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Elo entre
dificuldades
e soluções
Catadores mostram
potencial da
Política Nacional de
Resíduos Sólidos
E ainda:
Sítio Burle Marx
Sistemas
Agroflorestais
Senac – Serviço Nacional
de Aprendizagem Comercial
Departamento Nacional
Av. Ayrton Senna, 5.555, Barra da Tijuca
Rio de Janeiro - RJ - Brasil - 22775-004
www.dn.senac.br
Conselho Nacional
José Roberto Tadros
Presidente
E xpediente
Editor
Fausto Rêgo
Colaboraram nesta edição
Ana Mendes, Cristina Ávila, Elias Fajardo, Francisco
Luiz Noel e Lena Trindade
Editoração
Assessoria de Comunicação
Projeto gráfico e diagramação
Cynthia Carvalho
Semestral.
Absorveu: Senac e Educação Ambiental.
A partir do n. 8 (2016) passou a ser disponibilizada no endereço:
www.dn.senac.br/senacambiental.
ISSN 2238-6807.
CDD 574.505
E ditorial
Reciclar,
reutilizar,
reviver
A Política Nacional de Resíduos Sólidos
completa dez anos em 2020, mas ainda não
é cumprida integralmente. Quase metade
da produção de lixo vai para lixões e o país
perde anualmente cerca de R$ 8 bilhões que
poderiam ser gerados com reciclagem – sem
mencionar o prejuízo para catadores e suas
famílias. É deles que falamos na reportagem
de capa desta edição.
O ano que chega traz ainda a expectativa
pela confirmação do título de Patrimônio da
Humanidade para o Sítio Burle Marx, no Rio
de Janeiro. Lar de um dos maiores nomes do
paisagismo mundial, o espaço abriga mais
de 3,5 mil espécies de plantas.
Mostramos também o sistema de reúso de
águas cinzas (aquelas usadas no banho e na
lavagem de roupas) em uma região que so-
fre com a escassez desse recurso: o sertão
pernambucano. A iniciativa “estica” o ciclo
da água e permite investir em sistemas agro-
florestais para criação de rebanhos.
Falamos mais sobre os sistemas agroflores-
tais em outra reportagem. Você vai saber
como eles contribuem para a recuperação
do solo, o controle da erosão, o combate
às ervas daninhas e a recuperação de áreas
degradadas.
Por fim, retratamos a Festa da Boa Morte,
tradição do recôncavo baiano que remonta
ao ano de 1820, valorizando a cultura, o tu-
rismo e o cuidado com o meio ambiente.
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S umário
4 14
Recursos Hídricos Turismo
Do cinza ao verde Festa da Boa Morte
Sistema de reúso das águas de Cerimônia popular do Recôncavo
banho e lavagem de roupas irriga Baiano mistura o sagrado e o
plantações e mantém criação de profano, valoriza a cultura e a
animais natureza
Ana Mendes Lena Trindade
34 46
Paisagismo
Notas
Patrimônio que floresce
Sítio onde viveu Roberto Burle
Marx reúne cerca de 3,5 mil
espécies de plantas e pode ser
reconhecido pela Unesco
Francisco Luiz Noel
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Estante Ambiental
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Ivone Pereira (Nona) e Evanice
Pereira (Nice) regam as plantas do
viveiro. São 25 espécies frutíferas e
ornamentais
R ecursos H ídricos
Verde que
nasce
da água
cinza
Em Pernambuco, sistemas de
reúso das águas de banho
e lavagem de roupas irrigam
plantações e mantêm criação
de animais
Ana Mendes
(texto e fotos)
Um oásis de plantas verdes e ali-
mento farto para os bichos: esta
é uma das imagens, não tão raras
hoje em dia, no semiárido brasi-
leiro. Associada quase sempre às
agruras do período de estiagem, a
região, que abrange dez estados, é,
ao contrário, riquíssima e dona de
um patrimônio vegetal único.
Composta por espécies de plan-
tas que não são encontradas em
nenhuma outra parte do mundo,
tais como o umbuzeiro, a Caatinga,
bioma exclusivamente brasileiro,
é sinônimo de resistência. Tanto
a flora quanto o povo que ali vive
fazem jus a essa característica.
Para não morrer, um umbuzeiro
pode guardar até 1.500 litros de
água em suas raízes. “A pessoa
aprende muito com a natureza
daqui. Quando se pensa que ela
está morta, começa a ficar tudo
verde com a primeira chuva. A
gente tem de aprender com a
julho/dezembro 2019 5
Na página seguinte, natureza pra seguir em frente”, con- rios, poços e olhos d’água é mais
moradores na barragem do ta Nice, sertaneja da comunidade salinizada, portanto é usada para
rio Pajeú, na comunidade Gameleira, localizada no município outros fins, como banhos e limpe-
de Poço Grande de Itatim, no Sertão do Pajeú, em za. A que é capturada pelas cister-
Pernambuco – quase divisa com o nas-calçadão, que coletam água da
estado da Paraíba. chuva de uma grande calçada de
concreto, mata a sede dos bichos
Nice e sua irmã, Nona, têm um vi-
e molha as plantas. Nem todas as
veiro com cerca de 25 espécies de
famílias têm acesso a toda varieda-
plantas, entre frutíferas e ornamen-
de de água, mas a maioria tem pelo
tais, que verdejam em meio aos ga-
menos as duas primeiras.
lhos secos de árvores nativas que
esperam, do lado de fora do vivei- Implementado pelo Centro de De-
ro, a estação das chuvas, que dura senvolvimento Agroecológico Sa-
de novembro a maio, para renascer biá e pelo Centro de Assessoria e
outra vez mais. As duas irmãs fa- Apoio a Trabalhadores e Institui-
zem parte do grupo de 100 famílias ções Não Governamentais Alterna-
do Sertão do Araripe e do Pajeú tivos (Caatinga), em parceria com
selecionadas para a implementa- a Universidade Federal Rural de
ção do sistema de reutilização de Pernambuco (UFRPE) e a Empresa
águas cinzas. O RAC, como é cha- Brasileira de Pesquisa Agropecu-
mado, reaproveita as águas usadas ária (Embrapa), o RAC está sendo
no banho, na lavagem de roupas e usado para irrigação de plantas
louça das casas de famílias que vi- forrageiras que servem para ali-
vem da agricultura e da criação de mentação de animais de pequeno
animais. “Antes essa água era des- porte. A palma, a gliricídia, a leu-
perdiçada, totalmente descartada. cena e a moringa são plantadas em
Descia aí num córrego e só juntava sistemas agroflorestais (os chama-
sapo e muita muriçoca. E hoje não, dos SAFs), combinadas com plan-
hoje eu consigo levar pra roça atra- tas nativas da Caatinga e algumas
vés do gotejamento”, conta Déa árvores frutíferas. “O RAC tem esse
Solange, moradora da Comunidade desenho. Ele é desafiador porque
Sítio Poço Grande, em Flores. exige diversos aspectos da tecno-
logia”, conta Rivaneide Almeida,
Assim como o umbuzeiro, os
assessora técnica do Centro Sabiá,
sertanejos homens e mulheres
que acompanha as famílias que vi-
que vivem no semiárido também
vem no Sertão do Pajeú. “Além do
aprenderam a armazenar água para
sistema de reúso de águas cinzas,
atravessar os momentos de estia-
o sistema de filtros, a gente ainda
gem. Com a colaboração de po-
tem o desafio de fazer a implanta-
líticas públicas conhecidas como
ção dos sistemas agroflorestais”,
tecnologias sociais de convivência
complementa.
com o semiárido, eles ainda con-
trolam todas as entradas e saídas A reutilização de águas cinzas não
e coordenam os tipos de uso de é inédita na região, outras iniciati-
cada água. vas pequenas, tocadas por organi-
zações da sociedade civil e órgãos
Diferentemente de outros lugares,
governamentais, se repetem pelo
as fontes de água de uma casa
semiárido na tentativa de amenizar
sertaneja são diversas e cada uma
a perda de cerca de 53 mil litros
serve a finalidades distintas. A
de água por família ao ano. A es-
água das chuvas capturada dos te-
timativa foi calculada a partir das
lhados, limpa e potável, é utilizada
medições feitas por Genival Barros
para beber e cozinhar. A água de
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de algumas frutíferas e forrageiras
apontam aumento no índice de
sobrevivência: nas áreas irrigadas,
sete a cada dez sobrevivem; nas
áreas de sequeiro, a metade morre.
