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Aspectos da fobia escolar *

ELISA DIAS VELLOSO

Dentre os problemas ligados à escolaridade, o da recusa da criança a


freqüentar escolas é certamente um dos que provocam maior ansiedade na
família, nos educadores e nos profissionais em geral. Nas clínicas de orien-
tação, os candidatos à matrícula que apresentam sintoma dessa natureza
são atendidos com prioridade, levando-se em conta todos os prejuízos con-
seqüentes dessa forma de inatividade, que provocam na criança um dis-
tanciamento de seu grupo de colegas, afastando-se dele por não conseguir
freqüentar as aulas.
Nos países em que a Lei de Obrigatoriedade Escolar deve ser cumprida
a rigor, aumenta a ansiedade dos pais, que temem ser considerados infra-
tores, pelo fato de estarem permitindo que a criança não freqüente a es-
cola; receiam que as autoridades competentes não compreendam que não
se trata de uma atitude relapsa da família.
Hymann Lippmann (3), psicanalista americano com longa experiên-
cia no tratamento de crianças que apresentam problemas emocionais, carac-

"Trabalho apresentado durante a Semana Gaúcha de Pediatria. Porto Alegre, novo 1972.

Arq. bras. Psic. ap!., Rio de Janeiro, 25 (3) :39-50, ju!.fset. 1973
teriza a fobia escolar como Ullla "condição clínica, ligada a um estado
agudo de ansiedade relativa ao comparecimento à escola. Acrescenta que
a própria palavra fobia sugere uma ansiedade localizada ou circunscrita à
freqüência à escola". Mas na opinião ele Lippmann, comumente a criança
que tem medo de ir à escola terá ansiedades em outras áreas - embora
aparente ter bom ajustamento à vida e à própria escola - a partir do
momento em que surge, de maneira súbita e dramática, a fobia escolar.
Evidentemente, essa fobia não constitui um quadro clínico em si: é
manifestação sintomática das mais diversas situações internas e externas,
isto é, relacionadas com ansiedades e fantasias mal elaboradas da própria
criança, e que poderão eventualmente ser exacerbadas por circunstâncias da
vida familiar ou da própria escola.
As manifestações de fobia escolar também podem variar: a criança
pode entrar em pânico e recusar-se definitivamente a sair de casa para ir
à escola; ou pode chegar a entrar na classe, para em seguida sentir-se
mal, apelando para professores, e estes para a família, a fim de que
seja retirada e volte para casa. O mal-estar alegado com essa finalidade -
geralmente um mal-estar físico tal como cólica, dor de cabeça, tonteira
ou qualquer outro - em geral desaparece tão logo a criança é atendida.
E o exame médico constata que não existe, de fato, nenhuma anormali-
dade nas condições físicas dessa criança. Em alguns casos, ela estará de
fato, sentindo dor ou mal-estar; em outros, saberá que essa é a melhor
forma de alarmar os adultos e terá consciência de que não está realmente
sentindo qualquer complicação, do ponto de vista orgânico.
Uma manifestação particular de fobia escolar é a fuga da escola, que
aparece em casos como o que foi relatado por ]ames Hood (2), num
trabalho publicado numa revista inglesa de psicoterapia infantil: Peter,
de seis anos, fugiu da escola cinco vezes, causando alarma no colégio e na
família, tendo de ser praticamente "caçado" pelo porteiro da escola, com
ajuda de um policial e do pai da criança.
No livro de Lippmann, já citado, são relatados dois casos de pré-
adolescentes, de 12 anos, com fobia escolar. Em nossa experiência, o sin-
toma surge com mais freqüência na idade escolar e pré-escolar.
Convém assinalar que nem toda recusa a ir ou a permanecer na es-
cola pode ser caracterizada como fobia escolar; não nos parece que os
adolescentes que faltam às aulas para se entregarem deliberadamente a
atividades recreativas de qualquer natureza, possam ser enquadrados nessa
categoria. É mais importante, no entanto, acentuar como normais as difi-
culdades de adaptação da criança quando ela começa a freqüentar o
jardim da infância. Nessa situação, há uma ansiedade de separação da mãe
e do ambiente familiar que, se bem controlada, tende a desaparecer.
Ana Freud e "Vinnicott estudam minuciosamente a dinâmica da
evolução da criança da dependência para a independência (1, 4) .
Winnicott menciona inclusive uma etapa que corresponde a um misto
de dependência e independência em que a criança "faz experiências de

