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Quarta, 20 de julho de 2016, 18h40

LITERATURA
Para entender melhor a cultura sertaneja

Léo Rodrigues*

eugênio silva - o cruzeiro

Guimarães Rosa no aguardo da refeição, entre os vaqueiros da boiada que ele organizou

Lá se vão 60 anos desde que o sertão mineiro ganhou o mundo pela literatura de
Guimarães Rosa. Mas Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, publicados em 1956, podem
na verdade ter nascido quatro anos antes, quando o escritor mineiro organizou uma
boiada para entender melhor a cultura sertaneja. Nessa aventura, Guimarães Rosa
registrou lugares, palavras, expressões e personagens. Entre tantos vaqueiros que se
juntaram à empreitada, um pode ter sido definitivo para as obras roseanas: Manuelzão.

A cruzada teve origem na Fazenda Sirga, a 60 quilômetros de Andrequicé, distrito de Três


Marias (MG), onde Manuelzão viveu seus últimos 20 anos. Dez dias depois, o ponto de
chegada foi uma fazenda em Araçaí (MG), município vizinho a Cordisburgo (MG), cidade
natal de Guimarães Rosa.

eugênio silva - o cruzeiro


Manuelzão (1904-1997) em seu tempo de labuta,
vaqueiro que ajudou Rosa a entender a cultura
sertaneja

A revista Cruzeiro, dos Diários Associados, publicou um relato da expedição na reportagem


Rosa e seus vaqueiros, em 21 de junho de 1952. Nas fotos, Manuelzão está entre o grupo.
Em sua homenagem, o escritor mineiro escreveu o conto Uma Estória de Amor, do livro
Corpo de Baile, que posteriormente foi desmembrado em três volumes: Manuelzão e
Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão.

Manuelzão é o protagonista do primeiro volume: após a morte de sua mãe, o vaqueiro


resolve atender a um pedido dela para que fosse construída uma capela em suas terras e a
obra é inaugurada com uma grande festa. Guimarães Rosa mescla realidade e ficção: assim
como o personagem, a capela existe e ao seu lado está o túmulo de sua mãe. Já a festa é
romanceada.

Das páginas do conto, Manuelzão se tornou talvez o principal embaixador da obra roseana.
A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) o homenageou criando o Projeto
Manuelzão, destinado à recuperação do Rio das Velhas. O vaqueiro foi a diversos
programas de televisão e atuou em uma cena do capítulo inaugural da série Grande Sertão:
Veredas, levado ao ar pela Rede Globo em 1985. Morto em 1997, seu enterro mobilizou
centenas de pessoas.

Parte desse sucesso é relatado em detalhes pelo jornalista Pedro Fonseca. Sobrinho da
última mulher de Manuelzão, ele se afeiçoou ao “tio torto”, como se diz em Andrequicé.
Fonseca garante que Uma Estória de Amor é apenas a parte mais evidente da influência do
vaqueiro na obra roseana. "Ele permeia toda a obra de Guimarães Rosa. Ele também está
em Noites do Sertão e no Grande Sertão: Veredas. O Riobaldo é o Manuelzão, é bem nítido”,
analisa Pedro.

Quem conheceu o vaqueiro se surpreende com a exatidão da descrição do personagem por


Guimarães Rosa, dando a impressão de um longo convívio, o que não aconteceu de fato. “A
convivência deles foi de uns oito dias e nunca mais se viram. Mas uma convivência
intensa, dia e noite”, diz Pedro Fonseca.

Mesmo por poucos dias, o sobrinho de Manuelzão diz não estranhar a atenção destacada
que o tio recebeu de Guimarães Rosa em meio a um bando de vaqueiros. Segundo o
jornalista, ele não passava despercebido. “Em 1989, eu apoiei o Brizola na campanha para
presidência da República. O José Maria Rabelo, que era o presidente do PDT em Minas
Gerais, me perguntou se eu poderia levar o Manuelzão para um evento com o Brizola em
Belo Horizonte. Eu levei e foi uma confusão. Muita gente achou ruim que ele apareceu
mais que o Brizola. Era assim: onde ele ia, ele era o astro”, relata.

