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Exegese e Atualização do Texto

Sumário

Exegese e Atualização do Texto


Objetivos....................................................................... 03
Introdução..................................................................... 04
1. Exegese e Atualização do Texto............................ 05
1.1 Atualização do Conteúdo: perspectiva pessoal,
comunitária e social............................................. 07
1.2 Um exemplo: a perícope de Lucas 9.51-56.......... 10
Síntese........................................................................... 16
Referências Bibliográficas............................................... 17
Objetivos
Ao final desta unidade de aprendizagem, você será capaz de:

• Analisar o conteúdo da perícope sob o ponto de vista da


narratologia;
• Analisar teologicamente a perícope investigada.

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Introdução
Nesta unidade, apresentaremos um dos mais importantes
passos da exegese do Novo Testamento: a atualização. Por meio dela,
fazemos com que a mensagem do texto bíblico, escrita em um tempo
bem distante, faça sentido para nossa realidade. Assim, a Atualização
constitui um passo central para a própria fé cristã, pois auxilia na
encarnação da mensagem bíblica para novos tempos, diferentes daqueles
de sua origem.

Ao final desta unidade de aprendizagem, você será capaz de:

1. Propor uma atualização dos resultados da perícope a partir


de uma perspectiva pessoal, comunitária e social.

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1. Exegese e Atualização do Texto
Durante muito tempo, na história da exegese e da teologia
cristã, houve um divórcio entre a exegese e a atualização da mensagem
para o momento contemporâneo. A exegese era compreendida como
a busca por informações do “lá e então” de uma narrativa, com o fim
de entender os processos de seu surgimento. Pouco ou nada importava
aos exegetas a realidade do “aqui e agora”, das questões de nossa
sociedade contemporânea.

O exercício de atualização nem sempre é priorizado nos


manuais de exegese. Alguns sequer o fazem constar como
passo exegético, geralmente com a velada pressuposição de
que a tarefa da exegese termina com a análise da redação e do
conteúdo, ao passo que a atualização é uma área que compete
à ciência da homilética, ou seja, ao preparo de prédicas ou
sermões. Este pressuposto é errôneo, já que não se trata de
atualizar a mensagem de um texto em vista da sua pregação
dominical, e, sim, unicamente de compreendê-lo em sua
relevância para o tempo e situação de hoje (Werner, 2002,
p. 310-311).

O passo da atualização do texto é importante porque, sem


ele, todos os passos exegéticos se tornam meros exercícios acadêmicos
teóricos e estéreis. Daí a frase de Luis A. Schökel:

Os homens nos pedem pão e lhes oferecemos um punhado


de hipóteses sobre um versículo do capítulo 6 de João
(Jesus, o Pão da Vida); nos interrogam acerca de Deus,

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e lhes oferecemos três teorias sobre o gênero literário de
um Salmo; têm sede de justiça e colocamos a sua frente
uma inquirição etimológica sobre a raiz sedaqa [justiça]...
(Werner apud Shökel, 2002, p. 311).

Em termos teológicos, podemos dizer que:

A atualização pressupõe que a palavra de Deus, a despeito


de ser sempre situacional e contextual, tem uma mensagem
perene e válida para além da situação concreta em que foi
formulada, pelo simples fato de que a verdadeira identidade
da pessoa humana frente a Deus, aos seus semelhantes e ao
mundo criado permanece igual hoje àquela que foi no passado
e também àquela que será no futuro (Werner, 2002, p.310).

Dessa forma, os temas teológicos presentes no Novo


Testamento podem – e devem – ser atualizados para nosso tempo.
É preciso ressaltar este fato: porque o texto bíblico diz respeito ao
ser humano, ele tem muito a dizer a nós, em nosso próprio tempo.
As dores de uma viúva que perdeu seu único filho (Lc 7.11-17), o
sofrimento do pai com a filha à beira da morte (Lc 8.40-42,49-56),
os doentes negligenciados pelo poder público e religioso (Mt 12.9-
14), os cansados e sobrecarregados pelo fardo das práticas religiosas
(Mt 11.28-30), o grito dos cegos tornados invisíveis aos olhos da
sociedade (Mt 20.29-34), os pobres largados na periferia da vida (Lc
18.35-43), as mulheres abandonadas, as crianças desprezadas, os famintos,
os desesperançosos... todos representam situações que se repetem,
em maior ou menor grau, atualmente. A força do texto bíblico como
palavra de Deus é justamente a de nos auxiliar a identificar essas dores e
a elas oferecer alívio e cuidado.

