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TEXTO DA CONTRA-CAPA
“Reconheço: sou um cristão manqué, se fixaram em mim
os aspectos fraternais da fé em que não posso racionalmente
crer. Esse cristianismo, legado dos beneditinos e de alguns
jesuítas, é um sonho. Acordei. Me pergunto se não era melhor
continuar dormindo.
Fiz tudo, errado ou certo, na hora certa. [...]
Acho que não preciso repetir onde está meu coração
político. A cabeça se libertou das simplificações e paliativos, das
certezas de manual. Examina e se auto-examina constantemente.
É meu inferno e delícia, minha única justificativa plausível de
alegar que evoluí dos macacos. Aceitos os riscos e incertezas
dessa liberdade, essencialmente modesto, pois me acho disposto
a aprender do que ou de quem me persuadir. Ainda que sozinho
continuarei assim, mas sei que estou muito bem acompanhado.
Paulo Francis

TEXTO DAS ORELHAS


O afeto que se encerra é um ajuste de contas com os
leitores, com o Rio, com o Brasil e com ele mesmo. Paulo
Francis o publicou em 1980, aos 50 anos. O livro tem vigor, não
é obra de um memorialista de século XVIII, retirado em um sítio
a registrar o pacote de banalidades que foi sua vida. Longe da
monotonia do saudosismo e das reparações, Francis abre uma
frente de batalha, mostrando que a infância e adolescência de um
carioca de classe média em Copacabana, mesmo nos anos 30 e
40, não era o que contam as lendas.
Ele avança para seus 20 anos e lembra como descobriu o
Brasil em 1951, na excursão do Teatro do Estudante de Paschoal
Carlos Magno ao norte/nordeste.
“Pela primeira vez vi o Brasil, vi a nu o crime secular de
uma classe dirigente que em crueldade conhece poucos
paralelos, que se esconde em falsa afabilidade e patriotismo,
aqui não o último, mas o primeiro e único refúgio dos velhacos”.
Estava localizado o inimigo e, nos 40 anos seguintes, Francis vai
se tornar o jornalista mais conhecido, lido e discutido do Brasil.
No livro, os tempos se alternam como num solo de jazz.
Há um tema principal, a vida do autor, e as variações, na forma
de reflexão, informações laterais e propostas. A base destas
últimas é a experiência, primeira e única, com o Brasil pobre.
“Nunca imaginei que existisse algo igual na terra”, diz, sobre a
época. Continuou achando isto, mas não acreditava mais que a
elite brasileira, pública ou privada, nem a esquerda, tivessem um
projeto para o Brasil. Esta desilusão com as elites brasileiras não
o torna um pessimista crônico. Sempre, em qualquer um de seus
livros, um humor peculiar distribuirá sarcasmo e ironia ao redor.
Na última linha do livro: “Ainda que sozinho continuarei assim,
mas sei que estou muito bem acompanhado”.
JOSÉ ONOFRE
“A inocência é uma forma de insanidade.”
(GRAHAM GREENE, O americano tranqüilo)

SUMÁRIO
I. Bem...
II. Prolegômenos: ou seja, alô
III. Brasilidades
IV. A descoberta do Brasil
V. “Deus é brasileiro”
VI. “E o que que você vai cantar, moço?”

À memória de Irene e Adolpho, meus pais, e de Fred Heilborn,


irmão.

I. BEM...

ESTE livro não é uma autobiografia. Contém passagens


autobiográficas. Não é o estudo, ou reminiscência, de um
período histórico. É memória seletiva. E se toco minha trombeta,
verão que nem sempre os sons são harmônicos. Fi-lo porque qui-
lo. Esta, de resto, é a gênese honesta de qualquer obra literária.
Somos todos narcisistas. A diferença é de grau e entendimento
da nossa condição. E, claro, dos usos que fazemos de nós
mesmos.

Há outros motivos. Bato bola para enfrentar o último


volume da trilogia de romances, Cabeça de papel, Cabeça de
negro e Cabeça (inédito)1. Este vai ser trabalho maior que os

1
Cabeça não chegou a ser publicado. (N.doE.)
anteriores. Jornalismo me é fácil. Literatura é autoviolação, em
mim que sou pouco dado a intimidades, um cálice que pediria a
meu Pai, etc. Mas Paulo Francis dominou Cabeça de papel e de
negro. Paulo Francis nasceu em 1951. Mexeu de leve nas cargas
e castigos de Franz Paulo Trannin Heilborn, eu, antes que
Paschoal Carlos Magno me batizasse “Paulo Francis”, nome
típico de “bailarino” de teatro-revista (Glória May e Paulo
Francis em Catuca o balaio da negra, de Stanislaw Ponte
Preta...). Em Cabeça preciso confrontar a infância e adolescência
de F.P.T.H., que não havia desenvolvido (começava) as defesas
de Francis. Franz (nome que detesto), se não bebeu fel e
gasolina, andou perto, menino meio gago, excessivamente
sensível a rejeições dos raros a quem amou, às vezes brutal,
indistinguível de uma besta-fera. Latia e mordia.

Esta é, portanto, a preliminar de Cabeça, intelectual na


medida do possível, sem torrar os países baixos do leitor que
espera, como eu, digeri-la ao de leve. Adio assim os choques
emocionais do que será a ficção. E chegamos aos motivos finais.
Franz nasceu (me dizem. Ver adiante) em setembro de 1930.
Completo(ei) 50 anos em 1980. Acho boba essa mania (e clichê)
de imprensa, simplificar a vida em décadas. Confesso, apesar
disso, que a expressão “meio século” me fascina um pouco. Não
é à toa que fui marxista-trotskista durante 14 anos. Resolvi ter
um livro na rua aos 50 anos. Vaidade. E curiosidade.

Jornalista político e cultural, opino sobre isso e aquilo o


tempo todo. Mas jornalismo, mesmo ensaístico, é dispersão de
energias na vida do próximo, em coisas exteriores à ilha em que
vivo e na qual um psicanalista amigo, Borsoi, descobriu uma
catedral, meu superego: ajoelho, rezo e cumpro. A imagem é de
Koestler. Borsoi não gostou de Koestler sem ler. Pensaram ao
mesmo tempo. Borsoi foi um dos poucos psicanalistas
brasileiros que escapariam da cadeia em país civilizado. Morreu.
Não me analisou. Eu o admirava, mas minha única aterrissada
em divã, em 1961, aconteceu quando perdi a memória de duas
semanas. Recuperei a memória e dormia no divã de E. M. Medi
o bicho, testei-o contra textos de Freud, Klein e até, colher de
chá, o prefácio de Strachey ao estudo de Leonardo da Vinci.
Desmoronou. Me perdeu de vez quando notei que fumava
cigarro de filtro com piteira. Imperdoável. Depois que me
despedi, quase em seguida, internaram o pobre E. M., síndrome
qualquer-besteira. Duvido que soubesse diagnosticar. O homem
levava Erich Fromm a sério. Está de volta, me informam,
faturando. Numa das sessões, me fez esperar meia hora,
enquanto falava a dois cafajestes, policiais (claro). Tentava
suborná-los. Queria porte de armas. É que onde vivia, no
Leblon, rapazes vizinhos zombavam dele. E. M. explicou que se
refazia do trabalho diário, de cuecas, tocando piano. Os vizinhos
emitiam o contraponto de “bicha, bicha”. Se o virtuosismo de E.
M. era igual ao conhecimento de psicanálise, os rapazes esses
têm minha solidariedade.

Divago. Tanto falo do resto, que não me sobra tempo para


saber o que penso de mim. Às vezes me ocorre,
desagradavelmente, que conheço melhor a cabeça (o título é de
cortesia) de Jimmy Carter do que a minha. E só sei o que penso
quando passo para o papel.

Os romances ajudaram bastante a me situar. São uma


biografia espiritual do grupo em que me desmamei, mas o de
Paulo Francis, não o de Franz (pronuncia-se, no Brasil, Fransh).
Não me perguntem quem é quem nos Cabeças. E pergunta de
quem nunca escreveu criadora-mente (bem ou mal; é irrelevante,
já que o processo é idêntico). Em todo caso, como faço fé que
este livro aqui venda, bajulo os interessados com uma pista. O
narrador, Hugo Mann, é baseado em Dercy Gonçalves.
Quis ser escritor desde que li Crime e castigo, aos 14 anos
de idade. Eu era um revoltado contra a ordem social, família,
colégio, padres. Tolstói, antes de morrer, disse que não se sentia
diferente de menino, aos 8 anos. Nem eu, agora (fim das
semelhanças entre nós). Foi aos 8 anos que comecei a perceber a
ambivalência, a ambigüidade, a falsidade do que me pregavam.
Uma cacetada emocional me levou a essa precocidade crítica.
Não importa. Nos tornamos o que somos. Me fechei em mim
mesmo, perplexo, rancoroso, engatinhando sarcasmos. A
perplexidade, expressa em aparente abobamento, fez suspeitar
retardo. Mas fui sempre, nessa fase, primeiro da turma, prêmio
de excelência do colégio. Ainda assim, meu santo pai me
obrigou a extrair essa fajutice de Cyril Burt, um QI. A modéstia
me impede...

Concluiu-se que Franz era apenas um menino “esquisito”.


Eu ria melodramaticamente ao ouvir a palavra em casa, depois
que dera uns pontapés violentos nalguma senhora amiga de
família que pretendia me bolinar. Fui bebê e menino bonito.
Sim, tenho provas fotográficas. Parecia o primeiro filho de
Lindbergh, o que morreu, toc, toc, toc. Lourinho e de olhos
azuis. A vizinhança que acompanhava o rapto em A noite
ilustrada (acho) chegou a suspeitar ligeiramente de meu pai. E se
eu fosse o garoto e houvesse sobrevivido? Proibiria papai e
mamãe de escreverem, isso garanto, diminuindo o volume de
lixo middle-brow, de sentimentalismo de classe média, nas
livrarias.

Garoto fulo, eu temia as represálias da Autoridade e, pior,


não sabia como combatê-la. Dostoiévski respondeu. Ele e
Nietzsche (outro caso de inspiração simultânea) criaram a
consciência moderna individual. O cerne revolucionário de
Crime e castigo é que Raskolnikov racionaliza, e assim justifica,
o assassinato de outra pessoa, em causa própria, pela capacidade
maior que tem, teórica, de reorganizar a ordem das coisas, que
ele destrói pelo ato consciente de um intelecto superior. Vale
tudo, se você agüenta a parada, intelectualmente. A ordem
estabelecida é uma tirania contra os súditos. Contra mim. A
exaltação que essas palavras me causaram jamais foi igualada
em qualquer experiência. Há, claro, outra componente na
história, “reacionária”, que ignorei desdenhoso, e de que falo
futuramente. Na época, renasci da irritação impotente à
subversão do que me impingiam. Bastava “apenas” pensar bem,
em profundidade, que a prisão, que a cela se abriria...

De 14 aos 27 anos li tudo que conseguia pegar, média de


seis horas por dia, investimento que me rende até hoje. Colégio
de manhã, almoço, leitura até à noite, quando voltava à
normalidade moleque da idade. O que não entendia, muitíssimo,
preenchia em comentários. Mastiguei Ulysses de Joyce olhando
o mapa da mina de Stuart Gilbert. Atravessei os “esotéricos”
Richards (I. A.) e Bradley (metafísico) me enchendo de eruditas
mas transponíveis explicações. É só querer e não andar
habitualmente de quatro, zurrando. A experiência me mudou
opiniões mil, mas duvido que qualquer universidade me desse
base semelhante.

Não que pensasse nisso, “glórias acadêmicas”. Colégio é


bom, quando é, para a zorra, o esculacho. Pouco aprendi de útil.
Deixe ver. As quatro operações, certo, mas sou fraquíssimo em
divisão, frações e nem me lembro do que é uma equação de
primeiro grau. Apesar disso, se ficarmos nos essenciais, discuto
leigamente a Segunda Lei da Termodinâmica, a Teoria do
Quantum e a Lei da Relatividade, o básico real, que, em anos,
digeri. Ler? No primeiro dia decorei as combinações de letras
(1937). Escrever? Ao contrário, boa parte da ilegibilidade da
literatura e imprensa brasileiras se deve ao asneirol filológico
ensinado nas escolas. “Custa-me crer” é a vovozinha. Rubem
Braga ou Millôr Fernandes valem “n” Aurélios. Escrever é
organizar intelectualmente, parafrasear a linguagem viva do
povo. Ou fazer algo próprio, à la Guimarães Rosa. Entupiam-nos
de regras hieroglíficas, de construções artificiais, de jargão
acadêmico. E esse absurdo supremo, negando qualquer conversa
normal, de não misturar a segunda e a terceira pessoas
pronominais. “Brasil, ame-o ou deixei-o” resume minha crítica.
Duvido que até general fale assim. “Tá fedendo, te manda”, é o
que eles queriam dizer.

Claro, a idéia que linguagem escrita precisa ser solene é


uma componente de elitismo dos privilegiados num país
miserável de analfabetos. Idem, a profusão de acentos, os 4 mil
verbos irregulares, a insistência em palavras não-coloquiais (me
citem o homem público que diz “acho” ou “acredito”. Não, é
“creio”. Uma das razões do sucesso de Carlos Lacerda é que
falava como gente).

É, em suma, o grito infantil “eu sou o maior”, mascarado


de seriedade e aplicação. Essa deficiência foi varrida da
literatura e imprensa de países desenvolvidos. Mas persiste,
universalmente, nas ciências. A cara de satisfação do
medicozinho, quando lhe pedimos que traduza o diagnóstico
obscuro, dispensa comentários, é o comentário... Os ingleses são
exceção, talvez porque nas escolas deles, de elite, se aprenda (ou
se aprendia, antes do “socialismo”) a linguagem clara, direta e
resplandecente dos clássicos, de Homero a Shakespeare, que
marca de vez quem provou. A economista Joan Robinson é
leitura amena, romance de moças, perto da produção de alguns
de meus bons amigos do Cebrap.

Bem, o chato do Paulo Francis já citou demais. É tempo


de ativar Franz. Minha revolta era natural, gerações sempre se
confrontaram, ou se confrontavam até os anos 40, antes que as
crianças fossem educadas no narcisismo pseudoliberacionista de
hoje, em que todas as vontades (falo das classes privilegiadas)
lhes são feitas. Por isso, adultas, enfrentando a crueldade
democrática da vida (de que ninguém escapa. Varia a dosagem),
tentam compulsiva e neuroticamente repetir o “paraíso” sensório
da infância, em sexo promíscuo, drogas, violências (manha),
quando contrariadas; ou, alternativa, mulheres em particular e
homossexuais em geral, se entregam à submissão e à
autodegradação, qualquer coisa que lhes forneça uma
consciência de identidade, do que nunca experimentaram. O
capitalismo pós-industrial, tecnológico, dispensa (sempre aos
privilegiados) a ética passada de trabalho, de sacrifícios, e a de
sobriedade, que preservaria energias. Comer doce demais dá dor
de barriga, ouvi, menino. Ligue a TV e o oposto é proposto.
Tudo, corpo e alma, é bem de consumo ilimitado. O conceito de
contenção, de que nada é de graça, que velhice e morte são
complexas e inevitáveis evoluções e regressões, que a
criatividade depende, em parte, de privações dos criadores (a
definição exata de Freud do que é civilização), foi varrido de
nossa cultura publicitária. Daniel Bell, o ex-marxista convertido
em tecnocrata centrista, chama esse processo de “contradições
do capitalismo”. É apenas o capitalismo no estágio atual.

Somente os “índios”, 2 dos 4 bilhões de habitantes do


mundo, os miseráveis e os esfaimados estão sujeitos à velha
escala de valores, e, na marra, na senzala que um dia explodirá
como previ em Cabeça de negro, à la louca, sem nenhuma das
ideologias renovadoras do pensamento ocidental (marxismo
inclusive). A revolução no Irã', completamente fora dos diversos
manuais, ilustra.

De volta a meu assunto, a intensidade da minha revolta


não era natural. Notem, talvez eu tenha dado a impressão que
vivia enfiado nos livros. Sobrava tempo de ser “normal”. Tocava
punhetinhas matinais, vespertinas e noturnas. Ia ao cinema ver
Mickey Rooney, Esther Williams, Red Skelton, Ronald Colman,
Gloria de Haven, etc. Lendo Huxley (de quem copiei as poses
dos intelectuais cheios de taedium vitae), continuava
acompanhando o Globo juvenil. Passei noites na sinuca, jogando
carambola de bolso com malandros (carambola é mistura de
bilhar e sinuca. É, ou era, o preferido dos malandros. Eu,
jogador medíocre, sempre atirei alto). Bebia. Aos 11 anos
cheguei de quatro em casa, depois de uma festa junina de rua.
Os mais velhos deram ao garoto a tarefa de segurar as garrafas
de cachaça: minha primeira e última (que eu lembre) coma
alcoólica. Me servi das empregadinhas, residentes e itinerantes.
Estas apareciam ninguém sabe de onde e os meninos formavam
fila, na escuridão da Rua Icatu, onde moram hoje alguns amigos
do autor, e elas nos praticavam o que os padres da Idade Média
resolveram desencorajadoramente apelidar de fellatio, sexo oral.
Joguei futebol no colégio, quebrei e me quebraram, e na rua
(racha), em que tínhamos hora em hora de esconder a bola da
D.G.I., a polícia brutal de Getúlio, chamada por algum morador
indignado pela nossa linguagem ou janelas arrebentadas. Só três
íntimos, que partilhavam um pouco meus anseios de libertação,
sabiam das seis horas de leitura. Até com o proletariado
moleque, depois de incontáveis brigas de turmas (tenho uma
cicatriz de navalhada à direita, abaixo do estômago. Às vezes,
hoje, de pileque, exibo orgulhoso a amigos), estabeleci uma
détente, quase uma entente cordial. Meu vulcão, digamos,
geyser, rugia apenas eu sozinho.

II. PROLEGÔMENOS: OU SEJA, ALÔ


NASCI em 2 de setembro de 1930, na Rua São Clemente,
Botafogo, Rio, perto da antiga embaixada americana (...), numa
casa de vila, em ambiente de classe média. É o que dizem e o
tabelião confirma. O leitor tem aí a pista-chave da minha
personalidade. Tolero (de uns tempos para cá...), de cara alegre,
os tolos, como recomenda o apóstolo Paulo. Tolero às vezes.
Paulo também... Mas leio e ouço as coisas sempre em dúvida do
que não posso provar. Essa desconfiança, a essa altura, me
parece incorrigível. Infelizmente? Me salvou de boas e me priva
do abandono emocional, que é uma das alegrias da vida, me
informam, enquanto dura. O fato é que nos (raros) paroxismos
uma voz me avisa: “Bicho, esse negócio não é contigo”. Não se
iludam pela aparente e ocasional fúria de meus escritos. Escrevo
frio como um pepino. Prefiro assim, ou já me habituei?

Sei apenas que nasci, presumo que pelos processos


convencionais, não existindo na ocasião o bebê de proveta ou os
Garotos do Brasil. E fui, jovem, a cara do meu avô alemão, Paul
Heilborn, na mesma idade, o que exclui, provavelmente, a
hipótese de adoção. Dando crédito à versão oficial, não é
verdade que ao me baterem na bunda eu dissesse “Cogito ergo
sum”, ou, segundo o vulgo, “Um Black Labei nas pedras”. Se
me manifestei, à parte o que Shakespeare chamava
sentimentalmente “the mostpiteous sound”, o som mais digno de
pena, o nhenhém do desgraçado do bebê, teria sido na linha de
“Por que não me consultaram se eu queria vir pressa joça”? A
última frase de As memórias póstumas de Brás Cubas é minha
opinião da paternidade.

Meus (pressupostos) pais, Adolpho Luiz Heilborn e Irene


Trannin Heilborn, já tinham um filho de dois anos, Fred, que, no
folclore familiar, eu duas semanas nascido, me atirou uma caixa
de fósforos na cara. Essa guerra levou mais de 20 anos. Quando
ele morreu, aos 34 anos, assassinado pela Cruzeiro do Sul 2, nos
tornáramos amigos. Nos respeitávamos e chegamos a alugar
juntos um apartamento alguns meses. Perdi um irmão (há outro,
Paulo Gustavo, 14 anos posterior a mim); um dos meus
melhores amigos, Mário Faustino, poeta e crítico, o crítico de
que precisamos ainda hoje, pois não-curriolável; Ivan Meira, um
inventivo publicitário e participante da formação de Senhor,
2
A Cruzeiro do Sul continua viva, absorvida pela Varig. Nada sofreu. O
laudo pericial começou em nível de tenente da FAB, Montenegro
Fernandes, me lembro. O tenente descobriu negligência criminosa na queda
do Convair da Cruzeiro. Lemos, meu advogado e amigo Paulo Mercadante.
Parecia incontrovertível. O tenente Fernandes é ou era o expert da FAB.

O Globo publicou entrevista com um dos raros sobreviventes,


húngaro, ex-piloto na Segunda Guerra (e, portanto, provavelmente nazista,
o que não vem ao caso). O homem disse que na decolagem viu um dos
motores pegar fogo e avisou à aeromoça. Ela, exibindo o charme e veneno
da mulher brasileira, emitiu os ruídos apropriados a débeis que voam
inocentes. O húngaro insistiu na seriedade, se identificando piloto
profissional. Nada. No diário do comandante havia frases como “se não
consertarem esses flaps um dia vai haver uma desgraça”.

Inútil. O laudo subiu a brigadeiro e “renasceu” falha humana, a


eterna desculpa das companhias (nem sempre, claro, falsa). Em 1962, eu
escrevia uma coluna diária na Última Hora do Rio, “Paulo Francis informa
e comenta”, bastante lida. Desci o sarrafo na Cruzeiro. O sindicato dos
aeroviários me entupiu de documentos sobre deficiências de manutenção
das empresas todas. Reproduzi os extratos plausíveis e fundamentados.
Samuel Wainer, o proprietário do jornal, nunca me proibiu, censurou, ou
disse sequer uma palavra, exceto de condolências. A Última Hora perdeu
muitos milhões de cruzeiros em publicidade durante a campanha.

Minha intenção era destruir a “reputação” da Cruzeiro, processá-la


criminalmente e, se possível, levá-la à ruína. Meu pai se sentiu mal, na
opinião dele, em “explorar o cadáver”. Parei somente por insistência dele, já
bastante doente na época e carregado de culpas.

Durante seis dias vi meu irmão mutilado, sofrendo o diabo, no


excelente hospital de São Paulo, cujo nome esqueço, especializado em
divertido, perigoso (diziam os inimigos. Não contem comigo); e
Cilo Costa, ator e alegria das mulheres; todos se foram em
desastres de aviação. E trabalhei meses na Panair, descobrindo
que em toda e qualquer viagem o avião falha aqui ou ali e o
público não nota ou é avisado (raramente as conseqüências são
sérias). Mário morreu aos 32 anos. Ivan, 30 (no aniversário dele,
um amigo comum, Newton Rodrigues, disse: “Como é, Ivan,
queimaduras. Se sobrevivesse, Fred perderia um braco, estropiado, já ficara
cego de um olho. Os médicos me explicaram que dependia da capacidade
dos rins de Fred que ele não morresse, ou seja, da eliminação das toxinas
provocadas pelas queimaduras. Fred teve falha de rins. Eu segurava a perna
dele quando deu aquele último arranque, duro, em que depois o tormento de
nos sabermos vivos e vulneráveis se extingue. Antes de morrer, beijei-o a
primeira, única e última vez, na testa. E pela primeira vez na minha vida
consciente, o filho morto, abracei meu pai.

Em desespero homicida, chorando de raiva, na capela de São João


Batista (Fred, nos poucos momentos que saiu de coma, pediu que o
enterrassem no Rio), apareceu nosso padre prefeito do Santo Inácio, o
executivo do colégio, Padre Coelho, homem severo e justo, cuja voz potente
de barítono quem ouviu não esqueceu. Ele me consolou, ao ateu, ao
trotskista, melhor que ninguém. A raiz jesuíta nos alunos não morre. O
Padre Theijus, professor de Fred, morrendo de câncer, mal se agüentando de
pé, fez questão de levantar-se da cama e encomendar a alma de meu irmão,
que permanecera católico.

A fidalguia paulista. Um poeta a quem só conheci pessoalmente anos


depois, num encontro casual, em Nova York, me emprestou o apartamento
para a única noite que dormi inteira, fora dos bancos do hospital. Julio Neto,
cujo jornal, o Estado, eu atacava bastante na Última Hora, a pedido de outro
amigo, Flávio Rangel, pôs a reportagem do Estado à procura de Fred, na
confusão das primeiras horas em que nem se sabia se alguém sobrevivera.
Flávio, na noite da notícia, tinha ido a minha casa apresentar a mulher com
quem se casaria, Dulce Pedreira. Vendo meu susto de enfrentar a ponte
aérea, me levou de automóvel a São Paulo.

