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2 Alfabetização: a questão dos métodos

O letramento e a alfabetização são direitos de crianças,


jovens e adultos de todas as idades e condições
fundamentais para uma sociedade verdadeiramente
democrática. No entanto, os problemas em torno da
aprendizagem da língua escrita e as controvérsias em torno
dos métodos de alfabetizaçãoapontam a necessidade de
reflexão. Qual é o melhor momento de iniciar a alfabetização das
crianças? E quais são os métodos mais eficazes para isso? Há
décadas questões como essas motivam pesquisas e discussões teóricas que implicam o ensino
da língua escrita.

É essa a reflexão desenvolvida por Magda Soares em seu novo livro. Além de décadas de
pesquisa, a professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de
vários livros sobre o tema apresenta o problema em uma perspectiva histórica, discutindo os
principais métodos utilizados em cada contexto. A pesquisadora, que faz questão de se manter
próxima da sala de aula, destaca a importância de os alfabetizadores conhecerem os caminhos
que a criança trilha para compreender o sistema de escrita. Só com essa atitude respeitosa e
curiosa em relação ao aprendiz e à aprendizagem é possível alfabetizar com método, nos mostra
a autora.

ALFABETIZAÇÃO: A QUESTÃO DOS MÉTODOS


Autora: Magda Soares
Editora: Contexto
Ano: 2016

Leia a seguir a resenha do professor e pesquisador Antônio Gomes Batista* sobre essa obra.

Um livro para mudar a alfabetização no Brasil

Nos últimos quinze anos, aproximadamente, Magda Soares dividiu seu tempo entre duas tarefas
aparentemente de difícil conciliação. Por um lado, após sua aposentadoria da UFMG − e mesmo
tendo recebido o título de Professora Emérita, o que lhe permitiria continuar a exercer suas
atividades na Universidade (com exceção das administrativas e deliberativas) − passou a atuar
diretamente na Educação Básica, como uma espécie de "supervisora escolar", em seu sentido
pleno, e sempre sob o regime de voluntariado. Primeiramente, numa creche no conglomerado da
Serra, uma das regiões de mais alta vulnerabilidade social de Belo Horizonte; depois, no
município de Lagoa Santa, pertencente à região
metropolitana da capital mineira, fortemente afetada pelo
crescimento da região.

Em Lagoa Santa, sua atuação se expandiu: criou o


projeto Alfaletrar, de natureza sistêmica. Sua base é a
formação dos professores que atuam com o ensino-
aprendizado da alfabetização e da Língua Portuguesa
de toda a rede de ensino municipal, da Educação Infantil
aos anos iniciais do Ensino Fundamental (até o
momento). Mas essa formação se realiza em serviço, por
um núcleo de formadores composto de outros
professores, que, em suas escolas, atuam como
"supervisores" ou "coordenadores" − na verdade, como formadores dos demais docentes. E essa
formação é orientada para os processos que organizam o ensino-aprendizagem da leitura e da
escrita e para os fundamentos que os sustentam: do currículo da rede, passando pelos
instrumentos de acompanhamento do ensino e da aprendizagem, de prevenção do fracasso, de
recuperação e da avaliação (dos alunos, das turmas, das escolas, da rede como um todo), até os
princípios que − dados os problemas detectados, os fundamentos assumidos e as metas
curriculares − devem orientar o planejamento das escolas e a elaboração de atividades didáticas.

A segunda tarefa a que se propôs Magda − essa mulher que, identificada com Clarice Lispector,
se vê sempre "incumbida" − foi a de refletir sobre os problemas e as dificuldades encontrados em
sua prática − tão comuns aos de outros educadores brasileiros − e de buscar na literatura
nacional e, sobretudo, internacional meios para compreender esses problemas e essas
dificuldades, etambém instrumentos para responder a seus desafios. Para isso, ela passou a
analisar, nesses últimos 15 anos, toda a produção científica significativa − e com claros critérios
para definir o que é "significativo" − que explodiu desde as últimas polêmicas originadas da mais
recente “Guerra dos Métodos”, surgida com o National Reading Panel (2000), cujas conclusões
foram interpretadas, por não especialistas brasileiros, como inquestionáveis, "científicas" − e,
portanto, "verdadeira" e "derradeira" pá de cal em qualquer discussão.

O resultado desse grande e rigoroso esforço de pesquisa − sempre confrontado com a prática
pedagógica − mostra o quanto essa interpretação não resulta senão de um discurso autoritário.
Magda, entre outras conclusões, mostra que, como conclui o National Reading Panel, a análise
sistemática das relações entre letras e sons é uma condição fundamental para a alfabetização.
Mostra também, ainda de acordo com o relatório, a importância do desenvolvimento da
consciência fonológica; mas evidencia também o quanto a estrutura fonética e natureza da
ortografia utilizada por diferentes países é um poderoso elemento que condiciona a abordagem
sistemática dessas relações letras-sons e que métodos fônicos de natureza sintética (aqueles em
que os aprendizes primeiro procuram − tarefa quase impossível no caso do português brasileiro −
articular os sons isoladamente para, depois, encontrar seu correspondente gráfico) são
prejudiciais ao processo de alfabetização de falantes do português. Evidencia ainda que são
processos analíticos, em que se parte da palavra para chegar à análise dessas relações entre
letras e sons, os mais condizentes com nossa língua e ortografia.

A conclusão que podemos tirar é que só uma leitura malfeita, desinformada ou com falta de
estofo linguístico poderia defender a primeira abordagem, promovendo autos de fé e exigindo que
se abjurassem, como na última década, perspectivas científico-pedagógicas que estariam
baseadas em supostas "crenças" organizadas em torno de grupos de "pedagogas histéricas",
dirigidas por sacerdotisas argentinas. Mas que não haja dúvidas: na equilibrada análise de
Magda, a inexistência de sistematicidade, o excessivo privilégio atribuído a textos em momentos
de análise das relações entre letra e som, certo espontaneísmo, a desconsideração da
complexidade dos textos, comuns em distintas perspectivas que vêm orientando
a alfabetização no país, não passam incólumes.

O livro, resultado de um grande esforço intelectual, é fundamental para dar um novo rumo
à alfabetizaçãono Brasil. Põe ordem na discussão sem desconsiderar a complexidade do tema.
Não se esperem soluções simplistas e simplificadoras. Ele mexe com crenças e interesses
arraigados de grupos de diferentes origens: universitários, econômicos, editoriais,
governamentais, da sociedade civil organizada. Mas Magda construiu uma liberdade que lhe é
própria e uma autoridade baseada em sua história de defesa da escola pública que a livra da
censura dos interesses pequenos e das alianças corporativas.

Em meio a essa crise que vivemos, somos um país feliz por termos uma Magda. Uma educadora-
pesquisadora como Magda Becker Soares.

* Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é


professor associado da mesma instituição e professor convidado do curso de
Especialización y Maestría de la Universidad Nacional de La Plata (Argentina).
Pesquisa a alfabetização e a cultura escrita, assim como a produção dos saberes
escolares na disciplina Português. Atualmente é coordenador de desenvolvimento
de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária
(Cenpec).

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