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INVESTIGANDO A LINGUAGEM ESTÉTICA DO GRAFFITI NO RIO DE

JANEIRO: SUJEITOS, ESPAÇOS, E PRÁTICAS


Beatriz Novo Rodrigues Silva 1

Resumo: O graffiti, enquanto linguagem estética urbana e prática artística,


transita entre ruas e galerias desde seu surgimento. Atualmente, esta linguagem do
graffiti vem ganhando mais espaço no mercado da arte, principalmente no que se refere
ao nicho da arte urbana. Desta atual conjuntura que o graffiti está inserido, o que me
interessa compreender, neste artigo, é como o poder público e o mercado da arte, em
geral, têm dialogado com a atual produção de arte urbana na cidade do Rio de Janeiro, e
em outra esfera de investigação, entender como os grafiteiros se apropriam da rua
enquanto espaço de produção e exposição de graffiti.

Palavras-chave: Graffiti, Arte Urbana, Cidade.

Uma breve introdução ao graffiti no Brasil e seus movimentos entre


“mundo da arte” e “mundo da rua”

Para contextualizarmos a expressão do graffiti em meio à produção imagética


contemporânea do / no Rio de Janeiro, que se revela como a minha intenção de
pesquisa, é necessário, antes de tudo, traçar um pequeno histórico de como essa
manifestação artística foi se consolidando no Brasil.
No Brasil, desde que a prática do graffiti foi incorporada a partir dos Estados
Unidos, na década de 70, esta sempre transitou por esferas de marginalidade e núcleos
de arte mais restritos. As técnicas de pintura, os instrumentos, e as referências visuais
foram trazidas por artistas de classe média que habitavam a cidade de São Paulo, como
Alex Vallauri e Rui Amaral, e que tinham contato com o que era produzido em cidades
como Nova York. Na época, o que estava em voga no mundo da arte era a chamada pop
art, fonte estilística que o graffiti bebe desde seu início (até hoje) como movimento
estético. Podemos perceber isto ao analisarmos os primeiros stêncils 2 e pinturas em

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades (PPCULT) /
Universidade Federal Fluminense. Email: novobia@hotmail.com
2
Stêncil é uma prática em que se joga tinta spray em cima de um molde, assim, fica
registrado na parede o preenchimento deste, na forma que o interventor desejar. O stêncil é um
tipo de intervenção urbana, porém não congrega os mesmos valores que a inscrição de uma
muros da cidade de São Paulo: Botas de salto alto pretas feitas por Alex Vallauri,
personagens no estilo de cartoons, muito coloridos, feitos por Rui Amaral, fortemente
influenciado por Keith Haring, artista estadunindense que pintava bonecos sem rosto e
muito coloridos, essa era a geração de Pioneiros do graffiti.
Já a geração dos anos 80, conhecida como Old School, trouxe como valor crucial
para a legitimação da prática do artista-grafiteiro, a necessidade de assinar suas tags
(seus codinomes como grafiteiros) com muita frequência e em diversos espaços da
cidade, aliando a isto o elemento de transgressão das normas. O objetivo é dialogar com
a rua, criar códigos, sejam para serem entendidos por todos os citadinos ou por somente
outros grafiteiros. Fazem parte desta geração os artistas como Binho, Speto, Onesto, e
Os Gêmeos. Diferentemente dos pioneiros, eles se caracterizavam por uma maior
vivência na rua, e por uma ousadia quanto ao uso de espaços proibidos para o graffiti
vandal3. Entre estes sujeitos, foram poucos os que cursaram uma graduação, o que não
impediu o desenrolar de suas carreiras artísticas em outras esferas da arte como galeria,
estúdios de ilustração, etc. Desta geração o exemplo mais emblemático são Os Gêmeos,
que começaram a grafitar na rua, em rodas de break dance, e daí, seguiram conhecidos e
renomados como os grafiteiros mais famosos do Brasil, chegando a pintar castelos e
murais gigantescos em diversos países do mundo, e até mesmo um avião que serviria de
transporte à seleção brasileira de futebol. Eles são emblemáticos, pois, não possuíam
nenhuma formação ligada às artes, tão pouco nasceram dentro de um círculo de artistas,
e através de suas práticas intensas nas ruas e, também, do aperfeiçoamento de sua
identidade visual, foram ganhando espaço neste mercado específico e hoje são os
grafiteiros-artistas mais reconhecidos do Brasil.
O surgimento do graffiti, na década de 1970, em Nova York, foi movido pela
revolta de guetos de Nova York perante o Estado e a sociedade em geral. Enquanto
prática surge com a intenção de dar visibilidade e voz aos que são tratados com