Mas o que chama a atenção mes-
mo é o desenvolvimento das plan-
tas. “Nós tivemos taxas de cresci-
mento idênticas como se estivesse
em uma área convencional de irri-
gação com água de qualidade. Isso
demonstra que, metabolicamen-
te, essas plantas responderam à
água”, afirma Genival.
Uma delas, porém, apresentou re-
ações distintas. “A palma teve o
mesmo índice de sobrevivência
tanto na área de sequeiro como
na área irrigada, porém nesta ela
tem taxa de crescimento positiva,
ao passo que na área do sequeiro
a taxa é negativa”, diz o agrônomo,
explicando o ponto em que a plan-
ta murcha e começa a diminuir de
tamanho.
A palma é uma das forrageiras mais
importantes dos sertanejos. Exis-
tem ao menos seis variedades dela,
Acima, Maria Uliane Alves da Silva, moradora da Comunidade Sítio La- todas altamente resistentes ao pe-
24 anos, dá banho em Emanuele goa de Dentro.
Beatriz, de 1 ano e 6 meses. A ríodo de estiagem, pois armaze-
água usada no banho vai irrigar as Genival denomina o seu trabalho nam muita água. A espécie é uma
plantações de forragem que servem de como uma pesquisa-ação, pois a das prediletas dos animais, devido
alimento aos animais (foto à direita) colaboração das famílias – princi- ao seu valor nutritivo. “Parece que
palmente das mulheres, que são as a vaca dá até mais leite quando ali-
maiores responsáveis pelos quin- mentada com a palma”, conta Tei-
tais produtivos e pela alimentação xeira, um sertanejo de Poço Gran-
dos animais – é fundamental para de que também está irrigando sua
o resultado das suas avaliações. A plantação de palma com o RAC. A
água deve ser bombeada conforme palma cumpre, portanto, um papel
suas recomendações e a quantida- fundamental na segurança alimen-
de é controlada por um hidrômetro tar sertaneja para atravessar o pe-
e anotada em uma planilha, que ríodo de estiagem “A criação dos
posteriormente é recolhida e ava- pequenos animais é estratégica
liada. As famílias devem manter o para a agricultura familiar aqui no
sistema limpo para evitar entupi- semiárido. O desafio era como ali-
mento. Cada planta recebe sema- mentar essas criações no período
nalmente 1,3 litro de água. Uma de estiagem”, observa Rivaneide.
quantidade bastante tímida, dados Quando o verão chegava, os supor-
o intenso calor e a baixa umidade tes forrageiros eram os primeiros a
dos períodos de estiagem. No en- deixarem de ser irrigados. Toda a
tanto as observações preliminares água armazenada durante o inver-
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Déa Solange: antes do RAC, a água era descartada e só “juntava sapo e muriçoca”
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14 Senac Ambiental n.13
Turismo
Boa
Morte
vive
Com sua natureza religiosa e
pagã, a Festa da Boa Morte
é ponto alto no calendário
turístico baiano
Lena Trindade
(texto e fotos)
Durante três dias do mês de agosto,
todos os anos, a atenção de milha-
res de brasileiros de todas as partes
do país e também de milhares de tu-
ristas de vários cantos do mundo se
voltam para um grupo de mulheres
negras, pobres e idosas que reveren-
ciam Nossa Senhora da Boa Morte.
A cidade de Cachoeira, no Recônca-
vo Baiano, fica pequena para a mul-
tidão que chega curiosa para partici-
par do evento.
Ainda hoje, as pessoas aplaudem
e se perguntam: quem são essas
mulheres tão altivas e cobertas de
joias? De onde surgiram? E por quê?
Que força misteriosa é essa que se
mantém por mais de 200 anos, pas-
sando de geração a geração?
Sim, a Irmandade da Boa Morte
existe desde 1780! Foi fundada em
Salvador e depois transferida para o
Recôncavo, mais precisamente para
a histórica cidade de Cachoeira, em
1820. Neste agosto de 2019, a Irman-
dade completou 239 anos e se garan-
te como uma das mais importantes
e antigas celebrações no calendário
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Durante o período de festa, tradicional religioso – e também pro- país e até hoje são referências no
a alegria do típico samba de fano – do país. meio científico, chegaram a São Felix
roda baiano toma conta da (cidade ligada a Cachoeira pela Pon-
cidade por dias
Mas pode a morte ser boa? Quando? te do Imperador) em abril de 1818.
Para quem vive escravizado, talvez a De Cachoeira a expedição seguiu em
morte pareça libertação. canoas para Maragogipe e Salvador.
No começo do século 18, Cachoeira “Esta vila estende-se pela margem
era a segunda maior cidade em im- do Rio ao sopé de verdes colinas,
portância econômica da Bahia, de- cobertas com plantações de cana-
pois da capital, Salvador, quando era -de-açúcar e tabaco. É sem dúvida a
maciça a importação de escravos da mais rica, populosa e uma das mais
costa africana para o Recôncavo. Era agradáveis vilas de todo o Brasil. A
o período do ciclo canavieiro e Ca- maior fonte de renda é a cultura do
choeira vivia seu apogeu econômico fumo, que é exportado para a Euro-
e político. Em 1819, foi inaugurada a pa”, escreveu então Von Martius.
primeira embarcação a vapor do Bra-
sil – o Vapor de Cachoeira, que ligava Em depoimento à pesquisadora Fran-
Salvador (no litoral) ao município (no cisca Marques, Dona Estelita, juíza
Sertão) pelo rio Paraguaçu, levando perpétua da Irmandade da Boa Mor-
gente, mercadorias e notícias do Bra- te, revela a origem do grupo: “Foi uma
sil Colonial. promessa que os escravos fizeram na
luta, no sofrimento, para que alcan-
Os famosos naturalistas Spix e Von çassem a liberdade. E assim a morte
Martius, que viajaram por todo o desapareceria, pois a morte é o sofri-
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negras e descendentes de escra-
vos. Até então, e mesmo depois,
não existiam irmandades religiosas
formadas e comandadas por mulhe-
res. As mulheres participavam quase
sempre caladas, como companhei-
ras dependentes dos maridos. Não
tinham voz. A sociedade era coman-
dada sobretudo por homens – em
sua maioria, brancos. Uma irmanda-
de composta somente por mulheres
é caso único.
De acordo com a maioria dos histo-
riadores, as mulheres que formavam
a Irmandade da Boa Morte tinham
grande poder de liderança, eram
empreendedoras, empoderadas e
possuidoras de bens materiais. Cui-
davam desde a organização e do
comando até as festividades. Eram
chamadas de Negras do Partido
Alto.
Segundo pesquisa do historiador
Luis Cláudio Nascimento, “alguns
autores acham que essa irmandade
era formada por africanos nagôs e
outros pensam que eram africanos
jejes. O que se sabe de concreto é
que ela se destacava na Igreja da
Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos das Portas do
Carmo, no Pelourinho, formada por
africanos angolanos. Para Moraes
Babado, figura popular, Talvez essa tenha sido a razão da Ribeiro, “a Irmandade da Boa Morte
acompanha todas as festas transferência da irmandade para Ca- é o mais representativo documento
religiosas da cidade choeira, onde a presença negra era vivo da religiosidade brasileira, bar-
imensa, mas não havia essa perse- roca e ibero-africana”.
guição.
