Você está na página 1de 4

JN DN TSF Dinheiro Vivo V Digital Plataforma O Jogo Motor 24 Men's Health Women's Health EvasõesCLASSIFICADOS

Volta ao Mundo NM N-TV Delas


ASSINAR ENTRAR

De D. Quixote a Picasso: os simbolos culturais que


Espanha exportou para o mundo
30/11/2019

De Dom Quixote ao amenco, de Goya a Paco de Lucía, são muitos os símbolos culturais que a Espanha
exportou para o mundo. Muito para além do postal ilustrado, fazem aquilo que os políticos não
conseguem: unir entre si castelhanos, galegos, catalães e bascos.

Texto de Maria João Martins

“Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um dalgo dos de lança
em cabido, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor. (…)”
Assim abre, como muitos recordarão, o romance Dom Quixote de la Mancha, dado à estampa em Madrid
no ano de 1605 e ainda hoje considerado uma das traves-mestras do cânone literário mundial, o que
decerto muito surpreenderia o seu autor, Miguel de Cervantes Saavedra, que, para sobreviver (tal como
Camões), se fez soldado ao serviço do rei.

O brio de Dom Quixote, cavaleiro dito da triste gura, que, mesmo em extrema necessidade e míngua,
nunca deixou de perseguir os seus ideais de justiça e supremo amor, tem, ao longo dos séculos, fascinado
artistas de todo o mundo e das mais diversas disciplinas, estando para Espanha, enquanto símbolo
identitário, como Amália Rodrigues para Portugal. Nacionalismos e regionalismos à parte, já que a boa
alma do cavaleiro manchego parece ter tocado de igual forma artistas catalães, bascos ou castelhanos.

O catalão Salvador Dalí, foi, por exemplo, um dos maiores entusiastas mundiais da obra-prima de
Cervantes, tendo assinado as ilustrações de uma das melhores edições de Dom Quixote, além de centenas
de desenhos e pinturas nele inspiradas.

/
Cristóbal Balenciaga. Miguel de U

O que os liga, separando-os tanto a geogra a e os tempos? Provavelmente a paixão, temperada pela
fantasia, que une, nas suas diferenças, as várias nações da Península. Designada como “pele do touro” pelo
geógrafo grego Estrabão no século I a.C., por lhe parecer, na contemplação dos mapas seus
contemporâneos, que a Ibéria se assemelhava à pele estendida de um touro, este extremo ocidental da
Europa cou, aos olhos de si mesmo e dos outros, associado a indomáveis paixões. Eros e Thanatos
simbolizados pelo touro selvagem, capaz de levar o mundo à sua frente.

A paixão é, se quisermos, a coluna vertebral da cultura espanhola. Está em Dom Quixote como, mais
recentemente, na poesia e no teatro de Federico García Lorca. Nascido em Fuentevaqueros, Andaluzia, em
1898, o autor, que escreveria num dos seus poemas “só o mistério nos faz viver”, voltaria recorrentemente
ao tema da morte violenta como desfecho da paixão e à tragédia como irmã gémea da esta. Fascinado
pelo universo da tauromaquia, dedicará um dos seus mais conhecidos poemas à morte do toureiro (mas
também dramaturgo e mecenas de artistas) Ignacio Sánchez Mejías, às cinco “en punto de la tarde” de um
domingo de verão, na praça de Manzanares el Real.

Homossexual e republicano, também Lorca não tardaria a receber uma “cornada” fatal, mas das tropas
franquistas, que o fuzilaram sem julgamento a 18 de agosto de 1936. Um pouco mais velho do que Lorca,
outro andaluz de relevância mundial, Pablo Picasso (nasceu em Málaga em 1881), não só foi um fervoroso
a cionado como nunca se cansou de pintar e desenhar temas relacionados com a tauromaquia.
Provocador nato, o pintor gostava, no entanto, de desconstruir a mitologia machista cultivada nesse meio
desde tempos imemoriais. Amigo íntimo do matador de touros, Luis Miguel Dominguín, Picasso provocou
a sua ira quando, vendo no lho deste e seu a lhado, Miguel Bosé, uma sensibilidade artística latente, lhe
ofereceu umas sapatilhas de ballett. Ofendido nas aspirações viris que tinha para o rapaz, Dominguín
cortou relações com Picasso.

/
Diego Velásquez Miguel de C

Terra de poucos meios-termos, Espanha vive, assim, entre a tragédia e a festa, a ordem política e religiosa
e a sua subversão. Na monarquia catolicíssima dos Áustrias, sob a vigilância omnipresente da Inquisição,
Francisco Zurbarán (1598-1664) fará das suas santas meninas coquettes, mais vestidas e penteadas para um
encontro amoroso do que para receber uma epifania dos céus. Século e meio mais tarde, seria a vez de
Goya pintar os seus mecenas – os reis da dinastia Bourbon – como uma gente feiíssima, mais visitada pela
alucinação do que pela majestade. À sua visão verrinosa do mundo e dos homens poucos escapariam para
além da XII.ª Duquesa de Alba, María del Pilar, por quem, reza a lenda, se terá apaixonado sem esperança.