caligrafia ou desenho, por exemplo, pois, é algo mais rápido e fácil de ser reproduzido pela
cidade.
3
Vandal é o graffiti que é feito em local proibido como comporta de comércios, cabines,
muros de casas e prédios. Este tipo de graffiti é geralmente composto por duas cores: uma de
preenchimento e outra de contorno.
violência e descaso devido às suas posições desfavorecidas social e economicamente.
Entretanto, desde o mesmo momento histórico, o graffiti circula entre diferentes espaços
públicos e privados, ou seja, entre rua e galeria, vide Jean Michel-Basquiat, que na
Manhattan da década de 70, pintava nas ruas e também já expunha em galerias, sendo
ele o primeiro a entrar no mercado da arte devido ao graffiti, pintando junto com Andy
Warhol.
Podemos considerar, que, desses anos para a década de 2010, em contextos
territoriais específicos, o graffiti vem passando de uma posição periférica no âmbito das
artes visuais para uma posição mais central. (NETO, 2011). No Rio de Janeiro,
especificamente, o primeiro boom do graffiti, segundo alguns estudos4 e a própria fala
de meus interlocutores em entrevistas, foi entre 2004-2006. Nos anos 90, grafiteiros
como Fábio Ema, e Acme, já pintavam pela cidade, porém, a oferta de tintas e materiais
ainda era escassa, o que faz com que estes nomes acima sejam muito considerados na
cena de graffiti Old School da cidade do Rio justamente por pintarem nestas condições
de desbravamento dos muros, com o material que tinha. Depois dos anos 2000, o graffiti
começa a chegar no Rio de forma mais intensa através de revistas e pelo contato Rio-
São Paulo. Em 2008, há uma espécie de segundo boom do graffiti, e este é o mesmo ano
em que Os Gêmeos ganharam reconhecimento no cenário internacional, com a pintura
da fachada do Tate Modern em Londres. Nesta década de 2000 para 2010, o Rio ganha
uma grande quantidade de nomes na história do graffiti, que têm como principais
referências nomes de São Paulo e de outros países.
Já, a partir de 2010, surge a nova escola do graffiti do Rio, com outra geração de
grafiteiros. Neste novo contexto, o graffiti está ligado à arte urbana. Isto quer dizer que,
em uma grande escala, o graffiti não é mais tão estigmatizado como expressão marginal
para o público consumidor e investidor de arte, e sim como arte, inserido no nicho da
arte urbana. O graffiti, ao ser reconhecido como parte do nicho da arte urbana, ganha
expressividade e pode assim ser reconhecido como legítimo, sendo que a arte urbana