Formação da
Ao se transferir para Cachoeira, a
irmandade se desvinculou do ca- irmandade
tolicismo. Fixou-se na Casa Estrela, Nos primeiros anos de sua existên-
na Rua Ana Néry, 41 – conhecida cia, a irmandade contava com cen-
por manter vínculos com sacerdoti- tenas de mulheres. Hoje não passam
sas africanas. Este foi o local onde de 25, mas o grupo preserva sua
aconteceram as primeiras reuniões força e originalidade. Ainda hoje, é
das irmãs. Segundo contam os his- preciso ter entre 40 e 70 anos, ser
toriadores, era a casa de Dona Júlia descendente de antigos escravos e
Gomes, a primeira provedora. pertencer a um culto afro-brasileiro
A singularidade da Irmandade da para ingressar nessa antiga confraria
Boa Morte é que, desde o início, ela afrocatólica que nos seus primórdios
é formada somente por mulheres obtinha a carta de alforria de muitos
escravos. Para isso as mulheres ven-
diam iguarias durante todo o ano,
arrecadavam dinheiro com os nego-
ciantes locais e produziam sob en-
comenda para as festas da elite.
Um ano antes da festa, as irmãs se
reúnem, sempre no mês de fevereiro,
para a escolha da comissão do ano
seguinte. Elegem, ainda hoje com
caroços de milho e feijão, as irmãs
que ocuparão os cargos de provedo-
ra, procuradora, tesoureira e escrivã
por um ano. As candidatas prestam
juramento de fidelidade, que, entre
outras coisas, consiste em guardar
os segredos e mistérios da corpora-
ção. A provedora é o cargo máximo,
com a responsabilidade de cuidar da
programação da festa e organizar os
diversos grupos de trabalho, como de darem continuidade aos antigos A tradicional fábrica de
os que se encarregam de pedir con- ritos afro-brasileiros. charutos de Cachoeira
tribuições nas ruas. A procuradora Nos anos 1980, em consequência é um dos pilares da
geral é assessora direta da provedora economia da região
de um movimento liderado pelos
e deve cuidar para que tudo ocorra escritores Jorge Amado e João Ubal-
de modo satisfatório, tal como pla- do Ribeiro, juntamente com outros
nejado pela provedora. A tesoureira intelectuais, artistas e membros do
não é, como se pensa, a responsável governo da Bahia, a Irmandade ad-
pelas finanças, mas sim pela lavagem quiriu dois imóveis – onde hoje es-
das roupas. Também é ela quem ves- tão situados a sede da Irmandade,
te as imagens nos dias de procissão. uma capela e um espaço expositivo.
A escrivã fica submetida às ordens da Para isso foram reformados pelo go-
provedora e da procuradora. verno do estado três casarões que
Com o tempo, muitas mudanças estavam em ruínas.
ocorreram, mas os cargos e o tempo Hoje o ritual de saírem às ruas para
que ocupam continuam os mesmos. recolhimento de esmolas ainda exis-
Atualmente, os governos estadual e te, mas sem a conotação e a necessi-
municipal entram com apoio, pois a dade de antigamente. O evento, um
festa alcançou um enorme prestígio dos mais fortes no calendário turís-
e é responsável pela movimentação tico baiano, atrai aproximadamente
de hotéis, comércio e restaurantes 80 mil pessoas à cidade de Cachoei-
da cidade. Até a década de 1970, ra. Todos querem ver e participar das
ainda havia grupos de mulheres ne- procissões, dos cortejos, missas,
gras que, para arrecadarem dinheiro ceias, cânticos, danças e silêncios
para a grande festa, confeccionavam místicos, assim como das algazar-
doces, bolos e demais iguarias que ras do samba de roda. Nem sempre
vendiam em tabuleiros pelas ruas de foi assim, no entanto. Não foi nada
Cachoeira e arredores, cumprindo o fácil atravessar séculos lutando con-
ritual de “esmola geral”, como é co- tra muitos preconceitos – de cor,
nhecido. Nessa época, a irmandade gênero, classe social, econômico e
passava por grandes dificuldades religioso. Impressiona tamanha for-
financeiras. Não tinha sede, nem ça dessas ex-escravas, que até hoje
despertava o desejo dos mais jovens desfilam como rainhas negras.
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O rio Paraguaçu Por toda essa força que atravessa sé- sincretismo religioso.
separa as cidades culos e constitui um evento único no
de Cachoeira e Na situação de dominação pelos
mundo, a Irmandade da Boa Morte
São Félix brancos, os negros “fingiam” acei-
é uma instituição que sem dúvida
tar os símbolos religiosos do catoli-
ajudou a preservar não só o mara-
cismo, sem nunca deixar de cultuar
vilhoso patrimônio arquitetônico da
seus orixás. Essa adaptação foi a
cidade como vários outros segmen-
forma encontrada para amenizarem
tos da cultura – a culinária, o turis-
o conflito social e perpetuarem seus
mo, a indumentária, o artesanato, o
santos. Segundo Carlos Nascimento,
folclore, a gastronomia, a música, a
“a Irmandade da Boa Morte talvez
dança e até o respeito ao meio am-
seja a única instituição religiosa ne-
biente, que é uma forte característica
gra que permite fornecer subsídios à
do povo do candomblé. E isso não é
história, pois preserva o modelo, a
pouca coisa.
forma, a organização e o rigor das ir-
A tradição se manteve graças a gran- mandades católicas negras da Bahia
des nomes da cultura baiana, como oitocentista”. Respeitadas mulheres
Dorival Caymmi e Carybé, além dos que passaram a ser símbolos da re-
já citados, entre outros que enten- sistência cultural negra.
deram a importância dessas negras
baianas do vatapá, do acarajé, do Como é a festa
abará, do caruru e da lavagem do
Desde sua criação, o roteiro da Festa
Senhor do Bonfim, das negras dos
da Boa Morte mudou muito pouco.
balangandãs, dos torsos brancos,
Seu impacto, assim como o fascínio
das saias plissadas e dos panos da
que exerce, sempre foi grande. São
costa, que nunca deixaram seus ori-
muitos dias de festa, mas alguns são
xás esquecidos, mesmo que pra isso
reservados somente para o povo do
tivessem de aderir ao culto católico
candomblé. Para a população em
dos brancos, fazendo nascer assim o
geral, são três dias de festejos – de
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As Irmãs da Boa Morte pela importância econômica, pelo neoclássico. Infelizmente, preciosas
no importante ritual desenvolvimento social e arquitetô- construções desse período glorio-
de preparo da comida nico da cidade. Nos séculos 16 e 17, so se encontram em ruínas e muito
que será ofertada à Cachoeira é considerada a vila mais pouco é feito com empenho por
população rica de Portugal fora da Europa. Isso parte das autoridades governamen-
por causa do alto preço do açúcar, tais para sua preservação – mesmo
que a grande massa de escravos em Cachoeira tendo sido tombada, em
Cachoeira e São Félix produzia sem 1971, pela beleza e importância da
Ao centro: a baiana parar, gerando poder e prestígio. O sua arquitetura. É pena, pois cidades
tem saia florida, movimento no porto às margens do como Ouro Preto, Mariana e Paraty
guias, colares e muitos rio Paraguaçu era intenso de gente e já mostraram que o turismo pode ser
balangandãs mercadorias. alavancado apenas pelo patrimônio
arquitetônico.
