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TEXTO DA CONTRA-CAPA
“Reconheço: sou um cristão manqué, se fixaram em mim
os aspectos fraternais da fé em que não posso racionalmente
crer. Esse cristianismo, legado dos beneditinos e de alguns
jesuítas, é um sonho. Acordei. Me pergunto se não era melhor
continuar dormindo.
Fiz tudo, errado ou certo, na hora certa. [...]
Acho que não preciso repetir onde está meu coração
político. A cabeça se libertou das simplificações e paliativos, das
certezas de manual. Examina e se auto-examina constantemente.
É meu inferno e delícia, minha única justificativa plausível de
alegar que evoluí dos macacos. Aceitos os riscos e incertezas
dessa liberdade, essencialmente modesto, pois me acho disposto
a aprender do que ou de quem me persuadir. Ainda que sozinho
continuarei assim, mas sei que estou muito bem acompanhado.
Paulo Francis
SUMÁRIO
I. Bem...
II. Prolegômenos: ou seja, alô
III. Brasilidades
IV. A descoberta do Brasil
V. “Deus é brasileiro”
VI. “E o que que você vai cantar, moço?”
I. BEM...
1
Cabeça não chegou a ser publicado. (N.doE.)
anteriores. Jornalismo me é fácil. Literatura é autoviolação, em
mim que sou pouco dado a intimidades, um cálice que pediria a
meu Pai, etc. Mas Paulo Francis dominou Cabeça de papel e de
negro. Paulo Francis nasceu em 1951. Mexeu de leve nas cargas
e castigos de Franz Paulo Trannin Heilborn, eu, antes que
Paschoal Carlos Magno me batizasse “Paulo Francis”, nome
típico de “bailarino” de teatro-revista (Glória May e Paulo
Francis em Catuca o balaio da negra, de Stanislaw Ponte
Preta...). Em Cabeça preciso confrontar a infância e adolescência
de F.P.T.H., que não havia desenvolvido (começava) as defesas
de Francis. Franz (nome que detesto), se não bebeu fel e
gasolina, andou perto, menino meio gago, excessivamente
sensível a rejeições dos raros a quem amou, às vezes brutal,
indistinguível de uma besta-fera. Latia e mordia.
Fred morreu cercado de duas das tias a quem mais amava, Maria
Luiza, Lili, irmã de Adolpho, e Zillah, mulher do irmão da minha mãe,
Luiz. Pela primeira vez entendi o que lera em algum lugar, que as mulheres,
você garantiu que não passava dos 30”. Ivan: “Cheguei, não
passei...”). Cilo, 30 e poucos. Faço, em média, nos EUA, entre
domésticos e externos, cerca de 100 vôos anuais. Toc, etc.
que nos põem no mundo, sabem como ninguém nos fazer deixá-lo. Geram a
vida e assumem uma autoridade instintiva em face da morte.
Quanto a mim, num tempo em que só ricos tinham carro, provei cedo
as supostas delícias dessa engenhoca: o carro, o instrumento mais anti-
por sócios inescrupulosos; várias tentativas fracassaram porque
fracassaram. Em parte isso se deveu a que não sabia jogar
pesado. Em parte. O fato também é que não conseguia se
concentrar num trabalho que lhe exigisse decisões. Faltava-lhe
confiança em si próprio. Sobreviveu sempre, enquanto pôde
trabalhar, mas sem o sucesso esperado. Preferia ler poesia
romântica, escrever “pensamentos” líricos, sonhar acordado;
dançar (sic, ver adiante), suprindo em fantasia o que a vida e ele
próprio lhe negaram.
III. BRASILIDADES
TCHÉKHOV, O cerejal,
primeira página, segundo ato.
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Os oficiais aprendiam (aprendem?) nos cursos de Estado-Maior que os
EUA, e não a URSS, ganharam a guerra contra Hitler. A URSS, de junho de
1941 a janeiro de 1945, enfrentou e bateu 78 por cento das tropas, tropas de
elite, alemãs. De janeiro a maio de 1945, quando os anglo-americanos
avançavam, esse esforço diminuiu a 58 por cento... Hitler chegou a ter 240
divisões na frente leste. Contra a invasão anglo-americana, de junho de
1944, contrapôs apenas 85 divisões, a maioria de segunda classe. A URSS
perdeu 13 milhões de soldados (de um total de cerca de 20 milhões de
mortos). Os EUA, em todos os teatros (Pacífico inclusive), menos de 400
mil.
A divisão esmagaria qualquer revolta, sozinha quase.
Juscelino aconselhou-o à passividade. Imaginava que Jango
seria deposto e, depois do habitual intervalo “modess” (Ranieri
Mazilli), voltaríamos, à la 1954, à democracia oli-gárquica. Esse
mesmo Juscelino garantiu o voto decisivo do PSD a Castelo
Branco, no Congresso, quando poderia eleger o marechal Dutra,
que apesar de um passado semi-fascista no Estado Novo e
simpatias por Hitler, na velhice se reconciliara à democracia
(oligárquica).