4
Ver Adriana Medeiros, “Discursos sobre a arte urbana no Rio de Janeiro: a legitimação do
grafite nas ruas e galerias de arte da cidade”, 2012.
inclui diversas outras expressões que dialogam com a rua, não só o graffiti – instalações,
stêncil, performances, lambe-lambe, etc.
A partir de 2010, então, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo há um
boom da arte urbana, em que surgem muitos eventos5 para expor os novos e antigos
artistas urbanos. O imaginário de se viver na cidade, e do que é ser da rua começa a ser
passado como algo vendável, em que cada vez mais pessoas reconhecem nesta “estética
urbana” uma legitimidade artística que possibilita que levem para sua casa uma obra
deste estilo, por exemplo, pois “ser da rua” também passa a ser um valor para o mercado
da arte.
Contudo, o graffiti ser validado no mercado como arte urbana não é algo
totalmente “bem resolvido” para a totalidade de seus praticantes. Alguns querem manter
acesa a veia “vandal”6, pintando somente nas ruas, preferindo manter a sua própria
imagem em sigilo na cena artística, espalhando apenas sua tag e suas mensagens.
Observo que, para um grafiteiro, mesmo para aqueles que entram no jogo do mercado, o
seu diferencial se dá pela sua relação de vivência na rua, pois isso é o que realmente vai
fazer alguém ser considerado um grafiteiro, ter um tipo de comprometimento com a rua,
e consequentemente com os cidadãos. Ao mesmo tempo, para quem quer desenvolver
suas habilidades artísticas mais a fundo, há a necessidade de experimentar outros
materiais e processos em outros espaços de criação, que não seja a rua, como ateliês e
estúdios por exemplo.
O que observo hoje, é que este tipo de produção artística, é reconhecida e
significada pelos cidadãos/indivíduos, que são ao mesmo tempo transeuntes, e público
de arte (SILVA, A. 2014), como um instrumento de crítica social e de exposição de um
imaginário de submundo de rua, que é algo a ser mais apreciado do que temido ou
rejeitado como há alguns anos atrás. Os apelos, tanto estético quanto o político, do
graffiti fazem parte de um estilo de vida urbano que, hoje em dia, mais pessoas admiram
5
Hoje há grandes eventos de arte urbana no Rio de Janeiro: FAU 021, Cluster, Art Rua,
Arte Core.
6
Graffiti vandal pode ser considerado o graffiti que é feito em lugares proibidos, e que
geralmente são “bombers”, ou seja, a tag do grafiteiro em letras gordinhas, feito com duas cores
no máximo.
e querem para si. Este estilo pode aparecer em vestimentas, em gírias, e também na
aquisição de obras de arte urbana.
Nesse contexto do graffiti enquanto arte urbana me interessa pensar, em termos
amplos: Como o grafiteiro utiliza a cidade como seu suporte e, em que tipos de
condições busca realizar sua obra? Como essa produção imagética está ligada à vivência
na/ da cidade? E como ela dialoga com diferentes esferas como o poder público e o
mercado da arte? Proponho-me a discorrer sobre estas questões ao longo do texto, tendo
como referência a cena da arte urbana do Rio de Janeiro.

Murais do imaginário citadino carioca

Enquanto linguagem estética, o graffiti explora as significações dos elementos


do imaginário da cidade na qual se encontra, ao mesmo tempo em que dá forma a eles.
Toda imagem que se apresenta nos muros da cidade, além de expressar a identidade
visual do sujeito que pinta, contém em si uma forma, um contorno, que também
expressa características desse espaço urbano em questão e assim, também compõe uma
visualidade própria da cidade. O sujeito que pinta o muro, de alguma forma, dialoga
com os estímulos que recebeu de tantos outros muros, e de ruas, e de pessoas, e de
afetividades do espaço urbano que vive e transita.
As próprias percepções e concepções do conceito de arte dos sujeitos de uma
cidade estão atreladas aos códigos compartilhados na esfera do imaginário desta mesma.
No caso do graffiti, os julgamentos e debates em torno destas noções se tornam muito
evidentes, pois, os transeuntes são o público de arte, como nos atenta, Armando Silva
(2014):
Qualquer lugar pode se transformar em espaço de arte, o que gera forte rivalidade com o
mundo real e anula a diferença entre o espaço de vida e o outro da arte, fazendo do
público uma potencialidade estética e dos cidadãos, muitas vezes, passantes ocasionais
surpreendidos pela ação, alguns públicos de arte. (SILVA, 2014, p. 116).

Esse público de arte tão diverso, que são os cidadãos, tem em comum a
existência em determinada cidade, e estes podem lidar de diferentes formas com o que
estão vendo nos muros. Não pretendo ir a fundo na questão do público e das possíveis
recepções de cada pintura para o público, o que me interessa destacar é que, querendo
ou não, independente das pessoas dominarem os códigos que existem para analisar,
admirar ou se deixar tocar por uma pintura, elas passam por pinturas todos os dias e isto
pode surtir diversos efeitos em suas subjetividades e vivências na cidade. Há também a
possibilidade de haver o contato visual, mas não haver nenhum tipo de resposta da
pessoa em relação ao que foi visto, tal é o não domínio dos códigos do graffiti ou o
efeito avesso ao pretendido, de “invisibilidade”. Entendo que a invisibilidade pode se
dar pela paisagem urbana já se encontrar com uma gama tão extensa de escritas e
pinturas em muros, que o olhar do transeunte se torna acostumado às intervenções
existentes, deixando de reparar em detalhes ou até mesmo deixando de se afetar pelo
que vê.
Segundo Sandra Pesavento (2002) os habitantes da urbe, requalificam e
conferem novos sentidos ao espaço urbano, e a atribuição de sentido às imagens
depende do ponto de vista, ou do lugar de quem vê e de como sente aquilo que se
apresenta. Esta esfera do ver e do sentir constitui o imaginário. Sendo assim, se
analisadas concomitantemente, as pinturas nos muros podem compor um conjunto que
dá pistas sobre os imaginários urbanos.
As pinturas nos muros revelam uma multiplicidade do espaço urbano na medida
em que diversas representações deste estão expostas para todos que nele circulam. Esta
forma de manifestação artística, que ao mesmo tempo é uma prática social, nos remete
para várias questões que dizem respeito às pessoas que vivem na cidade. Ou seja, a obra
de arte, no caso do graffiti, além de envolver uma determinada concepção de arte,
envolve também uma concepção de cidade, de estética da cidade, e de modos de se
viver e circular na cidade.
Tratando-se da cidade do Rio de Janeiro, podemos observar a existência do
imaginário “oficial”, construído pelo poder público, que remete a uma cidade pacífica e
maravilhosa, e também do imaginário do “outro lado da moeda”, o da cidade-desespero,
o Hell de Janeiro, como podemos observar nas seguintes imagens:
Mural coletivo localizado na
Lapa, região central do Rio
de Janeiro. (Fotos
justapostas, retiradas da
internet).