Mais tarde, já nos séculos 18 e 19, foi
a vez de o fumo acelerar a economia No Recôncavo Baiano, além da
e atrair grandes nomes do cenário arquitetura, temos grandes mani-
cultural para o Recôncavo, sobretu- festações culturais que fortalecem
do a cidade de São Félix. Sob o co- ainda mais o apelo turístico, como a
mando de Dom Pedro II, o governo Festa da Boa Morte, a gastronomia,
constrói em 1885 a ponte que une os inúmeros terreiros e a música, o
essas duas cidades, para presente- samba de roda. Talvez se alguns dos
ar a bravura do povo baiano. Toda importantes intelectuais brasileiros
a estrutura metálica da Ponte do não tivessem alertado para a impor-
Imperador, que tem 365 metros, foi tância da preservação da Irmandade
importada da Inglaterra e até hoje é da Boa Morte, todos esses outros
atração turística para os visitantes patrimônios (arquitetura, festas re-
das duas cidades. Grandes fábricas ligiosas e juninas, samba de roda e
da indústria fumageira ali se instala- terreiros) já tivessem acabado e terí-
ram (Dannemann, Suerdieck, Vieira amos agora somente o passado em
de Melo, Pimentel e outras), produ- ruínas para visitar.
zindo charutos de altíssima qualida-
de que eram exportados pra todo o Cachoeira, hoje
continente europeu. Cachoeira é hoje uma cidade histó-
A arquitetura refletia toda essa ri- rica reconhecida não só pelas suas
queza, e tanto Cachoeira como São belas casas, igrejas, conventos e
Félix possuem um rico patrimônio demais peças da arquitetura de in-
arquitetônico em estilos barroco e fluência barroca, como pelo alto
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No galpão da Cooperativa
Viamonense de Catadores, um C apa
acervo digno de museu com
objetos achados no lixo
Elo entre
dificuldades
e soluções
Atuação de catadores mostra
potencial da Política Nacional
de Resíduos Sólidos, que
chega aos dez anos ainda com
muitos desafios
Cristina Ávila
(texto e fotos)
A Vila Pinto é uma comunidade de
11 mil pessoas trabalhadoras po-
bres situada entre zonas nobres
de Porto Alegre. Tem todos os pro-
blemas das periferias, o que inclui
crianças na prostituição e jovens
dependentes do tráfico e do con-
sumo de drogas. Mas uma espé-
cie de salva-vidas torna este lugar
especial: o Centro de Educação
Ambiental (CEA), associação de
catadores constituída por um gal-
pão de triagem de 130 toneladas
de materiais recicláveis por mês,
uma creche e um centro cultural
que atendem 500 famílias. Esse
complexo é exemplo do potencial
estimulado pela Política Nacional
de Resíduos Sólidos (PNRS), que
em dez anos de criação tem mui-
tos excelentes resultados, mas está
longe de terminar a tarefa que se
propõe.
Catadores e catadoras de mate-
riais recicláveis estão no centro
da PNRS, estabelecido pela Lei
12.305, homologada em 2010, que
prevê entre seus princípios básicos
o que se chama de logística rever-
sa, idealizada não apenas como
julho/dezembro 2019 25
entidades de produtores, impor-
tadores, usuários e comerciantes
apoiadas pela Confederação Na-
cional do Comércio de Bens, Ser-
viços e Turismo (CNC) e pela Con-
federação Nacional das Indústrias
(CNI). Elas recebem assessoria
técnica da associação Compromis-
so Empresarial para a Reciclagem
Ana Paula Medeiros (de blusa (Cempre), outra organização criada
rosa, ao centro) é presidente do meio de proteção ambiental, mas pelo setor empresarial em 1992, em
Centro de Triagem Vila Pinto. de desenvolvimento econômico e consonância com a Conferência
O espaço mantém um centro social, na medida em que os ma- das Nações Unidas sobre o Meio
cultural que oferece uma série teriais descartados após consu- Ambiente e Desenvolvimento (Rio
de atividades. Muitas crianças
mo voltam como matéria-prima 92).
e adolescentes participam
para a industrialização de novos
O Cempre Review 2019, estudo so-
produtos. Para isso, a legislação
bre resultados do acordo setorial
criou como instrumento jurídico a
[disponível em http://cempre.org.br/
formalização de acordos setoriais
upload/CEMPRE-Review2019.pdf],
entre poder público, empresas e
relata que hoje 65,3% das embala-
cidadãos, distribuindo a cada um o
gens são recicladas no Brasil, em
que se chama de responsabilidade
732 municípios, abrangendo 63%
compartilhada.
da população, especialmente em
O CEA Vila Pinto faz parte do gru- regiões metropolitanas – resultado
po de 802 organizações de catado- da primeira fase de implantação e
res e catadoras de materiais reci- desenvolvimento da logística re-
cláveis no Brasil que receberam, de versa, entre novembro de 2015 e
2012 a 2017, o apoio de alguma das novembro de 2017, com R$ 2,8 bi-
4.487 ações realizadas no âmbito lhões de investimentos em 858 in-
do acordo setorial criado em 2015 dústrias recicladoras, 802 coopera-
pela Coalizão Embalagens. Trata- tivas de catadores e na criação de
-se de uma aliança formada por 22 2.082 estações de coleta.
julho/dezembro 2019 27
asfalto e organização popular. E o
CEA nasceu e cresceu. “Tivemos
derrotas e conquistas. Por isso
pertencemos tanto a este espaço.
É um lugar de transformações e
oportunidades. Somos um elo en-
tre as dificuldades e as soluções”.
Ana Paula conta que muita gente
chega sem ter rumo, em busca de
alternativa de vida, e encontra sa-
ídas.
A estimativa é que 70% das famí-
foto: 123RF
As perspectivas, porém, são pre- lamento essas mudanças. Para nós 2006
ocupantes. “Hoje somos mais um é um desafio. Mas uma das unida- Decreto 5.940 implementa a
negócio social do que uma or- des de reciclagem aqui na capital coleta seletiva solidária em
ganização social”, ressalta Ana já fechou e duas estão quase fe- órgãos federais, com des-
Paula. “Entramos em uma época chando. É desumano, visto que tinação de resíduos para
diferente no relacionamento com são unidades muito pobres, tem cooperativas e associações.
a gestão pública com relação a de- uma que funciona embaixo da pon-
veres e cumprimento de regras. É te do [lago] Guaíba. É um trabalho 2007
um momento de muitas mudanças social que míngua”, observa Ana Lei 11.445 permite ao poder
jurídicas às quais precisamos nos Paula. Além disso, há ações que público a contratação sem
ajustar”. o movimento nacional de catado- licitação de cooperativas e
res classifica como “higienização” associações de catadores
Ela diz que, após 20 anos de tra-
e que envolvem a destruição das nos serviços de coleta sele-
balho baseado em convênios, as
moradias dos catadores para tirar tiva nos municípios.
relações com o município passam
do cenário urbano as “cenas que
a ocorrer por contratos. As prefei- 2010
incomodam”.
turas pagam valores muito altos
para empresas privadas fazerem a Abrem-se, assim, brechas no país Decreto 7.217 considera
coleta seletiva e entregarem nos para empresas que estão de olho cooperativas e associa-
galpões de reciclagem, ao passo nesse mercado há bastante tempo. ções como prestadoras de
que os catadores fazem esse traba- Deixar organizações de trabalha- serviço público de manejo
lho de graça. “É injusto, e tende a dores à míngua pode dar margem de resíduos sólidos.
piorar. Agora a tendência em todo a justificativas para a incineração Lei 12.305 institui a PNRS,
o Brasil é que os convênios entre como solução para os problemas que inclui catadores como
prefeituras, cooperativas e asso- do lixo. O próprio Ministério do agentes essenciais no trata-
ciações de catadores sejam trans- Meio Ambiente dá indícios de ex- mento de resíduos sólidos.
formados em contratos”, sobre os clusão do trabalho de catadores.
quais incidem tributos como ISS e Em Porto Alegre já houve tentati- Decreto 7.404 regulamenta
INSS. É uma agressão aos serviços vas de incluir na pauta da Câmara a PNRS.
sociais e ambientais dos trabalha- Municipal e da Assembleia Legisla- Decreto 7.405 institui o
dores”, reclama. tiva projetos para abertura à quei- Programa Pró-Catador e
ma desses resíduos, descaracteri- um comitê interministerial
São 16 unidades de reciclagem
zando os objetivos da PNRS, que para inclusão social e eco-
em Porto Alegre, cidade que já foi
foi homologada pela luta de cata- nômica dos catadores.