Fred morreu cercado de duas das tias a quem mais amava, Maria
Luiza, Lili, irmã de Adolpho, e Zillah, mulher do irmão da minha mãe,
Luiz. Pela primeira vez entendi o que lera em algum lugar, que as mulheres,
você garantiu que não passava dos 30”. Ivan: “Cheguei, não
passei...”). Cilo, 30 e poucos. Faço, em média, nos EUA, entre
domésticos e externos, cerca de 100 vôos anuais. Toc, etc.

É Fred mesmo. Adolpho viveu alguns anos nos EUA, nos


anos 20 (me contou a luta de boxe roubada em que Dempsey
bateu o argentino Firpo, a que assistiu), e se encantara com o

que nos põem no mundo, sabem como ninguém nos fazer deixá-lo. Geram a
vida e assumem uma autoridade instintiva em face da morte.

Meses depois, numa festa, uma pilequenta qualquer da “sociedade”


veio me contar que a Cruzeiro sofrera com o desastre, gastando vários
orçamentos anuais. Eu ia lhe dar um soco no rim. Aprendi de mestres que
não se desperdiça soco na cara, bobagem de cinema. No rim, às vezes, mata.
Vontade não me faltava. Felizmente, meu pileque era maior que o dela, me
imobilizando a mão que mal consegui fechar. Só pude olhá-la, em silêncio,
estupidificado de ódio. Não lembro quem é e ela não sabe do que escapou.
Nenhum arrependimento, do ódio, ou da chance perdida. Afinal, a burrice é
incurável.

Sou realista e reconheço que na morte de Fred chorei a de minha


mãe, dor que reprimi, que reprimo até hoje. E que no ódio havia uma
componente marxista, que compreendia a tranqüilidade com que o
capitalismo destrói qualquer ser humano, se isso abater os custos e elevar os
lucros, e se o criminoso não for pilhado, o que é dado de barato no Brasil.

Mas havia Fred também, companheiro de infância, que mal conheci.


Fred, atraente, uma versão melhor acabada de Gene Kelly, ciosíssimo da
aparência, da saúde, tímido de morrer com as mulheres; emocionalmente
emaranhado pela afeição que minha mãe me favorecia, um inocente
político, chocadíssimo ao saber que eu votaria em Lott e não nesse palhaço
sinistro, Jânio Quadros. Fred que comprava um apartamento na Lagoa, idéia
que me fazia rir em face de tanta pequena-burguesice, eu que esperava
morrer como Lord Byron, não fazendo por menos. Fred, o cidadão honesto,
diligente e trabalhador, que os paradigmas da nossa burguesia afirmam
“validar moralmente o sistema”. A verdadeira moralidade dessa gente está
criticada no diário do comandante (morto) do Convair e no laudo do jovem
tenente Montenegro Fernandes, que provavelmente pensou que era dever de
oficial e cavalheiro não mentir. Aqui fica um silêncio concretista, ou de
país. Voltando americanizado, tascou um nome afim no
primogênito. Paguei. Paul Heilborn quicou em face desse
“arreganho colonialista de Washington”. Daí o Franz que recebi,
Adolpho me usou para apaziguar o pai. Os dois se entendiam
mal. Distraído e sonhador, Adolpho esqueceu de incluir o
Trannin na certidão, me surripiando o nome materno, prenúncio
de coisas piores. No Santo Inácio, colégio jesuíta do Rio, me
chamavam de “Caninho”, a principio, corruptela de Trannin
(Trranân). Perdi o Trannin um dia na secretaria e virei eiulbórn
(ráiulbórn ).

Meu pai ganhava bem, na Esso... Dez anos de casa,


estabilidade (pré-“opção” pelo Fundo de Garantia), futuro certo,
americanófilo, inglês sem sotaque (e alemão, francês e
espanhol). Paul Heilborn tinha algum. Viera para o Brasil em
1889 assumir uma posição na Teodorville (talvez falte ou haja
uma letra demais aí), de que terminou o segundo homem, até
que encampada quando o Brasil entrou na guerra em 1943. Não
se tratava do imigrante de tamancos, dum cutruco teutônico.
Muito nos orgulhávamos disso, considerando-nos à parte do que
Harold Pinter, se preferirem. Não há mesmo mais nada a declarar.

Fred fechara em São Paulo um contrato em que assumiria a


superintendência geral da Reader’s Digest, a revista talvez de maior sucesso
naquele tempo. Me contou feliz que finalmente se realizava, administrador
de poderosa empresa. A Reader’s Digest, apesar de Fred, no Brasil, não ter
direito legal, generosamente pagou um seguro de 25 mil dólares a Adolpho,
o que só fez atormentá-lo, mas essa é outra história.

Fred morreu também pela nonchalance carioca. Deixou de viajar


num avião que chegou incólume, porque, sem pressa, preferiu ir ao pipi,
aguardando o próximo. “Somos para os deuses como insetos para meninos
vagabundos; eles nos matam por divertimento”, disse o poeta supremo, que
traduzo de qualquer jeito. “De qualquer jeito” é um epitáfio que, em última
análise, nos serve a todos.
o célebre Mesquita (Mesquitá, hoje morto ou aposentado em
Biarritz, não me lembro qual) do Itamarati chamava de “merros
brrasileirros”. Bobo? Sem dúvida.

Paul Heilborn, às 7 da manhã, estava de pé, banho frio


tomado, de paletó e gravata-borboleta, passeando o dobermann,
Lumpen, nome que, mal sabia eu, era, no contexto marxista,
uma palavra a ser repetida em todas as discussões. Lumpen,
fazendo justiça ao nome, se desmilingüia diante de qualquer
lulu. Velho e doente, assustava, porque baixaram uma
regulamentação dessas idiotas (no nível da de Juarez Távora,
ministro da Agricultura, proibindo que se carregasse porco de
cabeça para baixo em estrada no interior), que obrigava o uso de
mordaça especial em cachorros de porte maior. Lumpen,
mascarado (meu avô foi, que me lembre, a única pessoa a
cumprir a regulamentação), provocava gritos e desvios rápidos
de senhoras e crianças. Houve outro, Kid, este o típico
dobermann, feroz com todo desconhecido. Kid se revelou um
sodomita vocacional. As visitas que ousavam entrar na casa sem
guia se viam de repente tendo aquele monstro nas costas, um
vasto membro erecto, enquanto nós, netos, ríamos às lagrimas;
até que nossa tia, filha de Paul, nos comandava de alguma janela
que o afastássemos da vítima, a essa altura já chorando ou
tremendo. Kid lutava conosco, de brincadeira, nos lanhando
bastante. Nos deu a medida exata do comportamento de
cachorros, o que evitar, o que é mero ruído. Ganhei algum
dinheiro nisso, apanhando uma vez a mala de colega num
terreno baldio cheio de vira-latas bancando machos, aos latidos.
Olhei os bichos e entrei tranqüilo, pegando a mala. Cachorro de
briga não fica se sacudindo. Pára completamente antes do
ataque. Se rebola, não resiste à autoridade masculina. É o nosso
primeiro escravo pré-histórico, o animal. Prefiro gatos. Têm
mais personalidade.
Paul era uma figura de autoridade benévola, mas “fria” no
contexto brasileiro. Um beijo de filha, nora e neta já lhe parecia
em conta (um dos filhos o beijava. Ver adiante). Falava
português fluentemente, sem erros, com um sotaque não
carregado. Acompanhava nossa vida política. Algumas
surpresas: tinha horror a militares. Meu tio Sylvio, o mais
jovem, recrutado médico, major, da FEB (Força Expedicionária
Brasileira à Itália. Sylvio terminou não indo), um dia entrou em
casa de uniforme, se exibindo a nós. Paul disse que despisse a
farda e reaparecesse “vestido de gente”. Paul admirava Getúlio
Vargas, o que pode ser atribuído ao autoritarismo germânico.
Ouvi-o no entanto várias vezes falar do bem que Getúlio fizera
pelo povo...

Meu tio-avô tinha sido oficial prussiano, jogador e


mulherengo, sempre endividado. Paul queria ser o oposto dele. É
a velha “síndrome Oswaldo Cruz” (o pai do mata-mosquitos se
aniquilara em boêmia. O filho, bem, matou mosquitos, se bem
que, dizem, no fim da vida, houve o “retorno do reprimido”, em
que procurou imitar o pai. Qualquer estudante de Freud
entende). Paul terminou a vida sem o “retorno”. Morreu de
enfarte, em 1946, tomando o banho frio diário.

Meu tio-avô (esqueci o nome) morreu na Primeira Guerra.


Presumo que numa carga de cavalaria (a arma dele) contra
tanques, dado o nível de inteligência do conflito 1914-1918. O
souvenir a que tive acesso, uma espada, era maior que eu,
garoto, e me fazia sonhar os feitos habituais. Adorei soldadinhos
e botão. Importávamos brinquedos da Alemanha cuja qualidade
artesanal acredito inexista hoje. Irmãos, primos e amigos
guerreávamos no soalho. É expressivo da força de Hollywood na
garotada dos anos 40 que todos quiséssemos ser os
“americanos” na guerra, nós, Heilborn, descendentes de
alemães. Meu avô detestava Hitler. Não havia anti-semitismo
em casa, exceto o “normal”, pré-genocídio, o anti-semitismo
cristão, em suma. É instrutivo, para citar um único exemplo, ler
Agatha Christie ou John Buchan, em que os judeus aparecem
vilões, ou, na melhor das hipóteses, desagradáveis corpos
estranhos. Os conspiradores de 39 degraus, que a maioria
conhece do filme de Hitchcock, no original são agentes do
“judaísmo internacional”. Minha família paterna estava nessa.
Meu pai, na guerra, confirmou-se “lacaio do imperialismo
americano”, irritando Paul, que, se anti-Hitler, patrioticamente
não podia torcer, de coração, contra o país em que nascera. Os
outros, que me lembre, não davam pelota, exceto Paulo Filho,
justamente o mais abrasileirado, que defendia as razões (não,
friso, Hitler) da Alemanha contra Inglaterra e França. E razões
havia, claro, o Tratado de Paris (erradamente referido como de
“Versalhes”) foi uma infâmia. Ingleses e franceses, temendo a
competição econômica da Alemanha, levaram o débil Woodrow
Wilson a unir-se a eles impondo punições draconianas aos
derrotados em 1918. Ninguém escreveu mais eloqüentemente
sobre o assunto do que o economista liberal inglês Maynard
Keynes, em As Conseqüências Econômicas da Paz (1919),
panfleto que é análise devastadora da atitude dos Aliados e que
prevê a nova guerra, que Hitler desencadeou. Durante muito
tempo, pasmos e culpados pela nossa conivência no massacre
dos judeus (sem falar de eslavos, ciganos e outras “sub-raças”),
convertemos Hitler em demônio, numa aberração da
malevolência teutônica. Nada justifica Hitler, naturalmente, mas
isso não justifica a perda de perspectiva histórica, hoje aos
poucos recuperada graças a historiadores do nível de A. J. P.
Taylor e Geoffrey Barraclough, entre outros.

A guerra mal tocou os confortos da classe média


brasileira. Paul, de renda reduzida, economizara mais que o
suficiente. Mantínhamos costumes alemães. Aos domingos,
jantávamos frios, pão preto, cerveja (para os adultos) e café com
leite às crianças. Estas não podiam falar à mesa, exceto se
solicitadas. Nos obrigavam que ficássemos de mãos cruzadas,
enquanto não comíamos. Eu mexia sem parar nos descansos dos
talheres, parando momentaneamente ao ouvir enérgicos “Frantz”
(a pronúncia alemã) de Paul. Um dia, para chateá-lo, disse no
almoço dominical da família que a vida é “vinho, mulheres e
canções”, de que minha experiência era praticamente nenhuma.
Levei preleção do velho que a vida é “sacrifício, trabalho,
realização”. Contestamos isso, claro, minha geração. Mas
contestávamos uma estrutura real e, na aparência, consistente. A
juventude (privilegiada, lembro sempre) de hoje contesta um
vácuo e daí as vertigens... E a mensagem de Paul se impregnou
em mim. Passada a fase de rebelião me converti num cu-de-
ferro, com lapsos que não alteram a base.

Meu avô tinha uma casa magnífica de dois andares em


Copacabana, na Rua Toneleros (que agora leio nas placas
“Tonelero”), então inteiramente residencial, em frente da Hilário
Gouveia. Se estendia, à parte o terreno em volta, a um morro
“sem fim”. Fred, Carlos Heilborn Filho, Carlito, primo, filho do
meu tio mais velho, amigos e eu brincávamos nesse autêntico
parque. Tocávamos fogo em formigueiros, nos espetávamos
estupidamente com bambus pontiagudos, o que Fred e Franz
aprenderam no Colégio São Bento Internato, nossa primeira
baldeação no mundo fora dos prazeres e disciplina familiares.

A casa hoje é uma cabeça-de-porco de três blocos, dessas


em que se sente o cheiro da comida nos corredores. O morro
morre.

Essa casa, enquanto Paul era vivo, uniu a família, aos


domingos. Dirigida pela filha, Maria Luiza, Lili, amada de
todos, solteirona que, jovem e atraente, recusou propostas de
bons casamentos, preferindo servir, acima e além do dever, pai e
mãe. Toda vida serviu a alguém. Perfilhou meu irmão mais
moço, Paulo Gustavo, depois da morte de minha mãe,
dedicando-se a ele até morrer, 1978. É o melhor ser humano que
já conheci. Nunca a vi reclamar de nada. Tinha razões de sobra
para protestos. Fé sincera e resignação católicas explicam
bastante. Não a imaginem uma devota idiota de boa natureza.
Nada disso. A família, de brincadeira (espero), diz que eu a
comunizei, porque em 1964, pensando que o coronel Borges,
chefe de polícia de Carlos Lacerda, iria se vingar do picadinho
que eu fazia dele, na Última Hora, fui morar com ela uns
tempos. Me recebeu, em 1° de abril de 1964, de bandeira
nacional, o Brasil salvo dos comunistas; meu irmão, Paulo,
armado, porque o morro supostamente iria descer. Deixo à
imaginação do leitor minha cara. Acontece que nunca perco a
palavra e, na hora, descrevi, em linguagem leiga, o que Roberto
Campos ia cometer contra o país (em 1980, “se queres um
monumento, olha em torno”).

Começaram as perseguições e o que a Igreja chama de


carestia (digamos, a bem da justiça, o agravamento da carestia).
Lili percebeu tudo sozinha. O máximo que fiz, se tanto, foi
interpretar a maneira mistificadora de perpetrar o saque
“revolucionário”. E Lili era uma católica instruída. Estudou o
concílio sob Paulo VI e, particularmente, a encíclica O progresso
dos povos, sem falar da Ceiam, das falas de Dom Hélder
Câmara, etc. E no prédio morava Mário Martins, outro udenista
renascido para a realidade brasileira, em que todos votamos
senador na pseudo-eleição de 1966.

A mãe de Lili, minha avó Alice, tinha sido outro tipo de


católica. Seguia procissão (um baixo entre católicos informados)
com o mesmo entusiasmo que um advogado em início de
carreira (nos EUA, ao menos) persegue carro de bombeiro. Já
explico os motivos prováveis da carolice. Mal me lembro de
Alice. Morreu em 1940, de deficiência cardíaca. Achei
extraordinário que tomasse goles de champanhe, parte do
tratamento. No dia da morte, fui ao Cinema Pirajá ver Capitão
blood, Errol Flynn. Um cara queria que eu pusesse a mão dentro
da braguilha dele. Não entendi e mudei de lugar.

Um dos mitos mais resistentes no Rio, hoje nacional, é que


os cariocas sempre foram praieiros. Mil e uma lixeiras musicais,
pilhas de reportagens, etc. O Jornal do Brasil, no auge do
prestígio, década de 1960, fomentou-o mais que qualquer outra
força. E Copacabana se convertendo em favela do asfalto,
chegou a vez de Ipanema. De novo, hordas aspirando à vida
chique, empreiteiros escorados na liberação de gabarito no
governo Lacerda transformaram a região em “fezes e merda”,
apelido tirado de uma das ruas do bairro, Farme de Amoedo.

Se o mito encarnou em versão caricata, sempre foi falso.


Os bairros mais procurados no meu tempo de garoto, década de
1940, eram Flamengo e Botafogo, onde não havia (ainda) praias,
Laranjeiras e Cosme Velho. A maioria das casas de Copacabana
pertencia a estrangeiros, da Europa central, em particular. Os
ingleses preferiam Icaraí, em Niterói, onde morei dois anos e
onde Fred nasceu. Em Ipanema e Leblon, quase desertos, a
mesma coisa. Existiram pioneiros isolados, do Rio, na paixão
pela praia. Lembro logo Millôr Fernandes, Sérgio Porto, Yllen
Kerr, o grupo de Edu e Mariozinho de Oliveira (este de
ascendência parcialmente alemã).

Foram americanos e judeus que popularizaram


Copacabana, que inventaram a “princesinha do mar”,
publicitariamente. Os poucos judeus que o governo admitiu
(exigindo fiança de 400 contos, uma fortuna) se estabeleceram
no Leme, produzindo o trocadilho infame, Jerusaleme. E os
americanos celebrizaram o lugar. A partir de 1943, vinham
tropas dos EUA, rumo a Natal (em que “deixaram uma criança
debaixo de cada cama”), Recife e África. Não havia, convém
lembrar, jatos, ou aviões de grande autonomia. A rota Rio-Nova
York exigia parada obrigatória em Belém do Pará. No Rio, os
gringos se fixaram em Copacabana. Tornaram bares que não
existem mais, Albatroz e Alvear, e o decadentíssimo Alcazar
(onde se comia, na época, um dos melhores bifes da cidade) em
centros populares. As mulheres se atiravam sobre (sob) eles. O
amendoim torradinho subiu de 1 a 100 réis. A modernidade,
enfim: o entulhamento de gente em prédios irrespiráveis, o
congestionamento de esgotos, a inflação, pintaram a partir daí,
prenunciando o Brasil Grande.

Nós Heilborn íamos à praia, pegávamos jacaré de


prancheta. Meu primo Carlito fez nome deslizando em tarugos,
as ondas maiores e assustadoras de tempo ruim. Menos meu pai.
Preferia levar os filhos à praia do Russell, em verdade praça,
hoje sede do Blocão, da Bloch Editora. Ninguém suspeitava do
valor mais alto que se alevantaria sobre aquela plácida grama...
Grama se come.

Morávamos, então, depois de Botafogo, no Lido, Leme,


linha divisória com Copacabana. As senhoras de classe média
tomavam chá no OK, agora um botequim sórdido, como quase
todos na orla Leme-Leblon. As senhoras de sociedade preferiam
o Copacabana Palace, o único hotel internacional da cidade, dos
Guinle, e os senhores iguais comiam no Bife de Ouro, enquanto
na piscina se reuniam, à parte estrangeiros e paulistas ricos, os
jovens que quebrariam todos os bares quebráveis do Rio a
Petrópolis.

Uma das minhas vizinhas do Lido, Belford Roxo, era


Leonora Amar, estrela de cinema, que se tornaria Madame Du
Barry do México, sob Miguel Alemán. Gostava deste menino e
me levava à praia sob uma cacofonia de assobios e graçolas
incompreensíveis para mim. Pena que Leonora não fosse
chegada a criança, pedófila. Teria sido talvez um prazer e uma
nota biográfica lisonjeira.

Exagerei um pouco a ausência brasileira das praias.


Mineiros e paulistas gostavam. Estes ficavam mais no Hotel
Luxor, no posto 4, nos divertindo os paletós e gravatas que não
abandonavam no calor. O posto 4 e o 6 iniciaram a vida em
Copacabana, antes da malta. O 6, pelas águas mansas, tinha a
preferência de mamães e pimpolhos, e, claro, nosso desprezo; no
4 é que meu primo se exibia brilhante em jacaré de tarugos. As
meninas disputadas se chamavam Vivian, loura e olhos azuis,
Carmem, o nome diz tudo, e a rechonchudinha e gentil filha do
alfaiate número 1 do Rio, De Cicco, Nelly, paixão geral.
Desprezada, porque alta e magra, “nada de peitos e nada de
costas”, se falava, ninguém prevendo modas futuras, sem as
chamadas papas na língua, Danusa Leão, que, quando baixou o
new look de Christian Dior, tornou-se modelo dele em Paris e
durante anos foi pedida em casamento pelos intelectuais da
moda, que a celebrizaram em prosa e verso. E amigo íntimo
dela, outro “esquisito”, meu colega de Santo Inácio, implicante,
debochado e divertido, Sérgio Figueiredo, “esquisito” porque
não praticava jacaré, lia Gide e Variety. Sérgio é hoje um dos
assessores informais e amigos dessa mistura de Rasputin e
Macunaíma tecnocrático, o Dr. Delfim Netto.

Mas me antecipo. Meu pai pagou o catolicismo de Alice,


como paguei o nome americano de Fred. Alice teve o filho mais
velho, Carlos, e, depois, uma filha, Carmem. A menina morreu
na infância. Não acreditando que raio caía duas vezes no mesmo
lugar, superstição banal, Alice deu o nome de Carmem à filha
seguinte, também morta no berço. Apareceu Adolpho. Alice
prometeu a Deus que, se o poupasse, o filho andaria até os sete
anos de idade vestido de azul e cheio de cachinhos. As crianças
são o proletariado extremo, porque em qualquer classe social
estão sujeitas a caprichos humilhantes de adultos. Adolpho deve
ter ouvido incontáveis “viado” e “olha a bonequinha da mamãe”,
numa idade importante na formação emocional. Os nervos dele
eram vulneráveis. Desenvolveu o hábito de sonhar acordado,
vivendo muito de imaginação. Menino frágil, o único franzino e
de altura média entre os irmãos (cresci 20 centímetros acima
dele), filhinho de Alice, que se preocupava em excesso que
sobrevivesse, excesso que trai, em tantos casos, o desejo
inconsciente de que o protegido morra. A morbidez religiosa de
Alice dá base a essa conjetura. Não passa disso, conjetura. E
também, na minha experiência, filhos que vivem depois que
antecessores morreram não escapam de um ocasional
comentário comparando-os desfavoravelmente aos perdidos, o
que dói horrores em crianças e mesmo em adultos. Adolpho
precisava se provar em casa e no mundo. Na Escola Alemã, que
todos os meus tios freqüentaram, não escapou dos rigores
típicos, da palmatória à aridez emocional da “raça”, reforçadas
em casa pela distância de Paul e a obsessão de Alice que Deus
lhe perdoasse a morte das Carmens. Mais uma vez, especulo. O
assunto nunca desceu à terceira geração, o que só me faz
reforçar a especulação.

Paul, provavelmente, serviu de pai e mãe de todos,


deixando Alice entregue à religião, opiado não apenas do povo.
Os filhos mostravam a carência. Carlos, o primogênito, era um
secarrão, um rebelde, que, jovem, fugiu da escola, mandou-se
para os EUA. Começando de baixo na General Motors (a
mulher, Maria Luiza, lhe lavava o único par de meias todas as
noites), fez contatos e, no Brasil, converteu-se em bem-sucedido
homem de negócios, importador principal da Chrysler, etc.
Terminou até grã-fino, suspeito que relutante. Não consigo
lembrá-lo sem a boca franzida, “mantenha distância”. Apesar
disso e de um individualismo que alienou às vezes os irmãos, era
capaz de largesse afetiva. Foi um embutido emocional como
quase todos nós.

Adolpho, imagino, sofreu mais que ninguém essa ausência


de quem lhe entendesse o superávit de sensibilidade, de resto,
ainda na minha geração, considerado “coisa de mulher”. O
seguinte, Paulo Filho, se saiu melhor. Gregário, alegre, amável,
se abrasileirou fácil. Na família dele, mulher e filhos, um casal,
havia aquela beijocação, abraços, abertura, que, em boa parte,
nos faltavam. Um outro primo, adolescente, na presença de
estranhos, a mãe o esbofeteava. Paulo Filho, dado a esportes, da
diretoria do Fluminense, cartola de natação (a filha, minha prima
Cecília, foi recordista sul-americana de nado de costas em todas
as distâncias), abriu e assimilou o Rio para ele e descendentes.
Beijava Paul. Meus primos, Cecília e Walter, se dão e se davam
tão bem, que, adolescentes, saíam juntos, sozinhos, em
programas, quando se achava um dos baixos máximos irmão
acompanhar irmã, exceto se fosse proteger-lhe a “honra”.

Paulo Filho foi corretor de fundos públicos, posição de


privilegiados (“Ali Babá e os 40 ladrões”, o apelido desses
corretores). Sylvio, o único vivo, até mais ou menos aposentar-
se, era um cirurgião e clínico de prestígio, doutorado na
Alemanha. Sylvio, caçula, se trancava mais que os outros. Se
abria, em termos, conosco, a nova geração, nos mostrava as
mulheres de Vargas em Esquire, que assinava, mulheres que
hoje não excitariam um monge trapista, mas que no puritanismo
oficial estadonovista nos forneciam farto material de
punhetinhas. O chamado homme à femmes, que não resistem a
um tipo bonito e impenetrável. Casou-se várias vezes, teve
pencas de “casas militares” e terminou produzindo dois belos
filhos quando a maioria de nós já pendurou as chuteiras.
Lembro-me de um episódio: uma embaixatriz (no names, please)
atracou-se com uma jornalista (idem), por causa dele, no Metro
Copacabana, então bem freqüentadíssimo. Sylvio deixou-as
brigando e voltou para casa. O delegado (próximo, na Rua
Hilário Gouveia) mandou respeitosamente chamá-lo e pediu-lhe
explicações. Sylvio: “Devem ser doidas”. Fred e ele se pareciam
fisicamente, em certo período. Em verdade, somos irmãos
espirituais, ou “ferreiros”, nos cadeados que nos impusemos, ou
fomos, porque desbundei um pouco na promiscuidade de teatro
e jornalismo.