Mural de artista
desconhecido, localizado na
favela “Metrô Mangueira”
(que continua sofrendo com
desapropriações desde a
copa de 2014). (Foto
retirada da internet).

Nos murais acima, elementos como as cores, a vestimenta dos personagens, suas
expressões faciais, o cenário ao fundo, a disposição dos componentes do desenho, o
lugar aonde foi realizado, dizem muito sobre que tipo de cidade estamos vivendo, sendo
que, na verdade, são várias cidades que vivemos simultaneamente em uma só.
Pesavento (2002) nos ajuda a pensar a questão dos imaginários urbanos, ao
propor seu entendimento como campos de luta, em que nenhuma representação se
encontra solta, não sendo apenas o fruto da interpretação de um indivíduo, mas sim,
estando dentro de um jogo de forças que disputam espaços, e modos de vida na cidade.
“O real é um campo de disputa para definir o que é o real” (Bourdieu apud Pesavento,
p.23, 2002).
Qualquer imagem não encerra em si uma única interpretação possível de seus
“códigos”, por isso, são detentoras de um potencial de ressignificações e apropriações
muito grande. Sendo assim, cabe questionar quais as implicações concretas que as
representações relacionadas ao graffiti ajudam a construir na cidade?
Para investigar possíveis diálogos existentes dessas representações da cidade
dentro do campo de atuação do graffiti, elejo como exemplo concreto, a implementação
do projeto da Prefeitura e do Governo Estadual e Federal, junto a empresas privadas,
que tem como finalidade uma reformulação do espaço urbano em função de mega
eventos como as Olimpíadas, a chamada Operação Urbana Consorciada Porto
Maravilha (OUCPM). Este projeto é interessante para esta análise porque ele possui
como um dos eixos de ação, no tocante à cultura, a valorização da chamada arte de rua e
este fator me permite enxergar os laços mais estreitos nas relações entre os sujeitos do
graffiti e o poder público.

O Graffiti no fio da navalha

A OUCPM é uma ação estratégica da Prefeitura do Rio de Janeiro com apoio


dos Governos Estadual e Federal, que visa reestruturar a dinâmica socioeconômica da
Região Portuária do Rio de Janeiro, junto de grandes companhias e empresas privadas.
Sobre o Porto Maravilha, e a sua revitalização, Artur Monteiro (2013) discorre:

É importante frisar que todo o projeto tem por preceito transformar a região no maior e
mais importante centro de negócios do país, fato que poderia, juntamente com os
grandes eventos, reanimar os investimentos na cidade, dinamizando toda a economia.
(...) O projeto se baseia fortemente na reestruturação viária do porto, e é possível
afirmar que ações nesse ponto da cidade possuem repercussões metropolitanas
importantes. (...) O enfoque cultural e a revitalização urbana em moldes externos ao do
local, e, ainda, internacionais, são fortes marcas do projeto. A região será tomada por
grandes museus, não só atrativos culturais, mas importantes símbolos do novo, como é
o caso do Museu do Amanhã, e do Museu de Arte do Rio (MAR). (MONTEIRO, p.65,
2013)
De acordo com essa perspectiva, observa-se que a esfera da cultura é usada
como um dos principais canais para amenizar e até mesmo, mascarar, outros fatores que
acontecem nesse espaço urbano, como a gentrificação estratégica parte deste projeto
ufano. A cidade, então, impele o cidadão a inserir-se na cidade-produto mercantilizada e
culturalmente segregante ao permitir a ascensão de uma ou outra manifestação artística
específica, descartando outras manifestações artísticas já presentes até então no local.
Porém, ao mesmo tempo em que há a imposição de novas práticas de consumo de
cultura no local do porto, como os gigantescos museus, há também, a valorização da
arte urbana, que se encaixa no projeto de revitalização, agindo como um estímulo à vida
urbana e à circulação por esses “novos espaços vazios”, para que possam, enfim,
tornarem-se “cheios”. Na região portuária, por exemplo, é aonde se encontra o maior
painel de graffiti do Rio de Janeiro, realizado pela Flesh Beck Crew.
Colorir e embelezar a cidade, atualmente, são pontos centrais de políticas
públicas pra cidade, que movem também pinturas e murais de graffiti custeadas pelo
poder público. Se o graffiti é legitimado pelo mercado da arte, por que então não
investir nisso? Em um espaço totalmente cinza e ainda sem uso, o graffiti serve como
forma de chamar atenção dos moradores da cidade e principalmente de turistas. Os
olhos se voltam ao colorido, às formas abstratas ou realistas, chamando o transeunte
para uma rápida “selfie”, uma rápida “hashtag no instagram” e assim, se prolifera e
mantém a imagem do Rio como cidade maravilhosa e, além disso, “olímpica”. A
“instalação” feita pela prefeitura do Rio, na Praça Mauá, é um exemplo disso, nela se lê:
“#CidadeOlímpica” tem a sua parte traseira pintada por diversos grafiteiros do Rio.
O graffiti ao fazer parte deste projeto da prefeitura, que está ligado a uma
alteração drástica de moradia e vivência na região do porto, se coloca em uma posição
incerta quanto às intenções de suas práticas. Por um lado há o incentivo à produção de
graffiti, e aumento de financiamentos públicos para murais que custam caro para serem
realizados, o que fortalece a cena, quem ganha mais é quem já é renomado, diga-se de
passagem. Por outro, com a institucionalização da prática, coloca-se à margem e na
ilegalidade, os sujeitos que não desejam pintar em locais delimitados pela prefeitura e
desvalida quem deseja pintar algo que não corresponda ao tipo de imagem que a
prefeitura queira ser associada.
Outro motivo para os artistas-grafiteiros se encontrarem no fio da navalha é ter a
própria imagem pessoal ligada às desapropriações em massa do local, servindo como
ferramentas a este tipo de segregação espacial, sendo que o graffiti tem, junto ao
movimento hip hop, um histórico de crítica social. A questão aqui não é essencializar o
debate recorrendo a um purismo da prática do graffiti, mas sim, problematizar pontos de
vista e argumentos sobre este contexto.
Sobre a relação de comercialização da arte de rua, Jorge de La Barre analisa o
que chama de um afresco publicitário em Lisboa:
Dá-se uma migração da arte e da estética para o marketing (...) O afresco marketing,
street art style (serve) para tapar melhor, para garantir e assegurar contra o vandalismo
das tags7; Empresas (...) se propõem a revolucionar o espaço urbano, não só através da
tecnologia sem fio, mas também pela marcação artística, estética, o design
publicitário.(LA BARRE, p. 5, 2010)
No caso, Barre chama atenção para um afresco, ou seja, um mural, publicitário
privado, ao passo que estamos falando do poder público na cidade do Rio, porém, as
intenções por trás da relação que se estabelece entre um trabalho publicitário
encomendado e a arte de rua é a mesma. Há a apropriação de uma estética, que cresce
cada vez mais no estreito mercado da arte, e que ao mesmo tempo já é popular nas ruas,
isto facilita ainda mais o envolvimento do grande público com as obras, pois estes, sseja
em que lugar for.
Voltando ao exemplo do Rio, nota-se que com frequência há a presença do Pão
de Açúcar, e do Corcovado em pinturas financiadas pela Prefeitura, e isto não é à toa.
Na concepção da atual gestão do poder público carioca, o que vende é a representação
oficial do imaginário da cidade. Um grafite de denúncia, como a do Metrô Mangueira,
por exemplo, ou até mesmo um mural que utilize somente cores escuras, não está de
acordo com a imagem de cidade maravilhosa que deseja ser projetada, podendo ser

7
Tag é a assinatura do autor, e é feita geralmente no estilo vandal.
considerada até como ato de vandalismo, e não é isto que se deseja oferecer aos
consumidores do espaço (Pesavento, 2002), sejam eles moradores ou turistas.