Assim, a Atualização busca “construir uma ponte entre


o significado da narrativa no passado e sua relevância para os dias
atuais” (Werner, 2002, p.310), transpondo o sentido do texto para
uma realidade nova, diferente e ocasionalmente contrária à realidade
de então. Tal prática, aliás, já se encontra evidenciada nas páginas do
próprio Novo Testamento. Os autores neotestamentários, quando
faziam citações do Antigo Testamento, se sentiam em liberdade para

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alterar e atualizar sua mensagem baseados em Jesus Cristo como chave
interpretativa. Vale lembrar também que, na perspectiva cristã, o
evangelho não é um livro (ainda que seja a Bíblia), mas é uma Pessoa, o
próprio Jesus, Deus feito pessoa, Deus conosco.

1.1 Atualização do Conteúdo: perspectiva pessoal, comunitária e social

Como vimos, o pressuposto para a Atualização é a natureza


literária e teológica da Bíblia. Mesmo sendo uma palavra que encarnou
em uma determinada cultura e época (palavra situacional), a Bíblia
possui uma mensagem que é válida para além da situação concreta em
que foi formulada pela primeira vez. Isso ocorre porque o produtor
e alvo dessa palavra é o ser humano. Além do mais, cada exegeta do
texto bíblico é, ao mesmo tempo, um intérprete do que lê. Não pode
haver divisões entre a exegese e a hermenêutica, pois sempre lemos
interpretando. Como afirma Júlio Zabatiero (2007, p.146), “todo
processo de leitura já envolve a ‘atualização’ do texto, toda tentativa
de descobrir o sentido ‘original’ já é influenciada pela prática do leitor
(com toda sua rede de discursos)”. Na Atualização, busca-se responder
a seguinte questão central: que consequências práticas para a reflexão
e a prática do ser humano a fé cristã, que está presente no texto
analisado, está exigindo? Que compromissos requer esta fé para nosso
agir e pensar como cristãos? Em última instância, a prática teológica e
pastoral dependerá da resposta a essa pergunta.

A atualização gera um texto escrito, como uma pregação


transcrita para o papel. Cada descoberta feita ao longo do processo
exegético irá ajudar a compor esse texto. Em termos práticos, o texto
que será escrito nessa etapa do trabalho gira em torno de três eixos:

1. Que significado tem a mensagem do texto para mim,


individualmente, como cristão? Qual o chamado que o texto
representa para mim?

Esquecer-se dessa dimensão pessoal da prática exegética


pode culminar no desejo único de interpretar o texto bíblico, mas
não de ser interpretado por ele. Em outras palavras, a Bíblia pode se

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tornar imensamente interessante para a pesquisa, mas pouco ou nada
relevante para a vida. A relação entre o exegeta e a Bíblia não é a relação
sujeito-objeto, mas sim sujeito-sujeito. Em outras palavras, a Bíblia é
interpretada e nos interpreta ao mesmo tempo.

A Escritura, mais do que qualquer outro texto, para nós,


cristãos, tem essa capacidade de reinventar os seus leitores
e as suas leitoras. Como testemunha da palavra viva e
eficaz de Deus, como instrumento da ação do Espírito de
Deus, a Escritura nos critica, nos discerne, nos desafia, nos
transforma. Ler a Bíblia, podemos dizer, muita vez é ler
contra nós mesmos – pois a palavra divina descortina toda
nossa pecaminosidade. Ler a Bíblia é ler contra nós mesmos,
também na medida em que ela nos coloca em contato com
a graça de Deus que nos transforma. Por isso, na leitura da
Bíblia se encontram as nossas experiências humanas com a
nossa experiência de Deus, se confrontam vontades e ações,
nela se dá uma das dimensões da luta entre a carne e o
Espírito de Deus (Gl 5:12ss) (Zabatiero, 2007, p.149).