referência em reciclagem para o
dores e ambientalistas, depois de
país, seguindo os passos de capi-
tramitar por cerca de 20 anos no
tais como Belo Horizonte, que tem
Congresso Nacional.
longo histórico de sucesso. “Não
julho/dezembro 2019 29
Perfil dos catadores
Adão Baltezam (acima)
trabalha no Ecoponto, onde
o técnico em eletrônica
Elson Marques (ao centro)
faz velhos equipamentos O Movimento Nacional de Catado- paralelas. Há uma grande parcela
voltarem a funcionar res de Materiais Recicláveis estima que também não está nas estatísti-
que existam atualmente de 800 mil cas por morar nas ruas, sem ende-
a 1 milhão de pessoas nessa ati- reço fixo, o que pode modificar ou-
vidade. “Somos 70% da categoria. tras características do perfil, como
Somos negras e chefes de família”, nível de escolaridade e rendimen-
enfatizou a catadora Marilza Apa- tos. O próprio Ipea reconhece essa
recia de Lima, com base nas esta- diferença.
tísticas das instâncias de debate
O anuário da Ancat chama a aten-
dos trabalhadores, contestando
ção ainda para outra particularida-
dados oficiais, em 2013.
de: a necessidade de mudança nos
O Anuário da Reciclagem 2017- hábitos de consumo, para evitar
2018, publicado em 2019 pela As- materiais jogados no lixo. Antes
sociação Nacional dos Catadores da reciclagem, deve-se pensar no
e Catadoras de Materiais (Ancat), reúso, como recomenda a pró-
inclui estudo realizado pelo Ipea pria Política Nacional de Resíduos
que informa a existência de 388 Sólidos. Ou seja, não é preciso
mil catadores no Brasil, a maio- transformar materiais em novas
ria homens (72%), pretos, pardos matérias-primas para a indústria.
ou indígenas (74%), distribuídos Antes, é preciso cuidar do reapro-
principalmente no Sudeste (40%) veitamento.
e Nordeste (30%), 47% com idade
A relação descomprometida das
média de 43 anos, mas com 24%
pessoas com o consumo provocou
entre 50 e 60 anos, com renda de
uma importante iniciativa em rea-
um salário mínimo e escolaridade
ção da Cooperativa Viamonense de
máxima de ensino fundamental.
Catadores e Recicladores (Coovir),
Esses dados têm base na Pesquisa na avenida mais movimentada de
Nacional por Amostra de Domicí- Viamão, município da Grande Por-
lios (PNAD 2017/2018). A diferença to Alegre, com 260 mil habitantes.
para as estimativas do MNRS se Um enorme galpão locado pela
justifica porque o levantamento entidade surpreende os visitantes
leva em conta a autodeclaração com o monte de coisas curiosas e
das pessoas, que muitas vezes chamativas que saem do lixo. Um
exercem atividades profissionais bote emborrachado de quase dois
julho/dezembro 2019 31
trabalhando efetivamente, forne- proteção individual, recolhimen-
cendo até mesmo certificação de to de contribuição à Previdência
destinação de resíduos ambiental- Social, seguro de vida, descanso
mente adequada a empreendimen- remunerado, prevenção de saúde,
tos. controle de vacinação e treina-
mento. Ninguém ganha menos do
São seis anos de trabalho de uma
que um salário mínimo. O resulta-
entidade de catadores que trans-
do da reciclagem organizada pro-
formou Viamão em um município
move, além do protagonismo dos
de referência para reciclagem po-
catadores, a geração de renda e a
pular no Rio Grande do Sul. Ao
preservação ambiental. “Viamão é
chegarem ao trabalho, todos os as-
uma cidade onde os catadores or-
sociados da Coovir têm garantidas
ganizados lutam e demostram que
as refeições do dia na mesa, além
a PNRS pode dar certo”, enfatiza
de uniformes, equipamentos de
Joaquim Reis.
Neusa Teresinha,
microempresaria da
reciclagem
Microempresária
na Vila Planetário
“Fui bater na lixeira louca de vergonha. Naquele
tempo, não era profissão. Pra ninguém me reco-
nhecer, eu me vestia de homem. Tinha sido de-
mitida grávida, já com três filhos”, conta Neusa
Teresinha Machado, 59 anos, moradora da Vila
Planetário, em Porto Alegre. Passados quase 20
anos, ela inventou para si um novo elo na cadeia
da reciclagem. Compra de catadores e revende
para uma empresa de reciclagem em Canoas, na
região metropolitana. “Abri minha microempresa.
Faço tudo. Contabilidade, anotações de forne-
cedores e de clientes. Separo material e arrasto
bag”, diz ela, referindo-se às grandes sacolas que
ficam na porta de casa e no corredor por onde
passam vizinhos.
Para se encaixar na logística reversa, Everton conta com a Associação Brasi- Segundo o Cempre 2019, o de-
leira para a Gestão da Logística Reversa (Reciclus), que tem 1.724 pontos de senvolvimento do modelo bra-
coleta em 26 estados e no Distrito Federal. O agendamento do recolhimento sileiro de reciclagem está de
é feito via internet. Em até 24 horas, a transportadora licenciada está em sua acordo com os Objetivos de
porta, com todos os cuidados necessários, pois as lâmpadas fluorescentes Desenvolvimento Sustentável,
são consideradas produtos perigosos pela constituição por mercúrio, metal lançados pela Organização das
que pode contaminar solo e água, com riscos à saúde. Nações Unidas, com metas am-
bientais, sociais e econômicas
A Reciclus foi criada pelo setor empresarial para cumprimento da logística para 2030 – uma agenda que se
reversa de lâmpadas domésticas fluorescentes compactas e tubulares, de integra ao planejamento e às es-
vapor de mercúrio, sódio ou metálico, e as de luz mista. A primeira revisão tratégias empresariais.
desse acordo está prevista para 2020. O principal ponto será a adequação ao
crescimento do consumo de lâmpadas de tecnologia LED (Diodo Emissor de O documento aponta como me-
Luz, em português). Assim como este, a Política Nacional de Resíduos Sólidos tas a erradicação da pobreza, a
prevê acordos setoriais também para pilhas, baterias, óleos lubrificantes para igualdade de gênero, a redução
veículos, pneus etc. das desigualdades, água potável
e saneamento, trabalho decente
O acordo setorial das lâmpadas foi desenhado em um grupo de trabalho for- com crescimento econômico,
mado pela CNC, pela Associação Brasileira da Indústria da Iluminação, 24 em- cidades e comunidades sus-
presas fabricantes, importadoras, comerciantes e distribuidoras, Ministérios tentáveis, consumo e produção
da Indústria e Comércio (Mdic) e do Meio Ambiente (MMA), Associação Brasi- responsáveis, ação contra a mu-
leira de Importadores de Produtos de Iluminação e Instituto Nacional de Me- dança global do clima e parce-
trologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). O resultado foi uma minuta levada rias para implementação dessas
à consulta pública e aprovada pelo Comitê Orientador liderado pelo MMA e novas realidades.
constituído também pelos Ministérios da Agricultura, Fazenda e Saúde.
julho/dezembro 2019 33
N otas
Mais preocupação no ar
foto: Pixabay
Principal causador do efeito estufa, gundo os cientistas, o índice regis- Tallas, em comunicado à imprensa,
o dióxido de carbono alcançou um trado foi de 407,8 partes por milhão, a última concentração de dióxido de
nível recorde de concentração na quase 150% maior do que o do perío- carbono semelhante ocorreu entre 3
atmosfera em 2018, segundo a Or- do pré-industrial e sem sinais de de- e 5 milhões de anos atrás, quando a
ganização Meteorológica Mundial saceleração. China e Estados Unidos temperatura média do planeta era de
(OMM), agência especializada da são os principais emissores. Para o 2ºC a 3ºC superior à atual.