A via dos grafiteiros: Práticas, reconhecimentos e espaços


A rua é o ambiente mais próximo do que seria uma “essência” do graffiti, ela é
transfigurada em galeria viva, o rascunho vivo, o portfólio vivo, a inspiração viva, a
adrenalina viva. A rua se mostra para meus interlocutores, como a respiração que
oxigena seus mais diversos trabalhos, e suas vidas. A sensação de estar na rua, sozinho
ou em grupo, com suas tintas, é o que buscam constantemente, é uma prática que pode
ser considerada além de um mero hobby, mas sim uma necessidade. É aonde também,
para os mais profissionalizados, existe uma grande possibilidade de chamar atenção
com seus desenhos, a ponto de serem reconhecidos e chamados para algum trabalho
devido à sua exposição na rua. Em relação a este último ponto, quanto mais muros
pintados eles tiverem, mais serão vistos por todos da cidade, e mais considerados serão
no meio do graffiti, assim, seu nome ganhará maior legitimidade e status no “mundo da
rua”. Estes fatores fazem com que estejam sempre se renovando na rua.
Como afirma Certeau (1995) o imaginário está no ver, e a cidade confere uma
espécie de condição para seus habitantes na qual para existirem é preciso serem vistos.
“Quem não é visto não é lembrado”, que morador do Rio de Janeiro nunca viu escrita
em um muro ou ouviu essa frase em algum lugar da cidade? Porém, aonde é importante
ser visto?

Mesmo na rua, também há espaços com mais valor do que outros, por exemplo:
Se um artista de renome, que está fizer um graffiti em um lugar mais longe do fervo
cultural da cidade (que considero o eixo centro-zona sul), ele estará preservando sua
identidade de rua, sua “raiz” underground. Isso sugere um gesto de valorização do local
em questão, pois, para quem mora em um bairro como Vista Alegre, é legal ver que um
artista que já pintou em diversos lugares do mundo, também fez questão de colocar seu
nome ali no naquele bairro, que está distante da cena mais comercial do graffiti no Rio.
Ao mesmo tempo, se um grafiteiro, sem renome no mercado da arte ou até
mesmo sem reconhecimento no mundo do graffiti, colocar seu nome só na sua área de
moradia, não vai trazer grandes frutos de reconhecimento pela cena do graffiti da sua
cidade, pois quanto mais circulação, mais visibilidade e mais interação com a cidade e
seus transeuntes, cidadãos, público. Mas há também, casos em que quem faz graffiti,
não desejar um reconhecimento maior pela cena, e sim, às vezes, um reconhecimento
apenas do bairro, dos amigos, e, este, faz aonde o acaso, a chance, a oportunidade, a
intuição, e o envolvimento com o lugar o chamar. Mesmo para quem faz dessa forma,
uma boa parte das saídas pra pintar necessita de um mínimo de planejamento prévio,
como a escolha do lugar e o a locomoção, pois, sair para pintar envolve pensar: na
quantidade de material que será necessário, a forma com que esse material será levado,
a altura do lugar que será pintado (se uma escada será necessária, por exemplo), quais as
melhores tintas e materiais para o lugar que vai ser feito (muro chapiscado, muro que
chupa muita tinta, muro grande-rolo grande, muro pequeno-pincel, etc...).
A meu ver, então, em torno da rua, giram as principais questões e debates do
graffiti e, também, os principais mecanismos internos de legitimação dos grafiteiros na
cena. A rua se aproxima mais do que seria uma essência do graffiti como havia dito
antes, por que, como um dado que tem aparecido na fala dos meus interlocutores, o
graffiti não é a obra final, e não é uma técnica, e sim o ato de pintar na rua. A mesma
pintura que podem fazer na rua, se for feita em uma tela e ir para uma galeria, para eles,
já não é graffiti, mas arte urbana. A nomenclatura muda, pois a pintura está descolada de
seu suporte fundamental.
A rua é o suporte do graffiti, o ato então não está descolado do lugar em que ele
é feito. Ao se transmutar para outros espaços, o grafiteiro consegue se manter no limiar
entre o artista, aquele que faz obras comerciais e consegue viver de sua arte, e o
grafiteiro, que tem correndo em suas veias o underground das ruas.
Essas identidades estão longe de serem fixas, e são ativadas e desativadas de
acordo com diversos contextos em que eles estão inseridos, porém, a rua nunca deixa de
ser um espaço de legitimação, pois, até aquele grafiteiro que atualmente só faz tela, não
vai deixar de receber alfinetadas de outros grafiteiros se ele não estiver mais pintando na
rua, a não ser que ele desative de vez sua pretensão de se considerar um grafiteiro.
As formas de viver a rua e pintar na rua determinam também, além da
legitimação do sujeito enquanto grafiteiro, se ele é bom ou não fazendo isso, e se ele
merece ser respeitado por suas pinturas. É uma forma de organização que mantém o
universo do graffiti. Se, por um lado o graffiti hoje em dia é uma prática relativamente
difundida, e as pessoas podem arriscar-se ao colocar alguns traços na rua mesmo sem
muita técnica, por outro lado alguns mecanismos de dominação apertam, para alguns
manterem sua posição no campo, fazendo com que este seja regido por algumas
determinadas “regras” que são regidas de forma direta ou indireta.
Como exemplos destas “regras”, pude observar que são critérios (usados em
diferentes contextos): (i) ocupar muitos espaços da cidade, de preferência os que sejam
mídia (lugares que estão sendo muito visitados), (ii) utilizar diferentes técnicas de
grafia, ou apenas uma, muito bem (bomber, piece, mural) (iii) utilizar os instrumentos
de pintura de melhor qualidade (spray que não escorre, birro apropriado para o traço
desejado, etc), e quando não, utilizar outros instrumentos mais desvalorizados, de forma
muito habilidosa, a ponto das pessoas se perguntarem como a pintura foi feita com
aquele material (tinta látex, rolinho e corante), (iv) se aprimorar nas suas técnicas,
buscar referências em outros estilos, entre outras diferenciações internas.