Essa dimensão pessoal, por fim, auxilia em não divorciarmos


teoria da prática em nossa vivência teológica e de fé. Vale lembrar que
os fariseus, tão criticados por Jesus nos evangelhos, eram especialistas
no estudo, análise e proclamação da Bíblia Hebraica (o nosso Antigo
Testamento). Embora tivessem todo este conhecimento teológico, o
Novo Testamento faz severas críticas a eles, denominando-os de guias
cegos, hipócritas e sepulcros caiados (cf. Mt 23).

2. Que mensagem traz o texto para a comunidade de fé/


igreja à qual pertenço e em que procuro viver o discipulado cristão?

Busca-se responder, aqui, se a mensagem pregada é vivida pela


comunidade de fé à qual se pertence. Os temas teológicos presentes no
Novo Testamento possuem uma clara dimensão comunitária. Aliás, todos
os textos do NT têm como alvo comunidades, e não cristãos isolados.
Talvez a única exceção seja a carta de Paulo a Filemon. Mas mesmo esta
representa um convite à solidariedade, à vida em comunhão, capaz de criar
relacionamentos novos entre Filemom e seu escravo Onésimo.

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É preciso, portanto, que o tema teológico encontrado na
perícope seja colocado em prática nas inter-relações no interior das
comunidades de fé. Por exemplo, lendo o texto de Filipenses 2.5-11,
encontramos a seguinte passagem:

Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em


Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não
julgou como usurpação o ser igual a Deus. Mas antes, a si
mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se
em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana,
a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e
morte de cruz. Por isso, Deus o exaltou soberanamente, e lhe
deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao nome de
Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra,
e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o
Senhor, para glória de Deus Pai.

Trata-se de uma das mais importantes afirmações cristológicas


do Novo Testamento: a kênosis de Deus em Cristo, isto é, o esvaziamento
que Deus decide fazer, assumindo natureza humana, semelhante a nós.
Por si só, este tema é central à teologia do Novo Testamento. Contudo,
é importante perceber que o esvaziamento de Jesus é precedido pela
ordem para a reprodução desta ação por parte da igreja que se chama pelo
seu nome. A expressão “tende em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus” representa, para a igreja cristã, uma vocação
semelhante à do próprio Jesus. O texto, assim, possui consequências
claras para a vivência comunitária da fé cristã. Para se autodenominar
cristã, a igreja precisa, necessariamente, reproduzir o caráter e a prática .
de Jesus de Nazaré em toda a sua maneira de existir.

3. Que mensagem traz o texto para a sociedade que integro?


Como viver essa mensagem em sociedade? Que passos práticos
poderíamos apresentar para transformar em atitude essa mensagem?

A fé cristã possui uma vocação pública, no sentido de que ela é


vivenciada na imersão na própria vida cotidiana. Sendo assim, os temas
teológicos descobertos na análise exegética têm também o que dizer
à sociedade como um todo. Nesse ponto, é preciso saber relacionar,

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claramente, a teoria com a prática da fé. Por exemplo, que tipo de
sociedade desenvolveríamos caso as bem-aventuranças, pregadas por
Jesus no Sermão do Monte (cf. Mt 5.1-12), fossem postas em prática
nas relações sociais em nível público? Ou o que pensar do mandamento
do perdão, tão proclamado e vivido por Jesus, como maneira de se
pensar as relações internacionais e como caminho para a superação de
ódios raciais que marcam, até hoje, diversas nações no mundo?

Ou ainda, considere esta frase de Jesus: “Tenham cuidado e


guardem-se de toda avareza, pois a vida de um homem não consiste na
abundância dos bens que ele possui” (Lc 12.15). Em uma sociedade
competitiva e neoliberal como a nossa, na qual pessoas são valorizadas
pelas coisas que possuem, que impacto pode ter esta mensagem
evangélica do reino de Deus anunciado por Jesus?

A exegese do Novo Testamento não possui como único


objetivo os ouvidos dos que se refugiam no interior dos muros
eclesiásticos. Antes, ela tem por objetivo esclarecer a mensagem do
evangelho – que é o próprio Cristo – ao mundo.

