo do direito. Tenho a prova por um pequeno detalhe. Não
faz muito tempo, quando pedimos ao CNRS que financiasse as pesquisas sobre
o progresso do conhecimento jurídico, em resposta o CNRS entendeu progresso do
direito e nos respondeu: "Pesquisa puramente ideológica, impossível de ser finan
ciada". Acho isso significativo.
R.: Acho que o senhor deu o diagnóstico fazendo a pergunta. O direito
é uma ciência, uma ciência que produz o seu objeto, ao passo que a eco
nomia é uma ciência econômica que contempla o seu objeto. Evidente
mente, ele toma o seu objeto, seus caracteres quantificáveis, mas existe
essa distância. Em outras palavras, até o momento, concebeu-se o direito
como uma ciência que está inteiramente identificada com a produção do
seu objeto. É o primeiro ponto de vista e o senhor tem razão de me dizer
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A inteligência da complexidade
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Outra pergunta: Sinto muitíssimo esse tema, mas o direito não é uma ciência
de gênio, uma ciência de concepção, uma ciência totalmente artificial? O enge
nheiro, o jurista fazem a mesma coisa. Eles concebem qualquer coisa que depois
de cientificar vão tentar conhecer por um processo de conhecimento científico.
Ora, percebemos que formar um engenheiro e formar um jurista é também
desesperador; eles se fecham neles próprios. Não podemos mais tratá-los como objeto
do conhecimento científico. Ou eles aceitam entrar nessa problemática, mas lá está
o olhar sobre o conjunto de nossas disciplinas que deste modo está protegido.
Outra pergunta: Tenho somente uma informação a dar. Quando se fala de
disjunção para simplificar, para apreender no fundo a unidade do raciocínio,
damo-nos conta de que não se chega ao mesmo padrão, e é estranho porque aí o
esquema torna-se a juntar, o que acho apaixonante. Vou tomar dois exemplos.
Primeiro exemplo: a propriedade. O conhecimento que se tem da propriedade
é no fundo a idéia de que se faz da propriedade; ela é totalmente diferente1
segundo o enfoque dos sistemas do Common Law ou os sistemas continentais, e
essas diferenças contêm aquilo que podemos chamar de razões socioculturais ou a
história, e chega -se a essa coisa bizarra, que o nível de argumentação não é o
mesmo. De um lado, tem-se a impressão de que se parte de um elemento de racio
cínio e se dissocia e, de outro1 parte-se de um elemento de raciocínio ao qual se
chega pela acumulação.
Explico: a propriedade é o próprio tipo do direito e é a partir dessa unidade
de argumento que se vai decompor e se vai dizer: existe o usufruto, a propriedade
de raiz... Se não nos submetemos à influência que nós tivemos, mas à influência
que receberam os anglo-saxões, o procedimento é inteiramente diferente, porque a
unidade de raciocínio é ao contrário os "interests"1 isto é, os pequenos pedaços; os
anglo-saxões têm como unidade o raciocínio de um certo número de "interests"
que, reagrupados na nossa visão, dão, grosso modo, a propriedade. Mas há
alguma coisa que perturba: é que no fundo a unidade de argumento, a unidade
lógica, é tanto um conjunto como um elemento. O exemplo que lemos é aquele da
propriedade, mas poderia ser o contrato. Para nós, no código, fala-se de contrato,
de consentimento, de unidade de argumento - é o contrato. O BGB, o código civil
alemão, fala da declaração de vontade. Declaração de vontade mais declaração
de vontade igual contrato.
R.: Sim, sem resposta. Simplesmente, se vocês tomam os dados obser
váveis da propriedade francesa, anglo-saxônica ou germânica, é evidente
que o conhecimento diferenciado reconduz às condições histórico-sócio-
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A inteligência da complexidade
P.: Mas posso mudar o rumo da conversa em direfãO da _ou das lógicas? Vou
fazer uma pergunta. Não podemos deixar que essa discussão fique para depois
- com pouca diferença -, trezentos anos depois que surgiu a Lógica de Port
Royal e depois que nossos ancestrais de cinco ou seis gerafões e nós mesmos este
jamos convencidos de que em termos de método, em termos de economia de pensa
mento, em termos de economia de esclarecimento de uma verdade suficiente para
agir, estejamos fechados num esquema que nos parecia muito familiar, que se nos
tornou natural, que vocês evocaram anteriormente sucintamente. Não podemos
nos conformar, pelo menos quando temos que colocar as notas sobre uma cópia. O
que eu quero dizer é: se isso não é verdadeiro, é falso; se isso não é falso, é ver
dadeiro; uma situafãO intermediária é a priori dificilmente manipulável. Ou
ainda: um operador não deve ser ao mesmo tempo um operador e o resultado de
uma operação. Para tomar dois exemplos bem esquemáticos.
A impregnafão desse interdito do terceiro excluído que se encontra nas dife
rentes expressões. Esse interdito é tão pesado que temos unia certa dificuldade de
entender o próprio conceito de complexidade, que, no fundo, convoca a intrusão
do terceiro. A complexificafão, acrescenta o senhor, quando eu proponho a com
preendê-la como a intrusão do terceiro imprevisível, não totalmente previsível em
toda a relafãO de construfão, de conhecimento? Essa intrusão, que tem conseqiiên
cias tão dramáticas em termos de afãO hoje com, por exemplo, o desenvolvimento
da informática, os sistemas "experts". Essa inibifãO é tão forte que me pergunto
se podemos tolerá-la; não devemos dizer a nós mesmos que todos os paradigmas
que o senhor nos propõe não vão conduzir ipso facto à hipótese de trabalho?
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Edgar Morin
Devemos nos resignar, privar-nos desse aparelho lógico, que se tornou lógica for
mal e que por isso adquiriu uma fecundidade, uma força, uma economia que, por
outro motivo, nos surpreeende? Privar-nos, com efeito, desses fantásticos proveitos
das lógicas exclusivas ou excludentes, tornadas formais; e devemos aceitar repartir,
com uma "bolsa" muito menos aparelhada em termos de elegância, de comodidade
de emino? Não éfácil ensinar uma lógica deontológica hoje em dia. E as lógicas
flexíveis, pelo menos para o momento, é o cinema, por assim dizer, a boa velha lógi
ca com um pouco de probabilidade. Mas permanecemos com a nossa velha receita.
Minha pergunta: O senhor está pronto para dizer: Sim, convenhamos que o
seu aparelho lógico, oficial, constitucional é, com efeito, muito perigoso para nos
permitir com alguma probidade e segurança explorar as outras construções do
conhecimento que o senhor sugeriu, e, em conseqiiência, esforçamo-nos por inovar,
de um lado, por reformular outras lógicas. Ou nós tornamos conveniente que
infringiremos uma regra sagrada fora daquela, aquela de Aristóteles, de Santo
Tomás de Aquino, de Port-Royal... Tem-se um tal corpo de batalha que não
temos o direito de nos privar dele.
R.: A questão é gravíssima. Vou resumir um pouco o meu ponto de
vista, e aproveitarei para falar de Marx e de Hegel.
Aproveito que o terceiro excluído que incomoda o pensamento cons
trutivo ou sintético, recursivo, é necessário ao pensamento analítico,
segmentário. Em outras palavras, não podemos abster-nos do pensa
mento analítico, mas é preciso admitir que ele é segmentário, ou seja,
que cada segmento do nosso raciocínio não pode obedecer à lógica aris
totélica. Somente o todo do nosso raciocínio e do nosso pensamento o
ultrapassa e lhe foge de uma certa maneira, se ele é construtor ou cria
dor. Eu diria, para simplificar: o pensamento é muito mais do que a
lógica, mas ele não é nada sem a lógica. Isso é urna coisa.
Existem também dois tipos de idéias que eu gostaria de elucidar com
relação aos limites da lógica aristotélica. Um deles é a idéia de transgres
são e o outro, de dialógica. A idéia de transgressão, no momento em que
formulamos, sintetizamos o princípio segundo o qual existe o não-eu no
eu, eu sou o que sou, e eu não sou quem sou, nós sustentamos os propósitos que, de
outro modo, estão inteiramente coerentes porque posso segmentaria
mente, fazendo apelo à lógica aristotélica, aí chegar, se bem que a for
mulação global ultrapasse inteiramente a lógica aristotélica.
Então, o que é a aventura do pensamento1
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A inteligência da complexidade
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A inteligência da complexidade
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P.: Apenas uma pequena ressalva: essa apresentação não é um pouco euro
peu-centrista? Eu daria dois exemplos contrários de acasos: o primeiro é um
filósofo árabe do século IX que redescobre a lógica absolutamente moderna. O
meu problema é que a história desse autor que descobre uma história fazendo
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A inteligência da complexidade
história e que não tem absolutamente nenhum impacto sobre a sociedade de seu
tempo porque ele teve realmente medo do que havia encontrado que ele regrediu no
conhecimento. Isso é para o mundo já mediterrâneo, mas é ainda mais verdadeiro
para os outros mundos que consideramos como arcaicos, por exemplo, em matemá
tica ou em álgebra. E a questão que eu colocaria, já que o senhor disse que nenhuma
das variáveis é necessária, é: o que faz que num determinado momento essa coisa
aconteça lá e não noutro lugar? Porque eu creio na progressividade, mas acredito
antes de mais nada na espiral. O que faz que num momento onde existe um con
junto de fatores o desencadeamento epistemológico possa se produzir?
R.: O senhor tem dois exemplos que são somente em parte esclarece
dores. O senhor tem, por exemplo, o surgimento de um pensamento novo;
esse pensamento novo pode não dar frutos, não criar o movimento, a cor
rente. Se ele está isolado, não é muito desviante, ou seja, ele tem medo dele
mesmo. A eclosão do novo pode-se fazer em condições sócio-históricas que
não a determinam; isso retorna a condições individuais do conhecimento.
Acredito que um espírito original pode, numa civilização, ter uma
idéia que não seja absolutamente determinada pelas condições da civili
zação. Mas essas condições socioculturais vão, sem dúvida, ajudar a fazer
frutificar, quando elas já estiverem favoráveis, tal tipo de invenção, tal
tipo de descoberta. Tenho certeza de que os não-crentes, os livres-pensa
dores devem ter existido mesmo nas sociedades arcaicas; mas apenas eles
não as diziam por prudência... Portanto, acredito que as condições sócio
históricas chegam a um dado momento para fazer o sucesso ou o fracasso
de um movimento de idéia. E, sobretudo, no início, existe um período
aleatório em que o movimento pode ter êxito ou fracassar.