Lili, de tão reservada, chegou a criar problemas triste-


cômicos. Em dificuldades financeiras (de que não revelava a
metade) nos últimos anos, Carlito e eu praticamente tivemos de
forçá-la a aceitar um subsídio mensal, que ela recusou
persistentemente, até que falei: “Parece até que Carlito e eu
queremos roubar você”. E “roubamos”, sim, daquela dignidade e
repressão inculcadas na infância.

Não me entendam mal. Paul Heilborn não era um


ferrabrás, ou déspota. Foi cortês à européia e não à latina. Foi
honrado e justo pelas luzes dele. Tenho certeza que amava os
filhos, bem menos que me amasse. Acho que me considerava
um futuro marginal, pelos indícios que percebeu. Uma das
minhas primeiras memórias de infância, aos quatro anos de
idade, é de um banho de banheira, na casa de Paul, administrado
por Laudina, babá querida, uma preta velha (reciprocava,
estranhando à la “Mammy” de Scarlett O’Hara meus hábitos
alimentícios, resmungando: “Pão seco e água, Deus nos ajude”).
Aos quatro anos, não tolerava que me vissem nu3. Paul entrou no
3
Com 21 anos, fui preso em Recife, por “me expor nu” numa janela de
hotel. Fazia um calor infernal. Estávamos, uns seis colegas do Teatro do
Estudante, nus, ainda assim suando. Espiei da janela uma rua, feira de
banheiro. Me levantei da banheira, gritando: “Vai à merda, seu”.
Até hoje não me lembro onde aprendi a palavra “merda” e
significado. Paul, lívido, rodou nos calcanhares.

Meninos, nas reuniões familiares, nos obrigavam ao


paletó. Eu trazia, claro, mas só vestia comandado. No segundo
casamento de Adolpho, com Lourdes, “tia” (ela detesta
“madrasta”. Tem razão. É onomatopaicamente brutal. Pior é
stepmother, em inglês, que sugere pneu), na interminável
cerimônia católica daqueles tempos pré-concílio 2, induzi irmão
e primos a um pôquer de dados sobre um dos automóveis. Foi a
única vez que Paul me atingiu, fisicamente, de mau jeito. Me
arrancou os dados da mão, me espremendo os dedos, me
acusando, o mais jovem, do desrespeito. Certo, mas como ele
sabia? É interessante que aos 20 anos, comparando fotografias,
nos pareçamos tanto.

Paul era um alemão do século XIX, educado sob os


rigores de Bismarck. As diferenças entre famílias européias e do
Novo Mundo falado, ainda hoje, apesar da americanalhação
crescente e generalizada, são marcantes. Os pais europeus batem
nos filhos. Se privilegiados, mantêm distância deles. Lhes
impõem uma estrutura fixa e externa de comportamento que nos
parece ditatorial, na era do Dr. Spock.

Paul chegou adulto, formado, ao Brasil imperial. Meu pai


e tios receberam essa carga que contrastava chocantemente com
o informalismo e o derramamento brasileiros, do Rio em
particular. Se Alice não houvesse se ensimesmado depois das
Carmens é provável que um certo meio-termo entre o Velho e o
automóveis. Nenhuma presença feminina. Apareceu o anêmico de bigo-
dinho rente. O clássico exterior do lacaio que se converteu em “tira”
dizendo: “Esteje preso”. Éramos hóspedes oficiais do Estado. Nem cheguei
à delegacia, a prisão sustada pelo governador. Esses pernambucanos, hem,
aquela peixeira, hem, cala-te boca.
Novo fosse alcançado. Até minha geração pegou as sobras. Era
raro que nos beijássemos e abraçássemos, a família de Paulo
Filho sempre excetuada. Minha timidez levou a semigagueira,
mais um stammer, hesitação seguida de arranque ao falar, a uma
agressividade na qual eu tentava encobrir o desconforto em face
do brasileirismo de colegas e amigos, a que, talvez, eu gostaria
de ter podido aderir. Restam muitos reflexos. “Cenas”, fora das
artes, me reduzem a secura total. E me sinto sempre numa
espécie de exílio pessoal. Sou um estrangeiro nato.

Só no teatro pude baixar a ponte levadiça, aos 21 anos.


Ensaiando no pequeno Teatro Duse, de Paschoal Carlos Magno,
a voz me faltava, em potência, não indo às ultimas filas. Tive
medo do vexame em espado grande. No Teatro Amazonas, a
bela relíquia do tempo que Henry Ford quis nos desenvolver e
tungar a borracha, ao entrar em cena, nervosíssimo, ouvi voz
poderosa repercutindo e voltando das paredes do fundo. Levei
segundos a perceber que o som partia de mim. A catarse veio do
desespero, que é, de resto, donde deve vir. D. Esther Leão,
professora de voz, me disse, ao me ver no palco, ano seguinte,
que fui dotado de “impustção natral”. A palavra sábia de sempre
dos experts.

Em 1939, meu pai teve a última e uma das mais violentas


explosões com Paul. Decidiu deixar a Esso, onde a vida lhe era
mansa, e, repito, estável e garantida. Paul achou
irresponsabilidade. Estava certo. Adolpho não tinha cabeça ou
vocação para negócios. Bondoso, solícito, dispersivo, e, pior,
não era ave de rapina. Meteu-se em export-import4. Foi roubado
4
Um dos negócios de Carlos Heilborn, que importava Chryslers,
Plymouths e De Sotos. É claro que Adolpho pensava provar-se igual ao
irmão, o que é rotineiro.

Quanto a mim, num tempo em que só ricos tinham carro, provei cedo
as supostas delícias dessa engenhoca: o carro, o instrumento mais anti-
por sócios inescrupulosos; várias tentativas fracassaram porque
fracassaram. Em parte isso se deveu a que não sabia jogar
pesado. Em parte. O fato também é que não conseguia se
concentrar num trabalho que lhe exigisse decisões. Faltava-lhe
confiança em si próprio. Sobreviveu sempre, enquanto pôde
trabalhar, mas sem o sucesso esperado. Preferia ler poesia
romântica, escrever “pensamentos” líricos, sonhar acordado;
dançar (sic, ver adiante), suprindo em fantasia o que a vida e ele
próprio lhe negaram.

Quando pude analisá-lo, pós-Dostoiévski, deduzi que era


incapaz de dominar o mínimo de realidade, que, a um preço,
distingue os fortes. Não é crítica, é registro. Amei-o à distância.
Irracionalmente, juntos. Os motivos se tornarão claros, não
resistia à compulsão de ridicularizá-lo, de contradizê-lo, às vezes
com bastante crueldade. Me amaldiçoava por essa ignomínia,
que repetia no próximo encontro, isto quando ele já estava
morrendo lentamente de câncer no pulmão, a carne queimada de
cobalto. Depois do que sabemos de nós mesmos não há perdão.

Adolpho sofreu a vida toda porque não foi bem-sucedido


como os irmãos. Não tinha motivo concreto. Minha mãe (e

social, excluídos os artefatos militares, já concebido pelo homem.

Provocava, o diabo, pasmo das massas. Sylvio, proprietário de uma


baratinha Chrysler, lateral de madeira, era um ímã de mulheres (à parte o
resto que tinha a oferecer, naturalmente). Deve ter sido um dos inspiradores
do estribilho da marchinha “Eu quero ver é a pé”.

Carlito era e é capaz de montar e desmontar um carro a mão. Fred, a


primeira vez que pegou volante, subiu o Sétimo Céu, cheio de curvas,
guiando sozinho. Paulo, o irmão mais moço, tem a habilidade de Carlito e
pensou seriamente em ser corredor profissional. Eu sempre achei automóvel
sujeira, apesar dos confortos. A vista de um motor me dá misto de sono e
engulhos. Guio, se não me obrigarem a estacionar e não for em estrada.
Digo que é a vista, ruim. É inapetência total.
Lourdes), Fred e eu nunca reclamamos. Morávamos em
conforto, os filhos estiveram nos melhores colégios, viajaram
cedo ao exterior (nos anos 50 privilégio de ricos), nada nos
faltou, em suma. O problema não era esse. A explicação virá em
tempo. Sou obrigado a plantar o terreno.

Osny Duarte Pereira, bom amigo, jurista, se referindo a


duas clientes que preferiram viver em semimiséria a dividirem
uma herança, não chegando a acordo, me disse que a burguesia
se cria dificuldades imaginárias. A palavra está certa, mas Osny,
marxista, é culpado de um certo reducionismo.

Os problemas são imaginários apenas na aparência. É da


condição humana cismarmos irracionalmente em certas atitudes,
ou assim parece ao observador superficial. A cisma é um
disfarce, um substituto (imaginário) do que realmente nos aflige,
nos aflige tanto que não ousamos sequer trazê-lo à consciência.
A expressão psicopática disso é a paranóia. “Eu amo ele” se
converte em “ele me odeia”, na análise que Freud fez do
antagonismo de Otelo a Cássio (em Shakespeare, não em Verdi).
Me parece correto, ainda que em alguns casos sexo não seja a
força motora principal dessa inversão: se bem que acredito,
seguindo Freud, que sexo, a origem da vida, em última análise,
permeia todos os nossos atos, pensamentos e sentimentos. Que
alguém duvide disso, desculpem a franqueza, me confirma a
inteligência budista, que considera a burrice pecado mortal. As
“irmãs” de Osny certamente encontraram na herança o proscênio
visível, tolerável, de algum drama afetivo inadmissível, da
mesma forma que Desdêmona paga pelos complexos
sentimentos de Otelo por Cássio. Resumindo, acho que minha
família paterna sofreu apenas as fisgadas e flechas de um destino
ultrajante, o que é comum a todos nós, e acho também que
Shakespeare aqui é pleonástico. Prefiro Waugh, apesar do ranço
católico: “Qualquer destino é pior que a morte”. O anticlichê
sutil da frase se perde um pouco em português.

O destino pior que a morte, em inglês, no vitorianismo, era


perder a virgindade sem casamento. Mas a frase é boa assim
mesmo.

Os Heilborn não foram tema de escândalo (escorregamos


em particular). Os homens atingiram eminência e sucesso,
exceto meu pai que, inadequado para a vida prática, nem por
isso nos privou das vantagens iniciais dos outros primos. Meu
tio Carlos, que envergou a armadura e a maça do homem de
negócios, não teria sido capaz de bajular ministros, oferecendo-
lhes comissões, mulheres (ou rapazes), em troca de assalto ao
Banco do Brasil e quejandos. Gente honrada. Um conceito
burguês, irrelevante, a meu ver, mas eles acreditavam e
cumpriram. E classe, noutro sentido, não lhes faltava.
Impossível imaginar Sylvio, no donjuanismo, plantando notícias
de “feitos” em colunas sociais, ou bazofiando em botequim. Um
gentleman não faz isso, ponto. Tinham e nos legaram horror à
cafaj estada.

A família de minha mãe é igualmente discreta. Francesa


de origem, Trannin. Há dúzias de Trannin no catálogo de Paris.
Meu ramo é de Friburgo, estado do Rio, e soube, recentemente,
“pesquisando” este livro, que se espalhou ao Paraná e Mato
Grosso. Uma constante na família é a preferência pelo campo à
cidade (sinto ocasionalmente solicitações que presumo atávicas).
O folclore é que os Trannin vieram a Friburgo (de Paris)
explorar o “bicho-da-seda”. Os exportadores ingleses teriam
queimado tudo, obrigando-os a recomeçar a vida. Os ingleses,
no século XIX, representavam na demonologia brasileira o papel
dos americanos hoje em dia (os alemães-ocidentais serão os
próximos?). Eram, sem dúvida, os “amigos” a quem
exportávamos produtos primários e a quem devíamos os
proventos das exportações, e que nos forçavam déficits
comerciais e endividamento permanente. O modelo Campos-
Delfim, longe de ser criatura do golpe de 1964, é da essência da
nossa História escrava. Mudam as casas-grandes. Trocam os
capatazes e métodos, “abordagens”. A senzala continua, se
consolando em fantasias e circo. Se o folclore é verdadeiro, os
Trannin, imigrantes, formam entre os pioneiros da
industrialização nacional, ainda que tubulassem.

Minha mãe e irmãos tiveram o azar de ficar órfãos,


crianças. Por que órfãos eram (são?) maltratados? Imagino que,
indefesos, excitem o sadismo impune de adultos e das outras
crianças que se sentem protegidas. E deve haver a componente
de baixa religiosidade que responsabiliza as crianças pela morte
prematura dos pais. Irene, Luiz, Almir, Dulce, Orlando e
Euclydes foram distribuídos por parentes, recebendo tratamento
variado. Nunca se queixaram de nada, diante de mim, ao menos.
Almir (morto) fez uma carteira de seguro bem-sucedida. Dulce
casou bem e é avó. O casamento de Luiz e Zillah desafia os
autores de réquiem dessa instituição (ou sacramento, se
preferirem). Todos trabalharam pesado e se sustentaram.
Excetuando Orlando, solteiro, continuaram a família. Também
eles respeitaram os valores da classe média.

Irene era bonita, um tipo Degas, talvez algo semítico, o


que Degas, anti-semita furibundo, não me perdoaria.

Há um mistério aqui. Os Trannin que conheço (nem um


décimo) são católicos. Os Heilborn também (menos Paul, que
morreu luterano, e alguns outros que aderiram ao babalaô
espírita ou seitas protestantes). Mas sei de tios-avós maternos,
que mal lembro, chamados Moisés e Davi, o que, diria Lênin,
não deve ser acidental. Orlando tio, “Doca” (não Street, pelo
amor de Deus), filossemita convicto, afirma que os Trannin são
de ascendência judia, que a família é de origem italiana, Trani, e,
na França, traduziu-se em Trannin. Me orgulharia partilhar a
raça (que não existe, cientificamente, claro; o vulgo no entanto
acredita que existe, logo, existe na “cabeça” da maioria) de
Freud, Marx e Trótski, influências decisivas na minha vida. O
que me parece implausível é que os Trani, segundo Orlando,
tivessem deixado a Itália por perseguição religiosa, já que a
Itália, ao contrário da França, e me baseio na autoridade de
Hannah Arendt, apresenta honroso prontuário de anti-anti-
semitismo. Até Mussolini, exceto nos últimos tempos, quando se
tornou mero títere de Hitler, dava fuga aos judeus, escondendo-
os na Riviera italiana. Se não bastasse o mistério Trannin, vejo
no catálogo de Nova York dezenas de Heilbroner, judeus,
inclusive um amigo admirado, Robert Heilbroner, o mais
razoável e legível dos economistas modernos.

Fica a anotação, que desenvolverei no próximo capítulo,


explicando minha brasilidade, ou falta de. Decidi passar em
revista as origens familiares porque até amigos íntimos, não de
infância, me perguntam sobre minha ascendência, se, inclusive,
nasci na idolatrada, salve, salve.

Houve um tempo que corria o boato que eu era austríaco,


esse inventado e alimentado pelos galhofeiros de O Pasquim. Na
primeria cana, me apelidaram Francis de Orleans e Bragança...
Na visita de Carter ao Brasil, em Brasília, um jornalista que
respeito, avis rara, disse que me supunha israelita. Sou mesmo é
um dos remanescentes dessa espécie quase extinta, o carioca, e
nas raras reuniões em que encontro apenas semelhantes, rimos
bastante do que os acariocados mineiros, espírito-santenses,
paulistas e nordestinos dizem da nossa cidade, que eles, os
acariocados, tomaram, sem dúvida, e pela qual falam com a falta
de autocrítica peculiar a conquistadores.
Estou ciente também que meu possível judaísmo ancestral
reabastecerá gostosas ilusões dos bravos sionistas brasileiros, a
turma do “daqui não saio, daqui ninguém me tira”,
inconformados com as minhas críticas a políticas do Estado de
Israel. Concluirão que não passo de judeu renegado, que
descarrega o ódio às origens em anti-semitismo. Certos judeus,
stalinistas e homossexuais partilham a alucinação de que
ninguém pode criticá-los porque merecem. Não acreditam em
Hamlet que disse: ninguém escaparia do chicote se recebesse o
merecido. Judeus invocam o anti-semitismo, que, na religião
deles, faz parte da natureza (sic) do gentio. Stalinistas falam de
“interesses de classe”, ou pior, nas esquerdas, de
desviacionismo. Homossexuais pretendem que heterossexuais
apenas fingem interesse em mulheres, não tendo coragem social
e moral de aderirem ao “espada a espada”. Paranóicos, é
verdade, também têm inimigos verdadeiros, agora “também”
não quer dizer “tudo”. A superioridade moral do perseguido é
tão discutível quanto a do perseguidor. Negros que se queixam
da escravidão esquecem convenientemente que outros negros
vendiam os escravos que os árabes revendiam aos brancos.
Vemos o que os israelenses fazem aos “judeus” deles, os
palestinos. Os stalinistas, 1980, deram mais, de sobra, do que
levaram. Homossexuais, onde podem, nos EUA, por exemplo,
querem rasgar a Constituição (que os liberou, legalmente, até
certo ponto; o resto é resistência extralegal), se a liberdade de
crítica é estendida contra eles. É uma tragicomédia. Rio pouco e,
francamente, a tragédia me impressiona menos, hoje, do que a
repulsividade intrínseca dessas manifestações de irracionalismo.
Vitimização profissional é um nojo.

Fui o filho preferido de Irene. Gorduchinho, sempre no


colo, enquanto deu pé, sorridente (...), e Fred, ao lado, chorando
de frustração (fotografias, como avisa laconicamente o teletipo
da UPI ao sumarizar as notícias importantes do dia).
Companheiro diurno inseparável. Ouvimos seis novelas da
Rádio Nacional, juntos. Lembro bem a voz de Ismênia dos
Santos, que sugeria um físico de Jean Simmons (primeira paixão
cinematográfica). Levado à ópera criancinha, Madame Butterfly
(Grace Moore), deslumbrado ao primeiro contato, o que persiste,
em 1980. Mudaram os compositores. Hoje, só o último Verdi,
Wagner e Richard Strauss (dois seres humanos e “pensadores”
odiosos) tocam forte naquelas cordas vibradas 43 anos atrás...

Irene às vezes chorava, em silêncio, na minha companhia.


Ouvi-a dizer, muito, a frase mais comum da humanidade:
“Como sou infeliz”. Eu respondia carinhoso, presumo, não
lembro, sem entender nada, o que lembro.

Dei ratas. Um dia na Drogaria Pacheco (“mais em conta”,


me fascinavam os remédios descendo à la Tarzan, em cordas, ao
freguês), o caixeiro perguntou: “E a senhora vai bem, não é, D.
Irene?” O nosso coloquial é repeticioso e reafirma sempre
nossas ansiedades (“fulano não está, não?”). Irene: “Bem,
obrigada, e o senhor?” Franz: “Ué, como é então que você diz
em casa que é infeliz?” Irene enrubesceu e me fez um “shsh”
delicado. Enrubesci eu. Enrubescia à menor crítica dos amados.

Caixeiro “não ouviu”. O serviço no Rio, naquele tempo,


era um prodígio de amabilidade. O próprio Rio, que não existe
mais, tinha uma fidalguia fraterna, se é que as palavras
conjuminam. Sei que parece incrível, em face do presente. E
friso que falo dos anos 30 e 40 e não do tempo de Machado de
Assis ou João do Rio. Hoje, a miséria, em guerra civil não
declarada, nos ataca de um flanco. Do outro, enfrentamos a
brutalidade, a ostentação dos beneficiários e produtores da
miséria.
A infelicidade de Irene. Ela não sabia que felicidade é
apenas aspiração consoladora de leitoras de Cláudia. Terminou
órfã, na tutela de um tio materno, Álvaro da Matta. Na casa dele,
na Rua Benjamin Constant, namorou o vizinho Adolpho,
separados por um muro. O velho da Matta, quando o conheci,
digo, já capaz de julgar comportamento, me sugeriu uma dessas
personagens adultas de Dickens ou Brontë (Charlotte), cujo
prazer na vida é maltratar crianças. Se falasse inglês eu
acreditaria em reencar-nação literária. Não é bem assim, me
garantem tios sobreviventes, um dos quais no entanto, também
sob da Matta, fugiu de casa... Álvaro teria sido honrado, pelos
critérios dele. Himmler também foi, claro. Desmaiava ao ver
sangue, ia às lágrimas ouvindo Mozart, vomitando ao sentir o
cheiro das pessoas que enfiara nos campos de concentração e
extermínio. Uma alma sensível. Enfim, escrevi coisa semelhante
de Paul Heilborn, logo não vou negar o beneficio da dúvida a da
Matta, a quem não experimentei na pele.

De qualquer forma, Irene, sob o estigma da orfandade,


reprimiu uma natureza passional que só lhe permitiam expressar
em submissão, doçura, meiguice: pelas regras da época,
mulheres da classe dela (e de todas, em graus variados)
“deviam” apenas esperar casamento, maternidade, a gerência do
lar. E qualquer faísca de revolta, aposto, da Matta apagaria
impiedoso.

Irene, se vivesse, estaria na idade da minha colega de


colunas radicais na Última Hora, Adalgiza Nery, que morreu
quando eu escrevia este livro. Adalgiza é uma das poucas dessa
geração que fugiu do cricri (ou, abaixo, do papel de
“doméstica”). Mas Adalgiza, à parte a vocação permitida (em
termos) às mulheres de escrever, na oposição formou
personalidade imperiosa. Belíssima, na juventude, percebeu e
usou o poder do eterno feminino, que tanto preocupou Goethe.
Fez muito bem. E, incomum em mulheres (particularmente nas
feministas oficiais), desenvolveu uma cabeça política. Apesar
disso, a última vez que a vi, ela cassada, comovida que me
solidarizasse (formamos no jornal uma sociedade de admiração
mútua, pela nossa resistência conjunta — espontânea — à tutela
do PCB), me contou de entraves e humilhações no início da
carreira, inconcebíveis se fosse homem. É uma confidência que
não vou revelar. Nada tem a ver, aviso aos maliciosos, com o
casamento de Adalgiza e Lourival Fontes, melhor conhecido da
maioria dos brasileiros como “aquele homem que não penteava
o cabelo”, e Goebbels (Lourival foi chefe de censura e
propaganda do Estado Novo, DIP) sem talento aos politizados.
Em algumas pessoas, a tirania do convencional estimula à
revolta. A maior parte se rende ao que Thoreau chamava de
“quiet desperation”, um desespero quiescente, nem por isso
menos sofrido.

Irene era das últimas. Nenhum sinal da têmpera de


Adalgiza. Recebeu pouca educação formal, considerada “perda
de tempo” no feudalismo masculino-católico brasileiro. No meu
tempo de adolescente é que apareceram, como grupo, as
primeiras gatas-pingadas nas universidades, e gente de classe
alta, em geral. Acho que a orfandade e a cabeça estreita de da
Matta formaram minha mãe. Ficou, de pessoal, a ternura infinita
de que fui o principal recipiente. Tinha um mínimo de amigas
íntimas. À parte uma irmã querida, Dulce, só lembro uma certa
Alice, solteira, de quem um dia, pela fresta da porta, vi as
pudendas, quando fazia pipi num pinico. Pudendas não eram
nota 10. Sei que minha mãe admirava (elogiando para mim) as
cunhadas Zillah e Lili, mas a timidez de Irene impediu,
provavelmente, aproximação maior. Os Heilborn reclamavam
que ela não falava, talvez porque, timidez já incluída, eles não
deixassem ninguém falar, do que me acusam amigos, hoje; com
razão?

Irene se sentia atraída pelas artes. Certo, gostava de


abominações, A. J. Cronin, A lenda do beijo e Num mercado
persa. Achou Stefan Zweig cruel (se lesse um dos filhos...). Mas
acompanhávamos aos domingos, 5 da tarde, a ópera completa da
Ministério da Educação. Ouvimos atentos as aulas de Ayres de
Andrade sobre piano, ilustradas por Rubinstein em Chopin,
Gieseking, nazista (a inteligência média de músicos é
comparável à de profissionais de tênis), na sutileza nunca
igualada em Ravel e Debussy; Casadesus, etc. Ouvi na
Ministério o Tristão de Lauritz Melchior e Kirsten Flagstad.
Quando rapidamente, pré-golpe de 1964, fiz comentários
políticos na Rádio, ofereci ao discotecário três Tristãos. Bõhm,
Von Karajan e me esqueço o outro, em troca da preciosidade
ortofônica (42 discos, se não me engano) de Melchior e
Flagstad. Neca. Flagstad tem quase uma equivalente, hoje, Birgit
Nilsson, que, aos 61 anos, é capaz de fazer a sofisticada platéia
de Wagner em Nova York entrar em rugidos animais que me
assustam, apesar de que partilho. Quebraram a forma que
produziu os sons másculo-celestiais da garganta de Melchior,
reduzido, no fim da vida, a banalidades de musicais da MGM, a
duetos com Kathryn Grayson e Jane Powell...