Uma das descendentes de Pilar, a popular Cayetana de Alba (1928-2014), terceira mulher titular de uma das
casas nobiliárquicas mais antigas da Europa (perante a qual, dizem os especialistas nestas coisas, a rainha
de Inglaterra teria de se curvar), era bem o símbolo do sentido de festa e boémia inerente ao lifestyle
espanhol. Exímia bailarina de amenco, gostava de aparecer em público vestida de sevilhana, com a cabeça
adornada por mantilla y peineta. Fazia-o com tal brio e orgulho que não tardou a contagiar as suas muitas
relações internacionais. Em fotogra as da década de 1960 vemos a duquesa acompanhada pelas irmãs
Jackie Kennedy e Lee Radzwilli, todas vestidas como manda o gurino dos amantes de amenco, enquanto
assistiam a uma corrida de touros ou a participar numa procissão da Semana Santa.

Lola Flores era uma espécie de rainha incontestada dos espanhóis. Também conhecida por La Faraona (1923-1995), foi
grande amiga da portuguesa Amália Rodrigues, com quem chegou a fazer um dueto. (Arquivo DN)

Estava-se então em plemedo de cair na ditadura franquista, mas nem mesmo a feroz repressão que a
caracterizava conseguiu meter os espanhóis (e, ainda mais espantoso, as espanholas) em casa. A cultura de
/
rua existente em todo o território, de Irún a Algeciras, sobreviveu ao ditador como resiste todos os
invernos às intempéries. Tem a energia contagiante do amenco, que é provavelmente o melhor
embaixador de Espanha no mundo. O público conhece as dinastias que, ao longo de gerações, se dedicam
ao género e discute-lhes a vida privada com interesse. Nesta espécie de realeza, a rainha incontestada foi
Lola Flores, também conhecida por La Faraona (1923-1995), grande amiga de Amália (com quem chegou
a fazer um belíssimo dueto) e da estrela de cinema mais apaixonada por Espanha de sempre, Ava
Gardner. Casada com o catalão Antonio González Batista, de nome artístico El Pescaílla, também ele
cantor e guitarrista de amenco, tiveram três lhos, todos dedicados a este género musical. A mais
conhecida, Rosario, cou mundialmente famosa ao tornar-se uma “chica Almodóvar“, interpretando a
toureira de Fala com Ela.

Este universo, de cores e simbologia bem fortes, tem passado para outras linguagens artísticas, que o têm
vindo a citar sem medo de cair no kitsch. É o caso dos grandes nomes da moda espanhola, como Cristóbal
Balenciaga, Pertegaz ou, mais recentemente, Sybilla, Agatha Ruiz de la Prada ou a dupla de Sevilha Victorio
& Lucchino (que durante anos teve a sua sede na casa onde se diz ter nascido o pintor Diego Velásquez).

Também no cinema, já em plenos anos da movida madrilena, Pedro Almodóvar nunca cortou com este
legado tradicional. Pelo contrário, reinterpretou-o e trouxe-lhe um sopro de modernidade. O amenco e
las folclóricas estão omnipresentes quer na banda sonora quer na intriga de alguns dos seus melhores
lmes. Em A Flor do Meu Segredo, por exemplo, vemos um muito jovem Joaquín Cortés, ao lado de
Manuela Vargas, a dar um verdadeiro show sobre o tablao.

A música une, sem uma palavra, o que a política desune. Muito mais do que a monarquia ou a seleção de
futebol (nada consensuais), o amenco liga as várias nações de Espanha como se fora um rio (Rosalía, a
mais recente “estrela” internacional do género, é nascida e criada em Barcelona). O mesmo se poderá
dizer da guitarra dita espanhola, que tem conhecido virtuosos vindos de todas as autonomias, desde Paco
de Lucía a Iñaki Antón, passando por Vicente Amico ou Narciso Yepes.

Tal como a vizinhança de festa e tragédia, a contradição é parte importante da história de Espanha – quase
uma segunda natureza. Já o dizia o lósofo Ortega y Gasset, nas suas Meditações do Quixote: “Nada, em
minha opinião, importa mais do que aguçar a nossa sensibilidade para o grande problema da cultura
espanhola: sentir a Espanha como uma contradição. Não o assumir será nada perceber do terreno em que
estão enraizadas as nossas plantas.” Estava-se então em 1914 e, se muita coisa aconteceu, a contradição
permanece. Na sua riqueza e diversidade, o país vizinho continua a ser, como escreveu o poeta Antonio
Machado, “um pedaço de planeta onde passa errante a sombra de Caim”.

a Facebook 1

Você também pode gostar