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independência, mas tem necessidade de poder reexperimentar a dependên-
cia". Assim, a criança que vai sem dificuldade ao maternal no primeiro
e no segundo dia pode-se recusar a permanecer na escola no terceiro,
mesmo que nada tenha ocorrido no colégio que possa ter contribuído para
essa recusa.
O manejo hábil de cada caso, considerando as circunstâncias indivi-
duais e da família, depende muito da sensibilidade e do grau de ansiedade
dos pais. Quando existe um bebê recém-nascido em casa, por exemplo, o
irmão mais velho pode-se recusar a ficar no colégio para defender sua
quota de atenções da mãe, que teme seja totalmente absorvida pelo recém-
chegado. O pânico, embora totalmente irreal, de ficar sem carinho, pode
conduzir a criança a uma fobia escolar.
A fantasia de que durante o horário escolar os pais estarão juntos
para que desse encontro venha a nascer novos irmão pode concorrer para
que a criança queira permanecer em casa, tentando controlar e evitar que
isso aconteça.
Anna Freud (1) assinala a diferença entre a dificuldade normal do
bebê em separar-se da mãe e os casos de fobia escolar:
"Nestes últimos casos, o sofrimento experienciado com a separação
da mãe, dos pais ou do lar se deve a uma excessiva .ambivalência para
com eles. O conflito entre o amor e o ódio aos pais só pode ser tolerado
pela criança na presença reasseguradora deles. Na ausência, o lado hostil
da ambivalência assume proporções assustadoras e o agarramento à. figura
dos pais, amados de forma ambivalente, é a maneira de salvá-los dos de-
sejos de morte, fantasias agressivas etc. da própria criança. Em contraste
com o sofrimento da separação do bebê, que é aliviado pelo encontro com
os pais, nos conflitos de ambivalência, esse encontro só funciona como
paliativo; nestes, somente a compreensão analítica do conflito de senti-
mentos pode curar o sintoma."
Convém esclarecer que essa compreensão (insight) não é função da
família, e sim do profissional adequadamente habilitado.
A melhor contribuição da parte da família será, no caso, além de
um clima tranqüilo e afetuoso, a procura de ajuda profissional, quando
necessária.
Se a família se mostra tanto ou mais ansiosa que a criança que não
consegue ir à escola, torna-se incapaz de ajudá-la a vencer sua dificuldade.
Lembro-me de certa mãe chorando em desespero ao relatar suas tenta-
tivas para convencer a criança a permanecer na escola: prometera pre-
sentes, castigos, fizera todo tipo de chantagens e ameaças. E resumia: j<i
fiz tudo. Perguntei-lhe se já tinha experimentado não fazer nada. :Muito
surpresa, respondeu que não se lembrara dessa atitude. Poucos dias depois,
comunicava que a criança estava freqüentando o colégio tranqüilamente.
Em outros casos, a família tem necessidade inconsciente de culti"ar a
dependência da criança. Para esses adultos, o fato de que o filho ou filha
possa passar algumas horas do dia perfeitamente feliz no convívio com
estranhos - professores e colegas - representa uma decepção extremamente