1.2 Um exemplo: a perícope de Lucas 9.51-56

Como vimos, a Atualização deve ser elaborada como um texto


discursivo, uma pregação que precisa se pautar pelas descobertas realizadas
no texto a partir dos passos metodológicos anteriores. Não se deve,
portanto, elaborar este passo como uma sucessão de tópicos (estilo “esboço
de sermão”). Antes, é preciso escrever um texto, coerente, que represente e
expresse as descobertas encontradas ao longo da exegese, mantendo-se fiel
ao tema central da perícope analisada. A Atualização gera uma pregação que
é, ao mesmo tempo, um desafio a nós enquanto exegetas e expositores da
Palavra, e a todos e todas que escutarão a mensagem.

Segundo a obra Exegese do Novo Testamento: manual de


metodologia, a Atualização deve seguir alguns princípios básicos:

a. Os resultados da exegese devem ser transformados num


texto que funcione como uma síntese da pesquisa realizada;

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b. É preciso descobrir o elemento comum ao contexto do
autor e do leitor do texto. Em outras palavras, é preciso
saber identificar em nossa própria realidade atual (nosso
próprio sitz im leben) discursos e problemas similares aos
encontrados e tratados pela narrativa analisada. É nesse
sentido que o significado atual de um texto mantém sua
relação com seu significado original;.

c. O vínculo entre o ontem do texto e o hoje do intérprete


representa o “coração” da Atualização. É esse vínculo que
vocaciona os ouvintes da mensagem à ação e à pastoral
sobre o mundo e em favor dele;.

d. A Atualização termina com a apresentação de propostas


concretas, possíveis e relevantes aos ouvintes da mensagem,
de modo que os desafios percebidos possam ser atendidos
pela exegese realizada.

A seguir, apresentaremos um exemplo de uma possível


atualização da narrativa de Lucas 9.51-56. Eis o texto:

E aconteceu que, ao se completarem os dias em que devia


ele ser assunto ao céu, manifestou o firme propósito de ir
a Jerusalém. E enviou mensageiros que o antecedessem.
Indo eles, entraram numa aldeia de samaritanos, para lhe
prepararem pousada. Mas não o receberam, porque o seu
aspecto era como de quem ia a Jerusalém. Vendo isto, os
discípulos Tiago e João perguntaram: Senhor, queres que
mandemos descer fogo do céu para os consumir? Jesus
porém, voltando-se os repreendeu [e disse: Vós não sabeis
de que espírito sois, pois o Filho do Homem não veio para
destruir as almas dos homens, mas para salvá-las]. E foram
para outra aldeia.

Antes de desenvolvermos o texto da atualização, analisaremos essa


passagem bíblica com base na metodologia apresentada. A análise proposta
pela crítica textual evidencia, nesse trecho, uma inserção posterior. Na
Bíblia Revista e Atualizada, essa inserção já está marcada com o uso de

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colchetes. Assim, toda a seção entre colchetes originalmente não fazia parte
dessa passagem do evangelho de Lucas.

A delimitação da perícope de Lc 9.51-56 é marcada por


mudanças de personagens (aparecimento dos samaritanos), de lugar (ida
para Jerusalém) e de tempo (identificado pela expressão “E aconteceu
que, ao completarem os dias...”). No versículo 57, se inicia uma nova
perícope, pois há mudança geográfica e de personagens .

Como fontes para essa narrativa, encontramos, no Antigo


Testamento, o texto de 2º Reis 1.9-16, que narra o episódio em que
o profeta Elias, orando, pediu a Deus que enviasse fogo do céu para
matar um grupo de pessoas que veio até ele. Lucas cita essa fonte de
forma indireta, por meio do pedido dos discípulos Tiago e João. Os
samaritanos também constituem uma importante fonte bíblica: lendo-
se passagens do Antigo e do Novo Testamento, é possível perceber que
os samaritanos eram odiados pelos judeus (cf. João 4.9; 8.48).

O contexto menor pode ser ilustrado pelo seguinte esquema:

Perícope anterior Perícope analisada Perícope posterior


Texto: Lc 9.49-50 Lc 9.51-56 Lc 9.57-62
Tema: Falta de acolhimento do Falta de compaixão dos O desafio e as
diferente por parte dos discípulos de Jesus. implicações do
discípulos de Jesus. seguimento de Jesus.