Tome o caso, por exemplo, do terrorismo. Como ocorreu na Aleman
ha, na Itália. Ele não se verificou na França. Na realidade, é suficiente
que no início possa constituir-se em grupo de vinte ou trinta pessoas
para que isso funcione, e se, de início, o primeiro grupo de quatro ou
cinco pessoas se detém, isso não funciona mais. Existe um papel que o
acaso desempenha no inído, mas, uma vez que tomou impulso, isso se
torna uma outra coisa. É por esse motivo que qualquer sociologia da cul
tura, das idéias, não pode absolutamente ser uma sociologia determinis
ta, por assim dizer: isso teve êxito porque isso deveria ser bem sucedido.
De modo nenhum. Existem o movimento autógeno das coisas e as con
dições exteriores. Isso funciona ou não funciona. No início, o acaso
desempenha um grande papel, que vai diminuindo pouco a pouco.
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A palavra vazia
A palavra "complexidade" está cada vez mais corrente e deste fato
depreende-se que a complexidade esteja cada vez mais reconhecida.
Esse reconhecimento da complexidade nos faz não elucidar, mas elidir
os problemas que ela coloca: dizer "é complexo" é confessar a dificuldade
de descrever, de explicar, é exprimir sua confusão diante de um objeto
que comporta traços diversos, excesso de multiplicidade e de indistinção
interna. Os sinónimos de "complexo" são, segundo o dicionário, "árduo,
difícil, espinhoso, embaraçoso, embrulhado, confuso, enrolado, entrelaça
do, indecifrável, inextricável, obscuro, penoso". A palavra "complexida
de" exprime ao mesmo tempo confusão da coisa designada e embaraço do
locutor, sua incerteza para determinar, esclarecer, definir e, finalmente,
sua impossibilidade de fazê-lo. O uso banal da palavra "complexidade"
significa quando muito "isso não é simples, isso não está claro, tudo não
é branco nem preto, não se pode confiar nas aparências, existem dúvidas,
nós não sabemos muito bem". A palavra "complexidade" é finalmente
uma palavra em que o demasiado pleno se faz uma palavra vazia. Como
ela é cada vez mais empregada, seu vazio se espalha cada vez mais.
Existe, portanto, um desafio da complexidade. Ele se encontra em
todo o conhecimento, cotidiano, político, filosófico, e, de agora em
diante, de forma aguçada, no conhecimento científico. Ele transborda
na ação e na ética.
A dissolução da complexidade
A incapacidade de reconhecer, tratar e pensar a complexidade é um
resultado do nosso sistema educativo. Ele ensina a validar toda percepção,
toda descrição, toda explicação pela clareza e distinção. Ele nos inculca um
modo de conhecimento oriundo da organização das ciências e das técnicas
do século XIX, que é difundida no conjunto das atividades sociais, polí
ticas e humanas. Por toda parte ele é abstrato, ou seja, extraído, um objeto
de seu contexto e do seu conjunto que rejeita os laços ·e as intercomunica
ções com o seu meio, insere-o num compartimento da disciplina cujas
fronteiras quebram arbitrariamente a sistemicidade (a relação de uma
parte com o todo) e a mulcidimensionalidade dos fenómenos; ele conduz-
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A inteligência da complexidade
A inteligência cega
Mas uma inteligência cega invadiu todos os setores técnicos,
políticos e sociais.
Desse modo, a economia, que é a ciência social matematicamente
mais avançada, é a ciência social e humanamente mais atrasada, porque
ela se abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas,
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A inteligência da complexidade
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A inteligência da complexidade
Os pilares da certeza
Até o início do século XX - quando ela entra em crise -, a ciência
"clássica" se fundamentou sobre quatro pilares da certeza que têm por
causa e efeito dissolver a complexidade pela simplicidade: o princípio
da ordem, o princípio de separação, o princípio de redução, o caráter
absoluto da lógica dedutivo-identitária.
Esses quatro pilares suscitaram um tipo de conhecimento que
expandiu seu império das ciências físicas às ciências humanas, das ciên
cias às técnicas - de agora em diante associadas em tecnociências -, destas
às instituições industriais, burocráticas privadas e públicas, e desse
modo esse império cresceu nas dimensões do mundo contemporâneo.
O pilar da "ordem" postula que o Universo é regido pelas leis impe
rativas. Seu caráter absoluto provém da origem da monarquia absoluta,
humana e/ou divina. Até Newton, é a perfeição divina que garante a
perfeição das Leis da Natureza. Depois, com o reenvio de Deus ao
desemprego tecnológico pela ciência do século XIX, a Ordem se fun
damenta sobre ela mesma, ou melhor, é o mundo concebido como
máquina perfeita, que adquire o absolutismo arrancado de Deus.
Da realeza da ordem emana, portanto, uma concepção determinista
e mecânica do mundo. Toda desordem, todo acaso aparente são consi
derados como uma carência do nosso conhecimento ou um efeito da
nossa ignorância provisória. Atrás dessa desordem aparente existe uma
ordem escondida a ser descoberta e é a pesquisa multiforme, obsessiva
da ordem escondida das leis da natureza que a conduz às grandiosas des
cobertas da ciência física, de Newton a Einstein.
O segundo pilar, o do princípio da separabilidade, é constituído pelo
princípio segundo o qual para resolver um problema é preciso decompô-lo
em elementos simples. Segundo regra do Discurso do método: "Dividir
cada uma das dificuldades que eu examinaria igualmente em partes que
pudessem e que fossem convenientes para melhor resolvê-las". Esse
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A inteligência da complexidade
28. O primeiro entre eles, o princípio da identidade, formulado sob a forma de A é A, afirma a
impossibilidade que o mesmo existe e não existe ao mesmo tempo e sob a mesma relação.
O princípio da contradição (isto é, da não-contradição) afirma a impossibilidade que um mesmo
atributo pertença e não pertença a um mesmo sujeito, ao mesmo tempo e sob a mesma relação: A
não pode ser ao mesmo tempo B e não-B.
O princípio do terceiro excluído afirma, sobre a base de que roda a proposição clorada de signifi
cação é verdadeira ou falsa, que entre duas proposições contraditórias uma somente pode ser consi
derada como verdadeira: A é ou B ou não-B.
Os crês princípios são solidiírios. É notório que Aristóteles tenha restringido sua validade a um
mesmo tempo e sob uma mesma relação, indicando implicitamence que a pertinência desses axiomas
possa cessar desde que exista uma mudança, seja de tempo, seja de relação. Mas a rnzão e a ciência
clássicas vão absolutizar esses princípios.
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A inteligência da complexidade
3 l. Como dizia Einstein, "'a ciência é a tentativa de coordenar a multiplicidade caótica da experiên
cia em um sistema de pensamento unitário (jn Holron, 1981, p. 231).
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O pensamento simplificador
A conjunção dos quatro pilares determina o pensamento sim
plificador, submisso à hegemonia da disjunção, da redução e do cál
culo. Este só concebe os objetos simples que obedecem às leis gerais.
Ele produz um saber anônimo, cego, sobre todo o contexto e todo o
complexo; ignora o singular, o concreto, a existência, o sujeito, a afe
tividade, os sofrimenros, os gozos, os desejos, as finalidades, o espí
rito, a consciência. Ele considera o cosmos, a vida, o ser humano, a
sociedade como máquinas deterministas triviais através das quais se
poderiam prever todos os outputs se conhecêssemos todos os inputs.
Ele seleciona sempre como verdadeira explicação a mais simples, em
virtude não mais de uma navalha de Occam, mas de uma serra de
cortar toras que devasta, por princípio, o complexo. Mas, como diz
Musil, no Homem sem qualidades, "em virtude de qual princípio o
valor explicativo de um fato psicológico deveria ser tanto maior do
que ele é simples?"
Sofisticado com relação ao "bom senso" ingênuo, mas ela mesma
extremamente ingênua com relação à complexidade do mundo, a sim
plificação científica havia criado um Universo mecânico, sem acidentes,
sem inovações, sem indivíduos, sem seres dissolvendo os conceitos de
cosmos, de natureza, de indivíduo. Em antropologia, a corrente estru
turalista havia substituído as leis pelas estruturas em detrimento da
noção de ser humano. O objetivo das ciências do homem é dissolver o
homem, dizia Lévi-Strauss, enquanto Foucault havia constatado que o
homem era um inexistente, surgido somente no início do século XIX e
já condenado à morte. Em sociologia, que trata o objeto mais complexo
de todos, o determinismo expulsava a complexidade. Aquilo que
Wazlawick chama de "terrível simplificação" é a eliminação de um pro
blema levantado no nível de um complexus.
A aplicação aos fenômenos humanos de um pensamento simpli
ficador conduz a idéias mais grosseiras. Como destacou Wittgen
stein, "as explicações dos usos (supostos) primitivos são muito mais
grosseiras do que são esses usos. Do mesmo modo, a maneira como
Frazer expõe as concepções mágicas e religiosas dos homens não sati
faz: ela faz com que essas concepções apareçam como erros" (em
James Frazer, 1977). Efetivamente, a simplificação aberrante desse
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32. A noção de paradigma, tal como entendemos, foi desenvolvida e explorada no lvlttodo, t. 4, A 1
ldéia.r, III, 3, pp.211�238. Rescringimo-nos aqui, esperando retornar a essa definição: "Um paradig
ma contém, para todos os discursos que se efetuam sob seu império, os conceitos fundamentais ou as
categorias dominantes da inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações lógicas de atra
ção/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre esses conceitos e categorias".
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33. Aquilo gue chamamos hoje de "física do caos" significa gue estados iniciais deterministas podem
suscitar comportamentos aparentemente desordenados e por isso imprevisíveis.
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Nos anos 60, sob o efeito do escudo da tectónica das placas, as ciên
cias da terra consideram o nosso planeta como um sistema complexo que
se auto-produz e se auto-organiza; articulam entre elas as disciplinas anti
gamente separadas como eram a geologia, a meteorologia, a vulcanologia,
a sismologia. Elas nos sugerem como a diminuição da extremidade con
tinental do sudeste asiático, sob o efeito da extrema erosão anual devida
às monções, pode provocar a oscilação do oeste da Anatólia e uma pres
são que provoca tremores de terra ou erupções na Grécia e na Itália.