Organização das Nações Unidas. Se- secretário-geral da OMM, Petteri
COP-25:
clima
péssimo
A Conferência das Nações Unidas carbono e, na prática, postergaram o pela organização não governamental
sobre o Clima (COP-25), realizada problema para a próxima conferên- Climate Action Network (CAN) com
em Madri, Espanha, em dezembro, cia, em Glasgow, Escócia, em 2020. o objetivo de atrair atenção mundial
foi frustrante. Segundo o secretário- para quem permanece na contramão
A participação do Brasil foi consi-
-geral da ONU, António Guterres, da sustentabilidade. Na justificativa,
derada decepcionante por grande
perdeu-se uma grande oportunidade a CAN menciona o desmatamento e
parte da comunidade internacional
para demonstrar maior ambição no as queimadas, lembrando também
(ouça o comentário do jornalista es-
enfrentamento da crise climática. Os que o governo brasileiro tem trata-
pecializado em meio ambiente André
países não chegaram a um acordo do organizações da sociedade civil
Trigueiro em: www.bit.ly/andretrigueiro).
sólido. Mantiveram apenas um ape- como “bodes expiatórios” da des-
O país ainda recebeu o “prêmio” Fós-
lo vago sobre a necessidade de es- truição da floresta amazônica.
sil do Dia. É uma brincadeira criada
forços de redução das emissões de
Rastro da mancha
Três meses após seu primeiro registro, a mancha de pe-
tróleo cru que se espalhou por todo o litoral nordestino
e já começava a alcançar o Sudeste permanecia com
origem não identificada pelas autoridades brasileiras. Re-
portagem da Agência Pública (www.apublica.org) publi-
foto: Lilo Clareto - Instituto Socioambiental
julho/dezembro 2019 35
O SAF do Sítio Semente, em
Sobradinho (DF), tem árvores,
abóbora e milho
Plantando,
colhendo e
preservando
Sistemas agroflorestais vêm
sendo ampliados. Seus
defensores garantem que a
prática beneficia agricultores
e o meio ambiente
Elias Fajardo
(texto e fotos)
Os sistemas agroflorestais (conheci-
dos como SAFs) são formas de uso
ou manejo da terra que combinam
árvores frutíferas ou madeireiras
com cultivos agrícolas ou criação
de animais e ajudam na redução da
erosão e na recuperação de áreas
degradadas. É uma forma de produ-
ção que imita o que a natureza faz,
com o solo sempre coberto pela
vegetação e técnicas naturais que
evitam pragas e doenças, dispen-
sando o uso de aditivos químicos.
Eles favorecem a diversificação da
produção, permitindo colheitas su-
cessivas ao longo do ano.
Espécies diferentes são plantadas
na mesma área: árvores junto com
roça. As culturas de ciclo curto
(milho, abóbora, mandioca e ou-
tras) preparam o ambiente para
bananeiras, palmeiras e árvores.
As plantas são cultivadas em con-
sórcio e dispostas em linhas pa-
ralelas, intercalando espécies de
portes e características diferentes
para aproveitar ao máximo o ter-
reno e favorecer a manutenção e
a introdução de espécies nativas.
julho/dezembro 2019 37
Um pioneiro na implantação da
agrofloresta no país é o suíço Ernst
Götsch, que veio para o Brasil na
década de 1980 e se estabeleceu no
sul da Bahia. Comprou uma fazen-
da degradada que rebatizou como
Olhos d’Água. Quando chegou, a
propriedade tinha três nascentes.
Atualmente tem 17, graças às técni-
cas de conservação que emprega. E
os riachos que costumavam desa-
parecer nos períodos de seca hoje
correm o ano inteiro. “Água se plan-
ta”, afirma Ernst sorrindo. Segundo
ele, todas as noites, as árvores go-
tejam e, mesmo sem chover, a ser-
rapilheira (uma camada de restos de
folhas, caules, ramos, flores, frutos
e sementes) que cobre o solo per-
manece úmida.
Ernst introduziu entre nós a agricul-
tura sintrópica, que investe no uso
de dinâmicas naturais para enrique-
cer e recuperar o solo. O conceito
de sintropia envolve a organiza-
ção, o equilíbrio e a preservação
da energia no ambiente. “É preciso
constituir sistemas de integração
permanente, que permitam ao agri-
cultor produzir melhorando o solo e
criando um ecossistema mais prós-
pero”, afirma.
No coração do Brasil
No Núcleo Rural Lago Oeste, em
Sobradinho, Distrito Federal, o Sítio
Semente tornou-se uma referência
em agrofloresta, com cultivos per-
Com cursos e palestras, o O material gerado pela poda de manentes, palestras, aulas e visitas
Sítio Semente tornou-se árvores e arbustos retorna ao solo guiadas sobre o tema. Visto de cima,
uma referência em como adubo.
sistemas agroflorestais lembra um oásis no meio da aridez
Os SAFs vêm sendo praticados há da seca. A região fica no Planalto
décadas no Brasil, mas nos últi- Central e tem suaves ondulações
mos anos sua implantação vem se de terreno com algumas montanhas
ampliando em diferentes ecossiste- altas bem no fundo. Nas bordas do
mas. Eles exigem mais mão de obra planalto podem ser encontrados
e um número maior de processos vales profundos. A vegetação é de
do que a agricultura convencional, Cerrado, segundo maior bioma bra-
mas seus defensores afirmam que sileiro e um dos mais ameaçados
beneficiam os produtores rurais, a pela ocupação intensiva e pela mo-
região onde se situam e o meio am- nocultura. Apresenta árvores bai-
biente como um todo. xas, esparsas, de troncos retorcidos
julho/dezembro 2019 39
guma coisa errada que o produtor sempre e não queimando. Devemos
rural estaria fazendo. “Se surge um procurar a cura na própria natureza
bicho, ele indica um desequilíbrio e não nos produtos químicos”.
na plantação. Devemos, então, ir
Eric Lassmann, administrador e
mais fundo para descobrir a origem
mestrando em meio ambiente e de-
desse desequilíbrio e tratar suas
senvolvimento rural na Universida-
causas. O que se considera erva da-
de de Brasília, faz parte da equipe
ninha, na verdade, são plantas que
do Sítio Semente e tem uma visão
vão cuidar para que o sistema de ra-
muito particular sobre a agroflores-
ízes aumente, trazendo mais bacté-
ta: “A gente aprende que a natureza
rias para ter mais vida. São plantas
funciona por meio do amor condi-
enfermeiras que vêm curar o meio
cional, um amor por tudo, sem exi-
ambiente, entre elas podemos citar
gir algo em troca, respeitando os
o capim, a lobeira (também chama-
princípios naturais, dos quais um
da de fruta-de-lobo) e o barbatimão
dos mais importantes é a colabora-
(usado para tratar feridas, queima-
ção. As plantas não competem, elas
duras e lesões na pele). A gente ten-
colaboram entre si. A gente trabalha
de a importar plantas curativas de
a abundância e todos os vegetais
outros países, mas esquece que no
vão crescendo juntos”.
nosso próprio ambiente temos ve-
getais nativos que nos curam”. Uma postura importante, segundo
Eric, é respeitar as necessidades
Num galpão no Sítio Semente, Na-
de sol de cada planta e pensar a
thalia e algumas moças estão sepa-
agricultura como atividade holísti-
rando folhas de oliveira para serem
ca. “O que vemos nos SAFs é uma
usadas como remédios. Entre elas
mudança de paradigma. Estamos
está Mayara Côrtes, que considera
evoluindo, procurando entender
este trabalho uma forma de apren-
o meio ambiente sob outro olhar,
dizagem. “Me sinto feliz em traba-
perceber que somos parte dele, não
lhar nisto. O conhecimento de ervas
superiores. A natureza é um siste-
medicinais é muito importante para
ma inteligente e complexo que tem
todos nós. Vivemos da natureza e
muito a ensinar. Em vez de destruir,
temos de cuidar dela, plantando
Plantação de alho- precisamos manejar os elementos
poró, aipim e banana
julho/dezembro 2019 41
sárias e acabam encarecendo nos- contextos às vezes áridos. Então,
sos produtos”. ao estudar a floresta, entendemos
como funciona a vida”.