Percebe-se, portanto, uma clara relação entre as perícopes


que apresentam uma narrativa com um desenvolvimento crescente: a
rejeição dos discípulos de Jesus em relação ao diferente culmina no
desejo de matar aqueles que os rejeitaram. Na última perícope, essa
compreensão é corrigida na apresentação dos desafios e das implicações
que surgem do seguimento de Jesus.

Em relação ao contexto integral, é importante lembrar que


o evangelho de Lucas fornece um claro destaque aos grupos e pessoas
que eram marginalizados, por motivos sociais, econômicos, políticos,
religiosos e sexuais. Os samaritanos se encontram nesse grupo.

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O gênero maior da perícope é o Evangelho. Trata-se de um
material narrativo, que se enquadra em um paradigma, pois a parte central
dela (inserindo-se, aqui, o trecho da variante textual) é uma fala de Jesus. O
seu “lugar vivencial” (sitz im leben) é a controvérsia sobre a comunhão entre
judeus e gentios, evidenciada na narrativa pela dificuldade dos discípulos de
Jesus, judeus, aceitarem a rejeição dos samaritanos.

Quanto à análise do conteúdo, esse texto é figurativo.


Existem cinco personagens na narrativa: Jesus (singular), mensageiros
(coletivo), samaritanos (coletivo), Tiago (singular), e João (singular).
Os protagonistas são Jesus, Tiago e João. Os samaritanos têm o papel
de “cordão”, isto é, constituem um personagem meio-termo entre os
protagonistas e os figurantes. E os mensageiros são pano de fundo da
narrativa. Jesus, Tiago e João são personagens redondos (constituintes
de vários traços), enquanto os demais são personagens planos (figura
resumida em um só traço, podendo ser uma característica, um defeito,
ou uma qualidade). O enquadramento geográfico da narrativa nos revela
que Jerusalém e Samaria são cidades que representam expectativas
muito distintas em relação à vinda do Messias. Para os judeus de
Jerusalém, os samaritanos receberiam juízo divino perpetrado pelo
Messias. O enquadramento social revela a maneira como os samaritanos
eram odiados pela maioria dos judeus da época de Jesus. É possível
enquadrar essa narrativa em um enredo quinário. Veja:

Situação Inicial: Em que se revelam Jesus manifesta o firme propósito de ir


as circunstâncias da ação da narrativa. para Jerusalém - verso 51.

Nó: Elemento que introduz a tensão


narrativa e que revela um desequilíbrio Os samaritanos rejeitam Jesus e seus
na situação inicial, ou uma complicação mensageiros. Tiago e João querem
de algum tipo. A narrativa buscará que os samaritanos sejam destruídos
solucionar esse nó. - verso 52-54.

Ação Transformadora: Resultado


da busca, alterando a situação inicial;
situa-se no nível pragmático (ação) ou Jesus repreende severamente os
cognitivo (avaliação). Normalmente, discípulos - verso 55.
aqui é o lugar do pivô, isto é, do auge
da narrativa.

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Desenlace ou Resolução: Liquidação A narrativa apresenta uma nova
da tensão pela aplicação da ação percepção sobre o Filho do Homem”
transformadora ao sujeito. – verso 56a.

Situação Final: Em que se revela


o novo estado adquirido pelo sujeito “E seguiram para outra aldeia” –
depois da transformação (p. ex.: “Ele verso 56b.
afastou-se curado’’; “Ele converteu-se”).

A análise teológica dessa narrativa revela um importante


tema teológico, bem característico da vida de Jesus: a acolhida ao
diferente e a rejeição de toda e qualquer intolerância. O texto deixa
claro uma antipatia pelos discípulos de Jesus que desejam matar os
samaritanos com fogo do céu. Nesse sentido, toma partido da defesa
da inclusão dos samaritanos (e, com eles, de todos os gentios) na
convivência com judeus na nova comunidade de fé. Há vários textos
bíblicos que remetem a essa ideia. Do Antigo Testamento, podemos
citar: Isaías 56.1-8; Gênesis 12.1-3; Amós 9.7, entre outros. Já do Novo
Testamento, podemos citar: Lucas 4.25-27; Lucas 10.25-37; Lucas
17.11-19; Atos 10.9-48; entre outros.