O progresso das ciências da terra e da ecologia revitaliza a geografia,
ciência complexa por princípio, visto que ela cobre a física terrestre, a
biosfera e as implantações humanas. Marginalizada pelas disciplinas
triunfantes, privada do pensamento organizador além do possibilismo
de Vida! Lablache ou do determinismo de Ratzell, procedente de suas
monografias verticais sobre uma região pela descrição dos estratos
sucessivos físicos, biológicos e humanos, a geografia, que além disso
forneceu seus profissionais à ecologia e às ciências da terra, retoma suas
perspectivas multidimensionais e globalizantes (cf. Jacques Levy, Le
monde pour cité, debate com Alfred Valladao, Hachette). Ela desenvolve
seus pseudopodos geopolíticos (cf. Y. lacoste, Dictionnaire de geopoliti
que, Flammarion, 1993) e reassume sua vocação original; como diz Jean
Pierre Allix, "nós somos necessariamente os geralistas". (L 'espace
humain, une invitation à la geographie, Seuil, 1996). A geografia se amplia
na ciência da terra dos homens.
Enfim, pouco a pouco, na mesma época, ocorreu o nascimento da
cosmologia científica. O cosmos havia sido liquidado no início do sécu
lo pela concepção einsteiniana do espaço-tempo. Sua ressurreição
começa com a colocação em evidência por Hubble da dispersão das
galáxias, a hipótese do átomo primitivo de Lemaitre, depois, a partir
dos anos 60, com as diferentes descobertas que levaram à concepção que
nós delineamos de um cosmos singular em devir. Para conhecer esse
cosmos e conceber notadamente a formação de núcleos, átomos e inter
reações interiores aos astros, associam-se à observação astrofísica os
resultados das experimentações microfísicas, ou seja, a disciplina do
infinitamente pequeno à disciplina do infinitamente grande, e cercos
cosmólogos, meditando, a exemplo de Pascal, sobre a situação humana
entre esses dois infinitos, tentam inrroduzir a possibilidade da vida e da
consciência na sua idéia de cosmos (princípio antrópico).
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A inseparabilidade microfísica
A revolução mais considerável do ponto de vista ao mesmo tempo
da redução e da inseparabilidade ocorreu na microfísica; aí mesmo, onde
a ciência clássica tinha sonhado atingir o primeiro objeto, substancial,
indivisível, ela encontrou um objeto alucinante, depois fantasma.
A partícula é não somente um objeto lodoso que se manifesta tanto
como onda quanto como corpúsculo. É uma entidade cintilante, uma
espécie de microburaco negro, uma "fronteira" entre o percebido e o
não-percebido, o detectado e o não-detectado, a realidade tridimensio
nal e a realidade quântica (Bearden, janeiro de 1977, p. 15). E eis que
como constituinte da partícula aparece o quark: empiricamente não iso
lável, ele só existe teoricamente, é puramente matemático e conceituai.
É um objeto fantasma.
Einstein havia destacado o absurdo, segundo ele, de uma das con
seqüências da mecânica quântica, que era permitir que as partículas,
já tendo interagido por força, embora muito afastadas uma da outra,
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38. De fato, essa contradição fundamental foi ocultada, contornada pelas gerações seguintes de
microfísicos, que retiraram o problema conceitua! e lógico em proveito das formulações matemáti
cas operacionais.
39. O gato de Schriidinger (de memória): um gato é colocado num caixa lacrada provida de um bura
co que permite a entrada de um único fóton. O fóton bate num espelbo semitransparente. Se ele é
refletido, nada acontece; se ele passa através dele desencadeia um mecanismo que maca o gato (as
chances são iguais). Nós fizemos a experiência. O gato está vivo? A resposta - e o paradoxo - é que,
antes da observação, o gato está ao mesmo tempo morto e vivo. E quando uma alternativa é atuali
zada não se sabe aquilo que advém da outra.
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A brecha/abertura gõdeliana
Desde que disputavam no campo fechado da metamatemática o
intuicionismo de um Brouwer e o formalismo de um Hilbert, tinha-se
por inúmeras vezes notado que é impossível levar a um termo final a
obra de axiomatização, isto é, a redução do intuitivo por sua reabsorvição
final na lógica; sempre sobrevive "alguma coisa anterior, um intuitivo
precedente" (R. Blanché, 1967, p. 65). Arend Heyting, matemático
"intuicionista", havia defendido em 1930 a impossibilidade de uma
completa formalização pela razão profunda e essencial de que "a possi
bilidade de pensar não pode ser reduzida a um número definido de
regras construídas anteriormente".
Mas podia-se acreditar, e muitos acreditam ainda, que, se existia um
resíduo final, não logificável, numa axiomatização, pelo menos o reino
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40. U ber formal 1menlscheidbare Siilzen der Principia 111athematica. (On formally 1mdecidable Propositions o/
Principia Mathematica and Related Systems).
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42. "ºA aproximação reducionista não parou de levar ao sucesso, ela não tem o menor limite. Nos inú
meros casos, ela é necessária, mas não suficiente. Segundo qualquer verossimilhança, ver-se-á nos
anos seguintes desenvolver paralelamente uma outra aproximação mais integrativa e 'organímica' no
estudo dos grandes problemas da biologia." (F. Gros, F. Jacob, P. Royer, 1979).
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O novo mundo
A invasão dos princípios da ciência clássica nas ciências humanas
e sociais não foi total. Paradoxalmente, as ciências naturais estão em
vias de reencontrar uma problemática de complexidade que as ciências
humanas puderam aqui e lá proteger. As últimas conquistas das ciên
cias naturais e sobretudo físicas abalam o paradigma da simplificação:
a complexidade torna a invadir o mundo por caminhos que a tinham
rechaçado. A maior parte das ciências descobre campos diversos em que
os enunciados simples são falsos e "em que o prejulgamento em favor da lei
se torna prejudicial" (Hayek). Existe a ressurreição dos objetos globais
como o cosmos, a natureza, o homem que haviam sido esquartejados,
finalmente desintegrados, seja porque eles relevavam o sentido ingênuo
pré-científico da realidade, seja porque eles comportavam no seu seio
uma complexidade insuportável.
A ciência clássica pode tratar os problemas cujos fatores julgados
predominantes obedeciam às leis da lógica clássica e são para a maioria
mensuráveis. Ela se encontra bloqueada diante dos problemas onde essa
lógica é desafiada e onde a medida é incerta.
O calculável e o mensurável não são mais do que uma província no
incalculável e no desmedido. E perder a Ordem do mundo para os cien
tistas formados na religião dos quatro pilares é tão desesperador quanto
para um crente perder Deus. Efetivamente, a Ordem do mundo era o
grandioso relicário da divina Perfeição.
Há o desmoronamento epistemológico do atomismo, do elementaris
mo, do positivismo, lógico ou não, da antiga certeza absoluta. "Único
ponto pouco próximo ao certo nesse naufrágio: o ponto de interrogação",
diz o poeta Salah Stetié.
Segundo as palavras de Hegel, estranhamente reatualizadas mas de
maneira nova: "Qualquer massa de idéias e de conceitos que ocorreram
até aqui, os laços do mundo estão dissolvidos e se desmoronam neles
mesmos como numa visão de sonho".
131
Edgar Morin
A complexidade-esfíngie
Mais ela se desenvolve, mais o pensamento encontra o complexo.
O complexo surge como impossibilidade de simplificar lá onde a
desordem e a incerteza perturbam a vontade do conhecimento, lá onde a
unidade complexa se desintegra se a reduzirmos a seus elementos, lá onde
ser perdem distinção e clareza nas causalidades e nas identidades, lá onde
as antinomias fazem divagar o curso do raciocínio, lá onde o sujeito obser
vador surpreende seu próprio rosto no objeto de sua observação.
132
A inteligência da complexidade
133
r
Edgar Morin
O desafio
Desse modo, a complexidade é desafio e não solução.
Existem três desafios maiores, simultâneos e freqüentemente liga
dos, que são lançados pela complexidade.
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A inteligência da complexidade
O desafio do Método
Nós também temos necessidade de um método que reúna o sepa
rado, afronte o incerto e supere as insuficiências lógicas;
• que restitui, reconstitui ou recompõe os conjuntos/sistemas e
Unidades complexas;
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r
Edgar Morin
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A inteligência da complexidade
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r
Capítulo 3
Universalidade, incerteza,
educação e complexidade:
Diálogos com Edgar Morin
--
3.1 O homem e o universo, o homem e a ciência
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"4'
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que as pessoas andem em círculo. Isso não está inscrito em nenhum esta
tuto. São coisas que sentimos em nós mesmos. Sou pesquisador do CNRS,
uma instituição científica, e, por outro lado, tenho o direito, enquanto
pessoa, de ter opiniões sobre diferentes sujeitos. E posso me enganar!
H. Reeves: É uma distinção importante. O público tem tendência a
dar à personagem do "sábio" um esplendor, uma espécie de universali
dade: arriscamo-nos a cair no cientismo. Quando perguntam minha
opinião, por exemplo, sobre a energia nuclear, insisto sempre em dizer
que estou dando um ponto de vista pessoal. Trata-se de um problema
muito complexo, em que intervêm variáveis, imponderáveis e compo
nentes. A resposta não está nos livros. Posso emitir uma opinião porque
conheço bem a técnica. Mas posso também me enganar: é independente
daquilo que sei, ou não sei, sobre a física nuclear. Saber se é preciso uti
lizar a energia nuclear ou não é um problema social muito extenso.
E. Morin: Devemos a qualquer preço evitar nos servir da nossa auto
ridade como pseudomagos ou pseudopadres.
151
P"
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Por quê 1
Porque as ciências nos deixam incertos sobre nós mesmos: "Quem
sou eu?"
Dessa maneira, cada um tem um grande prazer em ler seu horóscopo,
ainda que ele não acredite nele ... Nós somos tão diversos, tão múltiplos!
O maior inimigo da racionalidade é a racionalização. Os maiores ini
migos estão no interior. O maior inimigo do homem é evidentemente o
homem. O maior inimigo da ciência é essa forma de cientismo. É
inquietante esclerosar-se, compartimentar-se, fechar-se na especialização,
que destrói a própria seiva do espírito da pesquisa.
Os movimentos anticiência se desenvolvem a partir dos evidentes
perigos do desenvolvimento científico no domínio das manipulações de
todas as espécies, não somente físicas. Eles se desenvolvem também
porque a todos os problemas que eles ressentem enquanto seres vivos:
"O que fazer? Como viver? Com que moral, com que ética?" A ciência
não responde - o que é pior: despreza essas questões.