Minha mãe se horrorizava em face da amoralidade pagã de


Wagner. Preferia o óbvio, o Verdi menor, Massenet,
Charpentier, Saint-Säens, algum Puccini (não a melhor,
Turandot, ou a selvagem Manon Lescault). Havia exceções
reveladoras de potencial subdesenvolvido. Apaixonou-se pelo
Otelo, do Verdi maioríssimo, que bate em efeito no palco o
original de Shakespeare, talvez por ser, como observou Robert
Lowell, mais vulgar que Shakespeare (a peça é inacreditável,
literalmente. Aquela besteira do lenço se resolveria em cinco
minutos. É música poética, certo, que tocada certa nos suspende,
temporariamente, a incredulidade. Logo, argumenta Lowell, por
que não música-música de uma vez?). E se extasiava em
Chopin, Schumann, Brahms, Schubert, os românticos. Em
música descobriu a saída das austeridades confinantes em que
foi criada. Me diz mais dessa criação, do que informação de
terceiros, que nunca aprendesse piano, “prenda” acessível a
tantas mocinhas casáveis na época.

Adolpho casou por amor. Irene, não sei. Certamente


gostava dele. Acho que amor só deu a mim, que retribuí, até que
me fez, ou não impediu, o mais provável, um Otelo. O problema
é que Adolpho e Irene foram emocionalmente esfaimados na
infância. Se atrofiaram em inibições. Cabia a meu pai, o Senhor,
fazê-la dar-se, abrir-se. Não conseguiu, ou não tentou. Se
habituara demais a viver de fantasias. Recolhia-se, e Irene, na
prisão feminina do tempo, não ousaria tomar a iniciativa. Nunca
houve, bem entendido, uma palavra rude entre os dois, ou
desentendimentos profundos, na minha presença ou ciência.
Adolpho provia e socorria nas horas necessárias. Sentíamos,
Fred e eu (e, imagino, Irene, quanto, sem jamais falar no
assunto), a barreira que ele estabelecera contra o mundo.

Não quero exagerar. Adolpho nos levava, meninos, à praia


da Urca. Nos ensinou a nadar. Fingi que aprendera antes do
tempo, ele fingiu acreditar e, um dia, me surpreendi nadando,
aos cinco anos. Havia piqueniques de família, em Paquetá, na
serra de Petrópolis, etc. Fomos a feiras internacionais, no Rio,
onde, uma vez, Carlito ganhou primeiro lugar na corrida de
automóveis de criança, eu a tiracolo. E Adolpho nos introduziu
ao futebol. Botafoguense doente. Fred, idem, desinteressado.
Sócio inscrito do Fluminense (onde treinei natação sob
Caximbau. Desisti porque chatíssimo), vi meu primeiro Fia x
Flu. Pirilo passou a bola a Zizinho e me tornei Flamengo eterno.
Perdi os modos e, na típica tradição flamenguista passional,
descarreguei “merdas” e “viados” sobre o adversário, aos gritos,
esquecido de que estava na social dos ditos “ms” e “vs” Só não
apanhei de flus idosos porque menino de sete ou seis anos.
Limitaram-se a me lançar repetidos “cala a boca, moleque”, ao
que respondia “é a mãe”. Não há dúvida de que nasci
Flamengo...

Víamos Adolpho relativamente pouco. Pela manhã, no


café, resolvendo satisfeito as palavras cruzadas do Correio da
Manhã; abusando um tanto de geléia, em que não toco nunca.
Em 1967, um dos editores do Correio, resolvi suspender as
“cruzadas”, que achei debilóides. Desabaram protestos de
leitores na diretoria. Niomar, a proprietária, me mandou repô-
las. Escrevendo agora me pergunto se não caí inconscientemente
numa tola vingança edipiana. A noite, Adolpho reaparecia, em
passadas largas, próximas do andar de Groucho Marx, nos dava
“buenas” (sic) e se dirigia ao banheiro, antes do jantar, lavando-
se e se exibindo diante do espelho. Era vaidoso. Tinha, em
aparência, 10 anos menos que a idade, os matusalênicos 40 anos
de que essas cenas me voltam à memória. Não se envolvia no
cotidiano dos filhos, exceto em emergências e entretenimento de
fim de semana, nem se esperava isso de um pai de família
burguês. À vontade literária, irrealizada, juntava a Ciência
Cristã. Essa seita, fundada por Mary Baker Eddy, americana,
pressupõe, entre outras coisas, que males físicos ou mentais
decorrem de maus pensamentos, pecados, “más vibrações”,
diriam os meninos de hoje. Adolpho se gabava de me haver
curado de uma febre, antes de um piquenique, exercendo rezas
do credo. Não me lembro de febre ou cura.

A Ciência Cristã é a causa ostensiva de nossos conflitos. E


apressou a morte de Adolpho, em 1973, aos 74 anos. Ele tinha
uma constituição forte, a exemplo de tanta gente franzina. A
recusa de recorrer a médicos, já doente, pressão altíssima,
complicações variadas, inclusive insultos cerebrais (de que
reemergiu incólume), um mal de pele horrível no rosto (que um
antibiótico sabido eliminaria de vez) e, finalmente, o câncer no
pulmão; à exceção deste, quase sempre incurável, o resto teria
sido controlado pela medicina. Jean Harlow, bem mais jovem,
morreu de doença curável no rim, pelo atraso da mãe dela,
“cientista”, em chamar um médico. Deve haver dezenas de
outros casos. Onde está a polícia?

Antes de explicar nossos conflitos, algumas opiniões sobre


a Ciência Cristã. Me dei ao trabalho de inspecionar as obras de
Eddy. São, numa frase caridosa, mistura de budismo
incompreendido e Coca-Cola. Ninguém nega, ou negava, ao
menos depois de Charcot, no século XIX, a componente
psíquica possível em doenças fisiológicas. Daí a reduzir todas as
panes do organismo ao chamado psicossomático, sem falar da
decadência que leva à morte, à mera ação moral, é patético. E
moral é uma palavra que exige rigorosa definição contextual.
Em miúdos, nada significa exceto dentro de um todo histórico,
sociológico, econômico e psicológico. Fico no último, porque
não pretendo escrever ensaio sobre tal banalidade.

Desde Freud e Janet, é óbvio que o ser humano não é


senhor sequer da própria cabeça, que nos movem impulsos e
desejos de que não temos consciência. Logo, na melhor das
hipóteses, “moral” é um conceito que precisa ser conquistado
(criado) à custa de imenso esforço de autocrítica e crítica das
forças externas que nos moldam a existência.

Eddy é a típica otimista idiota da classe média americana,


que leva Gabriel Kolko, o historiador, a palavras menos
publicáveis que a complexa sintaxe que usa nos contando a
História subterrânea dos EUA. Eddy acreditava em “moral fixa”,
transcendental. Não é nisso diferente de outros líderes religiosos
e pensadores idealistas que imaginam este mundo, o único de
que dispomos, um passatempo em face do eterno que nos espera.
Agora, se Platão ou Santo Tomás (assessoria de Aristóteles) nos
afirmavam dogmatismos de essência, na prática as escolas que
orientaram se mostram flexíveis e adaptáveis às circunstâncias.
Eddy se poupa essas dificuldades “materiais”.

É uma das precursoras do narcisismo consumista já


referido. A “Ciência” talvez tenha sido pioneira em oferecer
salvação sem dor, na linha dos pseudocultos do nosso tempo, tão
do agrado de jovens que procuram conforto espiritual
permanente, sem enfrentar o que Joyce chamava o pesadelo da
História. Acontece que esse pesadelo não acaba e termina nos
alcançando acordados.

Eddy batoteou os trechos das Escrituras, que afirmam o


efeito maléfico do que chamarei estenograficamente “pecado”
sobre nós, e propôs que em sessões coletivas de “boas
vibrações” e rezas encantatórias os fiéis encontrassem paz,
felicidade, etc. enquanto se preparavam para um além em que
esses objetivos se eternizassem. Se não fosse a guerra que
moveu contra a medicina, a “Ciência” seria somente um placebo
a mais na longa história do babalaô. Eddy morreu rica e cercada
de médicos, o que Stefan Zweig, entre outros, demonstrou numa
biografia arrasadora, que Adolpho se recusou a ler.

A “Ciência”, repito, pedindo um pouco de paciência aos


leitores, me fez explodir contra meu pai. Não vou antecipar.
Basta dizer por enquanto que nunca o odiei, conscientemente, e
acredito que não tinha a menor intenção de provocar o mal que
nos trouxe a todos, a ele próprio inclusive, não só no que relatei
acima. Aguardem e verão. Ainda assim, acho também que
somos, em parte, responsáveis pelos nossos atos. E minhas
reações irracionais contra Adolpho vieram desse aborto religioso
dessa mulher safada.

É minha última digressão neste capítulo, necessária porque


a “Ciência” é desconhecida da maioria no Brasil e, sem entendê-
la, o que veio depois pode parecer ainda mais grave do que a
realidade que marcou Adolpho, Fred e eu.

Adolpho, cumpridos os deveres familiares, com a retidão


Heilborn, recaía na adolescência, aos 40 anos. É mito que as
mulheres sofram exclusivamente a menopausa. Tecnicamente,
sim; na cabeça o sentimento é bissexual. Carlito gozava
(amavelmente) o pai quando este se dava a desforços juvenis,
“Olha aí, vai estourar, vai estourar”. É profunda ofensa a um
homem que as meninas o chamem de coroa. Aos 28 anos, levei
namorada de 18 a matinê de Alda Garrido, de que eu, crítico de
teatro, perdera o espetáculo de estréia e precisava comentar. O
teatro (Rival) estava fechado, sei lá o motivo. “Boa”, disse,
“assim podemos ir ao Odeon (um cinema na Cinelândia, Rio),
que há uma reprise de Gavião do mar, Errol Flynn é ótimo”. Ela:
“Quem é Errol Flynn?” Se fosse chegado a chiliques, teria tido
um. Pela primeira vez na vida me dava conta na carne que
gerações mais jovens erguiam a cabeça (no caso, apenas no
sentido físico da palavra). Errol Flynn foi, por assim dizer, o
meu mais querido amigo de infância.

Adolpho era uma Eliza Doolittle, de calças compridas.


Poderia ter dançado a noite inteira como a moça de My fair lady.
Saía sozinho à noite, a dancings, e furava cartão. Nada mais. Se
lhe ocorria, claro, a idéia, garanto que não mijava fora do
penico. Irene contava, divertida, que às vezes ele se despia
dançando e punha o pijama dançando, cena que caberia em
comédias ligeiras de Hollywood.
Minha mãe era minha vida. Escrevo a frase, paro e pasmo,
em face desse clichê, no nível de “agora que já conhece o
caminho”. Mas não minto e o lugar-comum sentimental não é,
invariavelmente, atestado de falsificação. Vivia grudado nela,
enquanto pude e me permitiram, sem qualquer outro interesse.
Uma nota dissonante ou complementar. Depois de Laudina, tive
uma babá também chamada Irene. Me introduziu ao sexo, aos
cinco anos. Não que eu soubesse aonde me levava. Ia. Saias
adentro, apalpadelas, até a “zona do agrião”, quando a defesa se
fechava inexpugnável. Acontecia “qualquer coisa” dentro de
mim, o clímax, nunca me ocorreu analisar. Gostava e pedia
mais. Recebia, nos limites “convencionados”.

Irene mãe e eu passávamos os verões em Friburgo. Revia


parentes, imagino, e se ocupava de mim, dia e noite, sozinhos.
Fui leitor de Cláudia, realizado... Queria me mostrar, fazer farol,
se dizia. Tombos vários de bicicleta não me impediram,
“macho”, de aprender. Os moleques instrutores, voz baixa,
afirmavam, “Esse cabrão é fogo na roupa”. Imaginei que
“cabrão” fosse elogio e inchava. Se soubesse o sentido (viado) e
que me contestavam a competência, com razão, aliás, é provável
que reagisse à la Paulo Francis, que, a exemplo de Alien, o
oitavo passageiro, estava dormente apenas. Ciúmes ferozes. Um
certo Fábio nos perseguia, gentil, atencioso, o chamado “come
quieto”. Dei-lhe um pontapé, ao primeiro e último afago. Sei que
doeu. Sempre tive pé de prancha e mirava na canela.
Adolescente, um dia vi Fábio, bem velho, em Botafogo. Não me
reconheceu, claro. Cheguei a fechar a mão. Um malandro,
Pedrinho, assassino (deve continuar na cadeia, pegou três
sentenças máximas), meu admirador confesso (?), disse: “Ô
França, tu qué acertá esse cara, né? Deixa comigo que eu corto
ele, não te mete nisso que tu é bacano”. Declinei o amável
oferecimento. Duvido que Irene tivesse dado a Fábio. Nenhuma
restrição moral (ciúme é outra coisa). Apenas não fazia o gênero
dela.

Desafiando o bom senso (velho hábito), me enchia de


maçãs ácidas, que me punham na cama, alergia, coberto de
urticárias, menos o rosto. Recuperado, recaía. Adoro o diabo da
maçã, que é meu “café” em Nova York, hoje sem
conseqüências. Me ocorre que agüentava a urticária porque
mantinha Irene prisioneira no quarto, me consolando. Crianças
são insaciáveis de carinho. Gatos exigem menos e, em
retrospecto, dão mais.

Enfeei. O começo foram os óculos. Uma noite, no campo


do Botafogo, vi as luzes dobradas. Estrabismo, corrigível,
corrigido. Se diz que é sinal de gênio. Gostaria de acreditar, mas
me lembro dos confúsos sinais de tráfego do Sr. Júnior (R.
Magalhães) e concluo que é confortadora superstição. O oculista
descobriu também hipermetropia (vista cansada) e astigmatismo.
Uso óculos desde os sete anos. Nem os sinto mais, certo, e
recusei lentes de contato, a que me adapto bem (antes das
“quentes” inclusive). Não vou mudar a cara a essa altura dos
acontecimentos. Sou capaz de cruzar ruas sem morrer
atropelado. Distingo tudo, imprecisamente. Dez graus em cada
olho. Há quem tenha 20. Joguei futebol, briguei e apareci no
palco sem óculos.

Ainda assim, é um handicap sério e me sinto roubado. Nos


tempos de febre intelectual dei com A arte de ver, de Aldous
Huxley. O argumento é irrefutável. Os oculistas nos impõem
muletas, os óculos, e fica por isso mesmo. É como se alguém
quebrasse a perna e vivesse permanentemente no gesso. Não se
pesquisa cura das doenças. Huxley elogia um certo Dr. Bates,
que criou exercícios de recuperação, que lhe melhoraram, a
Huxley, a quase cegueira (ele tinha opacidade na córnea, o que é
muito grave). Não haveria jeito de curar miopia, vista cansada e
astigmatismo? Ninguém sabe, porque os oculistas, que
pedantemente preferem o título de oftalmologistas, são dóceis
servos dos fabricantes de muleta e a perpetuaram. É um dos
setores mais atrasados, se não o mais, da medicina. Dentistas nos
reimplantam uma dentadura “natural” (na Califórnia, Hollywood
em particular, é rotina aperfeiçoadíssima). Há, em alguns casos,
transplantes bem-sucedidos de córnea, mas são exceções que
confirmam a regra de subserviência à indústria ótica.

Precisamos de 50 mil velas, um sol normal, para ler sem


esforço. Aumentou a alfabetização e o comércio de muletas,
porque rara é a casa, ou cubículo, adequadamente iluminados.
No hotel de Niemeyer em Ouro Preto, passei lá dias em 1958,
puseram a luz do banheiro embaixo da pia, tornando impossível
uma barba decente. Depois de descompor com a delicadeza
habitual a gerência, me queixei a Oscar, em pessoa. Ele culpou o
construtor, que respeitara apenas o risco do prédio. Se Oscar, a
quem todo mundo e “o mundo” ouvem, não pode, quem há de?
Os oculistas deveriam estar nos balcões das óticas e não posando
de doutores. Nos EUA, de resto, qualquer ótica poderosa nos
receita, dispensando a mão-de-obra supérflua.

Depois, na minha inicial decadência, a cabeça começou a


crescer desproporcionalmente ao resto. Ainda persiste um certo
desequilíbrio, hoje, que o corpo se desenvolveu. Antes disso, até
os 15 ou 16 anos, quando cresci 20 centímetros, sugeria uma
caricatura de David Levine, elefantíase de cabeça. Aos 11 anos,
saindo de um longo nado, satisfeito comigo mesmo, Irene disse:
“Como ficou feinho meu filhinho querido”. Morri de ódio, mas
já tinhamos “rompido” quatro anos atrás.

Aos sete anos, nos jogaram, Fred e eu, sozinhos, no


colégio beneditino, São Bento internato, a princípio em Paquetá,
depois na Muda da Tijuca. Não protestei, chorei, ou entendi. O
choque deve ter sido sem paralelo, anterior ou posterior, pois
reprimi-o na consciência e nunca reemergiu. De príncipe
paparicado por mamãe e babás, à solidão e ao desconhecido.
Vestia uniforme ridículo, azul-marinho, dragonas azul-claras,
quepe que me ampliava o cabeção (nunca mais na vida aceitei
um chapéu na cabeça). Uma viagem de 2 horas e 30, na barca da
Cantareira, um transatlântico em relação a mim, na companhia
de irmão que ao menor pretexto me traulitava. Lembro apenas,
concretamente, da maçã que Irene me deu na Praça 15, ponto de
partida. Durante dias acalentei a maçã, dormia com ela, nem sei
se comi antes de apodrecer. E começaram os pesadelos, tombos
de grandes alturas, ataques de animais selvagens. Nos fins de
semana em casa, os pais notavam que Franz berrava dormindo.
Chamavam de “terror noturno”, não suspeitando a causa.
Escrevendo isso, lembro também que só voltei a comer maçã
nos anos 70, nos EUA. Ácidas.

Mais uma vez, coloco os fatos em perspectiva. A


experiência não foi “preto e branco”. O São Bento me deu
alegrias. Os padres, quase todos alemães, nos baixavam vara (de
marmelo) e, se a ofensa era grave, nos faziam ajoelhar, de
castigo, horas. Talvez a memória me traia, mas não me ocorre
ninguém que se dissesse, a sério (havia sempre a choradeira de
pseudovitimização em colégio), injustamente punido. Como as
mulheres árabes da piada, sabíamos por que apanhávamos. Não
tirava pedaço. Uma ou duas varadas, no máximo. Nenhum padre
sádico.

Nos conduziam à fé católica sem o terror jesuíta do


inferno, que peguei no Santo Inácio, ou a incredulidade
igualmente jesuítica de que o homem, livre das presilhas
religiosas, fosse capaz do bem. O Deus beneditino era
compreensivo, de amor e compaixão. O jesuítico reviveu traços
do velho Jeová, implacável e incendiário.

Os beneditinos eram caras “iguais”. Os jesuítas, sutis


manipuladores. A Sociedade de Jesus dominou a Igreja desde a
Contra-Reforma, foi a tropa de choque em face dos avanços
heréticos do protestantismo e concomitantes, nacionalismo e
capitalismo. Durante séculos decidiu quem seria papa, apesar da
habitual encenação de cardeais. Ordens como a beneditina, que
contribuíram para a Inquisição, foram marginalizadas pelos
elitistas de Santo Ignácio de Loyola (não é segredo que tanto
Dzerjinski, o chefe da Tcheka soviética, e Himmler, da SS,
estudaram os métodos de organização de Santo Ignácio), e, no
margina-lismo, se amenizaram, devotando-se mais à
contemplação e ganhando maior tolerância pelos pecadores.
Reemergi-riam depois do Concílio de Paulo VI na vanguarda de
uma Igreja menos aferrada somente ao eterno. Os próprios
jesuítas se deixaram tocar pelo aggionarmento e, a última
notícia, estavam em cisma entre conservadores e os novos
ativistas.

Os beneditinos jogavam bola conosco (escondendo a bola


na batina: não dava para aplicar uma “tesoura” num padre), nos
contavam histórias maravilhosas (de fundo religioso, claro, mas
não opressivo). Sabiam consolar e estimular crianças. Tenho as
melhores recordações do colégio, em que o recreio era praia, e,
na Tijuca, descobri jambo, tamarindo, jabuticaba e outras frutas
“exóticas”. Nunca fiz tanto esporte. Vivíamos no mar ou na
selva (onde a brincadeira da lança de bambu se desenvolveu). A
única vez que estive no Corcovado foi em excursão beneditina a
pé. À parte futebol, aprendi a jogar cricket, xadrez e um jogo de
cartas divertidíssimo cujo nome esqueci.
Tornei-me devotíssimo, ajudei missa. Pensei ser padre, tal
meu encantamento. Hoje, respeito sinceramente a capacidade de
fé de quem tenha lido Freud e, em particular, Wittgenstein, e
permaneça crente, desimpedido de raciocínio. Não “pensava”
assim de 7 a 11 anos de idade. E, em retrospecto, admitindo a
impossibilidade lógica do que me pregavam (lógica dentro do
cérebro que o próprio Deus supostamente nos forneceu. Que
outro instrumento poderíamos utilizar?), não renego os
momentos de tranqüila solidão, de paz de tormentos que eu mal
começava a entender, que a oração me proporcionou, seja ou
não transferência e desvio neuróticos e, em última análise,
religião seja devaneio que não se sustenta ao menor teste
empírico intelectual. Era bom e sinto saudades daqueles “galhos
que tremem contra o frio, corais desnudados e arruinados, em
que antes os doces pássaros cantavam”, a única (e maravilhosa,
traduzo mal) menção de Shakespeare — soneto 73 — à Igreja de
Roma suplantada por Henry VIII.

Os encantos dos ritos tridentinos e do latim também me


tocaram fundo. O sopro renovador do Segundo Concílio
derrubou um dos supremos prazeres estéticos dessa fé que perdi.
Reconheço que me intrometo onde não devo, mas aí está.

Outra surpresa agradável foi o comportamento de Fred.


No colégio, ao menos, a fidelidade tribal bateu o rancor
edipiano. Ele me protegeu a inocência, destruindo-a. Eu não
sabia me dar com os outros, restrito apenas às certezas e
familiaridades de casa. Fred me ensinou o que evitar, o que, em
colégio interno, naquele tempo, significava principalmente
evitar o que chamávamos, não sei por quê, os “bocas-de-fogo”,
sodomizadores, mais velhos, de meninos desprevenidos. Havia
muito disso no São Bento, à noite, e também “meia”, esfregação
mútua, sem penetração. Escapei ileso e me permito duvidar que,
se encaminhado ao papel feminino por incompreensão,
conseguisse executá-lo. Não gosto que estranhos me toquem.
Em 1937 ou 1980.

Se escreve tanta besteira sobre homossexualismo quanto


economia. Enfiem uma centena de meninos juntos e é fatal que
haja contatos sexuais. Nem sempre, ou melhor, quase nunca,
marcam orientação adulta. Parece ponto pacífico que
homossexualismo é produto de subdesenvolvimento emocional,
de atrofia afetiva em períodos de infância. Essa definição é
correta, acredito, em essência, mas pede clarificações e omite
variantes. Homossexualismo certamente não é hábito, ou vício,
que se adquira. Meninos vários que sei enrabados no São Bento
se converteram em heterossexuais. Outros, “homens” lá, se
descobriram homossexuais, já adultos. Hoje, se sabe (Charles
Rycroft) que a homossexualidade, adjetivo e, a não ser em caso
glandular, nunca substantivo, vem a adultos decorrente de
dissolução ou confusão de identidade da pessoa. Idem, e
principalmente, colegas do Santo Inácio, onde a perseguição ao
homossexual declarado atingia crueldade inimaginável no clima
amoral do internato. Amoral é a palavra exata. Os alunos
veteranos de internatos criam uma relação com os mentores não
muito diferente da que existe entre autoridades e meliantes
contumazes não perigosos. Há limites intransponíveis, claro,
mas os “direitos” dos “bandidos” são submetidos à popular
“vista grossa” dos bedéis ou “tiras”. Havia até um “tipo colégio
interno”, reconhecível aos que freqüentaram essas instituições:
meio porco, esculachado, às vezes polimorfo perverso, bêbado,
fumante, jogador, um marginal prematuro, em suma. É um
mundo contido em si próprio o dos internatos. Diante dos padres
representávamos (eles sabiam) a comédia da aquiescência.
Soltos, revertíamos à barbárie.