Essa pedra é uma pedra é uma pedra (sic). Não apenas rola
no caminho. E tudo. O escritor substantiva, o substantivo é o
princípio, meio e fim. O ponto de vista deve fluir da estrutura e
não se impor. E não há estruturas fixas. Valery dizia que “nuvem
cinzenta” é nuvem, ponto. Quanto menos não explícito, melhor.
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Bentley ganhara fama mundial com The playwright as thinker
(1948), em que praticamente introduziu o método e teatro brechtianos ao
mundo anglo-americano, traduzindo ainda várias peças do autor. O
dramaturgo como pensador é uma análise do poderio intelectual do drama,
ao contrário de O teatro vivo. Contém desvastadores ensaios contra Arthur
Miller, Tennessee Williams, e a Broadway em geral. Exalta os méritos de
Shaw, Sartre e Pirandello. Bentley editou várias antologias de clássicos
antigos e modernos, que considerava injustamente banidos do palco
americano. Escreveu uma excelente biografia crítica de Bernard Shaw. É
dramaturgo, tradutor, diretor e ator. Ex-marxista, quando o conheci, no
macartismo, havia recuado ao liberalismo meramente anti-soviético na
moda em Nova York. Voltou à esquerda na guerra do Vietnã, chegando a
demitir-se do cargo vitalício de catedrático da Universidade Columbia, em
1968, em sinal de protesto à atitude brutal da reitoria contra os estudantes
que ocuparam o campus. É um dos mais influentes críticos de teatro nos
EUA e Inglaterra, leitura compulsória em todas as escolas de dramaturgia,
ao lado de Kenneth Tynan, George Jean Nathan, Harold Clurman, Ronald
Peacock, Martin Esslin, John Willet, etc. Bebi em todas essas fontes,
absorvi e devolvi. Continuo achando que Shaw e Nathan, anteriores aos
outros citados, me influenciaram mais a que desenvolvesse opiniões
próprias. O problema de Bentley é que só se descobriu sexualmente aos 60
anos. Hoje, escreve ensaios brilhantes defendendo o direito e liberdade
homossexual, não tendo, apesar disso, abandonado o teatro. Conheci-o
casado com o outro sexo.
burguesas, intrinsecamente reacionárias7, que me interessava
isso?
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Lembro que Adolpho me acordou às 8 da manhã, anunciando o suicídio
de Getúlio. Respondi, de mau humor, “E daí?” voltando a dormir.
V. “DEUS É BRASILEIRO”
“We know what we are but we know not what we may be”,
sabemos o que somos, mas não o que viremos a ser, diz Ofélia,
“louca”. O escritor, ao menos, tenta fixar um presente e passado
como nos pareceram reais e vivos, apesar da decadência e
mortalidade intrínseca do que é humano. Proust, torturando
ratos, decorando bordel de homossexuais com os móveis de
mamãe Proust, nos deixou, mais amplamente, humanamente,
que qualquer historiador, a cortina final da sociedade
aristocrático-burguesa, enterrada em 1914-1918. Euclydes da
Cunha, nosso maior escritor, em Os sertões, e o Jorge Amado,
de Capitães de areia e Jubiabá, nos fixaram na mente que as
notícias da abolição da escravatura no campo brasileiro são
prematuras.
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Foi sob Antonio Pimenta Neves, hoje meu colega nos EUA,
correspondente da Gazeta Mercantil, que Visão começou a deixar de ser
apenas uma revista de business, convertendo-se aos poucos numa
publicação que abrangia análises econômicas em profundidade,
apresentando pluralismo e equilíbrio de opiniões, o melhor material
disponível do estrangeiro e uma grande abertura cultural. Jornalistas
competentes como Luiz Weiss, Rodolfo Konder e Vladimir Herzog, à parte
Zuenir Ventura, no Rio, participaram dessa transformação, que teria
continuado caso Farhat houvesse mantido a revista. Depois da queda do
sucessor de Pimenta (que foi trabalhar, a princípio, na Editora Abril), Luiz
Garcia, desisti de vez de trabalhar em editoria na imprensa brasileira.
Prefiro, de qualquer forma, escrever, atirar livre. Mas não nego o
desapontamento, já experimentado em Senhor, Correio da Manhã e O
Pasquim.
aos corajosos editores escrevendo que me trataram como
fidalgos, nunca sugerindo sequer censura de qualquer espécie.
ISBN 978-85-89362-71-9
07-1707 CDD-928.69
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índices para catálogo sistemático:
1. Francis, Paulo : Memórias : Literatura brasileira 928.69