Como observa Lígia Dabul, Bourdieu vincula diretamente o processo criativo à


posição dos criadores no campo artístico, assentando sua natureza relacional (DABUL,
2008):
“Situado, ele (o sujeito criador) não pode deixar de situar-se, distinguir-se, e isso, fora
de qualquer busca pela distinção: ao entrar no jogo, ele aceita tacitamente as limitações
e possibilidades inerentes ao jogo, que se apresentam a ele como a todos que tenham a
percepção desse jogo, como “coisas a fazer”, formas a criar, maneiras a inventar, em
resumo, como possíveis dotados de uma maior ou menor pretensão de
existir”(BOURDIEU apud DABUL, 2008)

Desta maneira, o sujeito criador no graffiti não se encontra totalmente livre na


sua criação, mas também sujeito à sua posição neste campo. Ele está imbricado em
diversas relações pessoais que cria, e relacionado a isso, ele está sempre em diálogo
com o espaço que está materializando sua criatividade.
Se uma pintura for feita de dia, ou de noite, na zona sul ou na zona norte, se foi
encomendada pelo poder público, ou por uma empresa, ou se foi feita para desestressar
depois de um dia difícil, tudo isto vai fazer parte não apenas da trajetória deste
indivíduo, mas da cena do graffiti como um todo, e mais do que isso, será parte da
formação de uma cidade.

Considerações Finais
Propus-me a explorar, neste presente artigo, as diversas intersecções possíveis do
graffiti com a rua, o poder público e o mercado da arte, especificamente como gênero
arte urbana. Acredito que pensar o graffiti em seus desdobramentos como arte de rua,
nos diversos espaços em que ele acontece e se recria, envolve a reflexão sobre as
fronteiras de nichos estéticos existentes no mundo da arte em geral, e sobre diferentes
perspectivas de compreensão e usos de espaços da cidade.
Pretendo dar seguimento à pesquisa refinando as interações com meus
interlocutores, visando assimilar o sujeito criador como ponto de partida para explorar
mais a fundo a cena atual do graffiti no Rio de Janeiro.
Referências Bibliográficas:

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Lisboa, Revista Migrações – Número Temático Music and Migration, organizado por
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CERTEAU, Michel de. Cap. 2 O Imaginário da cidade, In: A cultura no plural.


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DABUL, Ligia. Experiências criativas sob o olhar sociológico. Ponto-e-Vírgula.


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FRANCO, Sergio Miguel. Iconografias da Metrópole: Grafiteiros e Pixadores –


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Sesc SP, São Paulo, 2014.

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