Eu mesmo, santinho e cê-dê-efe, tinha outra face. Amei a


missa tridentina, certo, mas me dava direito a tomar café com o
padre assistido, antes dos colegas. A mesa dos padres oferecia
pão, café, leite, manteiga, frutas, mel, à vontade. A nossa, média,
meia bisnaga, uma fruta. Fé ou fome? Um pouco das duas
coisas. À fome natural das crianças se juntava o clichê inevitável
da carência afetiva, da falta dos pais, que ronronava em nossos
estômagos.

Arranjei um amigo, meio trôpego, sensível e gago como


eu, inteligente, o tipo frágil que atrai implicantes brutalhões. Um
maior, 11 anos, chateava bastante o pobre. Um dia me irritei de
verdade. Esqueci o começo da briga. Lembro de estar em cima
do maior, batendo-lhe a cabeça, já sangrando, no concreto, ele
desacordado, até que Fred me puxou forte. Se já não tinha sido
incomodado, pela proteção de Fred, desta vez em diante acredito
que desencorajei definitivamente aspirantes, se havia, a meu
marquês de rabicó. O maior, esse esqueceu o episódio,
aparentemente. Conheço-o mais ou menos, esbarramos de
quando em quando, nunca notei um traço de memória, leve que
fosse.

Endureci. Nunca mais houve os chamegos absolutistas de


mãe e filho. Minha rudeza e silêncio se tornaram notórios. No
futebol, me destacava pela selvageria, não na competência, ao
contrário de Fred, que achava o jogo chato, mas era um beque
difícil de passar porque jogava bola de verdade (baixando o
sarrafo também. Todos jogávamos pesado). Católico sem
dúvidas, fiz futebol de hóstia não consagrada e bebia o vinho
dos padres (também não consagrado). Comecei a aprender
piano. O professor, alemão, civil, numa aula me deu um
cascudo. Acertei-lhe um pontapé no saco. Fim do futuro
Paderewski.

Não falava quase. Meu olhar era de ódio frio e


concentrado, me disse esse único amigo íntimo (Floriano?),
contra todos. Minha aridez afetiva e rispidez no trato, esta última
que me rende até hoje considerável folclore de agressividade,
nasceram aí, no corte brusco da intimidade de mãe e filho. A
natureza se compensa. Se fechei as extroversões habituais, não
muito difícil, dado o meu lastro de secura Heilborn, o vácuo foi
preenchido por uma atitude crítica impiedosa, a princípio
baseada apenas, presumo, em frustração emocional, mas em
tempo, dos oito anos em diante, se alimentando de si própria, do
meio ambiente, das diferenças que se evidenciavam entre o
pregado e o cumprido, etc., o que mencionei no início deste
livro, até a explosão intelectual de Dostoiévski, em que me vi e
ao próximo nus. Sou um subversivo nato. Só reabri afetivamente
aos 28 anos, mas essa é outra história.

As aparências não enganam. Revendo fotos de sete anos,


ainda tenho o ar do anjinho bebê. Aos 11, a boca mostra um
snarl, aquele levantar de lábios do cão que ataca. Aos 14, os
olhos são de “quem já viu tudo”, na frase de um colega do Santo
Inácio, Fernando Luís Tavares Rodrigues, hoje exercendo
talento único em matemática na IBM. Não tinha visto a liça
metade, claro, mas veria tudo pela frente confinado num prisma
de suspeita, desconfiança e hostilidade. A idade, as pauladas, as
artes, filosofia, a reabertura dos 28 anos, transformaram bastante
rosto e atitudes; agora, estou sempre de pé atrás, e em riste, na
frase de uma amiguinha. Não me sinto inteiramente à vontade na
companhia do próximo, nem dos (meia dúzia) mais íntimos.

Bastam alguns exemplos: aos sete anos, fazia pipi na


cama, sintoma clássico de insegurança, regressão mental,
segundo Adolpho. Furioso, passei uma noite em claro, o que não
é piquenique nessa idade. Nunca mais fluí incontinente. Aos sete
anos, numa reunião de família no segundo andar (equivalente a
cinco em prédio normal) da casa de Paul, de repente corri e pulei
sobre o peitoril da janela aberta. Lá fiquei olhando para baixo.
Paulo Filho não perdeu a cabeça, o único, e foi a mim, manso,
falando amenidades. Não me enganou um minuto. Me deixei
trazer à segurança. Não pretendia mesmo pular, que eu saiba. E
recusei, correndo da sala, que Irene saciasse o próprio susto me
acarinhando. Não admitia que amigos me abraçassem, que
pusessem sequer a mão no ombro. A ninguém parece ter
ocorrido me chamar de apelido ou diminutivo, humorístico ou
afetivo. Adulto e em marcha reduzida, alguns tentaram um
Paulinho. Uma vez. Tudo isso veio nos tempos do internato.

A morte de Irene encerra minha formação emocional. Ela


ficou grávida extemporaneamente aos 39 anos de idade.
Chamou-se um médico de fama, Silvio Sertan. Fred e eu
vivíamos nossa vida e não demos maior importância ao
acontecimento. Começamos a notar que Adolpho de manhã e à
noite rezava alto no quarto o evangelho segundo Mary Baker
Eddy. Nas vezes que fomos admitidos, Irene parecia fraca, o
que, na ignorância, atribuímos à gravidez “fora de época”.
Ninguém nos desmentiu. Não víamos os lençóis cheios de
sangue das freqüentes hemorragias internas que sofria.
Ouvíamos pedir a Adolpho, entre uma e outra frase do Cristo à
la Eddy, que chamasse o médico. Adolpho telefonava. Sertan
nunca botou os pés na nossa casa nesse período crítico.
Receitava pelo telefone. Chorou no enterro o feito que, em país
civilizado, lhe cassaria a licença e provavelmente o poria na
cadeia.

Admito que a confiança de Adolpho em Eddy o


reassegurasse, não porque Sertan engolisse a “Ciência”, e, sim,
porque Adolpho, inocentemente, minimizava os problemas cuja
existência, de resto, “desconhecia” convicto. Não é que meu pai
negasse remédios a Irene. Cumpria rigorosamente as receitas de
Sertan. Não tentava impor religião a ela, ou a ninguém. Não era
um fanático.
Acreditando, porém, no que pregava (o oposto é mais
comum), tendia a crer que encaminharia Irene a um parto
seguro, dispensando assistência médica alerta.

Foi só na manhã que Zillah, tia, veio visitar Irene,


descendo de Petrópolis, onde morava, que nos demos conta da
seriedade da condição da nossa mãe. Zillah, no vocabulário
permissível a mulher educadíssima, descompôs Adolpho, disse
mais e energicamente a Sertan, este escondido, como de
costume, no telefone. Ordenou por conta própria o internamento
de minha mãe na casa de saúde São José.

Ainda assim não prevíamos o pior. Estranhávamos que


não nos permitissem visitar Irene. Mais tarde, soubemos que
Sylvio operara, com sucesso, um quisto sebáceo grande, na
cintura de minha mãe, mas depois Zillah nos contou que Sylvio
e enfermeiras notaram que o organismo dela resistia, devolvia
medicamentos, de tão debilitado.

Paulo Gustavo nasceu em 25 de agosto de 1944. Irene


morreu em 13 de setembro. Nenhuma conexão entre uma coisa e
outra. Irene morreu de eclâmpsia, septicemia e fraqueza geral. É
verdade que os antibióticos desenvolvidos na Segunda Guerra,
começando pela sulfa e penicilina, custaram a chegar ao Brasil.
É verdade, também, que feitas algumas clarissímas exceções em
1980, eu não confiaria à medicina brasileira uma unha
encravada.

Apesar disso, minha mãe morreu também pela


inadvertência de Adolpho e a negligência de Sertan. Adolpho
não sabia o que fez. Sertan não fez o que sabia.

Ela me chamara entre o nascimento de Paulo Gustavo e a


morte. Desconhecendo a gravidade, fiquei distante, “cortês”,
não-receptivo no quarto, na cela de prisão que me enfiaram e
que, em revolta, tranquei o cadeado. Lembro os olhos amorosos
e súplices que vi vivos a última vez, eu numa confusão de
sentimentos e angústia inexprimível que me reduziram à
passividade impotente. O horror, o horror.

Zillah, dias depois, nos deu, aos filhos, a notícia que a


morte seria em horas (não sabíamos da certeza de morte até
aquele momento). Nos plantamos, a família, no quarto, tontos,
incompreensivos. Sertan posando de esculápio que luta
abnegado contra o último suspiro da paciente. Minha catatonia
era de tal ordem que nem a excelente idéia de estrangulá-lo, ou
arrebentá-lo a pontapés, me passou pela cabeça. Daí em diante
há a memória daquele arfar que marca o fim próximo da
respiração e o fim que julguei definitivo da minha capacidade de
amar qualquer pessoa. Não chorei ou guardo lembranças do
resto. A vida me foi suspensa naquelas horas finais, congelada
afetivamente.

Adolpho sofreu e se torturou o resto da vida. Jovem na


meia-idade, envelheceu prematuramente. Se consolou
acelerando o religiosismo, variando à umbanda, mantendo a
“Ciência” que o impediu de tratar-se em tempo e escapar da
confluência de males que o mataram. A segunda mulher,
Lourdes, também viúva, dedicou-se a repô-lo de pé, cuidando
dele de maneira humana, o que Adolpho negara, ingenuamente,
por superstição, a Irene. Não lhe guardei rancor consciente. As
explosões de baixo são outra conversa. Adolpho se puniu
“melhor” do que Fred e eu poderíamos, se quisessémos, e não
queríamos, entendendo maduramente causa e efeito. Nem a
Sertan consigo odiar. O crime de Sertan é o que mais enfrento
tentando entender o mundo: a incompetência pretensiosa e
hipócrita. Por que nunca foi ministro da Saúde me escapa. Não
conheco ninguém tão qualificado, no contexto brasileiro.
Irene é irrecuperável. Morremos uma vez só. Felizmente,
porque nascemos diversas. A primeira é a menos dolorosa.

III. BRASILIDADES

“Não tenho carteira de


identidade. Não sei minha
idade... Não sei de onde
venho... Sozinha, sempre
sozinha, não tenho ninguém. E
quem sou e porque sou é um
mistério... ”

TCHÉKHOV, O cerejal,
primeira página, segundo ato.

PASSEI ao todo 14 anos da minha vida fora do Brasil.


Havendo livros, manjando a língua, e com ar condicionado para
os dias de calor, como chora na musiquinha o pleonástico
namorado da insincera Aurora, penduro minha tenda em
qualquer lugar. Sou apátrida de cabeça e na prática.

Me criticam isso. Escrevem que detesto o Brasil e o


renego. O coro aumentou nesses últimos dez anos de EUA.
Henfil, amigo, alega que pontifico sobre a superioridade da
matriz à idolatrada, salve, salve. Não uso a palavra matriz.
Escrevo “corte” e o humor deveria ser claro a um dos melhores
humoristas brasileiros. Carlinhos de Oliveira, outro amigo,
referiu-se a Cabeça de papel como o melhor romance (seria, se
verdade, o único...) escrito por um brazilianist. Ênio Silveira,
íntimo, uma noite, de pileque (nega o pileque. Inútil. Reconheço
o sintoma clássico: balança a cabeça de um lado ao outro,
pendulando), levou horas afirmando meu “joãoninguenismo”
nos EUA e que minha fama se restringia ao Brasil. Bem, em
quantidade, sou o correspondente estrangeiro mais lido no
Departamento de Estado e embaixadas americanas no mundo,
porque todo dia encontro nos telexes oficiais daqui transcrições
do que escrevo na Folha de S.Paulo. Talvez ninguém leia e, de
qualquer forma, não é fama, é, com boa vontade, eminência. Já
escrevi no Washington Post, recusei propostas do Times e tive
um artigo aceito na New York Review ofBooks, pelo editor Bob
Silvers, se topasse certas modificações, o que recusei. Silvers me
devolveu também um ensaio sobre “Solzhenitsyn e a Revolução
Soviética”, alegando que scored good points, marcara gois, mas
que a publicação estava carregada demais de artigos a respeito
de dissidência na URSS. Está, sim, mas todos na linha
tradicional de anti-sovietismo impensado. O meu seria a abertura
de polêmica que não interessa, no momento, ao menos, à
Review, que recaiu no liberalismo convencional depois de um
período, na Guerra do Vietnã, em que se tornou o centro do
ressurgimento da esquerda (não-stalinista) americana.

Foi-me oferecido um Ph.D na universidade estadual de


Indiana, com base num ensaio de 300 páginas sobre a Revolução
Soviética e Guerra Fria, que produzi para sócios americanos, que
convertemos em script de documentário. Não menosprezem a
Universidade de Indiana. Lá estão o Instituto Kinsey e um dos
melhores centros de estudos do comunismo. Na biblioteca, não
falta nada, encontrei obras de Caio Prado Júnior, Nelson
Werneck Sodré, Fernando Henrique Cardoso e Leandro Konder,
entre outros. Bastaria que eu residisse seis meses no campus,
anotasse fontes e defendesse tese. Nos EUA se permite o salto
de quem não tem sequer mestrado, ou bacharelado regular, a
doutor em filosofia: “Em casos excepcionais”, me disse o diretor
do centro, Robert Byrne, guerreiro frio impecável, que,
discordando 70 por cento das minhas opiniões, achou o ensaio
excelente e me fez a oferta. Agradeci e dispensei. O tédio e
desrespeito pela academia são constantes na minha vida. Há
gente de gênio na academia, claro, mas é rara e termina, exceto
em ciências exatas, marginal, precisamente porque não se sujeita
à burocracia da cultura, aos modismos e, em literatura, a um
senescente e voulu experimentalismo. As maiores influências no
que escrevo, Shaw em jornalismo, e Joyce em literatura, foram
autodidatas. Não é acidental que Eliot, o poeta mais paparicado
pelos burocratas literários, tenha preferido ser bancário a viver
nesse meio de pobres-diabos, que escondem inapetência e
covardia diante da vida em erudição estéril, de fichinhas, de
citações virgens da menor contribuição pessoal, e que, agora,
substituem o computador pelo cérebro humano (enfim,
confessaram o que não têm).

Nada disso é trombeta. Alguém duvida honestamente que


eu não faria carreira nos EUA, se quisesse? Inglês é minha
segunda língua, escrevo-a, leio-a tão facilmente quanto a
portuguesa.

Acontece que não vim para cá pretendendo me radicar.


Nunca pretendi me “radicar”, de resto, sempre me imaginei
livre, nesse sentido. Vim porque não me deixavam escrever no
Brasil. A censura mutilava tudo, até críticas de ópera, cinema,
teatro, memórias apolíticas de infância. Me prendiam uma vez
por semestre entre 1968 e 1970. Estive no CODI, ameaçado de
tortura pelo major Fontenele e o capitão Pablo Malhães, no rapto
de Burke Elbrick. É cômico. Eu voltava da Europa, em free
lance da Editora Abril, viagem de dois meses. Elbrick chegou na
minha ausência, fato não noticiado em Londres, País de Gales,
Amsterdã, onde trabalhei. Soube dele lendo jornal quando o
raptaram. Claro, levado ao general encarregado do inquérito,
conversamos todos os assuntos possíveis, e, manifestando
pasmo pela minha presença (nove dias incomunicável, lavando a
roupa toda noite), ordenou que o ajudante-de-ordens me
escoltasse à casa. Se isso não basta, a partir de 1969, ano do
rapto, era obrigado a “persuadir” o DOPS, antes de viajar, me
explicou o despachante, pois meu nome permanecia no tribunal
militar que julgara os responsáveis. Enfrentei numa das saídas o
agraciado. Perguntei-lhe, se eu fosse incriminado, andaria solto
no Rio? Resposta: “Claro que não, Dr., o Sr. num tem nada com
isso, mas o Dr. sabe como é o Brasil, né?”

Sei. Saí. Aos 40 anos, a alternativa era viver cozinhando a


frustração dolorosa de quem não pode reagir, o que, em
Ipanema, onde sempre há um presunto pendurado na porta de
alguém, terminaria me equilibrando em álcool, etc. Ou tentar
vida nova. Escrevia sobre política internacional desde 1959, em
Senhor. Lera tudo de importante, de Tucídides e Gibbon a
Gabriel Kolko (The Politics ofWar, o primeiro, em 1968).
Assinava as principais publicações. Conhecia mais que a metade
do mundo, em pessoa. Por que não ser correspondente no
estrangeiro, longe dos repressores que inventaram “guerra
revolucionária” a fim de garantir os lucros dos 38 mil habitantes
do país, que têm realmente dinheiro (a estimativa é do Dr.
Delfim), mantendo em abjeta e progressiva miséria a imensa
maioria restante?

Aos 40 anos de idade, de uma vida de trabalho incessante


(não tiro férias, mesmo, desde 1963), ganhando menos que
minha habilidade jornalística permitiria, se eu comprometesse
princípios que considero invioláveis, impossibilitado de me
expressar sob Mediei até nos limites da imprensa nanica, por que
não viver na capital do mundo, expandindo em experiência o
que eu conhecia de livros e imprensa? O que adiantava me
solidarizar, silenciado, com a nossa condição? Me falta vocação
de carpideira. O dia-a-dia da política me chateia mortalmente.
Meu jogo é idéias e não o que o Tancredo disse ao Magoo, ou
candidaturas, poder nu, antiprogramático. As esquerdas eu
criticara, de um ângulo radical, em “Tempos de Goulart” (1965),
ensaio na Revista Civilização Brasileira. Seria o único ângulo
certo, no contexto, na disponibilidade de condições e material
humano no país? Precisava ampliar perspectivas, sair do
passional imediato ao histórico, ao longo braço e mãos que de
piparote em piparote empurraram o Brasil ao abismo em 1964.

Juntei-me oficialmente às esquerdas em 1960. Com


extremo desgosto, pois teria de tolerar o convívio de stalinistas,
a quem, trotskista, considerava contra-revolucionários.
Trotskistas acham que a Revolução regrediu depois da morte de
Lênin, em 1924. Perdeu o caráter internacionalista, inegável, que
a gerou. Esse internacionalismo não é dogma. É lógica
elementar. Era a única saída marxista de um movimento iniciado
em nação feudal, incapaz organicamente de resistir ao
capitalismo desenvolvido e rico. O movimento só poderia
prosperar se subvertesse o capitalismo nos países líderes, se não
seria esmagado. Desse prisma de revolução permanente, adotado
por Lênin de Trótski (nunca admitido pelos leninistas originais),
Stálin, a princípio taticamente e, em seguida, convertendo-se em
criatura e gerente da Nova Classe de burocratas, recuara a uma
forma de nacional-socialismo, congelando (“o Termidor”, na
expressão de Trótski) o internacionalismo norteador de outubro
de 1917. É uma análise simplificadora, sei disso há bastante
tempo, mas não errada, em alguns fundamentos. Explica em boa
parte a decrepitude corrupta e oportunista do PCUS. Explica o
imperialismo soviético. Explica o contraste entre o
desenvolvimento em superpotência da URSS e o retardamento e
iniqüidades da sociedade soviética (previstos à la longue, em A
revolução traída, de Trótski, em 1935), atochada sob as nádegas
de Stálin (Trótski de novo). O que ficou de fora discutirei no
devido tempo.

A mim, Paulo Francis, interessava quebrar o jugo


oligárquico e multinacional no Brasil. Me esfalfei nisso, em
plena liberdade, na Última Hora. Um panfletário e polemista da
porretada seca. Nunca partilhei a ilusão de que as esquerdas
estavam próximas do poder sob Jango. As esquerdas falaram no
período, aproveitando-se de um liberalismo que negariam aos
adversários se assumissem o comando no Brasil. Não havia lista
de gente a ser fuzilada, ao contrário da lenda amplamente
divulgada pela direita. Porque não precisávamos de lista.
Sabíamos os nomes de cor e salteado.

A fraseologia pseudo-revolucionária não escondia um


profundo desconhecimento do nível de apreensão do povo (O
Globo, por exemplo, sempre vendeu mais que a Ültima Hora, na
Zona Norte do Rio), ou a absoluta falta de organização, sequer
educacional, do nosso eleitorado. O que se levava a sério, em
particular, nas esquerdas, era o golpismo, manu militari. Nossos
generais, almirantes e brigadeiros, sem falar dos célebres
sargentos. Nada menos marxista, e, no entanto, o PCB
colaborava com Jango a fim de restringir a sindicalização
popular. Melhor os poucos sindicatos sob controle do populismo
ou comunismo do que as massas ganharem a liberdade de
compreender e criar, pois todas as esquerdas sucumbiram ao
ranço do “substitutismo” de Lênin, em que uma elite de
revolucionários se substituiria ao proletariado, instaurando uma
ditadura em nome dele, até que o pobrezinho ganhasse
maturidade política, quando as belas promessas de Estado e
revolução, de Lênin, se concretizariam, o Estado desaparecendo
numa sociedade de homens livres e livremente associados,
libertos da servidão do capital e ilusões culturais burguesas. Os
stalinistas “substituíram” tanto tempo que já se julgam, tal é a
natureza humana, os únicos titulares. Nisso Stálin é fiel
discípulo de Lênin. A diferença é que transformou tática em
dogma.

Trótski arrasara brilhantemente essa posição, em 1904.


Previu que o partido se substituiria ao proletariado, depois o
comitê central se substituiria ao partido e, por fim, o ditador se
substituiria ao comitê central. Omite a intervenção na
autobiografia, pois queria provar-se o discípulo correto de
Lênin. Os dois organizaram a revolução trocando figurinhas.
Trótski aceitou o substitutismo bolchevique, um expediente
transitório, afinal, segundo Lênin, adequado a um país onde as
mínimas liberdades burguesas, dadas de barato em Londres ou
Paris, inexistiam. Não é difícil racionalizar taticamente o
substitutismo. Em troca, tirou Lênin do dilema que era tentar
impor socialismo numa nação de 85 por cento de camponeses,
classe condenada, na melhor das hipóteses, a secundar o
proletariado urbano e industrial, na fase de transição do
feudalismo ao princípio do socialismo.

Na revolução permanente de Trótski, o incêndio na Rússia


se alastraria aos arruinados bastiões do capitalismo europeu, de
Berlim a Londres, que, de resto, haviam massacrado o
proletariado na luta interimperialista de 1914-1918. Motins de
soldados e marinheiros de quase todos os combatentes
convenceram Lênin, finalmente, de que a idéia de Trótski
merecia crédito. Menosprezaram, bons marxistas, a componente
irracional de nacionalismo na guerra. Odiando-a, ingleses,
franceses e alemães, odiavam mais aos adversários. E, falhos
internacionalistas, Lênin e Trótski não analisaram corretamente
o peso gigantesco da emergência do capitalismo americano.
Nenhum marxista das variadas estirpes teve até hoje, que eu
saiba, a decência de reconhecer que Kamenev, Zinoviev e o
próprio Stálin (enquanto não sentiu que Lênin e Trótski
prevaleceriam) perceberam o erro de cálculo dos dois gênios
revolucionários, propondo, ao contrário, que os comunistas
fortalecessem e auxiliassem um governo transitório burguês de
esquerda, que estabelecesse uma nova sociedade em que fossem
criadas condições autenticamente revolucionárias, pela
metodologia marxista, que Lênin e Trótski arquivaram
(temporariamente, se diziam e acreditavam). Somente Isaac
Deutscher lhes deu uma atenção cuidada, mas, em última
análise, também se rende ao fascínio da aventura de Lênin e
Trótski.

Não vou escrever a História da Revolução Soviética, não


se preocupem. Este preâmbulo é para ressaltar o absurdo que foi
o substitutismo praticado pelas esquerdas no período Goulart,
em circunstâncias e condições totalmente diferentes das da
Rússia Imperial, deposta, em verdade, em fevereiro de 1917,
num movimento espontâneo popular, em face de uma guerra
assassina e perdida e do agravamento de miséria já intolerável
em qualquer país europeu em tempos normais. Não, todas as
besteiras foram superpostas à realidade do Brasil, inclusive o
arranjo meramente tático de Lênin, inspirado, diga-se de
passagem, por Stálin, de propagar uma aliança entre o operário e
o camponês. O PCB não lera sequer os autores do Partido, como
Graciliano, que demonstraram a absoluta inconsciência, em
nível de animal esfaimado, do nosso homem do campo. Julião,
que tentava organizá-lo no mínimo de compreensão que lhe era
possível, ou Arraes, que tentava educá-lo no ABC de direitos
civis, foram vilificados pelas esquerdas aguerridas. Lembro-me
de um enragé que encontrei na Avenida Rio Branco, me
interpelando por que perdia tempo escrevendo contra Carlos
Lacerda, enquanto ignorava o principal agente da CIA no Brasil,
Miguel Arraes...
E a infâmia suprema, a dependência dos militares. Lênin e
Trótski tinham massas reais, exigentes, e soldados, idem. É
inclusive plausível especular ter sido uma demonstração radical
desse povo decidido a tudo, em julho de 1917, espontânea e
inesperada, que lhes deu margem a convencerem os
bolcheviques (líderes), relutantes em aceitar a revolução antes
das eleições da assembléia do novo Estado — eleições que
produziram tranqüila pluralidade socialista, mas não-
bolchevique. Os social-revolu-cionários eram o partido mais
poderoso, porque diretamente ligados à maioria campesina no
país. Os intelectos superiores bolcheviques (não é ironia) não
confiaram no povo, ou toleravam forma alternativa de
socialismo e frente ampla: aceitavam somente a submissão de
simpatizantes.