Essa situação é acima de tudo dramática, na medida em que estamos
numa época em que a ciência reabriu todos os grandes problemas meta
físicos que dormiam: o problema do universo, o problema do lugar do
homem no universo são "reabertos" de uma maneira que nenhum espí
rito, tão grande como Platão, Descartes, pode conceber. Do mesmo
modo para a máquina viva, tal qual a conhecemos hoje em dia. A
"máquina" de Descartes. É através da reflexão sobre a ciência que pode
mos avançar no nosso desenvolvimento propriamente humanista, sob a
condição de conceber um novo humanismo. Eu digo "reflexão". Quer
dizer que o conhecimento científico não é somente um produto que se
coloque nos computadores para ser manipulado pelas forças anônimas.
O conhecimento científico deve ser feito para ser refletido e pensado
por qualquer cidadão.
H. Reeves: Estou plenamente de acordo. A descoberta do faro de que
o universo tem uma história é um acontecimento de uma importância
capital no plano filosófico. Essa tese foi confirmada de maneira espeta
cular há menos de vinte anos através da observação da irradiação fóssil.
Para o cientista dos séculos passados, o universo não tem história. Ele
está na eternidade das leis imutáveis da física.
E. Morin: Sim, o cosmos havia sido suprimido em favor da physis.
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Hubert Reeves concorda plenamente com essa análise de Edgar Morin: "São
as enzimas da comunicação e da reflexão entre os setores que são absolutamente
necessárias para que exista comunicação entre a cultura científica e a nova cul
tura humanista, que deve, a meu ver, nascer. Senão, caminhamos em direção a
uma nova barbárie".
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F. Ewald: Qual é o diagnóstico que o senhor faz da atitude das nossas socie
dades desenvolvidas do ponto de vista da incerteza, em que a necessidade de segu
rança parece ser tão forte que as pessoas pedem sempre mais proteção, segurança
e securidades sociais?
E. Morin: À medida que as antigas formas de solidariedade, familiares
e locais, desapareceram, é preciso solidarizar a sociedade no seu conjunto
por caminhos administrativos e burocráticos. Essa exigência legítima
teve efeitos morais e intelectuais perversos, notadamente uma mentali
dade securitária que pretende eliminar da existência a idéia de risco.
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..
mais freqüentemente ao mesmo tempo empírica e teórica.
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pode, com efeito, existir sem se fixar sobre uma organização biológica
e física da qual ela dependa. Em outras palavras, não haveria uma rea
lidade antropossocial se não houvesse a organização física e biológica
que lhe servissse de apoio. Trata-se, pois, de um tipo de realidade que
somente emerge como tal a partir de um determinado nível de comple
xidade de organização biológica. Nesse sentido, existe um escoramento
de uma pela outra. Mas o mais importante ainda é a noção de emergên
cia que significa que, num dado momento, os elementos constitutivos
de um sistema fazem aparecer, pela virtude da complexidade de sua
organização, as propriedades e as qualidades que não existiam de modo
nenhum, nem mesmo potencialmente, no nível das partes isoladas. Além
disso, essa realidade não existe jamais como um dado constituído para
sempre. Ela não é inerte. É uma tensão mantida, recomeçada a cada ins
tante pelas totalidades organímicas e sociais nas quais nos inserimos. Se
a palavra inventada quer designar que essa realidade autoproduz-se a si
própria, então podemos dizer que ela foi inventada. Por oposição a essa
realidade, as visões são aquelas das disciplinas que cortam essa realida
de para chegar a se justificar. Essas partes são, enfim, legítimas, sob a
condição de jamais esquecerem seu caráter relativo.
173
Edgar Morin
efetuar-se sem uma evolução genética da qual, contudo, ele não saberia
justificar-se, etc.
Por sua vez, a evolução genética é inconcebível sem a hipótese de
transformações ecológicas (regressão da floresta), etc. Reencontramos
aqui a idéia-chave de interdependência.
É preciso, pois, dar-se conta de que ela exprime, freqüentemente
mascarando, o aspecto mais importante e, poderíamos dizer, essencial
da realidade estudada. Os biólogos dizem naturalmente, hoje em dia:
nós não estudamos mais a vida, mas os comportamentos, organismos,
processos dos genes, moléculas, etc.
Ora, o conceito de vida compreende o conjunto das qualidades e
das propriedades que encontramos em todos os seres vivos, a come
çar pelas bactérias (capacidades de auto-organização, de auto-repro
dução, de computação, ou seja, de tratamento de informação, de
comunicação, etc.). Mas esse conjunto de qualidades, de proprieda
des, não existe jamais no nível da molécula isolada, no nível dos
constituintes. Ele só existe no momento em que a totalidade funciona
efetivamente nessa coleção de estudos em que cada um, finalmente, é
definido pelas modalidades de seu corte - são os "buracos", os inters
tícios poupados pelos cortes, os "não-objetos" de conhecimento que
conservam intacto o essencial.
E aí segue adiante a idéia do homem como noção de vida. Você pode
fazer abstração do homem, dos pontos de vista da econometria ou da
estatística; você pode até fazê-lo pela economia na qualidade de psi
canalista, se você faz do inconsciente uma linguagem anônima. Cada
disciplina pode finalmente fazer mais ou menos a economia da noção do
homem e chegaremos a uma visão tipicamente diaforética para a qual o
homem não existe, porque os conceitos disciplinares jamais o encontra
ram. O importante, do ponto de vista que eu sustento, é reabilitar certos
conceitos molares (que não podem ser moleculares), conceitos que rea
grupam um número muito grande de funções e de propriedades, insis
tindo no caráter global da organização que permite a emergência e a
articulação dessas múltiplas funções. A disciplina dissolve, destrói
aquilo que a realidade antropossocial faz. Retornamos aqui a um pro
blema fundamental: o de uma certa visão que oculta mais ainda do que
permite ver.
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,..,
A inteligência da complexidade
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J. Ardoino: Nesse ponto, existe uma outra questão que eu gostaria de discu
tir: para tentar combater os efeitos esterilizantes do pensamento disjuntivo, são
delineadas tentativas, sempre redutoras, de invasão de um campo disciplinar em
outro. Assim, Moreno e a ilusão psicossociológica de um continuum entre o
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A inteligência da complexidade
não faz jamais um indulto. Por sua vez, o Estado pode querer anistias,
atos globais devido aos cálculos de uma política. O que quero dizer é
que o que há de mais importante, de mais elevado, ao mesmo tempo de
mais duvidoso e de mais vil, a consciência, o sentimento, só existe
verdadeiramente no nível do indivíduo, da pessoa humana. Há uma
capacidade, uma potencialidade de dignidade incomensuráveis do indi
víduo em relação ao todo, ainda que esse indivíduo, com sua consciência,
aquela do mundo, não existiria evidentemente sem o todo, ou seja, sem
a cultura, a história acumulada pelas sociedades, pelas nações, etc.
Tudo isso para mostrar que não existe privilégio epistemológico
importante da totalidade. O único caráter epistemológico importante
da totalidade é que o conhecimento de um tal ponto de vista deve ser
o menos mutilante possível e, como conseqüência, definido explicita
mente como multidimensional (mais ainda que total). A totalidade,
nos fatos, está sempre mais ou menos quebrada. Ela é inacessível. É o
exemplo que utilizei no Método para mostrar que subsistiam buracos
nas zonas de sombra da totalidade. Quando Antônio declara seu amor
a Cleópatra, nenhum dos trinta milhões de células que constituem
Antônio ou Cleópatra sabe que eles são constituídos por trinta milhões
de células. O que significa que existe uma espécie de relação de estra
nheza, em nós mesmos, entre aquilo que nós acreditamos ser - nossa
alma, nosso amor, nossa simpatia, nosso engajamento - e essa máquina
formidável composta de outros seres, que é o nosso ser corporal. O que
existe entre o indivíduo e suas células é um pouco como a sociedade e
seus indíviduos, ou seja, que as interações entre essa república de trin
ta milhões de células nos produzem, sem parar, mas nós retroagimos
organizando nossos comportamentos. Aí está, se você quiser, o que
posso dizer sobre a idéia do todo e das partes. A parte enquanto parte
não dever ser considerada irreversivelmente como subordinada ao todo
enquanto todo.
179
Edgar Morin
seja, não das constituintes, mas dessa unidade que é a pessoa, existe
uma certa espécie de jogo entre um cérebro reptiliano, um cérebro
mamífero, um cérebro primara, um cérebro humano, e tudo isso é uma
espécie de jogo permanente conflitual e (ou) cooperativo entre vários
extratos dessa totalidade que é o nosso cérebro. O nosso cérebro é dual
na sua divisão entre dois hemisférios que não são absolutamente simé
tricos; existe uma outra multiplicidade entre aquilo que é consciente,
subconsciente e inconsciente. Eu digo: eu sou ego, mas o "ego" não é
exatamente idêntico ao "eu", porque o Eu é o locutor instantâneo que
ocupa um certo lugar exclusivo, e o ego é a maneira que ele tem de se
objetivar para se recuperar; o ego é múltiplo, o ego é dividido, o ego é
heterogêneo, mas, ao mesmo tempo, ele é um.
Na sociedade criam-se fatores formidáveis de heterogeneidade. No
princípio, os indivíduos são muito heterogêneos uns em relação aos
outros, mesmo quando pertencem à mesma cultura. Um estudo de Niel
me havia chamado muito a atenção porque ele me mostrava que numa
pequena sociedade de índios do Amazonas, que vivia pelo menos havia
vários séculos em estado de isolamento genético, os indivíduos eram tão
diferentes do ponto de vista intelectual, afetivo, uns dos outros, apesar
dessa endogamia permanente, como numa grande metrópole moderna.
A formidável diferença psicoafetiva de indivíduo a indivíduo é um
fenômeno que se tende a subestimar porque só levamos em consideração
as diferenças mais banais (o tamanho, a pele). Por outro lado, o que
existe no nível de um indivíduo não é mais verdadeiro da mesma
maneira do que num nível de um grupo de doze pessoas não é mais ver
dadeiro do que no nível de uma empresa. Tudo isso é absolutamente
heterogêneo e é preciso tomar consciência dessa heterogeneidade sob a
condição de que vejamos também a unidade e a identidade nas diferenças,
até mesmo na oposição.
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você ignora tudo isso, mutila a realidade antropossocial, que tem sempre
um componente subjetivo.
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T
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J. Ardoíno: No fundo, tudo isso que voce diz me faz pensar na oposição fun
damental entre a ordem do ím-plicado e a ordem do ex-plicado. Retornando
os termos de Dilthey, poderíamos falar de ciências da implicação com relação às
ciências da explicação. Dilthey falava de compreensão.