Fubia ('sco/ar 11
dolorosa. Sem que ° percebam, transmitem à criança a idéia de que fora
de casa está o perigo. Em perguntas insistentes, indagam se a criança foi
agredi da por colegas, se alguém se apoderou de algum de seus objetos e
procuram verificar, ansiosamente, se a professora é atenta e carinhosa.
Xenhuma dessas atitudes, por si só, provoca o pavor da escola, mas
constitui uma desajuda para a criança naturalmente receosa de enfrentar
o ambiente escolar.
Em outras situações vêm ainda de mais longe os elementos que podem
contribuir para instalar na crianca uma reacão violenta de resistência a
freqüentar as aulas: é que nem 'sempre a própria escola é o ambiente
adequado para determinada criança.
Há mais de 40 anos, Ferriere escreveu a respeito de "A escola sob
medida", isto é, a que se adapta às necessidades de cada criança. Infeliz-
mente, essa idéia nem sempre é posta em prática e muitas vezes a criança
é sacrificada em favor de critérios e programas preestabelecidos, que não
lhe são convenientes. No caso, a recusa a freqüentar a escola é um protesto
sadio.
H{l pouco tempo, vimos uma menina de seis anos que tinha ficado "em
recu peração", isto é, teve prorrogado seu período escolar de 71, privada
de férias, por não apresentar um "rendimento" satisfatório no jardim da
infância, quando tinha ainda cinco anos. Fora-lhe exigido um esforço extra
para que fosse promovida ao pré-primário, que está cursando agora, acom-
panhada por uma professora particular que lhe dá aulas, além do horário
escolar. Essa menina declara francamente que detesta o colégio, protes-
tando sadiamente contra uma superexigência em desacordo com seu nível
de desenvolvimento, e porque lhe é permitido e ela consegue verbalizar
esse protesto, não provocou uma fobia escolar. Mas o que se quer exem-
plificar no caso dessa menina é a violência contra o seu desenvolvimento
natural, que se pretende acelerar a qualquer preço, e que, em muitos
casos, pode provocar aversão definitivamente à escola e ao estudo.
Essa violência, esse desrespeito às condições de desenvolvimento na-
tural pode ser exercido de várias formas, seja numa disciplina por d~mais
restrita, com hora marcada para ir ao banheiro, por exemplo, ou através
de um currículo sobrecarregado de matérias e de deveres. Tal currículo
pode ser estimulante para certas crianças, mas em outras pode desenvolver
o medo do fracasso. Se a criança não suporta essas condições de exigência,
pode recorrer à fobia para escapar delas.
l\!ais uma vez essas deficiências e falhas da escola, em si mesmas, não
serão suficientes para provocar a fobia escolar. A criança que tem con-
dições internas que não a predisponham para esse tipo de comportamento
irá reagir de maneira diferente, encontrará outro tipo de protesto. Mas
se não tiver condições internas para tanto, poderá recorrer ao pânico para
defender-se - embora de maneira inadequada - de uma situação externa
também incorreta.
Para voltar novamente à criança, num outro plano, convém lembrar
aquelas que sentem desconforto na escola e procuram livrar-se dela porque

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têm dificuldades de visão e de audição, que não lhe permitem uma 111-
tegração satisfatória nas atividades de classe. Uma investigação rigorosa,
feita por especialista, deve ser de rotina como ponto de partida para qual-
quer dificuldade de adaptação à escola e também nos casos de fobia
escolar.
Os processos utilizados para atender aos casos de fobia escolar serão
variáveis, de acordo com as condições de cada criança e de seu ambiente.
Alguns deles serão resolvidos com um simples esclarecimento para a fa-
mília, quando as condições externas são as mais atuantes ou concorrem
predominantemente para fobia escolar. Em outros, torna-se necessária uma
intervenção terapêutica, e se o núcleo do problema está nas fantasias in-
conscientes da criança, estas terão de ser trabalhadas através de trata-
mento psicanalítico.
Este nem sempre é o tratamento clássico, de longa duração. No caso
de Peter, citado inicialmente, a situação de crise foi resolvida mediante
duas consultas terapêuticas, tomando como base a experiência de Winnicott
(5) . O problema de Peter foi solucionado com esses contatos breves e dois
anos depois ele continuava freqüentando a escola sem dificuldades. Em
outros casos, o tratamento prolongado torna-se necessário, bem como o
acompanhamento por meio de entrevistas paralelas com os pais.
Nos Estados Unidos, estão sendo utilizadas as técnicas de condiciona-
mento operativo, na linha de Skinner. aparentemente com o objetivo de
obter resultados mais rápidos e mensuráveis. Essas técnicas se caracterizam
pela gratificação imediata do sucesso e se colocam em posição oposta à da
psicanálise.
Nos exemplos que passamos a relatar, veremos que nem sempre a
indicação do psicólogo é posta em prática, mas que se podem obter resul-
tados satisfatórios tanto nos casos em que se procura modificar a situa-
ção externa, como naqueles em que as fantasias são trabalhadas, depen-
dendo das condições específicas de cada criança. 1

Eurico: sete anos, 2. 0 ano primário.


Família: Pai: 35 anos. Proprietário de oficina mecânica.
Mãe: 33 anos. Doméstica.
Irmãos: Francisco: 10 anos. Júlia: oito anos.