Ele considera a mão de obra a maior
dificuldade, pois um SAF precisa Quanto aos resultados da expe-
constantemente de poda, cobertu- riência, ela afirma que o solo are-
ra do solo com matéria orgânica e noso do Sítio Raiz está se trans-
outras atividades que exigem muito formando em terra preta e fértil,
trabalho: “A agricultura convencio- ajudando os ciclos de água a se
nal busca obter um produto com manterem. “Estamos produzin-
menor valor e menos mão de obra. do alimento enquanto as árvores
Para conseguir tais objetivos, cria que plantamos se desenvolvem.
erosão e salinização do solo pelo Quando chegamos aqui, gastamos
uso intenso de adubos químicos muita energia combatendo o fogo
que prejudicam o lençol freático e na época da seca. Agora o fogo já
provocam assoreamento dos rios. não é tão constante, a água que as
Tais prejuízos são compartilhados plantas acumulam faz com que o
com toda a sociedade. O contrário fogo tenha menos facilidade de se
acontece com quem faz a agroflo- expandir. Além disso, temos me-
resta: temos um custo maior e uma nos problemas com insetos e pató-
lucratividade menor, mas criamos genos do que a agricultura conven-
benefícios para o produtor e toda cional. No ano passado tivemos
a sociedade. Hoje muitos produto- um ataque de lesmas nos brócolis,
res acham bonito filosoficamente mas acabamos entendendo que a
foto: Nednapa Chumjumpa/Stock Photo
criar um SAF, mas, quando vão bo- presença delas nos mostrava onde
tar tudo na ponta do lápis, acabam o trabalho estava equivocado e fo-
vendo que os custos são altos, daí mos mudando”.
desanimam”.
O maior desafio, segundo Sofia, é
Apesar das dificuldades, Rômu- continuar plantando e lutar para
lo acha que vale a pena trabalhar que o poder público apoie os SAFs
com a agroflorestal. “Nosso ob- como uma iniciativa capaz de pro-
jetivo nunca foi simplesmente ter duzir alimentos e, ao mesmo tem-
Batatas
orgânicas
uma atividade econômica, ganhar po, preservar os recursos naturais.
dinheiro e depois ir gastar em ou-
tro lugar. O que estamos fazendo Elias e Yolanda nos
é refletir, buscando respostas para
um problema muito complexo na assentamentos
nossa sociedade: o habitar, ou Elias de Souza Pereira trabalha no
seja, o que vamos fazer no local sítio de sua família no Assenta-
onde estamos inseridos”. mento da Chapadinha, onde está
Sofia também desenvolve suas implantando um SAF há quatro
próprias reflexões, enquanto a pe- anos. O assentamento tem 42 fa-
quena Maria dirige à mãe um olhar mílias numa área da União ocu-
curioso: “Trabalhar com agroflo- pada por um fazendeiro que fazia
resta acrescenta muito à minha monocultura com uso intensivo de
perspectiva pessoal e me leva a aditivos químicos. As famílias de
indagar qual função tenho a cum- sem-terra acamparam em barra-
prir no planeta. É preciso estudar cas no local e iniciaram uma luta
como funciona a floresta, como que durou anos, até que o Insti-
a vida se organiza para ir criando tuto Nacional de Reforma Agrária
condições de abundância a partir (Incra) lhes desse a posse. Ele re-
de situações muito simples e de sume assim sua experiência: “Se a
gente fizesse plantio convencional
julho/dezembro 2019 43
agradável e com sombra. Por isso
ter árvores frutíferas é importante”.
A casa foi construída com a técni-
ca do superadobe, utilizando terra
e materiais do próprio local. Foram
empregados muito pouca madeira e
vidros reutilizados, que valorizam a
iluminação natural e economizam
energia elétrica.
Um SAF no sul de
Minas
Biólogo, mestrando em Desenvolvi-
mento Sustentável e Extensão pela
Universidade Federal de Lavras,
agricultor orgânico e secretário da
Rede de Agroecologia e Economia
Solidária do Sul de Minas, Rubens
do Monte Silva Scatolino está im-
plantando um SAF na propriedade
Anelize Schuler agricultores trabalhando com SAFs de sua família, a Fazenda dos Co-
colhe cebolas, nesta região”. xos, em Varginha, com quatro mó-
batatas ervas e dulos: café, horta, reflorestamento
feijão Segundo ela, o primeiro beneficia-
do com a agroecologia é o solo, que e frutíferas. A experiência começou
vai recuperando sua biodiversidade. em janeiro de 2017, seguindo o mo-
O segundo ganho é a produção de delo praticado no Sítio Semente,
água limpa. “A produção agroecoló- após Rubens ter feito um curso com
gica economiza água, usa irrigação Juã Pereira.
por gotejamento ou aspersão. O O SAF é direcionado para gerar ren-
terceiro ganho é evitar o desperdí- da em intervalos regulares. A horta
cio, pois os resíduos, como ramos, dá renda mais rápido, mas precisa
palha e folhas, são reincorporados de muita mão de obra. O café de-
ao terreno. Eu ponho no meu mi- mora três a quatro anos, mas seus
nhocário, mas pode-se ainda abrir rendimentos são mais expressivos
buracos no chão e colocar as so- que os da horta. O SAF da fazen-
bras da agricultura em volta das ár- da tem dois hectares de café, meio
vores, pois viram adubo orgânico”. hectare de fruticultura, 0,3 de reflo-
Duas coisas chamam atenção na restamento e 0,2 de horta. A planta-
propriedade de Anelize: a horta ção de eucalipto é consorciada com
circular, em forma de mandala, e a abacate, banana, mandioca e feijão-
casa de adobe. Ela se entusiasma -de-porco, uma leguminosa usada
ao explicar: “Aproveitar o desenho para fazer adubação verde.
original do terreno é uma técnica Segundo Rubens, mesmo sendo um
muito antiga e faz a energia circular. SAF novo, já é visível uma melhoria
A horta não deve ser só produtiva, no solo, o que gerou uma mudança
precisa ser bonita e agradável. O na cor da terra: formou-se uma fina
produtor não é uma máquina que camada escura acima da superfície.
produz comida e despeja na ci- “Dá pra ver também”, acrescenta,
dade. Ele tem de ter qualidade de “que o local tem atraído a fauna.
vida, trabalhar num ambiente limpo, Aves como jacus e saracuras e ma-
julho/dezembro 2019 45
46 Senac Ambiental n.13
Paisagismo
Patrimônio
que ainda
floresce
Sítio onde viveu o paisagista
Roberto Burle Marx reúne
cerca de 3,5 mil espécies
e pode ganhar título de
patrimônio mundial
Francisco Luiz Noel
Fotos: Iphan/SRBM
Ao pé do Maciço da Pedra Branca,
remanescente da Mata Atlântica
na zona oeste da cidade do Rio de
Janeiro, o paisagista Roberto Bur-
le Marx se dedicou por mais de 40
anos ao manejo da flora de diversas
regiões do Brasil e do exterior. De
uma área rural com 405 mil metros
o artista fez um laboratório de ex-
periências e uma linha de produ-
ção de mudas para seus projetos,
estrelados por espécies nacionais a
que o paisagismo nunca dera valor.
Fruto dessa dedicação de uma vida
inteira é um acervo de jardins e vi-
veiros com 3,5 mil espécies – parte
de um patrimônio nacional que pode
tornar-se também mundial em 2020.