E. Morin: Exato. É preciso encontrar os meios racionais de dar conta
do implicado e não explicar, acreditando-nos "desimplicados".
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Capítulo 4
O pensamento complexo,
um pensamento que pensa
Edgar Morin
-- - -
4.1 O paradigma da complexidade
Pensar a complexidade - esse é o maior desafio do pensamento contem
porâneo, que necessita de uma reforma no nosso modo de pensar.
O pensamento científico clássico se edificou sobre três pilares: a
"ordem", a "separabilidade", a "razão". Ora, as bases de cada um deles
encontram-se hoje em dia abaladas pelo desenvolvimento, inclusive a
das ciências, que originalmente foram fundadas sobre esses três pilares.
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200
•
A inteligência da complexidade
As três teorias
Ordem, separabilidade e razão absoluta - esses três pilares, do
nosso ponto de vista, foram, portanto, abalados pelo desenvolvimento
das ciências contemporâneas. Assim, como se conduzir num universo
onde a ordem não é absoluta, ou a separabilidade é limitada, onde a
lógica comporta buracos?
Esse é o problema com o qual se defronta o pensamento da com
plexidade.
Uma primeira via de acesso é que podemos chamar hoje em dia
de "as três teorias", que são a teoria da informação, a cibernética e a teo
ria dos sistemas. Essas três teorias, primas e inseparáveis, surgiram no
início dos anos 40 e se fecundaram mutuamente.
A teoria da informação é uma ferramenta para o tratamento da
incerteza, da surpresa, do inesperado. Desse modo, �iE(���':..ção que
indica o vencedor de uma batalha resolve uma incerteza; aquela que
anuncia a morte súbita de um tirano traz o inesperado e, ao mesmo
tempo, a novidade.
Esse conceito de informação permite entrar num universo onde exis
tem ao mesmo tempo a ordem (a redundância), a desordem (o bruto), e
extrair o novo (a informação). Além do mais, a informação pode assu
mir a forma organizadora (programadora) no seio de uma máquina
cibernética. A informação torna-se, pois, aquilo que controla a energia
e aquilo que dá autonomia a uma máquina.
201
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202
...
A inteligência da complexidade
A auto-organização
A essas três teorias é preciso acrescentar os desenvolvimentos con
ceituais trazidos pela idéia de auto-organização. Aqui, alguns nomes
devem ser mencionados: Von Neumann, Von Foerster, Atlan e Pri
gogine. Na sua teoria dos autômatos auto-organizadores, Von Neumann
colocou a questão da diferença entre máquinas artificiais e "máquinas
vivas". Ele apontou esse paradoxo: os elementos das máquinas artificiais
são bem fabricados, muito aperfeiçoados, mas se degradam assim que
começam a funcionar. Ao contrário, as máquinas vivas são compostas de
elementos muito pouco confiáveis, como as proteínas, que se degradam
sem ces�ar. Mas essas máquinas possuem as estranhas propriedades de
desenvolver-se, reproduzir-se e auto-regenerar-se substituindo justa
mente as moléculas degradadas por novas e as células mortas pelas
novas. A máquina artificial não pode consertar a si própria, auto-orga
nizar-se, desenvolver-se, enquanto a máquina viva se regenera perma
nentemente a partir da morte de suas células segundo a fórmula de
Heráclito: "Viver de morte, morrer de vida".
A contribuição de Von Foerster reside na sua descoberta do princí
pio da "ordem pelo barulho" ("Order from noise"). Desse modo, cubos
imantados nas duas faces vão organizar um conjunto coerente, por
agrupamento espontâneo, sob o efeito de uma energia não-direcional, a
partir de um princípio de ordem (a imantação). Assistimos, portanto, à
criação de uma ordem a partir da desordem.
Atlan pôde então conceber sua teoria do "acaso organizador". Encon
tramos uma dialógica ordem/desordem/organização no nascimento do
universo, a partir de uma agitação calorífica (desordem), onde, em cer
tas condições (encontros casuais), os princípios da ordem vão permitir
a constituição dos núcleos, dos átomos, das galáxias e das estrelas.
Encontramos ainda essa dialógica na emergência da vida pelos encon
tros que se dão entre macromoléculas no seio de uma espécie de círculo
autoprodutor que acabará por se tornar auto-organização viva. Sob as
mais diversas formas, a dialógica entre a ordem, a desordem e a organi
zação, através de inúmeras inter-retroações, está constantemente em
ação nos mundos físico, biológico e humano.
Prigogine, com sua termodinâmica dos processos irreversíveis,
introduziu de uma outra maneira a idéia de organização a partir da
203
Edgar Morin
204
A inteligência da complexidade
O fundo filosófico
Encontramos de fato na história da filosofia ocidental e oriental
inúmeros elementos e premissas de um pensamento da complexidade.
Desde a Antiguidade, o pensamento chinês se baseia na relação dialó
gica (complementar e antagônica) entre o yin e o yang e Lao-tsé proclama
que a união dos contrários caracteriza a realidade. No século XVII,
Fang Yizhi formula um verdadeiro princípio da complexidade.
No Ocidente, Heráclito percebeu a necessidade de associar em con
junto os termos contraditórios para afirmar uma verdade.
Na idade clássica, Pascal é o pensador-chave da complexidade.
Relembremos o princípio que ele formula nos seus Pensamentos: "Todo
objeto sendo ajudado e ajudando, causando e causador, sustento que é
impossível conhecer o todo sem conhecer as partes e conhecer as partes
sem conhecer o todo".
Mais tarde, Kant colocou em evidência os limites ou "aporias da
razão". Com Spinoza, encontramos a idéia da autoprodução do mundo
por ele próprio. Com Hegel, cuja dialética anuncia a dialógica, a auto
constituição torna-se o romance-novela no qual o espírito emerge da
natureza para chegar à sua conclusão; Nietzsche foi o primeiro a colocar
a crise dos fundamentos da certeza. No metamarxismo, encontramos
com Adorno, Horkheimer e o Lukács da fase mais tardia não somente
os numerosos elementos de uma crítica da razão clássica, mas também
os alimentos de uma concepção da complexidade.
Na época contemporânea, o pensamento complexo começa seu
desenvolvimento na confluência de duas revoluções científicas. A pri
meira revolução introduziu a incerteza com a termodinâmica, a física
quântica e a cosmofísica. Essa revolução científica desencadeou as refle
xões epistemológicas de Popper, Kuhn, Holton, Lakatos, Feyrabend,
que mostraram que a ciência não era a certeza mas a hipótese, que uma
teoria provada não o era em definitivo e se mantinha "falsificável", que
existia o não-científico (postulados, paradigmas, themata) no seio da
própria científicidade.
A segunda revolução científica, mais recente, ainda indetectada, é a
revolução sistêmica nas ciências da terra e a ciência ecológica. Ela não
encontrou ainda seu prolongamento epistemológico (que os meus pró
prios trabalhos anunciam).
206
A inteligênci a da complexidade
207
Edgar Morin
A falsa racionalidade
A falsa racionalidade, ou seja, a racionalização abstrata e unidi
mensional, triunfa sobre a Terra. As mais monumentais obras-primas
dessa racionalidade tecnoburocrática foram realizadas na URSS. Aí, por
exemplo, foram desviados os cursos dos rios para irrigar mesmo nas
horas mais quentes os milhares de hectares de cultura de algodão, o que
causou a salinização do solo, a volatilização das águas subterrâneas, a
estiagem do mar de Aral. Infelizmente, depois da destruição do Impé
rio, os novos dirigentes chamaram especialistas liberais do Ocidente,
que, ignorando deliberadamente que uma economia concorrencial de
mercado tem necessidade de instituições, de leis e de regras, não elabo
raram a indispensável estratégia complexa que, como tinha indicado
Maurice Allais - economista liberal-, implicava planejar o desplaneja
mento e programar a desprogramação.
De tudo isso, resultam catástrofes humanas cujas vítimas e as conse
qüências não são indenizadas nem compatibilizadas como são as vítimas
das catástrofes naturais.
A inteligência parcelada, compartimentada, mecanista, disjuntiva,
reducionista quebra o complexo do mundo em fragmentos disjuntos,
fraciona os problemas, separa aquilo que está unido, unidimensionaliza
o multidimensional. É uma inteligência ao mesmo tempo míope, prés
bita, daltónica, zarolha. Acaba cega, na maioria das vezes. Ela destrói
no embrião todas as possibilidades de compreensão e de reflexão, elimi
nando também todas as chances de um julgamento correto, ou de uma
visão a longo prazo. Dessa maneira, quanto mais os problemas se tor
nam multidimensionais, tanto mais existe a incapacidade de pensar na
sua multidimensionalidade. Quanto mais progride a crise, mais progride
a incapacidade de se pensar na crise. Quanto mais os problemas se tornam
planetários, mais eles se tornam impensáveis. Incapaz de visualizar
208
A inteligência da complexidade
Os sete princípios
Podemos antecipar sete princípios guias para pensar a complexi
dade. Esses princípios são complementares e interdependentes.
45. Inspirado no holograma onde cada ponto contém a quase totalidade da informação do objeto que
ele representa.
209
◄
Edgar Morin
no todo, mas em que o todo está inscrito na parte. Desse modo, cada
célula é uma parte de um tado - o organismo global -, mas o tado está
na parte; a totalidade do patrimônio genético está presente em cada
célula individual; a sociedade está presente em cada indivíduo enquanto
todo através da sua linguagem, sua cultura, suas normas.
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A inteligência da complexidade
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w
A inteligência da complexidade
213
Capítulo 5
Sobre a modelizacão da
complexidade
Jean-Louis Le Moigne
"'
"TI
rodemos dizer, sobre o tema da complexidad e, alguma coisa
que não seja trivial, sendo suficientemente geral?" 1 Uma escrupulosa
exploração da literatura consagrada a esse conceito, presumidamente
complexa pela construção (podemos voltar desde a origem até os
Cahiers de P. Valéry e até o tratado de tectologie de A. Bogdanov 2, 1913,
1920, que só se desenvolverá a partir do artigo de W. Weaver 3 na
América e do livro manifesto de G. Bachelard anunciando Le nouvel
esprit scientifique na Europa), suscita naturalmente essa perturbadora
interrogação: Lá, onde pesquisamos a complexidade entendida como
"o" conceito científico por excelência, não iremos encontrar a trivialida
de esclerosante de tantos discursos escolásticos? Tentando propor uma
resposta positiva a esta inquietante questão, Herbert Simon propõe aos
pesquisadores atentos ao mesmo tempo algumas razões a serem empreen
didas e preservadas - eles estão em boa companhia - e alguns caminhos,
ou alguns métodos, que eles irão adquirir, sem dúvida, para privilegiar
suas pesquisas, fazendo do objeto do seu estudo o método desse estudo
("0 problema de agora em diante é transformar a descoberta da comple
xidade em método da complexidade", argumentará Edgar Morin 4 .)