Queixa: Há cerca de três semanas, E não consegue ir à escola. Ao pre-


parar-se para sair, diz que sente dores abdominais, pelo que lhe é per-
mitido muitas vezes ficar em casa; mas as dores e o choro de E desaparecem
tão logo é ultrapassada a hora de ir para o colégio. Quando consegue ir
até lá, a mãe recebe telefonema da escola, pedindo-lhe que vá buscar E
que está chorando com "dor na barriguinha" (sic, expressão da mãe).
Logo que é trazido para casa, a dor desaparece. Exame minucioso do pedia-

1 Atribuímos nomes supostos a essas crianças e alteramos os dados que poderiam


identificá-Ias, ou a suas famílias.

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tra concluiu a ausência de qualquer distúrbio somático. E já manifestara
esse mesmo comportamento aos cinco anos, conseguindo superá-lo através do
reasseguramento da mãe, que permanecia com ele no colégio. Mas agora o
sintoma recrudesceu com mais intensidade. Além da recusa à escola, E vem
controlando a vida da mãe, querendo saber se saiu, onde foi, quanto tempo
demorou e com quem foi. Sabendo que ela faz muita questão que
ele freqüente festas infantis, E recusa-se a aceitá-las. No entanto, passa
fins de semanas com amigos e, estando em casa de um deles, num bairro
distante, telefonou ,\ mãe com voz de choro, pedindo-lhe que viesse ime-
diatamente. Atendido, recebeu a mãe rindo muito, dizendo que queria
mostrar-lhe apenas um brinquedo interessante do amigo.

lJeserwo!vimen/o: E nasceu de gestação e parto normais e seu desenvol-


vimento psicomotor vem-se processando dentro do esperado. Tem tido
boa saúde, teve catapora e caxumba e raras infecções de garganta. Adqui-
riu cedo os hábitos de limpeza. Entrou para o colégio aos três anos, adap-
tando-se fácil, sem problemas. É considerado popular, estimado pelos cole-
gas e é independente. Sua criatividade é estimulada pela família: gosta de
construir robôs de caixas de papelão, no que é muito auxiliado pelo pai.
Quis levar à escola um desses robôs e foi atendido. Nesse dia, ficou tão
excitado que de volta para casa teve uma febre que desapareceu como
surgira, sem causa. Sua alfabetização foi fácil, mas ultimamente seu apro-
veitamento decaiu e está com letra muito ruim, o que é motivo de grande
preocupação para os pais.

Família: Mãe considera-se "nervosa", já tentou trabalhar, mas desistiu para


atender melhor aos filhos. O pai está numa fase de tensão emocional, re-
cebeu indicação de tratamento psicanalítico, que pretende iniciar, o que é
motivo de grande preocupação do casal. Embora não estejam mal de fi-
nanças (sic) preocupam-se com a despesa decorrente elo tratamento. As cri-
ses ele ansiedade do pai têm alterado o regime de viela da família, já
que a mãe tem procurado ir com ele para o local de trabalho, onde
recebe constantes telefonemas dos filhos, que ficam em casa com empre-
gada muito boa. As três crianças dormem no mesmo quarto, não por falta
de espaço, mas por falta de tranqüilidade e iniciativa para uma redistri-
buição dos cômodos da casa, segundo informação da mãe. Esta chora ao
relatar o problema de E e se refere a um dos dias em que, tendo ele ido
para a escola, ela telefonou para saber se ele estava bem. Obtendo resposta
positiva, ainda assim foi ao colégio e E logo que a avistou começou a chorar
com "dor de barriga"; o pai e a professora também têm tentado artifícios
para reter E no colégio, sem resultado.

Na primeira entrevista, a mãe mostrou-se receosa de que E não se separasse


dela para o exame psicológico.