O Brasil de Goulart não era, claro, fechado como a Rússia.


Tínhamos uma concreta experiência de democracia,
irrepresentativa, por certo, pois excluía as dezenas de milhões
reduzidas à bestialidade; e os “constituintes” de 1946 garantiam
aos pequenos estados, em nome de fraternidade hipócrita, um
poder político no Congresso desproporcional às respectivas
populações, estados em que a oligarquia se alimentava da
miséria e desespero, “elegendo” empregados dos capitães
hereditários. Essa situação bloqueava qualquer reforma
significativa que se originasse dos parlamentares e Estados
dispostos a transformar a face do país. Nada parece mudar em
nossa terra. As vitórias do MDB em 1978 foram no Brasil
semidesenvolvido, beneficiado relativamente pelo sistema que
condenou nas urnas, enquanto que a maioria de cabresto do
governo veio das regiões mais exploradas, do Brasil dos
zombies, dos escravos, que agüentaram majoritariamente os
descalabros pós-1964.
A impaciência das esquerdas com “democracia” era,
portanto, compreensível até certo ponto. O bloqueio parlamentar
à reforma agrária de Jango, que pagaria os expropriados em
títulos da dívida pública (e que outra forma pacífica haveria de
pagá-los, num país pobre?), terras que exploravam secularmente
como base de especulação e acesso “de pai para filho” ao capital
do povo, no Banco do Brasil, é um exemplo da impossibilidade
aparente de reforma, exceto à bala.

O problema das esquerdas é que esqueceram o elementar


leninismo que é organizar-se. Nunca aferiram in loco a condição
dos destituídos. Na tradição elitista brasileira, se aferraram ao
dúbio marxismo stalinista, sem a menor mostra de terem
compreendido a flexibilidade tática de Stálin, flexibilidade que
usou derrotando gente muito mais culta e inteligente do que ele,
como Trótski e Bukharin. Ou maltrataram o modelo Cepal de
desenvolvimento harmônico, baseado na verdadeira capacidade
de produção interna de cada país, em condições econômicas e
culturais específicas, variáveis de região a região no Brasil.
Foram incapazes de desenvolver uma teoria revolucionária que
se ancorasse no que viam, no que, de resto, não viam, porque
não se davam ao trabalho, ridicularizando os que partiam da
experiência concreta a táticas e à estratégia, à la Arraes e Julião.
Brizola, outro que falava uma linguagem acessível à nossa
possível platéia, apesar do ranço paternalista e caudilhista que
herdou de Getúlio Vargas, era também motivo de chacotas
particulares entre os nossos ideólogos de gabinete. E, no centro,
João Goulart, despreparado, indeciso, se segurando no manto de
Getúlio, tentando equilibrar a política oli-gárquica e
multinacional à ânsia populista, um feixe de contradições.

A ansiedade e confusão reinantes queimaram rapidamente


o capital que foi a posse de Jango, 1961, exigida pela opinião
pública, ratificada no plebiscito, 1963. O desabafo da
incompetência se concentrou na ênfase e verborragia
anticapitalista, todos esses erros meticulosa e amplamente
explorados pelo poder permanente no país, oligarcas,
multinacionais e a escora do agressivo neo-imperalismo de John
Kennedy, que apesar dos ruídos de reforma, ditados pelo medo
do alastramento da revolução cubana, punha a “segurança” do
hemisfério, a retaguarda estratégica dos EUA, acima de
quaisquer considerações. Quanto menos conseguiam, mais
gritavam as esquerdas slogans de “virar a mesa”, que o sistema
de comunicações, sempre fiel à classe dominante, reproduzia
jubiloso, carregando nas cores, abrindo manchetes
intimidatórias, que puseram a classe média em pânico
anticomunista, ou seja, alienaram da esquerda a única “massa”
realmente atuante do país, já que analfabetos e “vidas secas” não
votavam. Essa classe média resistira ao veto militar à posse de
Jango, fator decisivo no recuo e arreglo de setembro de 1961.
Agora, se sentia apavorada de perder tudo, de empregadas
tomarem as jóias da patroa, ou que o morro descesse, apavorada
pela propaganda hábil que a direita fez da propaganda inábil da
esquerda. Essa é a síntese sociológica do golpe de 1964.

Uma esquerda que não vai ao povo, preferindo dirigi-lo de


alto-falante, sem ouvi-lo ou estudar-lhe as necessidades, como
esse povo as sentia na carne e não pelo presumido em manuais
de substitutismo, é meramente patética. Uma esquerda que, em
última análise, confia em militares, oficiais, uma profissão que é
elitista da bota ao quepe, é estúpida. Uma simples leitura
cronológica de jornais mostraria que desde a FEB, em 1943-
1945, o alto comando militar se rendera ao papel de polícia de
segurança dos EUA no país, que Washington criara na Escola
Superior de Guerra um colégio que educasse os oficiais de
Estado-Maior a defender nossas entranhas da infecção
comunista, enquanto os EUA procuravam hora e lugar certos de
aniquilar o câncer soviético. E esses oficiais, deslumbrados pela
prosperidade americana, então imbatível e incontestada, eram
hóspedes freqüentes do país que gostariam o Brasil fosse, em
tours cuidadosamente dirigidos, bombardeados de propaganda
anticomunista, lisonjeados pelos convites à sociedade contra a
URSS, recebendo o auxílio em crédito e doações, que lhes
garantiam armas, as ferramentas de trabalho, do ganha-pão
militar.

Nelson Werneck Sodré, em Memórias de um soldado, que


admiro muito, em particular as recordações de infância e
juventude, pela candura e emoção rigorosamente calibradas, nos
fala das deficiências profissionais do Exército, o senso de
inferioridade dos oficiais, a procura de uma identidade, de
status, de uma função útil. Em suma, são brasileiros como nós,
praticantes da “nudez do imperador”, temendo o menino
zombeteiro que nos desmascare. O Pentágono soube aproveitar
essa fraqueza. Ligando nossos oficiais a um plano global de
segurança, fornecendo-lhes planos sob medida, tão ao gosto da
mentalidade militar, lhes deu, na frase americana, um contrato
novo com a vida.

Nem todos caíram na empulhação de “tudo que é contra os


EUA é a favor da URSS”. Havia oficiais de esquerda. Havia os
positivistas que acreditavam na capacidade de o Brasil
autodesenvolver-se dispensando atrelamentos excessivos. Ou
aqueles que se sentiam alijados, por um motivo ou outro, do
clube exclusivo dos Estados-Maiores e a Escola Superior de
Guerra. E havia até uma resistência no inconsciente coletivo a
que servissem, a exemplo do Estado Novo, de instrumento de
instalação de nova ditadura. Esse último sentimento ficou
evidenciado numa série de reportagens de O Estado de S. Paulo,
depois de 1964. O Marechal Castelo Branco admitiu que só
conseguira convencer a maioria dos oficiais a aderir ao golpe
sob a promessa de manutenção da ordem constitucional.

Mas dadas a informação e formação militares, a classe


social (média) predominante entre os oficiais, a doutrinação
anticomunista incessante que recebiam5, a idéia de que fossem
apoiar, como bloco, a proposta proletarização revolucionária do
Brasil é fantástica. Quando muito se podia depender dos que
acreditavam em manter a legalidade. Esses foram
progressivamente alienados pela propaganda esquerdista
doidivanas, seduzidos pelo argumento direitista que, derrubado
Jango, estariam assegurando a “verdadeira democracia”. Não é
idiota. As esquerdas, taticamente, tinham de pretender que Jango
lideraria a revolução. Jango era o presidente, o totem do
movimento. E inspirava suspeitas de conspiração, porque falava
ambiguamente da sucessão, que o excluiria, justapondo
Juscelino a Lacerda.

Ainda assim, o golpe não teria dado certo da maneira


humilhante final, se não fosse a adesão de supostos aliados de
Jango, se o considerassem, no mínimo, o “mal menor”. Ênio
Gonçalves, comandante da Divisão Blindada do Rio, armada
com equipamento da OTAN, telefonou seis vezes a Juscelino em
31 de março, pedindo instruções.

5
Os oficiais aprendiam (aprendem?) nos cursos de Estado-Maior que os
EUA, e não a URSS, ganharam a guerra contra Hitler. A URSS, de junho de
1941 a janeiro de 1945, enfrentou e bateu 78 por cento das tropas, tropas de
elite, alemãs. De janeiro a maio de 1945, quando os anglo-americanos
avançavam, esse esforço diminuiu a 58 por cento... Hitler chegou a ter 240
divisões na frente leste. Contra a invasão anglo-americana, de junho de
1944, contrapôs apenas 85 divisões, a maioria de segunda classe. A URSS
perdeu 13 milhões de soldados (de um total de cerca de 20 milhões de
mortos). Os EUA, em todos os teatros (Pacífico inclusive), menos de 400
mil.
A divisão esmagaria qualquer revolta, sozinha quase.
Juscelino aconselhou-o à passividade. Imaginava que Jango
seria deposto e, depois do habitual intervalo “modess” (Ranieri
Mazilli), voltaríamos, à la 1954, à democracia oli-gárquica. Esse
mesmo Juscelino garantiu o voto decisivo do PSD a Castelo
Branco, no Congresso, quando poderia eleger o marechal Dutra,
que apesar de um passado semi-fascista no Estado Novo e
simpatias por Hitler, na velhice se reconciliara à democracia
(oligárquica).

A ambivalência do General Jair Dantas Ribeiro, ministro


da Guerra, que adoeceu (taticamente?) no momento da
insurreição, permanece inexplicada. O ministro interino, Âncora,
doente, mal se agüentava de pé. Amigos do Estado-Maior me
garantem que a tropa enviada para conter o general Mourão, que
vinha de Minas, deflagrando o golpe, era tecnicamente o oposto
do que se precisava. E Mourão admitiu posteriormente que ao
primeiro tiro ficariam ele e oficiais sozinhos na estrada, os
recrutas destreinados fugindo de susto. Metade do Segundo
Exército, peça decisiva na unidade do movimento, teve pane de
motor na Rio-São Paulo.

Mais importante, em l2 de abril, falei ao telefone com o


general Ladário Teles, comandante do Terceiro Exército. Ele me
disse que tinha amplas condições de resistir contando com a
guarnição de Porto Alegre, mas que o presidente se recusara ao
“derramamento de sangue”. Alternativamente, um livreiro
udenista da cidade, conspirador arrependido, nos contou a mim e
a Ênio Silveira que os civis anti-Jango praticamente tiveram de
arrancar oficiais (a favor do golpe) dos quartéis, pois estavam
“aguardando acontecimentos”. Apareceram os apelos
desesperados de Castelo Branco, no Rio, a Mourão, que recuasse
enquanto era tempo, que aquela arrancada estragaria tudo. A
História escrita por vitoriosos. As fantasias de unidade e
coordenação perfeitas dos que instauraram o flagelo 1964 se
tornaram moeda corrente dos meios de comunicações. A
verdade é mais complexa.

A maior complexidade é a atitude de Jango. Se permitisse


a Ladário deflagrar a guerra civil, o que teria acontecido?
Impossível que o outro lado fosse mais forte. Certamente Jango
e as esquerdas tinham a hostilidade da maioria dos que votavam.
Pesquisas dos nossos militares mostravam que Carlos Lacerda
seria difícil de bater na eleição presidencial prevista em 1965,
ainda que enfrentando o popular Juscelino. Agora, é possível
também que se Jango, enquanto dispunha do poder, fosse às TVs
e anunciasse a iminência de uma ditadura militar, muita gente se
movimentasse, inclusive no Exército. Soldado cumpre ordens,
sem dúvida, mas se estas encontram resistência, se o manual se
prova irrealista, ele começa a pensar. Em 1961, afinal, o Alto
Comando vetou Jango e quase todo mundo no oficialato se disse
de acordo, no início. Quando a insurreição do General Machado
Lopes, no Rio Grande, se concretizou, e a opinião pública se
exprimiu pela posse, a aquiescência dos oficiais do golpe
amoleceu. Não vou dar o nome por motivos de família.
Conhecia um general comandante, americanófilo. Telefonei. A
primeira vez me disse que em “hipótese alguma” o Exército
aceitaria a posse do comunismo via Jango. Na segunda, em
plena resistência ao golpe, me assegurou que estava pela solução
constitucional...

E se chovesse bala das tropas de Ladário? Os três


exércitos restantes convergiriam, sem deserções, sobre ele? Não
sabemos. Duvido. Mas não se pode provar um negativo
hipotético.

Me parece que Jango foi o próprio coveiro. Não estou


minimizando, em absoluto, a extraordinária concentração de
recursos da direita nativa e o auxílio externo (desde as
conspirações do agente da Defense Intelligence Agency, General
Walters, attaché militar da embaixada americana, às criações da
CIA, IBAD, IPES, etc.). Jango, em 1963, tivera todo o auxílio
americano suspenso. Violando a Constituição dos EUA e a
brasileira, Kennedy fornecia auxílio estadual, a Lacerda,
Magalhães Pinto e Adhemar de Barros, os governadores que
garantiram a base civil do movimento ditatorial. A luz verde ao
golpe veio de Thomas Mann, o subsecretário de Estado para
assuntos interamericanos, no governo Johnson, ao afirmar que a
ênfase doravante seria em “estabilidade” e não “reformas”
(referência ao suposto reformismo da pífia Aliança para o
Progresso, a resposta, de relações públicas, de Kennedy à
revolução cubana, que ele tentava subverter de todas as formas).
“Estabilidade” em país nas condições sociais do Brasil é
sinônimo de ditadura de direita.

Jango, prisioneiro das próprias contradições, não ouvia


ninguém. Nossos melhores oficiais levaram a ele um quadro das
transferências que o chefe do Estado-Maior do Exército, Castelo
Branco, vinha ordenando, em que nomeava oficiais antigoverno
a postos-chaves, alijando os fiéis. Indiferença absoluta. Jango
acreditava que corrompia qualquer general. Afinal, empregava-
lhes filhos e apaniguados. Esse Castelo Branco, sob os protestos
do ministro da Guerra Lott, fora promovido a general por
Juscelino, depois de escrever uma carta abjeta ao presidente.
Como temer um homem desses? Castelo Branco se dizia
“soldado apenas”. Na questão do voto no Congresso visitou
Juscelino levando Negrão de Lima, compadre de casamento,
invocando fidelidade à Constituição e aos amigos, advertindo
que o general Costa e Silva, ministro da Guerra de “modess”, é
que tramava contra a retomada democrática. Juscelino acreditou
nele, que, “soldado apenas”, se revelara o chefe da conspiração
em nível de Estado-Maior, o general que, no comando do Quarto
Exército, tinha sido escolhido para anfitrião militar da viagem
cancelada de John Kennedy ao Brasil, porque, na expressiva
frase de Business Week, “Castelo is our boy”. Castelo, claro,
destruiu Juscelino. Deixou autobiografia em atos que ninguém
pode melhorar.

Jango se imaginava o único ou o supremo corruptor.


Kruel, comandante do Segundo Exército, era amigo íntimo, ex-
chefe da casa militar e ex-ministro da Guerra do presidente, a
quem devia o progresso profissional. Enquanto Kruel não se
decidiu, o golpe ficou em suspenso, excetuada a aventura de
Mourão, que o próprio Castelo Branco considerava fácil de
sustar. Como Kruel se decidiu, antes propondo que Jango se
tornasse títere dos conspiradores, “repudiando o comunismo”, é
História.

Em última análise, acredito, a decisão de Jango de não


tentar a guerra civil se deveu a raciocínio frio e em causa
própria. O latifundiário que se propunha aboli-lo, pacificamente,
não acreditando nisso: uma vez me disse que reforma agrária,
desde os Gracchi, só se fazia em sangue; me espantei à menção
dos Gracchi, que não se espera de um populista gaúcho; esse
homem, pergunto, conduziria uma guerra radical? Jango
desprezava a esquerda oficial. No exílio, chegou a dar dinheiro a
jovens, aconselhando-os a que em hipótese alguma aderissem ao
PC. Não tinha teorias. Acredito que fosse um populista sincero,
concessionário paternalista de benesses ao povo, dentro de uma
hierarquia definida. Era tolerante, sem dúvida, e também um
cínico total sobre as motivações do poder. “Boa gente”, acredito
que detestasse morticínios. Preferia conciliar. Nenhuma gota de
sangue revolucionário.
Percebeu que se Ladário abrisse fogo, sem, notem,
nenhuma garantia de vitória, ele, Jango, seria ultrapassado pelos
acontecimentos. Brizola, ou outro radical formado pelas
circunstâncias, assumiria. Me parece uma análise correta. E as
ambivalências permaneceram grotescamente simbólicas até o
fim. Enquanto esperava, talvez, um apelo dos vitoriosos à
conciliação, Jango recolheu-se a uma fazenda fronteiriça do
Uruguai, de que o co-proprietário é, ou era, Walter Moreira
Salles, que nunca fingiu sequer ser aquela outra especialidade
brasileira, à parte o latifundiário antilatifúndio (não é
impossível: os Gracchi foram); digo, o banqueiro de esquerda.

Longe de mim pretender que minha visão desses


acontecimentos seja a única possível e plausível. Mas é ancorada
nos fatos que conheço, de que participei como ator menor, e,
mais importante, crítica.

Pensei que os companheiros de derrota partilhassem essa


atitude, à maneira de cada um, em benefício conjunto, pois não
há certezas em política, e perder, às vezes, é instrutivo. As
esquerdas brasileiras provaram o dito hegeliano que a única
lição da História é que ninguém aprende lições práticas da
História. Caíram em lamúrias, rasgaram as vestes, cobrindo-as,
logo, de trajes liberais. Sobral Pinto, que as combatera sob
insultos pesados, quando, bom liberal, começou a combater
também a ditadura, transformou-se em herói súbito, merecedor
de uma urna enquistada nas paredes do Kremlin. Carlos Heitor
Cony, apolítico, mas ser humano que se revolta contra a
injustiça, baixou o sarrafo na perseguição dos intelectuais (como
intelectuais, não porque fossem de esquerda), se convertendo em
guru; e, fatalmente, ao voltar ao natural cínico e bem-humorado,
em vilão venal.
Claro, o choque foi grande. Eu próprio tive os cabelos
embranquecidos rapidamente. Chorei de raiva, bêbado, várias
vezes. E não passei os horrores dos torturados ou dos meus
amigos assassinados, Rubens Paiva e Vladimir Herzog. Durante
três anos me negaram emprego na imprensa. Fui interrogado em
IPMs (um do ISEB, lugar e discussões que eu abominava, só
pondo os pés lá uma vez), preso quatro vezes, censurado, etc.
Me endividei e encalacrei. Durante dois meses saí do circuito
habitual do Rio. Mas não esperava outra coisa, esperava pior.
Afinal, o que imaginava a esquerda do tratamento que receberia
de uma ditadura de direita?

Não é que eu me opusesse ao protesto. Era o que nos


restava de luta, marginalizados e reprimidos. O que não aceitei,
isto sim, foi o coro de vitimização, surdo à autocrítica. Jango se
tornou intocável e fui repreendido por criticá-lo. Nós não
passávamos de inocentes carneiros a quem lobos maus vedaram
o acesso à água, usando pretextos desonestos e cruéis em
intenção.

Veio o nojo. E a necessidade de revisão. Quanto mais a


esquerda gritava contra a intervenção americana, inequívoca, me
aumentava a vontade de situar o Brasil no contexto mundial.
Exemplos: quem pagaria a conta da nossa revolução? Em 1962,
Kennedy e Khruchev se arreglaram sobre os mísseis em Cuba. A
linha do PC prevaleceu. A retirada de Khruchev, de rabo entre as
pernas, foi descrita como “grande vitória”, pois Kennedy se
comprometera a não invadir Cuba. A segunda parte é correta,
mas a decisão decorreu de raciocínio tático e não de diktat
soviético. Kennedy sabia (o que aprendi nos EUA) que um
assalto convencional dos EUA a Cuba, à parte o escândalo
mundial, já prenunciado no fiasco da Baía dos Porcos,
sacrificaria milhões de vidas americanas, porque as tropas de
Fidel Castro formam o segundo exército das Américas. Kennedy
não estava disposto a pagar o preço interno dessa sangreira.
Preferiram, ele e Robert, montar uma campanha de subversão,
isolamento do país e até de assassinatos contra Castro. Diktat se
houve, no caso, foi ao Estado-Maior da URSS, que se rendeu ao
ultimato de retirar os mísseis, ou seriam bombardeados pelos
EUA, obrigando Khruchev a uma guerra nuclear ou perda
vergonhosa de face.

Neste mesmo 1962 morreu afogado o embaixador


soviético no Brasil, figura importante, membro do Comitê
Central (os 287 homens que governam a URSS). A presença
dele entre nós significava o interesse de Moscou no
progressismo de Jango. Substituiu-o um funcionário menor,
Fomin, homem inteligente e capaz, embora ninguém fora do PC
deixasse de perceber que voltáramos a ponto morto em relação à
URSS. E se não há documentos disponíveis, não se duvida que
no arreglo Kennedy-Khruschev havia a pré-condição de “fora do
nosso quintal”, ditada pelos EUA. Outro exemplo é a
extraordinária displicência da URSS quanto ao governo Allende.
Não há em toda a papeleira revelada do governo Nixon, na
ligeira autocrítica americana pós-Vietnã e Watergate, a menor
menção de que Nixon ou Kissinger, ao armarem o golpe contra
Allende, temessem sequer um protesto soviético. Isso não é
acidental.

Essas coisas todas me afastaram do rebanho, ao qual, de


resto, me juntara contra a vontade e temperamento. E foram
fundamentais em fazer ressurgir minha deslocação no e do
Brasil. Educação na infância e adolescência me ensinou a não
levar a sério o “deitado eternamente em berço esplêndido”. A
assimilação até onde foi, não muito profunda, tinha sido penosa.
Mas se concretizara.
Considero um given, donnée, a brasilidade. É a língua-
mãe, a impregnação inconsciente de costumes, hábitos, o
mergulhar profundo num ambiente cultural. As resistências
críticas nunca cessaram de todo e se converteram, entre 1955 e
1964, na necessidade imperiosa de mudar o que eu detestava, o
que nos parecia possível nessa quase década, em que se a
organização social permanecia sórdida, o país marginal e sem
futuro testável em lógica, o pensamento criador fluía livre, nos
limites de classe média, resguardados por um clima de liberdade.
Considerem que apareceu o novo teatro, o cinema novo, Senhor,
a modernização da imprensa no Diário Carioca e Jornal do
Brasil, o humor crítico se expandiu de Millôr a Sérgio Porto; o
comércio de idéias, o experimentalismo político e estático,
conquanto mais teórico do que prático, alargavam vistas e
sugeriam uma variedade rica de saídas. Se o
desenvolvimentismo era basicamente fajuto, pois pagando ao
estrangeiro um preço acima dos nossos recursos e deixando
intocada a mortalha agrária (que, se não removida, excluirá a
industrialização produtiva), ainda assim nos dava uma aparência
e gosto do que poderia ser desenvolvimento verdadeiro.

Meus problemas de adaptação ao que aderi de corpo e


alma (até certo ponto) foram maiores que os de outros amigos,
por motivos complementares à insegurança de identidade
decorrente da ascendência estrangeira. É que o mundo de classe
média, no Rio, era fechado. Minhas experiências se limitavam a
dois colégios de elite, São Bento e Santo Inácio. Se o São Bento
Internato nos isolava da plebe, o Santo Inácio ficava a
quarteirões da minha casa, nós, família, já de volta a Botafogo. E
de Botafogo fazíamos o circuito Copacabana e Ipanema. Nunca
estive, até hoje, em Bangu, Bonsucesso, Penha, etc. (exceto de
passagem, no fedor da Avenida Brasil), nos subúrbios, em suma.
E é difícil explicar a gente de menos de 40 anos as diferenças
entre o Rio dos anos 50, pré-Juscelino, e o que veio depois.

Existia, claro, o pau-de-arara, o pobre, a personagem do


morro, mas em quantidades muito menores e não
“intromissivas”. As ruas da Zona Sul eram “nossas”, da classe
média e acima. Se fazia footing na Avenida Copacabana ou
Atlântica a qualquer hora, sem risco. A explosão imobiliária
ainda estava em fase de cartucho, sem estopim. Não existiam o
entulhamento e apertos de hoje, o barulho infernal de
automóveis sem silenciador, poluindo o ar, ou as multidões de
miseráveis e de prostitutas dos diversos sexos que se tornaram
constantes atuais; e nem a Zona Sul se tornara o alvo dos
aspirantes nacionais à classe média, que não nos permitem mais
um metro de solidão. As redes de esgotos e o suprimento de
energia davam para o gasto, apesar de que a Light jamais
cumpriu o contrato, tomando dinheiro do governo, do povo, à
menor exigência de melhoria. Havia telefones regularmente
fornecidos...