Desde o início, portanto, é preciso que nos reconheçamos contidos
num desses círculos cognitivos que os lógicos clássicos execram (os
quais, nós sabemos, se instituem naturalmente em cães de guarda que
uivam agressivamente contra os pesquisadores que tentem, seja por um
minuto, se afastar dos caminhos delineados pela Ciência Normal do
momento). Reconhecer a complexidade, compreendê-la, portanto apre
sentá-la de maneira inteligível para e pelo espírito humano conhecedor
é propor uma inteligência desse conceito abstrato e, sem dúvida, artifi
cial, novo, advindo paradoxalmente para a história da Ciência. Ela não
propõe justamente eliminar ou ocultar, à força de explicação ou de sim
plificação, a complexidade da nossa consciência da Natureza e da Vida?
"Nada é simples, nada é natural - eis o fruto do conhecimento patoló
gico", sublinhava P aul Valéry em 1924. "Mas o nosso automatismo é a
1. H. A. Simon, 1977.
2. A. Bogdanov, 1921.
3. W. Weaver, 1947.
4. O Método, t. 1, Europa-América, Portugal.
217
Jean-Louis Le Moigne
218
...
A inteligência da complexidade
Da complexidade
Quaisquer que sejam as definições, a complexidade surpreende
pela irrealidade, ou melhor, pela irreversibilidade do seu conteúdo. É
uma noção não-positiva por excelência. Compreendemos que os posi
tivistas de todas as tendências a evitam (sem ousar, no entanto, recu
sá-la, porque ela é gratificante, caução indiscutível de tantos fracassos).
Difere da complicação, com a qual ela é confundida, por preguiça
intelectual ou por galanteria retórica, que se caracteriza facilmente por
sua visibilidade. A complexidade está para a complicação do mesmo
modo que_ a entropia está para a energia: uma espécie de avaliação do
"valor de mercadoria", definida pelo observador, de um lingote de
mistura metálica, com determinado peso e imposto a este observador.
O "muito complicado" pode não ser "muiro complexo" e o "muito
simples" (o grão da matéria!) pode ser dado como muito complexo.
Gaston Bachelard lembrava: "Nós vimos despontar a idéia da comple
xidade como essencial aos fenômenos elementares da microfísica con
temporânea. Enquanto a ciência de inspiração cartesiana construía
muito logicamente do complexo ao simples, o pensamento científico
contemporâneo tenta ler o complexo real sob a aparência simples, for
necida pelos fenômenos compensados... Quanto menor o _grão da
_!11até_!ia .Qlªis_realidade substancial existe: diminuído o volume, a maté
ria se aprofunda" 7.
A complexidade talvez não tenha realidade ontológica: ela é uma
propriedade intrínseca de cercos componentes do universo, ou de certos
sistemas? Ou, ainda, ela é uma propriedade atribuída a certas descrições
de cercos sistemas? Colocada nesses termos, a questão não será sem
219
i
Jean-Louis Le Moigne
220
A inteligência da complexidade
11. Societal IJifemI, pla11ning. policy and complexity, J. Wiley & Sons, 1976.
12. J. Wiley & Sons, 1976.
13. J. Voge propôs várias ilustrações convincentes desses modelos apresentados, nocadamcnte por M.
J. Marcus: The 1heory o/ connecting networkI and their complexity: A revietll (Proceeding of lhe IEEE., vol.
65, ng 167, setembro de 1977, pp. 1263-1271), e por Pippenger, Complexity theory, Scientific American,
1978, pp. 90-100).
221
Jean-Louis Le Moigne
Da inteligência
Se a complexidade é o produto de um exercício cognitivo (pro
duzir o inteligível), o reconhecimento desse exercício nos diz respeito
imediatamente: o produto é muito dependente de um produtor para
que nós possamos disjuntá-los por muito tempo. A inteligência, aqui,
torna-se nossa questão, na sua compreensão mais ampla, e sem dúvida
a mais usual. A ação de se compreender mutuamente e o resultado
dessa ação, asseguram os dicionários, sugerem o caráter freqüente
mente recursivo dessa ação. A ação de compreender-se a si mesmo (de
refletir, portanto!) e, por conseqüência, a ação de representar uma
situação, a ação de conhecer, a ação de ajustar essa representação, é um
14. A inibição - até mesmo a ameaça - suscitada por essas referências à linguagem da física é desta
cada pelo economista Henri Guitton num importante ensaio: De l'imperfection en économie /Calmann
Lévy, Paris, 1979), que poderíamos entender como um "Elogio da complexidade".
15. Desenvolvi esse argumento no artigo "Systémique et epistémologie", que retoma La notion de ,y,
teme darZJ /e, ,cienm contemporaine, (t. II), sob a direção de J. lesourne, Édition de la librairie de 11.Jru
versité, Aix-en-Provence, 1982. Ver também "Une axiomatique: les regles du jeu de la modélisation
systémique", no riúmero especial TMorie de, ,y,temu et théorie du jeux de "Economie et Sociétés",
Cahim de l'ISMEA, série EM, nº 6, t. XIV, n� 10, outubro de 1980, pp. 1157-1178.
222
A inteligência da complexidade
223
Jean-Louis Le Moigne
19. K. Boulding, The image, The University of Michigan Press, 1956. Teremos ocasião de evocar
novamente essa obra pioneira quando abordarmos o conceito do "nível de complexidade".
20. 1-I. A. Simon, "Cognitive science, the newest of the artificial", Cognitive Science, vol. 4, 1980, pp.
33-46. O argumento central de Simon é o da definição da inteligência de um sistema por sua adap
tabilidade, sua capacidade de decidir (de computar, portanto) sobre seus próximos comportamentos:
nesse sentido, "a ciência da cognição", conclui, Simon, "é uma ciência do artificial". Tomemos a defini
ção de inteligência que o dicionário inglªs Webscer dá: "The power o/ ,neeting any sit11ation, especially a
novel sit11atio11, s11ccessfully by proper behavior adjmtewent" (1956).
21. Jean Piagec, "L equilibration des stmctures cognitives, PUF, Paris, 1975. A noção englobante de "iqui
libration", introduzida, desenvolvida por J. Piaget, permite gue nos informemos da vasta classe de pro
cessos de desenvolvimento, sem a restrição da concepção um pouco estatística de adaptação.
* "Éguilibration": colocar em ação os diferences meios empregados pelo organismo para manter o
equilíbrio, conforme Le Petit Robert 1 - Dictionnaire, 1991. (N. da T.)
224
A inteligência da complexidade
22. Como testemunha o importante fascículo dos Cahiers de la Fondation Archives jean Piaget (Genebra,
junho de 1982, n� 2-3) que apresenta notadamente alguns estudos pertinentes à nossa discussão,
graças a H. A. Simon, H. von Foerster, A. Sloman, L. Apostei, M. A. Boden e G. Henriques (esta
última se intitulando precisamente: "La modélisarion des systemes cognitifs").
23. Em Co-Evol11tion (Paris, n° 6, pp. 28-32, outono, 1981. "II va falloir échapper à Claude Bernard".
225
-
Jean-Louis Le Moigne
24. "A construccivisc epistemology", em Cahiers de la Fondation Archives Jean Piaget, n� 2-3, Gene
bra, l982, p. 205.
25. H. A. Simon, cap. II, Reason in hm11an affairs, Scanford Universicy Press, 1983.
226
A inteligência da complexidade
26. Retomo de bom grado aqui o exergo goethiano (Famto 1., o gabinete de estudo) que E. Morin colo
ca no começo da segunda parte do Método, t. 1: "A organização".
27. Paul Valéry, in Cahien 1919, Éd. Pléiade, t. 1, p. 562.
28. "Ele não escudava mais a anatomia, mas a fisiologia", sublinhava O. Spengler em 1917. "Leonardo
descobriu a circulação do sangue. Nem Michelangelo, nem Rafael não teriam chegado aí, porque a
anatomia dos pintores só considerava a forma ou a posição, não a função das partes ... " (Anotado na
"La galerie de la Pléiade", consagrada à obra pintada por Leonardo da Vinci, NRF, 1950, p. 166).
Paul Valéry recordava com muito gosto o mesmo argumento: "Meu pensamento recorda sempre
Leonardo - um desses homens para quem a vida não é coisa passiva, mas ato ... Desenhar, depois da
função de desenhar: compreender" (Cahim, Éd. Pléiade, t. 1, p. 1463. Nota de 1943).
227
Jean-Louis Le Moigne
29. H. A. Simon apresenta e inrerprera essa metáfora do itinerário da formiga na introdução do capítulo
sobre "a psicologia do pensamento", La science des systemes, Jcience d, lartifiâ,l (1969/1997, tradução francesa
de 1991, Écl. Dunod). Ele conclui sua interpreração para uma fórmula que condensa talvez o essencial do
argumento modelizador que queremos aqui desenvolver e que reproduzo de propósito, porque ela foi muito
freqüencemente mal traduzida pelos intérpretes mal-intencionados ou desatentos, sobre a diferença entre
wn modelo funcional (ou "behaviorista") e um modelo orgânico ou anatômico. "A formiga considerada
como um sistema animado (behaving symm) é um ser relativamente simples. A aparente complexidade das
evoluções de seu comportamento é, em grande parre, o reflexo da complexidade do meio ambiente no qual
ela se encontra." O resto do capítulo consistirá em "explorar essa hipórese, substituindo a palavra 'formiga'
pela palavra 'homem'", assegura H. A. Simon.
228
A inteligência da complexidade
Da inteligência do movimento
à inteligência da ação
Essa concepção da percepção e da ação de perceber e de modelizar
os fenômenos complexos, e a da Inteligência tentando apreendê-los
através da sua "Ação", e não através do seu "Estado", suscita necessaria
mente um empreendimento da inteligência da ação.
Paul Valéry já destacava essa indivisibilidade do ato de criar e o
conhecimento compreensível quando ele interrogava o método modeli
zador de Leonardo da Vinci. "Criar, construir, era para ele indivisível de
conhecer e de compreender" 30.