Exame psicológico: Ao contrário do que a mãe de E esperava, ele aten-


deu com a maior facilidade ao convite para vir à sala de exame. Tive-

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mos conhecimento de que, tendo ambos chegado muito antes da hora, ele
reclamara com a mãe insistentemente pelo fato de não ser chamado ime-
diatamente. Seu aspecto e atitude contrastam de maneira flagrante com a
descrição que ouvíramos, antes, de um menino sofredor que se queixa
de "dor na barriguinha". É um menino bem desenvolvido, sério, aparen-
tando mais idade do que tem. Desinibido, não deixa transparecer qual-
quer ansiedade. Comunica-se e verbaliza com facilidade, em tom de voz
desembaraçado. Evita falar no problema que o traz a consulta, dizendo
apenas que nem sempre está contente na escola. Percebe-se sua ansie-
dade apenas no olhar desconfiado que dirige à examinadora a todo momen-
to enquanto trabalha com aquarela. Interessa-se muito pelas bolas de borra-
cha, procurando fazer com elas o que ele mesmo chama de "malabarismo",
insistindo em saber onde foram compradas e quanto custaram, pois quer
que a mãe lhe compre bolas iguais. Brinca· com animação e à certa
altura declara que gostaria de ficar ali a tarde toda. Quando avisamos
que terá mais 10 minutos, dirige-se à caixa de aquarela e passa a sacudir
o pincel molhado, sujando toda a sala à sua volta, muito agitado, di-
zendo que é assim que faz no colégio. Ao terminar o tempo, leva a bola
para mostrá-la aos pais e exigir que lhe comprem lima igual.

Conclusão: E parece estar controlando a família e explorando a ansie-


dade dos pais em relação ao seu ajustamento e rendimento na escola. O
recrudescimento do problema de recusa à escola coincidiu com o afasta-
mento da mãe para acompanhar o pai ao trabalho, e E está evitando su-
portar essa frustração, atraindo as atenções da família e agredindo-a com
suas ausências da escola e baixo rendimento. Para tanto, regride a uma
condição infantil de dependência que não é real, mas que a mãe aceita
como se o fosse. Constata-se durante o exame que, quando frustrado, E
agride disfarçadamente (com tinta). Os robôs, que lhe dão tanta satis-
fação, já estão sendo percebidos pelo próprio pai como símbolos de objetos
controlados. É o pai quem diz: "Já entendi que os robôs somos nós".

Indicação: Na entrevista de orientação, os pais declararam que E já está


freqüentando a escola. Foi reforçada a sugestão do pai de anunciar a E
que, se não quiser ir ao colégio, terá sua matrícula cancelada e ficará
na mesma série no ano próximo, atitude esta razoável, pois E está na
2. a série, com sete anos. A mãe concluiu que não deveria ir à escola ver se E
estaria passando bem. Acrescentamos que seria preferível nem mesmo tele-
fonar. Solicitamos, por intermédio deles, que a professora nos procurasse.

Escola: A professora parecia bastante ansiosa quando telefonou, aten-


dendo ao nosso apelo. Criticou a mãe por sua ansiedade em ir à escola
para ver se E está bem. Queixou-se da queda de rendimento do menino.
Mostramos-lhe que E é bastante inteligente para perceber que não só a
freqüência, mas também sua produção na escola são áreas vulneráveis
através das quais ele consegue mobilizar a ansiedade dos pais. E declara-
mos à professora que sabíamos poder contar com sua colaboração no
caso de E.

Fobia pseolar 45
Fábio: seis anos e seis meses, pré-primário.
Família: Pai: 33 anos. Comerciante.
Mãe: 26 anos. Estudante.
Irmã: três anos.

Queixa: A mãe de fi diz que ele é muito ansioso. Há 15 dias vem-se


recusando a ir ao colégio, alegando medo de errar nos deveres. No clube,
não se desliga da mãe. O problema surgiu depois que F começou a cursar
o pré-prim,írio, este ano, iniciando alfabetização e outras tarefas relacio-
nadas com aprendizagem. No jardim da infância, fizera uma adaptação
fácil e nem mesmo foi necess,írio que a mãe ficasse com ele no colégio
nos primeiros dias.

Não obstante essa adaptação aparentemente fácil, mesmo no jardim da


infância ]i precisava ir ao banheiro de meia em meia hora, o que é uma
indicação de ansiedade. Além do problema da escola, F tem medo de
animais e, quando brinca sozinho, é extremamente perfeccionista: entra
em desespero quando não consegue armar determinados jogos da mais
correta e acabada maneira.