A atualização da mensagem dessa narrativa pode ser .


assim elaborada:

No início do cristianismo, um dos principais desafios


enfrentados pela igreja era a relação entre judeus e gentios. A
dificuldade do relacionamento entre esses grupos era demonstrada na
comunhão de mesa: muitos judeus-cristãos se recusavam a partilhar
a mesa com os gentios. Isso era ainda mais grave se o gentio fosse
samaritano. Por várias razões de ordem teológica, social, econômica,
cultural e política judeus e samaritanos tornaram-se inimigos que se
odiavam profundamente na Palestina da época de Jesus.

Na narrativa de Lucas 9.51-56, essa tensão se revela bem


presente. Jesus deseja ir para Jerusalém, mas os samaritanos recusam
sua passagem por sua aldeia. Isso alimenta ainda mais o ódio dos
discípulos de Jesus. Por serem judeus, querem que o Deus de Israel
– o mesmo em nome de quem os israelitas mataram milhares de

14 | Exegese do Novo Testamento


pessoas – derrame fogo do céu para consumir aqueles que ousaram
rejeitar a palavra do Messias. Jesus, contudo, repreende severamente
seus discípulos, ensinando-lhes que quem segue o Filho do Homem
não pode admitir em sua prática e pensamento ações de intolerância
religiosa ou racial de nenhuma espécie. O Filho do Homem veio para
salvar, não para destruir as pessoas.

Nesse sentido, em nível individual, essa mensagem ensina


a manter um olhar atento às próprias atitudes em relação ao outro,
sobretudo ao que é diferente de nós. Em nível comunitário, nossas
relações precisam ser abertas, em busca da tolerância e da compaixão
que desiste de desejar fogo caindo do céu para matar pessoas, mesmo
que essas pessoas tenham rejeitado a nossa mensagem. Se somos
servos de um Jesus que, mesmo rejeitado, na cruz, ofereceu perdão e
acolhida, por que agiríamos diferente em nossas relações com outros
grupos? A prática do ecumenismo precisa ser repensada em nosso
meio. Ecumenismo não significa desistência da própria identidade em
prol da aceitação de identidades alheias. Significa, sim, uma abertura ao
diálogo que, antes de tudo, sabe respeitar o próximo. Se estendermos
essa perspectiva para nossa sociedade, certamente o número de conflitos
étnicos, religiosos, políticos, culturais etc. diminuiria muito.

É preciso afirmar: só somos cristãos se reproduzimos, em


nossa vida diária e em nossas relações comunitárias e com o mundo,
o caráter de Jesus. Se não agimos assim, não temos o direito de nos
considerar discípulos de Cristo. Ser como Jesus, inclusive em relação ao
que pensa e age diferente de nós, precisa ser nossa vocação.

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Síntese
Nesta unidade, estudamos um dos principais passos
metodológicos da exegese: a Atualização. Por meio dela, as descobertas
encontradas durante a análise do texto bíblico podem ser revitalizadas
para novos momentos histórico-culturais. Com isso, o texto bíblico
deixa de constituir um mero objeto de estudo acadêmico ou mesmo
homilético para ganhar concretude no vínculo com a vida cotidiana de
homens e mulheres que se aproximam dele.

Vimos também que, para realizar a Atualização, é necessário


fazer três perguntas ao texto, abordando a perspectiva pessoal (“O que
o texto significa para mim?”), a perspectiva comunitária (“O que o
texto significa para a comunidade de fé à qual o exegeta pertence?”), e
a perspectiva social (“O que o texto significa para a sociedade como um
todo?”). A união das respostas a essas questões auxiliará na encarnação
da mensagem cristã em nosso tempo e cultura.

Por fim, aplicamos essas questões a uma perícope do Novo


Testamento com o objetivo de perceber, na prática, como isso pode
ser elaborado.

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Referências Bibliográficas
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de
metodologia. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2002.

ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.

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