Ninguém sintetizou melhor essa inteligência da ação, entendida como
o conceito central da modelização sistémica da complexidade, do que
Edgar Morin desde o primeiro tomo de O Método. Hoje, podemos interpre
tar essa síntese em termos instrumentais, tomando-lhe emprestado alguns
conceitos-chave de toda representação não mutilante da Complexidade,
vivificando-as por aqueles que nos propõem J. Piaget e H. A. Simon.
Uma reflexão de A. Lichnerowicz, meditando sobre a obra cientí
fica de Paul Valéry, pode aqui esclarecer o nosso projeto. O principal
obstáculo ao progresso da Ciência solidamente baseada na obra da
Grécia antiga foi, segundo ele, "ao longo dos séculos, a inteligência
do movimento e da elaboração dos instrumentos necessários a forne
cer uma representação fiel" 3 L. Era preciso que fossem elaborados os
conceitos de força, de inércia, de aceleração, a diferenciação da cine
mática e da dinâmica, a formalização do cálculo diferencial, entre
30. Prefácio de Paul Valéry para a edição francesa dos CametJ de Léonard de Vinci, NRF, Paris, l 942.
31. A. Lichnerowicz em Fonctions de /'eJprit, treize JttvttntJ redlcouvrent Paul Valéry, l983, p. 2l4. Cf. supra.
229
Jean-Louis Le Moigne
32. O título adotado por R. Mattesich, para sua obra epistemológica que apresenta alguns dos fun
damentos da modelização sistêmica, me parece muito significativo dessa "nova inteligibilidade",
desses "novos modos de raciocínio": "imtmmemal reaJoning and J)Jltm.J methodology" (D. Reide!, 1978).
La mod{/isation systé111iq11e se vmt "raiJonnemmt imtmmental". Poderemos igualmente nos referir à
primeira das célebres "theses bietm" de Stafford Beec em "Platform for change" (J. Wiley & Sons, Nova
York, 1975). "A complexidade é a própria substância do mundo organizador contemporâneo. A fer
ramenta para manejar a complexidade é a ORGANIZAÇÃO" (p. 15).
230
A inteligência da complexidade
34. "Draw " dútinction." Essa injunção simbólica, freqüentemente citada, deve-se ao lógico G.
Spencer-Brown ("Laws of form", 196911994,. Cognizer Co., p. 3), que ia assim, paradoxalmente,
introduzir" conjunção no centro do ato modelizador, propondo um operador de distinção. Com efei
to, F. Varela vai remarcar, na sua exposição sobre um formalismo de auto-referência que este opera
dor é ao mmno tempo (ou conjunção de) uma operação (no ato de distinguir) e um valor (o conteúdo
dessa distinção! (Principies of biological a11tonomy, 1979, North Holland, p. 111).
35. A. Bogdanov, EJ1ays in tektology (tradução inglesa de C. Gorelik), Incersystems Publication, Sea
side, Califórnia, 1980. O texto original em russo foi publicado por volta de 1921, recomando o essen
cial de seu Trdité de tectologie (três volumes, 1913, 1917, 1920); durante muito tempo banida da União
Soviética, a obra de A. Bogdanov foi redescoberta na América do Norte em 1975 graças ao seu tradu
tor R. Mattesich e M. Zeleny em particular, e na URSS por uma equipe de teóricos do sistêmico: I.
Blaouberg e V. Sadovsky, Systems theory, philosophical and methodological problems. Tradução inglesa,
1977, Progress Publisherss, Mascou. A citação mencionada no texto aparece nas páginas 63-64 da tra
dução de C. Gorelik. Leremos mais adiante (p. 65), por exemplo: "Na base do mecanismo de modeli
zação sistêmica (tecnológica, na formulação de Bogdanov), existe a conjunção dos complexos".
231
Jean-Louis Le Moigne
Í
ção-Método, que aqui nos diz respeito, levou a alguns importantes
enunciados que lembramos, sem comentá-los, neste momento._
36. Ver especialmente a interpretação proposta por G. J arczyk no Sy,tême e/ /iberti dam la logiqtte de
Hegel, Aubier-Montaigne, Paris, 1980, pp. 149-164 em particular.
37. Ver nocadament H. von Foerster, Observing sysleim, Intersysterns Publicacion, 1981, e em particular
a introdução de F. Varela.
232
A inteligência da complexidade
38. Ver notadamente J. P. Dupuy, Ordre et déJordr,, enq11ête sur 1m no11vea11 paradigme (Édition du Seuil,
1982l e a primeira parte de E. Morin, O Método, t . 1, intitulado "A ordem, a desordem e a organização".
39. Ver notadarnente Y Barel, Le paradoxe et !e systeme, Presses Universitaires de Grenoble, 1979, e
E. Morin: "Podemos conceber uma ciência da ãutonomia?", em Ciência com comciência, Bertrand
Brasil, 1996.
40. Ver nocadarnente P. Vendryes, Vers la théorie de l'homme, PUF, Paris, 1973, em particular o capítu
lo 3consagrado à "relation artiwlaire". Ver também M. Crozier e E. Friedberg, L 'acteur et !e systeme, Éd.
du Seuil, Paris, 1977, em particular o capítulo 3: "Le jeu comme instrumenc de l'action organisée".
233
Jean-Louis Le Moigne
234
..
A inteligêncià da complexidade
- /
, ,✓----- a��
/ A organização, conjunção da
tl/V'. tj-r.K�
1 informação e da ação
'-......____A Organização-Método:
manter e reunir e produzir
As_con.junções-constitutivas que acabamos de_evocar .2_�ª
mente, ao revelarem a pertinência do conceito de org�n�t..::
gurara inteUgibili.9ade_do conceito de compJexo (_g�é�mente
percebido_12or _ess_as conjunções_habituaJf!!ente considf!ada�adoxais
o; contraditórias!), não fornecem diretamente uma definição op�racio
�.tl da Organização-Mé!odo. Esta pode ser facil�ente inferido a partir
da experiência modelizadora da ciência dos sistemas; a representação de
um processo (de uma ação, portanto) pode ser feita num referencial uni
versal familiar; para que exista conjunção de modificações potenciais no
Tempo e no Espaço, e na sua Forma, deste objeto (o referencial TEF) 4 6.
Edgar Morin, procurando agrupar algumas noções arquetípicas cuja
235
Jean-Louis Le Moigne
gence: RoJI Ashby turiting on cybernetia (Inrersysrems Publicacion, Seaside, Califórnia, 1981).
236
A inteligência da complexidade
A codificação da complexidade
É preciso, entre outras circunstâncias, agrupar e interpretar os
numerosos trabalhos que postulam uma certa realidade da complexi
dade. Propusemos algumas teorias da medida e da complexidade,
substitutos pragmáticos de uma eventual teoria da complexidade,
muito retórica talvez. Eles têm, na nossa opinião, o mérito precioso de
propor alguns modelos possíveis de organização da complexidade e nos
servem também de heurísticas bem-vindas para guiar o nosso traba
lho. Inúmeros dentre eles se referem, sabemos, à teoria da informação
237
--------
Jean-Louis Le Moigne
5 1. H. A. Simon, Complexity and the repmenJation o/patterned seq11encu o/ symboú (1972), retomado em
ModtlJ of 1ho11gh1, Yale Universjry Press, 1 979, pp. 292-306.
52. J. Pearl, Complexity and credibifity o/ inftrtd modelJ, IJGS, 1978, vol. 4, pp. 255-264.
53. J. Piagec, Biologie et connaiuance, Gallimard, 1967, p.75.
238
A inteligência da complexidade
Coordenação
t
Essa representação simbólica das ações, ainda que se trate das ações
observáveis representadas ou de representações simbólicas da manipu
lação de símbolos, constitui uma função complexa e geral, a computação.
(É preferível não nos atermos à palavra "cálculo", freqüentemente uti
lizada ainda em francês, para designar essa função - isso se deveria talvez
ao fato de que ela se restringe, na maioria das vezes, apenas à manipu
lação dos símbolos numéricos).
54. A. Newell e H. A. Simon. "Computer science as empírica! inquiry: Symbols and search", in
Co,mmmication ofthe ACM, março de 1976, vol. 19, n2 3. O conceito geral de ação inteligente e o para
digma do sistema de Tratamento da Informação foram desenvolvidos em várias etapas, em particular
por Simon: ver, por exemplo, na tradução francesa, o texto de uma conferência na Academia das Artes
e das Ciências dos Estados Unidos: "A unidade das artes e das ciências, a psicologia do pensamento e
a descoberta'", publicada no n� 15, janeiro de 1984, da revista AFCET-lnterfaceJ, Paris, PP· 3-16.
239
Jean-Louis Le Moigne
Da computação à cognição
É tentador generalizar o modelo de um sistema inteligente
capaz de manipular os símbolos físicos - manipulação simples ou com
plicada, mas a priori reproduzível sob as condições clássicas de proto
colos - para a representação de comportamentos possíveis e plausíveis
desse sistema original reconhecido como excepcionalmente complexo,
que entendemos como inteligência humana: um sistema cognitivo.
Uma tal generalização, embora conceitualmente inteligível, suscita
ainda algumas paixões curiosas numa comunidade científica que acre-
55. Sobre as cinco operações da máquina de Turing, ver, por exemplo, H. von Foersrer, Observing
systemJ, p. 208.
56. Edgar Morin: "Essa idéia de computação é a idéia capital que vai permitir compreender o cará
ter logicamente original da Auto (Auto-Organização)"', em Ciência com co11sciê11cia", 1996, Bertrand
Brasil. Uma sólida apresentação dos modelos da computação - e portanto da cognição - é proposta
por H. A. Simon em "Information processing models of cognition··, Anntta! Review in Psychology,
1979, pp. 363-396.
240
A inteligência da complexidade
Cognição-----"..
► computação da descrição de uma realidade
Cognição --..:a..
► computação da descciç de ___..,►
t i
57. H. voo Foerster, em Observing systems: On comtmcting a reality (1973). Sugiro a denominação "teo
rema de Von Foerster" para essa proposição que acredito ser de uma grande fecundidade potencial,
mas é preciso esclarecer que o autor não a qualifica com esse termo.
241
Jean-Louis Le Moigne
A Auto-Eco-Re-Organização-Computacional
lnformacional e Comunicacional
242
A inteligência da complexidade
61. A conjunção da potencialização e da atualização dos acontecimentos, atos que uma organização
processa, foi particularmente colocada em destaque por Y. Baruel em L, paradoxe el /e 1ysteme, Presse
Universitaire de Grenoble, 1979, e em La m a rgina/ité 1ocial, PUF, Paris.