Desenvolvimento: fi tem boa saúde, come e dorme bem. Embora a mãe


declare que ele brinca bem, pode-se ver que sofre quando brinca sozinho,
em função do perfeccionismo, e que não permanece muito tempo com os
companheiros no grupo, porque a cada momento vem procurá-la. F nasceu
de parto e gestação normais. A mãe assinala com ênfase a frustração
que representou para ela o nascimento de F em função do qual teve de
interromper seus estudos. Acentua ainda o pânico que lhe trouxe a gra-
videz. Julgava-se tão incapaz de cuidar do filho que, em seus primeiros
dias de vida, tinha ímpetos de matá-lo e de matar-se. A amamentação ao
seio, durante dois meses, também constituiu enorme sofrimento para a
mãe, que sentia dores. O leite natural era pouco e ao passar para o leite
em pó, ]i não manifestou qualquer problema. F andou com 10 meses. Sua
linguagem se desenvolveu mais tarde, aos 20 meses, dizendo a mãe que até
então se adivinhava tudo o que ele queria, e por isso ele não sentia neces-
sidade de falar. A mãe declara que não teve paciência para introduzir o
treinamento higiênico, que se fez espontaneamente aos dois anos. F come-
çou a comer sozinho aos quatro anos; até então o alimento era dado pela
mãe, que só teve ajuda mais tarde, quando nasceu a irmã, pois esta, ao con-
trário de F, teve enfermeira e babá. Colocado no judô, F saiu-se bem,
mas se recusa a ir às aulas, dizendo que não gosta delas.

Família: O tema predominante das entrevistas, não só com a mãe, mas


também com o casal, foi a presença e a interferência da avó paterna du-
rante a primeira infância de F. A mãe chega a caracterizar a sogra como
"gestapo", de tal forma se sentia perseguida por ela. O pai participa dessa
opinião relativa à sua própria progenitora, acusando-a insistentemente de
superproteção, da qual ele próprio teve de defender-se durante toda sua
infância.

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A tendência de ambos é atribuir as dificuldades de F à influência da avó.
No entanto, a mãe rompeu com essa avó quando F tinha dois anos, e atual-
mente descrevem as relações entre nora e sogra como "paz armada". F visita
a avó, mas os pais se mostram muito empenhados em descobrir meios de
evitar essa convivência. A mãe de F voltou a estudar recentemente. Sua
ansiedade, por ocasião do nascimento da criança, leva à suspeita de que
a imagem da avó esteja bastante atingida e talvez desfigurada por fan-
tasias de ambos os pais, nesse ponto. perfeitamente identificados.

Exame psicológico: F é uma criança bem desenvolvida, que não tem


dificuldade em separar-se da mãe para o exame. Tenso e preocupado, ao
nos encaminharmos para a sala, F já me pergunta o que terá de fazer.
Informado repetidas vezes que poderá fazer o que preferir, não acredita
que lhe seja concedida essa liberdade. Parece muito interessado nos brin-
quedos, mas não tem coragem de usá-los no início da sessão. Depois de
muita hesitação, resolve desenhar, o que talvez lhe desse a impressão de ser
tarefa mais condizente com a situação em que se encontra, junto de
uma pessoa adulta. Enquanto desenha, pergunta a cada momento o que
pode fazer, se pode usar tinta, se pode colorir. Desenha com muita
tensão, calcando o lápis com força sobre o papel e, de cada vez que quer
pegar um novo lápis levanta-se da cadeira, embora estejam todos ao seu
alcance, mesmo sentado. Terminado o desenho fica muito aflito, sem
saber onde colocá-lo. Afinal resolve pô-lo sobre a cômoda e, então, se
anna de "coragem" para usar os brinquedos, mas não se anima a retirar
da mesa as outras folhas de papel. Brinca todo o tempo respeitando o
espaço que elas ocupam, como se estivesse proibido de utilizá-lo. Diz que
vai construir uma cidade, mas o que realmente faz é uma classificação
extremamente rígida do material. Verbaliza todo o tempo, mas em voz
surda, que mal se ouve, permanecendo de costas para a examinadora.

Conclusão: F parece estar fazendo uma identificação com sua mãe, extre-
mamente ansiosa e perseguida, e não consegue encontrar ajuda no pai
porque este também aparenta ter grande afinidade com a dificuldade
específica da mãe. A criança está sob o jugo de um superego terrivelmente
severo e ameaçador, não conseguindo evoluir adequadamente devido a essa
identificação. Não pode ser espontâneo, age todo o tempo sob grande
tensão, exigindo demais de si próprio. Projeta essa exigência no colégio,
julgando-se ali ameaçado de castigo severo se não acertar nos deveres. O
colégio, no entanto, é muito conhecido como extremamente liberal, seu am-
biente é permissivo e as professoras são muito tolerantes. Todo esse clima de
permissividade parece deformado na fantasia de F que se apavora diante
ele ameaças imaginárias.