O Rio, apesar de capital, no meu ângulo de visão de classe


média Zona Sul, sugeria uma vila grande em que todos nos
conhecíamos, de vista ao menos. Nos cinemas melhores, Metro,
Roxy, ou meio “fora de mão”, o São Luís, nos reconhecíamos,
quando garotos nas sessões das 2 da tarde de fim de semana, e
adolescentes, na sessão das 10 da noite, em dias de estréia
(segunda ou quinta-feira). Havia uma bobagem em filmes muito
esperados: o estouro da boiada, em que todo mundo corria ao
assento se atropelando, mas o bom humor, brincalhão sem
malícia, e amabilidade carioca prevaleciam do grão-senhor ao
proletário. Tínhamos cafés em que, à francesa, consumíamos
horas pelo preço de média simples (o Vermelhinho, em frente da
ABI, foi o centro intelectual e das artes). Os bares da praia eram
freqüentáveis também a perder de vista, no chope e sanduíche. A
fórmica horrenda, ou o ridículo apóstrofo (Joaquims) americano,
permaneciam inéditos. Os botequins ofereciam mesas de
mármore, servidas por meninos portugueses, a quem
atazanávamos chamando de “paneleiros” (bichas).

Consta que no meu nascimento, em 2 de setembro de


1930, o tenente revolucionário Alencastro Guimarães tomou o
quartel da Polícia Militar, próximo da minha casa (hoje
substituído por uma porqueira imobiliária. Preferia os meganhas,
com quem jogávamos sinuca, limpando-os). Conheci Alencastro
nos anos 60, a radicalização fervendo. Perguntei-lhe se a bengala
que sempre carregava continha os mesmos tesouros de que tanto
falavam (o folclore sobre ele é imenso, de cenas gaúchas de
mulheres arrastadas pelos cabelos na escadaria do Copacabana
Palace, a assuntos que omitirei, à curiosa declaração de que se
tornara “um dos patriarcas da República”, o clássico exemplo do
revolucionário que reverte a conservador). Respondeu: “No
castão, para servir aos amigos”.

Lembrei-me, na hora, de uma cena do passado, que, no


clima de 1960, parecia de conto de fadas. O namoro da bela filha
de Alencastro, Tereza, e Aluísio Munir Freire, que os íntimos e,
claro, a imprensa, chamam Pecô. “Toda” a Copacabana
acompanhava a cena, na porta do Roxy. Pecô, de família ilustre
mas, no eufemismo polido da época, “não abonado”, se escondia
atrás de uma árvore a distância segura (invisível) do cinema.
Chegavam Alencastro, chaperon, e Tereza. Procuravam Pecô,
não achavam. Alencastro comprava as entradas. Pecô então
surgia apressado, cumprimentando e dirigindo-se à bilheteria, no
que era sustado pelo chaperon. Ríamos sem maldade, porque
sabíamos que não era “baú”, e, sim, amor, temperado pela
necessidade e fragilidade humanas.
No meu encontro com Alencastro, que durou horas, o
castão se convertera em artigo de primeira necessidade para nos
atenuar as angústias.

Raros recusavam o democrático bonde, aberto e aliviando


o calor, a começar por Cincinato Braga, milionário, dono do
Banco do Comércio. Qualquer senhora respeitável nada tinha a
temer dos destituídos, que raramente ousariam assustá-la. Se
destituídos em último grau, havia o taioba, 100 réis a passagem,
contra 200, do regular.

Miséria escondida ou distante não é ausência de miséria,


naturalmente, mas minha realidade apreendida era essa, às
vezes, momentânea e passageiramente distur-bada pelos
editoriais fortes do Correio da Manhã sobre a indignidade
secular cometida contra os nordestinos, hoje agravada com o
suposto progresso. Vivíamos então, como hoje, da mais-valia
dessa massa esquecida (não restrita, em absoluto, ao Nordeste)
na História, lentamente explorada e assassinada por uma
criminosa classe dirigente, que sempre favoreceu o chamado
“modelo exportador” (engoliu-o, em verdade, gostando...),
indiferente aos recursos vastos da nossa vasta e semi-habitada
terra, terra que ignora exceto como gazua de especulação às
custas do dinheiro do povo no Banco do Brasil, ou fonte, nas
cash crops (colheitas lucrativas) exportáveis, de moedas
estrangeiras, enquanto o resto recebe amontoados de “papel
colorido” sem valor real. O fator humano, no campo brasileiro, é
o supérfluo, o sacrificável. Gerou massas que, levadas a extre-
mos de desespero e dizimação, nos encheram as cidades, nos
tomaram os espaços de antigamente e já nos assaltam, uma
progressão lógica e inevitável. Um dia as cidades cairão
definitivamente e uma nova era de trevas se abaterá na cabeça de
todos, menos dos responsáveis, que fugirão de Concorde a Paris
ou Londres, baldeação da Suíça.
Eu nem sonhava com isso, jovem, numa cultura que,
apesar de confortável, já me era menos fácil de me inserir, por
tradição de família e pelo soterramento afetivo que sofrera no
Internato. Vivia, como Adolpho, na imaginação, mas me
embebendo e embebedando de Shakespeare, Eurípedes, Juvenal,
Swift, Joyce, Eliot, o que me caísse nas mãos, e Adolpho tinha
vasta biblioteca européia e me pagava generosamente o que
faltava. Os Heilborn, apesar de não intelectuais propriamente,
eram poliglotas, viajados e conscientes da cultura. Típicos da
geração deles, encontravam em Anatole France o que eu
descobria em Shaw, Austen ou George Eliot.

Nenhum autor brasileiro, certo. Descobri-o e ao Brasil


real, em 1951, quando no Teatro do Estudante fui de Manaus a
Recife, Teresina inclusive. Vi em Fortaleza centenas de seres
humanos encostados em prédios, no chão, pedindo esmolas. Eu
me reconheceria e a eles nesta passagem de A ideologia alemã:
“Os indivíduos, na imaginação, se supõem mais livres que antes,
sob a burguesia, porque a vida lhes parece acidental. Em
verdade, são menos livres, pois mais sujeitos à violência das
coisas”. Mas li Marx e Engels depois da viagem a Norte e
Nordeste, tema do próximo capítulo.

Quem sou e por que sou? A brasilidade, já disse, me


ocupa, coexiste com o resto de mim, que é apátrida. Não
acredito em nacionalismo e em nação como valor de qualquer
espécie. Nação é, quando muito, uma concentração tribal e
cultural, intrinsecamente reacionária, porque pressupõe, ainda
que em aspiração frustrada, superioridade de um povo sobre
outro, o que é o caminho certo da exploração e tirania. E deixou
de fazer sentido quando é óbvio que a economia se tornou
multinacional e interdependente, irrevogavelmente. Na melhor
das hipóteses, é defesa do fraco, mas que aspira, se possível, a
subjugar o forte que o oprime. A História tem se resumido nisso,
na prática. Prefiro moralmente o trans-nacionalismo da Igreja
Católica e da internacional socialista que, ao menos, em teoria,
visa à fraternidade universal.

E há o aspecto narcisista e ridículo que não parece ocorrer


aos ideólogos do nacionalismo. Hannah Arendt disse-o melhor
que ninguém. Numa resposta a Gershom Scholem, o erudito
hebraico, acusando-a de não amar o povo a que pertencia, o
judeu, povo que, pré-Israel, tinha mais razões que a maioria de
defender-se no nacionalismo, a incomparável Arendt escreveu:
“Você tem toda a razão, me falta ‘amor’ (aspas no original, P.
F.) desse tipo, por dois motivos: nunca ‘amei’ povos ou
coletividades, nem os alemães, nem os franceses, nem os
americanos, nem a classe operária, ou coisa semelhante. Em
verdade, amo apenas meus amigos e a única espécie de amor
que conheço e em que acredito é entre pessoas. Segundo, esse
amor aos judeus, desde que sou judia, me parece suspeito. Não
posso amar a mim mesmo ou aquilo que é parte de mim e de que
sou parte...”

As vozes civilizadas escasseiam. As poucas que restam


nos, me sustentam.

IV. A DESCOBERTA DO BRASIL

NO SANTO Inácio, em 1943, fiz um grande amigo,


Aguinaga, um dos raros que sobraram da infância, tantos desvios
e curvas experimentei. Marcelo e eu nos vemos pouco, hoje. Ele
é pecuarista e homem de negócios, pai de cinco filhos. Partilhou
meu interesse literário e cultural, mas variou mais. Um tempo
consumiu colecionando armas. Depois, caçando na África.
Finalmente, filmando os animais que perdera o gosto de matar.
A intimidade entre nós permanece viva, apesar da distância.

Éramos vizinhos, mas nos conhecemos na fila indiana de


entrada do colégio, Marcelo provocava risos. Alto, 1,85 m,
mantinha calças curtas. Respondeu à chacota em palavrões,
reconhecendo o ridículo da roupa, porque, altura à parte, é do
tipo cabeludo. Perguntei-lhe se não morava, etc., certo,
explicando que terminara de ser expulso do São José e que a
mãe o enfiara naquele “colégio de viados”. Em que ano, eu quis
saber. Terceiro. Que turma? Terceiro-primeira. Chegou minha
vez de rir.

O terceiro e quarto anos ginasiais eram os Maiores. Os


padres preservavam deles uma turma do terceiro, a terceiro-
primeira, para meninos fisicamente subdesenvolvidos e tenros,
pois os Maiores se caracterizavam pela liberdade brutal, de resto
tacitamente aceita pelos jesuítas, que sabem dosar a severidade.
No segundo ano, a repressão era forte. Os jesuítas acreditavam
que a puberdade coincidia com o momento de martelar os alunos
à disciplina. Quase fui expulso, pois suspenso três vezes no
segundo ano, o que garantia “bilhete azul” (a expressão usada.
Não se é expulso de colégio jesuíta e, sim, convidado a retirar-
se). Prometi ao prefeito, padre Coelho, que não me deixaria mais
prender (três prisões num mês, uma suspensão) se ele me
garantisse continuidade condicional. Cumpri e cumpriu.

Nos Maiores, o clima mudava. Basta dizer que na primeira


conversa com um confessor, ele me perguntou, para espanto
meu, se eu tivera gonorréia (sic) verde, a resposta é não e
continuo ignorando o significado de “verde”. Conheço “de
gancho”. Os padres deduziam que nos Maiores a sorte já estava
lançada. Tratavam-nos como adultos. Um ano antes a menção a
doenças venéreas daria bolo.
Como Marcelo foi parar na terceiro-primeira que,
inclusive, medida de proteção, ficava no andar abaixo, dos
Médios (segundo ano ginasial)? Um equívoco fácil de explicar.
Os pais de Marcelo, o ginecologista e obstetra célebre, Armando
Aguinaga, e mulher, Alice, eram católicos devotos, ele
carolérrimo, generoso contribuinte em dinheiro e propriedades à
Igreja. Os jesuítas imaginaram que o “filhinho” tinha sido
cortado no mesmo molde.

Marcelo durou um recreio na terceiro-primeira. Nesse


recreio inicial, havia futebol nas turmas e os melhores formavam
o time da dita, e os melhores dos melhores (nos Maiores), a
seleção do colégio (imbatível há 15 anos quando deixei o Santo
Inácio), Marcelo fez quatro pimpolhos baixarem à enfermaria e
xingou o juiz. Estava nos Maiores na mesma tarde, em turma
diferente da minha, terceiro-segunda e eu terceiro-quarta, em
que meu colega de banco, um dos maiores bagunceiros de
colégio que conheci, hoje é um dos mais responsáveis, sóbrios e
competentes jornalistas do Brasil, Evandro Carlos de Andrade,
diretor de jornalismo de O Globo (antes editara o Diário
Carioca, quando o reencontrei, e ocupou cargos de chefia no
Estado e Jornal do Brasil).

Marcelo, em verdade, preferia a companhia de meu irmão


Fred, eram dois anos mais velhos que eu. Brigaram sei lá por
que e nos herdamos um ao outro. Marcelo me levou ao primeiro
bordel. Tomávamos pileques de martíni seco e cerveja, mistura
que hoje, suspeito, me derrubaria em alguns goles.
Agüentávamos firmes. Namoramos e “desvirtuamos” um
número considerável de “meninas de família”. Ele muito mais.
Se hímen fosse troféu de parede apreciado, Marcelo não
encontraria problemas de decoração. Fomos esporádicos
delinqüentes juvenis, participando da turma de Fernando, este de
uma coragem suicida, capaz de enfrentar a todo custo, ou seja,
contra handicaps tecnicamente insuperáveis, qualquer parada.
Basta um exemplo. A turma dominante era dos chamados
cafajestes, chefiada pelo piloto da Panair, Edu (morreu entrando
numa montanha. Não se sabe como, pois profissional impecável,
sempre inteiramente sóbrio 48 horas antes de voar), e
Mariozinho de Oliveira. Fernando namorava Carmem, do posto
4. Edu e amigos faziam ponto na altura do posto 3, no Alvear e
praia. Fernando e Carmem passam de bicicleta. Assobios.
Fernando deixa Carmem em casa. Volta, sozinho. Apanha barra
de ferro e desce à praia, a Edu, cercado de várias montanhas de
músculos (inclusive meu amigo Paulo Soledade). Avisa: “Olha,
vou passar todo dia com aquela menina. Se assobiarem outra
vez, meto esse ferro na cara de vocês”. Músculos se
flexionaram. Fernando, é claro, teria sido massacrado.
Precisamente por isso, deduzo, Edu, que, por trás da brincadeira
agressiva, tinha bom senso e cabeça, respondeu: “O.K., garoto,
pode ficar tranqüilo que não há repeteco”. Olhando Fernando,
uma pessoa observadora concluiria que, pará-lo, só matando. E
os baderneiros desse tempo, do meu conhecimento, não
excediam limites agora ultrapassados por tantos psicopatas.

Nossa participacão, de Marcelo e a minha, foi marginal.


Lembro-me que ajudamos a desmontar vários bailes de
formatura e botequins. Dos bailes lembro o do Sacré Coeur de
Marie, pelos gritos das freiras, ao verem Fred (não meu irmão),
um monstro de forte, arrancando as pesadas cortinas do salão,
cabelo aparado, ao contrário do equivalente bíblico. E de
botequins lembro-me de um pileque iniciado no posto 4, pela
manhã, que terminou no D’Angelo, em Petrópolis, então centro
de respeitabilidade e não o covil de maconheiros de hoje, em
que, de calção de banho, meninos e meninas (seria divertido
citar algumas, mas me abstenho), expulsamos todos os
presentes, atirando-lhes insultos e azeitonas, ou, no caso dos
recalcitrantes, Fred e outro gigante, Modesto, pegando-os pelo
fundilho das calças e arrastando-os ao (raso) rio Piabanha, no
qual também tomamos banho depois da “festa”. A polícia veio.
Nos olhou e medrou.

Lembro-me que bebíamos o dia inteiro, que havia sempre


escravas brancas atendendo nossas variadas necessidades e que,
inocentemente, nossa única droga era éter, ou quelene. Faziamos
o carnaval do sábado no Copacabana Palace, Quitandinha,
domingo, Municipal, segunda, e Iate, uma suruba mal
disfarçada, terça-feira (“é hoje só”; no nosso caso, não, porque
recomeçávamos quarta-feira, considerando carnaval farra de
amadores). Lembro também uma noite no Quitandinha em que
nos barraram a entrada, pondo uma patrulha do Primeiro
Batalhão de Caçadores, baionetas caladas (é essa a palavra?).
Fernando, tipicamente, pulou de pés juntos sobre as baionetas,
derrubando três soldados, pobres e assustados recrutas. Nós o
recolhemos em tempo, antes que o tenente, Pinto, recobrasse o
prumo mental, disturbado pela guerrilha. Heleno (da turma Edu
e Mariozinho), o craque de futebol, ia tentar o mesmo ataque,
mas aí Pinto já estava prevenido e dissuadimos Heleno. As
turmas se uniam contra a autoridade, o inimigo comum.

Guardei o nome Pinto porque duas moças muito


conhecidas, vestidas de sujo, que nos acompanhavam,
insultaram o militar no chamado baixo calão, inclusive com os
predizíveis trocadilhos que “Pinto” rende. O homem ficou
pasmo, envergonhado, enfurecido. Jovem de inequívoca
pequena classe média, do interior, jamais lhe ocorrera que as
filhas da classe dirigente conhecessem e muito menos usassem
aquele vocabulário. Não vou nomeá-las, porque, entre outras
coisas, anos atrás, tentei junto a uma delas glosar o episódio, e se
esquecera completamente...
Fernando tinha problema familiar grave. No com-ment.
Não sei que fim levou. Segundo os boatos virou de padre a
fazendeiro. Era amigo fiel, generoso e pronto a tudo pela turma,
desde que não lhe catucassem o ferimento (interno) na mente. O
pai dele foi meu pediatra e de toda a minha geração, e Fernando
posava de bebê modelo nos livros do pai, que Irene e outras
devoravam.

Friso que participei desses episódios como coadjuvante


dispensável. Nem membro permanente da turma fui, ou
Marcelo. Não sou forte ou bravo. Sou pesado e bato pesado,
quando me irritam demais, ou não há alternativa, o que era
rotineiro, saindo em grupo, para dizer o mínimo. Os centuriões
eram Fernando, Modesto e Fred. Lembro-me de haver criado
apenas um caso, em Teresópolis, numa festa de carnaval da
gente da cidade, onde devo ter feito algo com moça que parecia
dispor de legião de parentes ou amigos puritanos, porque todos
uma hora lá resolveram me atacar, no que foram impedidos por
Fernando e Modesto, que lhes barraram o caminho, interpondo
mesas e cadeiras, enquanto me davam fuga, e vieram logo atrás.
O episódio mais aterrador é que desci uma noite a velha estrada
de Petrópolis no conversível de Fernando, ele guiando
naturalmente, enquanto partilhávamos quase duas garrafas de
vodca. O probleminha é que o carro “carecia” de freio de pé...

Alguns mitos merecem ser desfeitos. É uma suposição


freqüente que as chamadas moças de família começaram a dar
nos anos de 60. Devo ter conhecido todas as exceções dos anos
40 e 50, portanto, porque desconheço a que não desse, nesse
meio (não estou falando das escravas brancas). De resto,
“célebre cirurgião plástico” iniciou a carreira triunfal repondo o
que Luzia perdeu na horta, as diversas luzias nos contando,
velhas amigas, que se viam obrigadas a isso a fim de casarem
com paulistas ricos, os quais exigiam o selo de castidade. A
diferença de comportamento entre os adolescentes do meu
tempo e os de agora é de relações públicas e publicidade. Os de
hoje mal se contêm enquanto não nos contam as aventuras
sexuais, que julgam cheias de originalidade e interesse a
estranhos, o que é mais um indício do triunfo do narcisismo na
nossa cultura de comerciais. No nosso tempo havia discrição,
ou, ao menos, as intimidades ficavam entre os íntimos. Prefiro
assim. Talvez seja preconceito de idade.

Descrevo essas cenas sem ordem cronológica. O período,


em todo caso, é de 1943 a 1953. E a cronologia não é
importante, porque as constantes não mudaram (continuava
lendo como um obsessivo), a baderna era substituída por longas
pausas de tranqüilidade, eu não tinha ligações ou compromissos
fixos de qualquer espécie. Vivia do jeito que desse, às custas do
generoso e paciente Adolpho, com quem mal falava, exceto para
lhe dar estocadas.

O velho Aguinaga construíra um enorme sítio em


Secretário, além de Petrópolis, um desvio de Pedro do Rio (em
seguida a Itaipava, na estrada União Indústria). Passávamos
verões lá, Marcelo e eu. Aprendi a montar a cavalo, depois de
catorze tombos num dia (me emperraram o mindim direito um
pouco), instruído por Sérgio Aguinaga, irmão de Marcelo,
médico (ele e Hélio Aguinaga seguiram a carreira do pai). Vi os
casamentos dos dois, Marcelo e eu tomando a providência de
chegarmos à recepção na frente dos convidados, arrebanhando
“adegas” que bebemos ao delírio. Fui “adotado”, mais ou
menos, pelos Aguinagas, criaturas extremamente amáveis. Outro
“adotivo”, amigo de Fernando Aguinaga, alegria das mulheres,
era um jovem esforçadíssimo, lutando contra a pobreza e a falta
de vantagens iniciais. Se chamava Ibrahim Sued. Nos
conhecemos em 1946 ou 1947. Nunca vi alguém tão disposto a
encontrar uma posição na vida, à custa de sacrifícios, o que
representava, vale notar, atitude muito pouco brasileira, na
classe média, cujo sonho se resumia em “arrancar do velho” o
que fosse possível, um anel de doutor em direito, emprego
público, vida mansa, praia e chope gelado. Sempre nos demos
bem. Muita gente o desencorajava e ria das ambições dele. Eu,
não. Quem o lançou na imprensa escrita foi meu faturo amigo,
Joel Silveira, mas quando começou a escrever me mostrava
textos e dei-lhe mãozinha técnica. Ibrahim é fiel aos amigos.
Devo-lhe incontáveis gentilezas. Ao voltar dos EUA, em 1956,
descobri-o todo-poderoso colunista de O Globo. Nenhuma
surpresa. Tenacidade assim sempre paga dividendos.

O Dr. Aguinaga se cansou do sítio, porque os filhos não


gostavam, excetuando Marcelo e a filha mais moça, Vera.
Aproveitamos o quanto pudemos. E nas ausências da família,
Marcelo promovia bacanais, a maioria das moças se chamando
“May”, “Stuart”, etc. não eram inglesas. Vinham do teatro-
revista. A memória, vaga e exagerada, desses acontecimentos
permanece viva entre os velhos habitantes de Secretário, que
provaram, à distancia, visualmente, na nossa passagem ruidosa,
doses cavalares do pecado na cidade grande.

De notável, francamente, só me lembro que dois amigos se


casaram com essas “não tem tu, vai tu mesmo”, provando que
mesmo nos anos 50 a tolerância sexual era maior do que o
anunciado. Lembro-me de uma delas, N., já casada, cricri, me
contando graçolas e dificuldades do segundo filho, que trazia no
colo, carinhosa, em nada “diferente” das mães ditas direitas. E
no entanto N., no palco, às vezes recebera do maître uma nota de
50 cruzeiros (quantia equivalente hoje a 30 mil) de algum
freguês desconhecido, pela qual pagaria depois do espetáculo
na(s) posição(ões) tradicional(ais).
O mito a desfazer aqui, desapontando os que sabem dessas
coisas apenas devorando revistas de sexo e os moralistas
convencidos que sexo livre destruirá o mundo antes das armas
nucleares, é que “orgia” é um tédio. Talvez seja opinião
meramente pessoal, de quem não foi talhado para isso
(continuava, repito, lendo e indagando, e até nos fins de semana
orgiásticos levava dois ou três livros na maleta). Duvido. Afinal,
sei analisar caras e estados de espirito, não é à toa que critiquei
teatro.

Bebíamos cada vez mais, acredito, porque nos aborrecia


aquela vida e a inconsciência alcoólica nos ajudava a temperá-la.
Sexo de graça e em excesso satura, gera indiferença. O corpo
excepcional (em média) das participantes e “convocadas”, uma
vez provado no café, almoço, lanche, jantar e ceia, se torna tão
atraente quanto o saco de batatas que evitávamos na rua. Depois
de um tempo, usávamos cantárides, um afrodisíaco perigoso (e
verdadeiro), o que é sintoma do ódio. Fred tomou demais um
dia, jorrava sangue, tivemos de chamar ambulância. O médico,
espantado, logo posto em ordem por um safanão de alguém,
aplicou-lhe cânfora e finalmente o mastro baixou, nós,
sordidamente, às gargalhadas.

Messalina não se saciava, certo, mas era ninfo, o que é


doença.

Nos excedíamos na violência, hoje deduzo, porque sempre


envolvia riscos, não tinha desfechos predeterminados.
Conhecemos todos os prontos-socorros do Rio. Aprendi de útil
onde se deve bater e evitar que nos batam, se possível. A
velocidade e a pontaria são a alma do negócio. Não se perde
tempo em “exposição de motivos”, velho hábito peroratório
brasileiro. Se vai ao saco, ao pescoço ou ao rim, aos pontapés,
de preferência, e sempre de lado. Ainda assim, quantas vezes vi
Fernando segurar um do grupo, que se exaltara contra alguém
(nenhum motivo real), que apenas exercia o direito de entrar
onde estávamos. Fernando: “Porra, deixa esse cara pra lá. Aí,
vira outro. Não estou a fim”. “Virar” era beber. Fernando sabia...
sabia... sem ter lido Bellow...