62. H. A. Si_mon, The comp11t er iJ, fint o/ ali, a m,mory: "O computador é antes de cudo uma memória,
e só é uma calculadora por acréscimo". ln "Applying information rechnology to organization
design", em P11blú- Adminútration R eview, maio-junho de 1973, pp. 333-334.
63. Sobre as funções de um sistema de memorização, ver o último capítulo de Le1 procmm collectifi de
mémoriJati on: lvlém oire et orga nú ation, de D. Pascoe e J.-L. Le Moigne (ed.), Les Éditions de la Librairie
de L'Université, Aix-en-Provence, 1979.
243
Jean-Louis Le Moigne
64. O modelo da transmissão da informação com ambigliidade e equivocação proposta pelo biólogo
H. Quastler a partir da teoria de C. Shannon aqui se confirma como pertinente: '"A primer on infor
mation theory··, em Yockey Ed., lnfarmation theory in biology, 1956. Ver também The emergency o/ bio
logica/ ordtr. Yale University Press, 1964.
244
A inteligência da complexidade
65 H. A. Simon sustentou o caráter "natural" dessa hierarquia: "A natureza está organizada em
níveis", in The org,m ization o/ complex systems (publicado em 197 3 e reeditado em Models o/ discovery,
D. Reide! Pub. Cy, 1977), mas aqui "hierarquia" significa simplesmente um jogo de "bonecas russas".
Hipótese plausível, mas talvez exclusivamente necessária?
245
Jean-Louis Le Moigne
246
A inteligência da complexidade
66. Cf. La théorie dtt systet11e général, théorie de la t11odélisation, PUF, 4• ed., 1995, e La t11odélisation des
systhnes complexes, Éd. Dunod, 2" cd., 1994.
247
Conclusão
Da análise da complicação
à concepção da
complexidade
Jean-Louis Le Moigne
·-
1
A complexidade é ainda freqüentemente um conceito incon
gruente no seio da pesquisa científica contemporânea que se oferece como
objeto: reduzi-la para persegui-la A confusão cartesiana entre a simpli
cidade formal ou sintática e a clareza ou inteligibilidade semântica sus
citou um tipo de empobrecimenteo da inteligência humana. G.
Bachelard falava da "degenerescência", destacando os "paradoxos episte
mológicos" dessa inatenção: "O simples é sempre o simplificado ... mas
tão grande é a tentação da clareza rápida ..." que esquecemos "que não
existem fenômenos simples; o fenômeno é um tecido de relações. Não
há natureza simples, substâncias simples; a substância é uma contextu
ra de atributos. Não existe idéia simples, porque uma idéia simples
deve estar inserida para ser compreendida num sistema complexo de
pensamentos e de experiências" 67.
Postulando o interesse científico intrínseco da complexidade e con
tradizendo o caráter inutilmente complexificante das complexificações
presumidamente científicas, propomos "substituir a clareza em si, urna
espécie de clareza operatória" (G. Bachelard, 1934). Exercício que
requer uma ascese epistêmica permanente, exercendo-se na ação inten
cional, seja ela de modelização ou de transformação. E. Morin nos con
vidará a "uma ética da compreensão". Exercício que nos pede jamais
deixar de apoiar a argumentação epistêmica que legitima pragmatica
mente a produção e o uso dos conhecimentos que se constroem na inte
ração permanente da ação humana e da pesquisa. Procuramos chamar,
de maneira privilegiada, alguns grandes pioneiros que já desbravaram
o terreno no início deste século, referindo-se tão explicitamente quanto
possível aos fundamentos epistemológicos que eles próprios levanta
ram, muitas vezes, em confronto com as epistemologias positivistas,
cujo peso sociocultural não deve ser ignorado se quisermos convencer e
servir. O leitor reconheceu o papel de primeiro plano que as contribui
ções de J. Piaget, H. A. Simon e E. Morin desempenharam no nosso
trabalho, e reconheceu, sem dúvida, na retaguarda, as indubitáveis
influências Paul Valéry, A. Bogdanov, K. Boulding, I. Prigogine, H.
von Foerster e outros pioneiros. A conjunção dessas referências, mais do
que uma longa exposição, apresenta lealmente o quadro epistemológico
251
Jean-Louis Le Moigne
68. Universidade das Nações Unidas, Science et pratique da la complexité, atas do colóquio UNU de
Montpellier, 1984, Éd. La Documentacion française, Paris, 1986.
69. E. Morin. O Método, r. l.
70. R. Vencuti. De lámbig11ilé en architect11re, tradução francesa, Éd. Bordas, 1976.
71. H. A. Simon. "Cognicive science, the newesc science of artificial", in Cognitive Science, vol. 4, 1980.
252
A inteligência da complexidade
253
Posfácio
"Trabalhar para
,,
pensar bem ...
Pragmática e ética
da compreensão
Jean-Louis Le Moigne
Qual será o próximo passo :> Meu próximo passo? O que fazer
aqui e agora? A ação que vamos empreender já está determinada, pro
gramada, necessária porque foi imposta:> Ela já foi experimentada com
sucesso? Esse sucesso, o avaliamos com relação a quais fins? Esses fins
estão submetidos, predeterminados:> Ou podemos e queremos conceber
outros fins, inverter engenhosamente outras ações, outros meios? Em
seguida, passo a passo, escolhê-los, agir, fazer e conhecer tão freqüente
mente o prazer de fazê-lo?
Encontraremos desse modo alguma ciência que nos ajude a tomar
consciência desses possíveis, a menos que ela nos, obrigue a assumir
conscientemente uma única finalidade? Antigas perguntas que cada ser
encontra entre a fé e a razão, e por vezes entre seus extremos, "integrismo"
debilitante e racionalismo delirante, origens de tanta barbárie.
Perguntas sobre as quais cada cultura e cada século renovam os ter
mos. Edgar Morin nos relembrava há pouco, evocando um propósito do
filósofo tcheco Patocka: "Isso se manifesta porque Patocka o chama de
'problematização permanente'. Em outras palavras, não houve uma
parada na interrogação do problema geral (quem somos nós, o qµe é o
mundo, o real), porque essa problematização foi muito rica. A ela nós
devemos a racionalidade, não somente a racionalidade crítica, mas a
racionalidade autocrítica" 72.
Hoje em dia, não nos importaria perseguir essa "problematização
permanente" de maneira mais atenta, no momento em que as intitui
ções que são formadas pela nossa sociedade parecem nos impor tanta
rejeição à complexidade :> Complexidade que, no entanto, percebemos
sem cessar diante dos nossos inúmeros atos, com uma angústia por
vezes insuportável, quando nossas escolhas são coletivas, e que gostaríamos
que elas fossem coletiva e efetivamente deliberadas.
Numerosos são os exemplos dessas negações da complexidade na
nossa vida cotidiana, e algumas vezes terrificantes na nossa vida de
cidadãos. Cada um, a cada dia, pode citar novas negações da complexi
dade, indignando-se em silêncio com a própria incapacidade de relevar
tais desafios, no momento em que clamamos as maravilhas da razão
humana. Ontem "heróica", hoje ela não teria se tornado "bárbara".
72. Edgar Morin. "L'Europe, une communauté de destin", Le Monde de /'éd11catior1, janeiro de 1999.
257
Jean-Louis Le Moigne
258
A inteligência da complexidade
259
Agradecimentos e referências
Este livro é um tecido cujos fios de diversas cores se entrelaçam
sobre diversos fusos: as obras e as revistas que publicaram inicialmente a
maior parte dos textos que aqui foram compilados para avivar a atenção
dos leitores pensantes. Estofo furta-cor cujos reflexos estarão mudando ao
bel-prazer dos projetos e dos humores de cada um. Mas esse tecido mes
clado não nos deixa esquecer os fios com os quais ele foi tecido: o editor
e os autores desejam agradecer àqueles que construíram os primeiros
fusos que forneceram fibras em forma de textos, que tomamos empresta- ·
dos para reler e reunir esse exercício de inteligência da complexidade.
Se o prefácio foi redigido para esta edição, os outros capítulos reto
mam, por vezes com algumas modificações, na sua maioria, os textos
escritos e quase todos publicados entre 1983 e 1998 por Edgar Morin,
por J.-1. Le Moigne, dois dentre eles.
Vários são os diálogos com Edgar Morin, diálogos nos quais não
pudemos conservar sempre os nomes dos parceiros (capítulo 2.3); mas
deixar novamente aqui os nossos agradecimentos a J. Ardoino (capítulo
3.3), a F. Ewald (capítulo 3.2) e a H. Reeves e M. Mounier-Kuhn (capí
tulo 3.1), que suscitaram e animaram trocas com Edgar Morin e que
contribuíram para a formação da nossa inteligência da complexidade.
Agradecimentos sinceros que se dirigem também aos editores das
revistas e publicações diversas nas quais todos esses textos (artigos, con
ferências e diálogos) se tornaram públicos pela primeira vez. Eles con
tribuíram, desse modo, para a nossa capacidade coletiva de ''fazer ciência
com consciência, cum scientia". Nós os mencionamos abaixo, apresentan
do-os na ordem de sua inserção nesta obra.
Capítulos 1, 2.1, 2.2: Esses três textos de Edgar Morin (duas conferên
cias e um debate, em 1982, no Clube Epistemológico da Universidade
de Aix-en-Provence), foram publicados nos atos desse Colóquio do
Clube Espistemológico da Universidade pelas edições da Livraria da
Universidade de Aix, em 1984 (coordenação C. Attias e J.-1. Le
Moigne), sob o título Ciência e consciência da complexidade, em torno de
Edgar Morin (com diversos outros textos dos membros do clube). A obra
está esgotada atualmente. (Sob os títulos: cap.l, "Ciência com cons
ciência, uma leitura, um projeto", pp. 27-44; cap. 2.1, "Epistemologia
261
Edgar Morin
Capítulo 2.3: Esse texto de Edgar Morin, regidido há pouco, não foi
ainda publicado e constitui o núcleo de um capítulo de uma outra obra
em preparação.
Capítulo 3.1: Essa conversação entre Edgar Morin e H. Reeves foi reali
zada por M. Mounier-Kuhn, e publicada no Courrier do CNRS, nº 48,
novembro de 1982, pp. 7-16, sob o título L'Homme et la Science, dialo
gue entre un astrophysicien et un sociologue. Ele foi retomado em Science et
conscience de la complexité, pp.152-176.
Capítulo 4.2: Edgar Morin, "la besoin d'une pensée complexe", publi
cada na Magazine littéraire, Hors-Série, 1996: Un inventaire da la pensée
moderne, pp.120-123.
262
A inteligência da complexidade
263
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