Indicação: Foi transmitida aos pais de F a indicação de psicoterapia para


o menino, com acompanhamento paralelo para a mãe. Este acompanha-
mento deveria ter em vista prepará-la para tratar-se, levando-a a reco-
nhecer essa necessidade. A terapeuta, indicada por solicitação dos paIS,

Fnbia escolar 47
chegou a ser por eles procurada, mas o tratamento nem mesmo se iniciou.
Alegando uma viagem próxima, os pais de F encaminharam por sua vez
a essa psicóloga outro cliente de suas relações. Parece ser uma caracterís·
tica dessa família a de colocar fora deles suas dificulades: a perseguição
interna dos pais est,í na avó, a exigência da própria criança está colocada
na escola e a doença de F provavelmente será tratada em outras criança.

Geralcla: seis anos.


Família: Pai: 42 anos. Profissional liberal.
Mãe: 54 anos. Decoradora.
Irmãos: Nelson, quatro anos, jardim da infância. Luisa, três anos, maternal.

Qlleixa: G se recusa a ficar na escola) exigindo cada dia nova condição


para participar de pequena parte elo trabalho escolar: levar presente para
determinada colega, ficar na sala da psicóloga do colégio, só entrando em
sua própria classe a chamado da professora, quando esta vai ensinar pa-
lavras novas. G tem ainda enurese noturna e dificuldade em participar ele
programas com outras crianças: em festas de aniversário, não se desliga
da mãe. Tem ainda insônia, e agride muito o irmão menor.

Desenvolvimento: Embora sendo a mais velha dentre os irmãos, G foi a


segunda gravidez da mãe; a primeira resultou num aborto espontâneo. A
mãe fez tratamento medicamentoso, em conseqüência do qual G nasceu
ele parto a fórceps. Foi amamentada 12 dias. A mãe declara que detestava
amamentar e mudar fraldas na criança; fazia-o sempre chorando. A avó
materna substituía a mãe nos cuidados com G até os dois anos, quando essa
avó faleceu. G apegou-se então ao pai, rejeitando a mãe. Só mais tarde
conseguiu aceitá-la, mantendo com ela um tipo de relacionamento depen-
dente em que a criança controla. G precisa de ajuda para vestir-se, ali-
mentar-se e tomar banho. A escolaridade foi tentada aos três anos e meio,
mas G sempre teve muita dificuldade de adaptação. O colégio atual é a
quarta tentativa de escolaridade. Muito inteligente, G consegue acompa-
nhar a aprendizagem, não obstante sua participação limitada nas aulas.

Família: A mãe é pessoa muito insegura, sentindo-se culpada. Iniciou


tratamento psicanalítico, interrompendo sob alegação de dificuldades ex-
ternas. No entanto, a família reside num apartamento muito amplo e
até mesmo luxuoso. O pai também se considera tímido e julga que, se
conseguiu vencer na vida não obstante sua timidez, G não necessitaria
tratamento psicológico; atribui as dificuldades da menina à superproteção.
O quadro descrito por essa mãe foi suficiente para concluirmos pela
necessidade de tratamento para a criança, independente de qualquer outra
medida. A decisão ficou em suspenso, em função da oposição do pai. Dias
depois, a mãe nos procurou de novo, declarando que o pai concordara com
o tratamento.

1R
Nos três casos relatados em breve síntese, pode-se constatar uma variedade
de situações e uma gradação de dificuldade. :l

.1\'0 caso de Eurico, não se poderia mesmo falar em fobia escolar, e sim
de uma utilização de grande empenho dos pais, no ajustamento e rendi-
mento escolar, do qual se serve a criança para controlar a família. O que
ele está fazendo com os adultos é uma manipulação da qual eles não se
tinham apercebido e da qual, uma vez alertados, estão sabendo se defender.
São pais ansiosos, não há dúvida, mas E está explorando conscientemente
essa ansiedade.

1\0 caso de Fábio, a situação da criança torna-se mais complexa, amea-


çamlo tornar-se uma reprodução dos conflitos da mãe. Até que ponto a
avó paterna será controladora e interferente não se pode saber, mas não
parece coerente a idéia de uma mulher se eliminar e eliminar o filho
somente porque a sogra funciona como "Gestapo", ainda que o seja. Na
criança, existe uma clara deformação da realidade da escola, e em ambos,
mãe e filho, há uma perseguição interna que só poderia ser trabalhada
através do tratamento.