O Centro Cultural Sítio Roberto Burle
Marx (SRBM), no bairro de Barra de
Guaratiba, é bem público dos brasi-
leiros desde 1985, quando foi doado
pelo paisagista à Fundação Nacional
Pró-Memória, precursora do Institu-
to do Patrimônio Histórico e Artísti-
co Nacional (Iphan). Sua coleção de
espécies tropicais e semitropicais,
uma das mais importantes do pla-
neta, está disposta em jardins ao ar
julho/dezembro 2019 47
Casa principal do
sítio e lagos (à direita)
julho/dezembro 2019 49
coleção tropical do Jardim e Museu
Botânico de Dahlem, no subúrbio de
Lichterfelde. Recolhidas em expedi-
ções de naturalistas desde o século
19, as amostras da flora estrangeira
haviam sido agrupadas por região
geográfica pelo diretor da institui-
ção, Heinrich Gustav Adolph Engler.
Dahlem é um santuário ecológico
de 43 hectares, com mais de 22 mil
espécies de várias partes do mundo.
Mais de seis décadas depois, Burle
Marx recordaria como foi marcante
o contato com as plantas brasileiras
em solo alemão. “Foi ali que pude
apreciar pela primeira vez, de for-
ma sistemática, muitos exemplares
da flora típica do Brasil. Eram espé-
cies belíssimas quase nunca usadas
em nossos jardins”, ele contaria,
em 1992, à paisagista Ana Rosa de
Oliveira, que o entrevistou para sua
tese de doutorado. Antes dos jar-
dins de Burle Marx, o paisagismo
praticado no país desdenhava a flora
nacional em favor de concepções e
plantas europeias.
Nos 18 meses vividos em Berlim,
Burle Marx também foi presença as-
sídua nas salas de concerto e expo-
sições de arte, além de ter estudado
canto e pintura. Na música, impres-
sionou-se com óperas em cenários
luxuosos, ouviu sinfonias de Ludwig
van Beethoven e Richard Wagner e
conheceu o vanguardismo atonal
Fachada da loggia de Alban Berg, Arnold Schoenberg e
(galeria coberta e 4 anos para um casarão no Leme, Paul Hindemith. Nas artes plásticas,
vazada para uma zona sul do Rio, onde passou a se encantou-se em mostras de contem-
área exterior) interessar por plantas, influenciado porâneos como Pablo Picasso e Paul
pela mãe. A família, que convivia Klee e de nomes consagrados como
com as artes por iniciativa de Wi- Vincent van Gogh.
lhelm e Cecília, viajou a Berlim em
1928 para uma estada de ano e meio O interesse pelas artes e a ideia de
durante a qual o futuro paisagista que o paisagismo deve dialogar com
despertou para a riqueza plástica da outras formas de expressão foram
flora de seu país. resumidos por Marx na entrevista a
Ana Rosa de Oliveira, publicada na
A descoberta da diversidade exube- revista eletrônica de arquitetura Vi-
rante das plantas do Brasil brotou truvius. “Detesto essa ideia de que o
em Roberto Burle Marx ao frequen- paisagista só deva conhecer plantas.
tar, na cidade alemã, as estufas da Ele tem que saber o que é um Piero
julho/dezembro 2019 51
linha de reprodução de espécies de
seu acervo, além de ter promovido a
reforma da casa-grande e o restauro
da capela, do século 17. Lançou-se
também à ampliação da coleção, por
meio de viagens que passou a fazer
a várias regiões do Brasil, acompa-
nhado por botânicos, para coletar e
catalogar plantas que fariam de seu
trabalho uma amostra da riqueza
florística do país. Para ter espécies
de outros países, Marx permutava
mudas com produtores estrangeiros
e jardins botânicos da Inglaterra e
Estados Unidos.
De arbustos do Cerrado a cactos da
Caatinga, de árvores da Amazônia
a folhagens da Mata Atlântica, a di-
versidade da flora brasileira era dis-
posta nos projetos de Burle Marx em
grupos por espécie, para realce de
cores e tons conforme as estações
do ano. Embora não fosse botâni-
co, ele estudava as características
de cada espécie que utilizava, a fim
de compor os jogos de massas com
verdes variados – marca nos mais de
dois mil jardins e parques que levam
a assinatura do paisagista, da déca-
da de 1930 à de 1980.
No legado de Burle Marx, que abran-
ge jardins particulares em diversos
lugares do país, os destaques são as
Acima, quarto de Burle Marx, “O terreno foi escolhido depois de criações públicas. Esse acervo incluí
com itens pessoais dele. Abaixo, uma busca relativamente longa, feita projetos paisagísticos como os do
varanda da casa do sítio Eixo Monumental de Brasília, do Mu-
por ele e pelo irmão. Tinha que ser
como ele queria, para que pudesse seu de Arte Moderna do Rio de Ja-
fazer o que pretendia, com topogra- neiro e do Parque do Flamengo. Este
fia acidentada, rochas e muita água. e outros trabalhos entre 1955 e 1964
O primeiro objetivo era colocar a co- tiveram colaboração dos arquitetos
leção de plantas e começar a usá-la, Maurício Monte, Júlio Pessolani, Fer-
aprendendo com botânicos como nando Tábora e John Stoddart, na
elas se associavam na natureza”, diz Burle Marx & Arquitetos Associados,
a diretora do SRBM, Claudia Storino. formada para fazer frente ao volume
“A coleção era a palheta dele, que crescente de encomendas.
começa a formar grupos de plantas Desfeita a sociedade, o paisagis-
aproveitando as rochas, desníveis ta criou o escritório Burle Marx &
do terreno e cursos d’água e fazen- Cia. Ltda., com o irmão. Guilherme
do lagos”. Siegfried cuidando da execução e
Para criar seus jardins tropicais, Bur- manutenção de jardins e parques,
le Marx organizou no sítio uma ativa valendo-se também da multiplica-
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incursões a matas de estados como po em que não havia estudos nem
Bahia, Goiás, Minas Gerais e Rio de ações para mitigação do impacto
Janeiro. “São pelo menos 150 espé- ambiental de grandes empreendi-
cies de velosiáceas”, diz Tabacow, mentos. “A técnica de construção da
acrescentando desconhecer o cul- rodovia foi altamente predatória do
tivo dessas plantas em outras cole- meio ambiente. Fizemos diversas ex-
ções privadas. pedições ali, tirando e levando para
o sítio muitas plantas arrastadas
O paisagista salienta a importância
pelas lâminas dos tratores ou joga-
do sítio para a sobrevivência de es-
das nas praias que eram aterradas”,
pécies ameaçadas na natureza. “O
conta.
lugar é a representação concreta
do esforço de uma vida inteira, fei- Nas muitas viagens a biomas como a
to por Burle Marx, para aproveitar Mata Atlântica, Cerrado e Amazônia,
a flora autóctone em paisagismo e Burle Marx, seus auxiliares e botâni-
preservar espécies brasileiras, indo cos encontraram mais de 30 plantas
buscá-las, muitas vezes, em locais nunca antes catalogadas. Descritas
que estavam sendo devastados”, por ele e por botânicos, essas espé-
afirma Tabacow, que participou de cies ganharam denominações alusi-
várias incursões lideradas por Marx vas ao paisagista, incorporando as
em busca de espécies com potencial expressões burle-marxii, robertiana
paisagístico. ou burleana, ao passo que um gêne-
ro foi nomeado como Burlemarxia.
Algumas dessas viagens, recorda,
Algumas plantas tiveram nomes in-
possibilitaram o salvamento de plan-
dicados por ele, como a Pleurosty-
tas durante a construção, na déca-
ma fannyi e a Heliconia adeliana, em
da de 1970, da rodovia Rio-Santos
Lago sob pergolado homenagem à cunhada Fanny e ao
e espelho d’água da – obra da ditadura militar num tem-
cozinha de pedra
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E stante A mbiental
Cercos e resistências:
povos indígenas isolados na Amazônia
Fany Ricardo e Majoí Gongora (organizadores)
Instituto Socioambiental, 254 páginas
A publicação traça um panorama abrangente dos povos isolados de
diversos territórios e regiões do Brasil. Além de artigos de pesqui-
sadores, conta com a perspectiva dos indígenas contatados de ou-
tras etnias que compartilham o território com os grupos isolados.
O objetivo é sensibilizar o poder público para conter a invasão e o
desmatamento nesses territórios.