Em Andrequicé, Manuelzão é conhecido como o cidadão mais ilustre que viveu no distrito.
Em torno dele e de Guimarães Rosa se organiza anualmente a Semana Cultural Festa de
Manuelzão, cuja edição de 2016 terminou no domingo passado (17/07). Famoso contador
de casos, o vaqueiro está em fotos nas paredes de praticamente todos os bares do pequeno
distrito. “Ele era uma pessoa humilde, contadora de casos. Mesmo a figura dele rodando o
mundo, ele não se importava com dinheiro. Se convidavam Manuelzão pra um evento em
Brasília e perguntavam quanto ele cobraria, ele respondia: 'nada, estou indo passear'.
Manuelzão deixou um legado para Andrequicé”, diz Márcia Alves, dona de um dos bares
que homenageiam o vaqueiro personagem.

Essa disponibilidade de Manuelzão foi explorada por muitos, segundo o jornalista Pedro
Fonseca. “As pessoas convidavam ele para eventos de empresas onde ele era o astro,
lucravam com sua aparição e lhe pagavam apenas uns trocados.”

O Memorial Manuelzão, construído na casa onde ele morou em Andrequicé, reúne


pertences pessoais e documentos sobre sua relação com Guimarães Rosa. Assim como o
escritor, ele também tem frases marcantes que são citadas pelos moradores: “Não tenho
medo da morte porque sei que vou morrer. Tenho medo do amor falso, porque mata sem
Deus querer”, dizia sempre.

Livro

Com a autoridade de quem conviveu por 40 anos com Manuelzão, o jornalista Pedro
Fonseca decidiu lançar em 2007 o livro "O xale de Rosa", para decifrá-lo para além da obra
roseada. “No final da vida, ele virou o personagem. Deixou de ser o cidadão e virou o
personagem. Mas foi também o que deu uma sobrevida a ele. Ele vivia pelo sucesso. Mas
eu me interessava pelo cidadão Manuelzão. Não o personagem.”

Um fato sobre Manuelzão intrigava Pedro: ele não compartilhava as histórias de Dom
Silvério (MG), na região mineira da Zona da Mata, onde nasceu. “Ele não falava nada sobre
essa época. Dizia que não tinha pai, só mãe. Quando se fixou na fazenda próxima a
Andrequicé, levou a mãe para morar com ele, mas não tinha contato com o restante da
família. Ficou 60 anos sem visitar sua cidade e quando o fez, foi sozinho, meio escondido”,
conta o jornalista. Manuelzão deixou sua cidade natal com 20 e poucos anos, no início da
década de 1930. "O sonho dele era se juntar ao bando de Lampião. Quando ele estava em
Pirapora (MG), ele recebeu a notícia de que Lampião tinha sido morto. Então, seguiu sua
vida no sertão mineiro".

Para escrever o livro, Fonseca foi à cidade de Manuel Nardi, como se chamava Manuelzão,
e descobriu que o sobrenome era de uma família grande e nobre na região. Na cidade, o
jornalista passou a investigar que razões levaram Manuelzão a abandonar uma vida
relativamente confortável para se embrenhar pelo sertão. Ainda no desafio de decifrar o
vaqueiro, o jornalista organizou uma expedição para refazer o percurso trilhado por
Guimarães Rosa e seus vaqueiros, respeitando os mesmos pontos de parada. “Nós guiamos
198 cabeças de gado. Eu precisava vivenciar essa experiência para entender como é essa
vida de vaqueiro.” (*da Agência Brasil)

Manuelzão, já no final da sua lida terrestre. Personagem


real imortalizado pela ficção de um dos mais importantes
escritores do Brasil

Fonte: Tyrannus Melancholicus


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