No caso de Geralda, o pavor e a manipulação da escola não eram as


únicas dificuldades apresentadas pela menina. A esse problema se acres-
centava a enurese, a insônia, a agressão descabida ao irmão menor e a
dificuldade de relacionamento com outras crianças. O aspecto mais im-
portante no estabelecimento desse quadro foi o início de vida dessa me-
nina, cujo relacionamento com a mãe, nessa fase, foi caracterizado por
uma rejeição grave e manifesta. Geralda parece estar cobrando agora, com
sua dependência, o que a mãe não lhe pôde dar quando nasceu, em função
de problemas para os quais a própria mãe já procurara ajuda.

O que se pode ver através desses casos é uma espécie de deslocamento


para a vida escolar de situações internas e de relacionamento com a famí-
lia que a criança não está conseguindo elaborar. Já que a escola é im-
portante para a família, como a primeira experiência sistemática de sucesso
ou insucesso social da criança, as ansiedades nos casos de fracasso são am-
pliadas. A escola torna-se então o ambiente onde, por assim dizer, ecoa
o brado de alarma, e do qual decorrem as providências da família para
resolver a situação.

PsicoteraPia: G. vem sendo submetida à psicoterapia há alguns meses,


com três sessões semanais, sendo a família paralelamente acompanhada por
assistente social psiquiátrica.
De início, comparecia 2S sessões vestida com extremo requinte. Sua
atitude era superficial, adultizada, seus movimentos lentos, procurando
apresentar-se como uma mocinha. Essa atitude artificial se caracterizava

2 Agradecemos à Psicóloga Sucl, Abreu os dados que proporcionou para apresentação


de Ulll desses exemplos.

Fobia escolar 49
sobretudo na marcha, que se assemelhava a passos de balé clássico. Revela
boa habilidade manual e fantasia rica, utilizando plenamente o material
que lhe é proporcionado. Usava principalmente os bebês, cuidando deles
com desvelo e mostrando interesse em cuidar de si própria, em lavar-se
e enxugar·se.
]\'" a fase inicial do tratamento, saía freqüentemente da sala de terapia
para comunicar-se com a mãe. 1\0 entanto, na última sessão, próxima a
uma ausência mais prolongada da terapeuta, resistia a interromper a sessão,
quando seu tempo terminava. Mostrava assim, de forma insistente, de
um lado, o receio de desligar-se da mãe, de outro, o desejo de ligar-se
à terapeuta.
Com cerca de dois meses de tratamento, ao terminar um período de
férias escolares, resolveu trazer para a sessão de terapia sua merendeira e,
durante todo o tempo, só realizou atividades que se assemelhassem às do
colégio. Parecia simular exatamente uma situação escolar, inclusive -
segundo a mãe - mostrando, nesse dia, pela primeira vez, certa resistência
em vir ao consultório. No dia seguinte, reiniciadas as aulas, passou a
freqüentá-las sem apresentar qualquer dos problemas anteriores.
Surgiu depois uma grande preocupação de G com os demais clientes
da terapeuta, hostilizando-os, sobretudo através dos bonecos, que passa a
considerar sujos e desagradáveis. Simultaneamente passou a lavar a sala
com água e sabão, com grande escrúpulo. Sua enurese chegou a desapa-
recer, para voltar a ocorrer de novo. A maior transformação observada em
G é quanto à sua maneira de apresentar-se: passa a vir mais à vontade,
chegando a brincar descalça, tirando os sapatos. Sua marcha artificial, tão
acentuada no início do tratamento, desapareceu por completo. Quando
tentou executá-la em fase recente, não conseguiu equilibrar-se e achou
graça na situação. Certa vez trouxe para a sessão uma boneca sua, bem
vestida e de chapéu, para alterar-lhe completamente o vestuário e o pen-
teado formal, fazendo-lhe um penteado de criança. Resta um longo tra-
balho a ser feito com G, mas já se pode observar que consegue agora sen-
tir-se aceita como criança e, como tal, permite-se freqüentar a escola sem
problemas. Em casa, segundo declara a mãe, está-se comportando como
uma criança travessa.

Referências bibliográficas

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