Acreditem: uma boa moça que nos excite ternura, retribua,


que nos entenda, que nos acompanhe, que esteja presente e
solidária quando o mundo desaba sobre nós, o que é freqüente,
vale todas essas exibições de juvenilia que mencionei (omitindo
muitos detalhes...). As feministas se queixam de que usamos
também as que amamos. É provável que estejam teoricamente
certas, mas não é por esse critério que as relações bem-sucedidas
entre homem e mulher funcionam. E desconheço mulher querida
e indispensável que reclame contra essa suposta sujeição aos
homens. Não pretendo generalizar. Apenas, como jeanne D’Arc,
pergunto: por que julgamento posso julgar se não o meu? O que
inclui décadas de observação.

As feministas ajudam as enjeitadas a encontrarem uma


identidade, ou a se consolarem. Fortalecem as que desejam um
papel independente. Estimulam a mulher trabalhadora a não ser
explorada. Tudo muito útil, sem dúvida, e socialmente
progressista. É verdade que se sente em muitos desses
programas e retórica raiva pessimamente disfarçada à mulher
que atrai homens e a homens que se deixam atrair. É raiva de
carência, ou raiva crítica, justa, ou, ao menos, racionalizável?
Cabe às mulheres responderem. Modestamente, sigo Louis
Auchincloss que vê no feminismo, em síntese, uma forma de as
mulheres se protegerem delas próprias, a alternativa
conciliatória ao arranca-rabo antigo, implícito na frase “agarre o
seu homem”. E expando o que disse acima: em matéria de
relações íntimas, quimicamente compatíveis, cheias de
complexidades e contradições, entre homem e mulher, as
feministas nada têm a declarar. O mundo que propõem, de
igualdade afetiva, de divisão de trabalho “socialista”, é uma
tolice iletrada, porque o mundo geral não é assim (não
distinguindo entre sexos) e porque biológica e psicologicamente
possuímos, homens e mulheres, uma variedade incatalogável, de
que permanecemos, na maior parte, ignorantes, o que o próprio
Freud foi o primeiro a admitir e nenhum “revisionista” o
contradiz. Fomos, minha geração, a vanguarda da
permissividade. Certo, houve sempre, presumo, boêmios e
baderneiros, desde que as sociedades estabeleceram regras
(restritivas, supostamente de proteção mútua) de convívio. E as
classes dominantes nunca praticaram o que pregaram. Juvenal,
favorito de adolescência, tem páginas satíricas admiráveis sobre
as senhoras da sociedade romana que mantinham um “flagelador
residente”, escravos que as chicoteavam, produzindo-lhes
orgasmos. Oscar Wilde não foi preso por ser homossexual, o que
a aristocracia percebera (e cerca de 500 membros da
aristocracia, muitos da Casa dos Lordes, se refugiaram em Paris,
no segundo julgamento de Wilde, medida de precaução), e, sim,
porque deu escândalo à plebe, assustou os cavalos na rua, na
frase da atriz Mrs. Patrick Campbell.

Não inovamos, portanto. Mas há uma nuance sociológica


importante. No tempo de Adolpho, ele me contou, a boemia era
mantida distante do lar com “muralha de Berlim”. No nosso
tempo, a muralha começou a desabar e hoje restam escombros,
ou improvisações de material ordinário, que não resistem ao
menor sopro.

Os sintomas de desagregação saltavam aos olhos. Os mais


significativos, a meu ver, foram: o álcool pesado, uísque, etc., e
o jogo a dinheiro se tornaram freqüentes no lar de classe média.
O jogo, buraco, a princípio, que, difícil, aguaram em biriba, pif e
variantes, se tornou em verdade o centro social de famílias, ao
menos até que a televisão invadisse e conquistasse. Não fumar
(incluindo mulheres) era caretismo. Ainda peguei restos do
tempo em que moças não fumavam em público. As mesmas
caem bêbadas em bares e são chaminés, de uns tempos para cá.

Se se trepava, não era costume alardear. Hoje, quem não


alardeia corre o risco de ser considerado impotente ou coisa que
não quer revelar.

As mulheres, o barômetro moral da sociedade burguesa,


oferecem as melhores ilustrações. Não apenas propagam o que
fazem na cama a estranhos. Se exibem seminuas à plebe ignara.
E, antes, notávamos a relutância com que nossas mães
envelheciam (a minha morreu pré-transformação). O
cristianismo, nossa base ética, não importa quão avacalhado na
prática, pressupunha que a mulher, casando, constituiria família
vivendo em função de lar, filhos e marido, abandonando
vaidades e fantasias líricas de virgem solteira. Esta desapareceu
na frente de tudo. Algumas se decidiram por carreiras, ou
uniram papéis tradicionais a trabalho, o que é sinal de progresso,
ou necessidade. Falo é das donas-de-casa que permaneceram nos
postos.

A mãe que vivia nos e pelos filhos, agora, quarentona,


botava os bofes para fora na mesa de jogo (melhor reveladora de
personalidade do que o divã do analista). De uísque e cigarro na
mão (um tempo era chique fumar depois de cada prato. Ou seja,
entrada, cigarro; pièce de resistance, idem, sobremesa, idem,
café, idem), fazendo o proibido aos filhos na cara deles; coroa se
pintava, feito moça, produzindo os resultados grotescos de
sempre, se vestia (pretensamente) à la estrela de Hollywood, e,
claro, uma coisa levando a outra, o adultério, a promessa ou
confirmação nada sutis, aparecia claro a quem tivesse olhos, e
adolescentes enxergam fundo os pais.
Os filhos mais e mais ficavam entregues a si próprios,
solitários, abandonados, carentes de afeto e diretrizes, e
procuravam chamar atenção numa cópia carregada e não raro
delinqüente do que viam em família. Os desquites começaram a
competir com os casamentos. No segundo casamento, havia uma
“cerimônia” na embaixada da Bolívia. Nenhum valor legal, ou
nada que substituísse a continuidade de gerações dentro de
certos princípios que se, no passado, sofriam infrações, estas
cobriam de vergonha os responsáveis, enquanto que no meu
tempo a “queda” se converteu em rotina não criticada sequer.
Durante anos, famílias tradicionalistas não recebiam mulheres
casadas na “Bolívia”. Em breve, mudaram de posição porque os
próprios filhos casavam e descasavam ao menor capricho. Os
valores burgueses se desintegraram nessas coisas.

No primeiro capítulo, gozei Daniel Bell que considera a


transformação de tudo em bem de consumo, corpo e alma
inclusive, uma das “contradições do capitalismo”. Escrevi que
era o próprio capitalismo no estágio atual, em decadência da
ética da produtividade à lazeira do consumismo. Nada tenho a
acrescentar nesse contexto.

Há, porém, a questão histórica brasileira, específica. Os


valores (superestrutura, diria Marx) que sustentavam a
impostura burguesa desapareceram na Europa na guerra de
1914-1918, no lodaçal de Somme, Ypres, etc., em que morreram
a flor da elite da juventude e os habituais proletários,
provocando em reação o Outubro soviético de 1917. Essa guerra
abriu sob pretextos idealistas de lado a lado. Thomas Mann
apoiou o Kaiser contra a barbárie do Tzar e reclamando o lugar
ao sol negado à Alemanha, produtiva e culta, pela perfídia
inglesa e a cupidez francesa. Os ingleses afirmaram estar
defendendo a “pequena Bélgica” estuprada (a pobrezinha
dispensa comentários, depois que lemos Conrad, em particular
Heart of Darkness). O idealismo, por ser estúpido, não perde a
credibilidade psicológica. A primeira vez que fui a Oxford me
comoveu ler, em todas as faculdades, os nomes dos que
tombaram em combate, não excluindo os filhos das mais
poderosas e aristocráticas famílias. Em verdade,
proporcionalmente, morriam três oficiais para cada soldado. Dos
três mil oxfordianos guerreiros sobreviveram somente 300,
vários inapelavelmente mutilados.

Quando se tornou claro o verdadeiro sentido da guerra, a


disputa interimperialista dos adversários, a burguesia, não é
exagero, faleceu espiritualmente. Toda a literatura e arte do
período expressam esse tema. T. S. Eliot negou inúmeras vezes
que The Waste Land tratasse disso, afirmando que descreveu
uma crise pessoal, apenas. Bobagem. Há não só várias
referências específicas à inutilidade e gigantismo do morticínio,
como a segunda stanza do poema (“que raízes se agarram”, na
tradução excelente, ainda que inevitavelmente falha, de Paulo
Mendes Campos, que merece reedição e permanência nas
livrarias) resume sucintamente a justaposição do mundo morto,
que Eliot admirava e gostaria de ter preservado, e a “rocha
vermelha”, a revolução bolchevique.

A burguesia, obviamente, se readaptou à nova situação, ao


social-darwinismo, que só fez crescer até nossos dias. Em defesa
de si própria, tentou assustar os explorados com os horrores
maiores da “rocha vermelha”, no que, a partir de Stálin, recebeu
preciosa colaboração da URSS. Lutamos essa batalha de
convicções e pressuposições nos nossos dias, conscientes ou não
desse fato, que permeia de mil maneiras nossa vida.

A burguesia não conseguiu foi preencher o próprio vazio


espiritual e moral. No resto, considerando os crimes que comete
e o preço de banana que paga, não se tem saído mal. Continua
retendo a parte de leão dos recursos e riqueza do mundo,
explorando a condição subumana de dois bilhões, metade dos
habitantes da Terra. Conteve revoluções internas, quase sempre
concedendo farta distribuição de migalhas do banquete aos
oprimidos “em casa”. Reconciliou-se, medida de sobrevivência,
com o Estado de Welfare, em que todo destituído recebe
subsídio que lhe permita sobreviver marginal e degradado, e até,
nos países em que o radicalismo desenvolveu tradição forte,
Alemanha e Inglaterra, com a social-democracia, desde que não-
revolucionária. Willy Brandt, em 1969, declarou Marx
“irrelevante”, abrindo assim o caminho a que a burguesia
aceitasse o “domínio” quase ininterrupto dos social-democratas.

Esse feito, nada desprezível, digno de gato de “n” fôlegos,


só é contestado culturalmente, isto é, falo de contestação
conseqüente. Saudosistas incuráveis, à la Eliot, recolheram-se à
panacéia religiosa. Românticos incuráveis e loucos, do tipo Ezra
Pound, viram no fascismo a forma de retornar a um passado
fantástico, às comunidades pré-capitalistas de Atenas e similares
gregas (presume-se que antes da guerra do Peloponeso).

A maioria da nossa arte, porém, arte burguesa, é de


depredação, de uma negação absoluta da fachada artificialmente
reconstituída da burguesia. Não que esses artistas sejam
necessariamente favoráveis a um futuro democrático ou
socialista. Muitos detestam a idéia de renovação como detestam
o presente. E, de qualquer forma, a matéria-prima da
criatividade é o presente. Futurologia é coisa de gente menor, de
astrólogos a tecnocratas.

Da radical subversão de aparências, em Picasso, aos


poemas apocalípticos de Yeats (em particular, “The tower” e
“The second coming”), às negações da harmonia em Webern, à
fria catalogação do genocídio dos judeus por Hillberg, temos um
imenso painel fúnebre da falência moral da burguesia. Até os
relativamente otimistas, como D. H. Lawrence, que acreditava
num individualismo que o salvasse da História, e Thomas Mann,
que (ironicamente) aceita uma troca de casca social, são muito
mais convincentes descrevendo as entranhas do cadáver do que a
possível ressurreição, que é mais esperança ideológica do que
realização artística. Rimos de O amante de Lady Chatterley; O
arco-íris nos esmaga. Em Kafka, a sociedade se tornou uma
fantasmagoria irracional. Em Joyce, a própria palavra, o
primeiro e supremo instrumento da inteligibilidade, se
desmembra em reflexos e variantes de si própria, ou
transmitindo uma cacofonia irracionalista que só se orquestra
esteticamente.

Eu e tantos outros no Novo Mundo, intocado pelo choque


de 1914-1918, percebemos onde estávamos, aonde não íamos,
pela leitura. A sociedade brasileira, marginal, sempre
dependente, presa, em essência, à ideologia feudal,
anticapitalista, antiautocrítica da contra-reforma do catolicismo,
com pequenos retoques do otimismo bocó positivista (também
enterrado na Primeira Guerra), só começou a sentir forte o
cheiro e infecções do defunto de 1918 no pós-guerra de 1945,
quando o capitalismo imperialista, revivido pela segunda
ascendência majestosa dos EUA, derrubou todos os
competidores e nos invadiu, a princípio tratando-nos à inglesa,
nos vendendo caro em troca do que comprava quase de graça,
em seguida, por necessidade de expansão e consolidação, nos
enfiando na armadilha multinacional. Trouxe a cultura do
consumo às elites (que, no Brasil, incluem a classe média) e, não
há saída, a amoralidade da dita, que sem a menor dificuldade
travestiu os valores pré-industriais, pré-choque de

1918, sob que vivíamos na minha infância e parte da


adolescência. Já se disse que a Segunda Guerra foi a última
batalha da Primeira. E a globalização real que representou (ao
contrário da outra) atingiu os mais distantes espectadores e
insignificantes partícipes.

Minha geração viveu precisamente o atravessar da linha


divisória entre o Brasil feudal dependente e esse Brasil
decadente, sujeito a impactos externos da revolução capitalista
que o Segundo Império, fiel à estagnação latifundiária da contra-
reforma, ignorara, enquanto D. Pedro II brincava de raça
superior, cortejando Wagner e o Conde Gobineau, um dos pais
do racismo. E, claro, mesmo o rabo da revolução capitalista não
só nos reformulou a passividade pastoril que a República e
“revolução” de 1930 deixaram fundamentalmente inviolada,
como gerou anticorpos que pressionavam a nova ordem no
sentido de humanizá-la, recusando feudalismo e capitalismo.
Paulo Francis nasceu nessa encruzilhada, não num esforço
hercúleo de vontade, ou numa explosão de gênio, e, sim,
brasileiramente, procurando evitar o batente, porque Adolpho,
com toda a razão, resolveu dar um basta na vagabundagem que
pagava sem, na realidade, dispor de sobras que não lhe doessem
na carne.

A baderna foi meu adeus à infância que tentávamos todos


manter, crianças chocadas pela decomposição da família feudal
de que pegamos o desfecho, rejeitando também o conformismo
burguês de sacrifício e frugalidade, que nos pregavam e não
praticavam.

Eu não sabia o que fazer. Já lera Machado de Assis. O


diabo é que comecei logo por Memórias póstumas de Brás
Cubas e achei que o resto era igual. Imaginei exercícios
fantásticos de ironia que fariam Machado sair da tumba e me
congratular. A nova paixão se manteve em Quincas Borba. O
estilo de Memorial de Ayres me deslumbrou, me parece o
melhor escrito dos romances. Então apareceu Helena, a poesia
abominável, e pedi licença para mandar Detefon no meu lugar.
Drummond, claro, foi de primeira. Aqui alguém que entendera a
anti-retórica de Gertrude Stein. Uma rosa é uma rosa é uma rosa:
(sic) a pedra fundamental da literatura moderna, que, apesar
desses exemplos, permanece bastante ignorada, a julgar pelos
livros que certos autores generosos me enviam. Eles parecem
não duvidar que os sentimentos deles, sentimentalmente
expressos, são literatura.

Essa pedra é uma pedra é uma pedra (sic). Não apenas rola
no caminho. E tudo. O escritor substantiva, o substantivo é o
princípio, meio e fim. O ponto de vista deve fluir da estrutura e
não se impor. E não há estruturas fixas. Valery dizia que “nuvem
cinzenta” é nuvem, ponto. Quanto menos não explícito, melhor.

O contexto e o rigor verbal falam por si próprios. O


nouveau roman levou esse processo ao extremo, abolindo
opiniões. Beckett, joyciano, poeta a ininteligibilidade.

Não se trata de tirania elitista, ou formalismo


“modernista”. E essa revolução é contestável. Poetas como
Robert Lowell e Dylan Thomas trouxeram de volta a retórica
anterior, se bem que a limitam ao confessional e se defendem
em ambigüidades. O que se procura evitar, no caso, é o mero
impressionismo emocional, as “visões de vida” historicistas e
abrangentes. Porque não fazem mais sentido. A estrutura
burguesa que se construiu, ornamentando, superestruturando a
“igreja gótica” (fachada esplêndida, interior tosco) do
capitalismo, ruiu por terra, nas trincheiras de 1914-1918.

O artista ficou na terra de ninguém. É o nosso hábitat


natural. Abaixo a retórica que levou uma geração, uma cultura,
uma falsa consciência, ao extermínio. Registramos fragmentos
(“esses fragmentos salvei das minhas ruínas”, termina The waste
land, resumindo o que é possível e crível em literatura).
Nenhuma reverência a instituições, credos, à grandiloqüência
que nos trouxe o suicídio coletivo da Grande Guerra. A própria
aparência do mundo social é imaginária, nos disseram e
mostraram Kafka e Picasso. Quando Joyce escreve que pretende
criar na forja da alma uma nova consciência da raça, ou Yeats
que o “centro” não se sustenta (o “centro” é o consenso da
civilização burguesa pré-1914, e não, como desonestamente
usam o poema os reacionários, o centro político), é disso que
está falando, oratio obliqua, naturalmente, porque qualquer
explicitação é suspeita.

A ironia e incredulidade do melhor Machado pertencem a


outra era, a da crítica à sociedade aristocrático-burguesa do
século XIX, à escola de Flaubert, Stendhal e George Eliot. Dado
o meio cultural em que se expressou, no entanto, continua, no
Brasil de hoje, em espírito, membro da avant-garde... Recebo
livros carregados de epígrafes de Drummond. O interior é o anti-
Drummond, em que fulaninho ou fulaninha nos descrevem
estados d’alma coerentes, carregados de adjetivação emotiva,
nus de ironia, ambivalência, ou reflexão crítica, e chorando de
dar pena que o mundo cruel destrua o que sentiram. Os estados
d’alma são incoerentes e esse mundo inexiste. Caprichos e
narcisismo frustrados não são literatura. E muito menos é a
crítica tradicional da burguesia, outra constante, porque a
burguesia sólida de Balzac cessou de existir, nem ela própria
acredita nos “valores” que propaga. Sim, sobrevive e oprime, no
social-darwinismo, mas sem convicção. Satisfaz apetites
incontroláveis. Exige um tratamento formal que transcenda o
realismo do século XIX. E o que Balzac definiu, Flaubert
despedaçou as entranhas e realidade concreta, e Stendhal
enterrou em ironia histórica e sociológica. Daí o fato, previsto
pelo próprio, que só o “redescobririam” em 1935, quando a
burguesia despiu a fantasia, naquela década em que se revelou
monstro de filme de horror, só que não era cinema.

O modernismo de 1922 entendeu e enfrentou nossa era. O


problema é que as duas figuras maiores, na minha opinião,
Drummond e Oswald de Andrade, parecem ter divergido num
dos fundamentos. Drummond rolaria a pedra dele, à la Joyce,
pessoal e intransferível. Oswald preferiu bombardear, com a
nova liberdade formal (ditada pela decadência da solidez
burguesa), o simulacro pseudo-europeu da classe dirigente
brasileira. E, claro, o Brasil, marginalizado dos centros de poder
e cultura, podia se permitir um compasso atrás, retrógrado em
forma, útil no caso. O Brasil precisava ainda se descobrir e
pesquisar brasileiro. Escrevi acima sobre o outro pólo emergente
da queda da burguesia, a reestruturação da sociedade em moldes
revolucionários. Graciliano e Jorge Amado surgiram dessa
fornada. Infelizmente, sob Stálin, foram obrigados a manter o
realismo clássico, “socialista”, já incompatível, a meu ver, com
a realidade nos centros mundiais da cultura, mas plausível no
Brasil feudal. Atingiram, claro, um público mais amplo do que
Drummond ou Oswald, ou o próprio Mário de Andrade, que
usou o popular em Macunaíma para satiricamente expressar a
visão catastrófica do modernismo europeizado.

E dada a inanidade dos movimentos de reforma, nada mais


natural que o PC se tornasse a influência cultural dominante e
que os escritores do prolekult criassem a escola mestra da nossa
literatura, o regionalismo de protesto social.

Não há consenso e conformismo em artes. Parte do


sucesso de Tolstói se deveu, de início, a que aplicasse o realismo
crítico de Flaubert e Stendhal, que dissecavam uma sociedade
moribunda, a uma sociedade feudal em que Tolstói descobriu a
capacidade (e uma vitalidade impensável em Paris) de
renovação. Abriu vistas de um mundo que de tão diferente do
criado pelas revoluções francesa e industrial ainda era possível
tratar liricamente. Há claro o fato que transcende essa
peculiaridade, o gênio de Tolstói. Da mesma forma, parte do
sucesso de Gabriel Garcia Márquez decorre do que parece a
americanos e europeus, e a afins culturais, o exotismo da
Colômbia feudal. O Jorge Amado de Capitães de areia foi uma
explosão na nossa consciência urbana. O Jorge Amado delicioso
de A morte e a morte de Quincas Berro d’Água, primeira obra
depois que se livrou do “realismo socialista” (deixou, sem brigar
muito, o PC, em 1956, em face das revelações de Khruchev
contra Stálin, e o pau quebrou entre os intelectuais comunistas
brasileiros), é outro assunto. A obra toda de Graciliano é um
painel fotográfico de nitidez insuperada sobre a alienação e
desolação de uma classe sem consciência de si própria, nosso
homem do campo, que os stalinistas e muitas esquerdas, em
1961-1964, quiseram atrelar mecanicamente à “união do
proletariado e campesinato”, copiando o manual de Lênin fora
de contexto.

Entre o modernismo de 1922 e o “realismo socialista” dos


anos 30 faltaram os críticos, a componente de mediação e
polêmica produtiva, que colocassem os pontos nos diversos “ii”.
Não é nosso jeito. A “vida literária” nos engolfa. Somos todos
queridos uns dos outros. O destino do crítico do contra, que é o
que vale (nos “lundis”, Sainte-Beuve escreveu um montão de
asneiras contra Balzac, Flaubert, Stendhal e Baudelaire.
Permanece um grande crítico porque, mesmo errando, ilumina),
é a excentridade marginal (Agripino Grieco é um exemplo). O
negócio, negócio brasileiro em todo o espectro social, é fugir ao
assunto. Temos lukacsianos, lacanistas, semióticos, o diabo a
quatro; em geral pseudo-erudito, um refogado do que os
iniciadores dessas escolas propuseram. A tendência dominante é
a conciliação. Os brazilianists me detestam, porque, jornalista
importante no Brasil, me recuso a levá-los a sério. O motivo é
simples: alguns livros deles, em primeiro lugar... O que mais me
irritou, à parte a ignorância, foi o debate sobre “opções” dos
militares de 1964. Eu lhes disse que, no Brasil, o golpe
terminaria se dissolvendo na falta de caráter, o que é, admito,
uma noção anticientífica, mas realista, na linha de Macunaíma.

Mário Faustino era uma exceção. Num ensaio brilhante,


ressaltando a posição única de Drummond entre nossos poetas,
espinafrou-o por recusar-se ao papel de “mestre”, a assumir e
debater o que representa, à margem e complementar à criação.
Mário queria que Drummond, em suma, fosse o nosso Pound ou
Eliot, grandes poetas que desceram à crítica, esclarecendo
(errando muito, claro) o que propunham e faziam. Drummond
subiu pelas paredes. Em verdade, espero não ofendê-lo com a
inconfidência, raspou parede a gilete, de raiva. Tem todo o
direito de ser o que é, grande poeta e omisso das batalhas
culturais. Talvez nunca se tenha recuperado das humilhações
que sofreu quando tentou praticar o “realismo socialista”. Meu
conhecido, o stalinista-chefe, Arruda Câmara, teve a audácia de
tentar reescrever versos dele... Intelectuais do partido, espécie
desprezível no auge do stalinismo, eram tratados como
contínuos. Conheço um brilhante economista que foi reduzido a
empacotar impressos de propaganda. Arruda, me contam, um dia
deu uma “gravata” em Drummond, quando este resistiu ao
copidesque da “linha justa”. Certo, tudo bem, mas perdemos
todos pela ausência, enquanto a academia, mascarada de avant-
garde, corrompe a juventude copiando a última moda de Paris.

Eu cometia “Eliots”, de que quanto menos for dito,


melhor. Elaborei (e vou escrever) uma peça sobre a guerra dos
Farrapos, um intervalo sério da pachorrice e babalaôs de revolta
no Brasil do século XIX. Me reconhecia incapaz de escrever um
romance, pela ignorância da sociedade brasileira, fora do meu
canto irrepresentativo. Adolpho não agüentava mais a
vagabundagem. Cedi. Me apresentei à Panair, Adolpho tinha
amigos na direção.

Fiz um teste de inglês e o malfadado QI. “Passei.” Um


certo Cooper Cooper (sic) me deu boas-vindas. A Panair era
subsidiária da Pan Am e nossa única bandeira à Europa (a Varig
não arrancara ainda, existindo apenas regionalmente, se não me
engano). Proliferavam companhias, inclusive uma, Lóide Aéreo,
conhecida como “Jesus está chamando”, tal a velhice dos aviões,
visível a olho nu. O que isso representava, pela disparidade de
equipamento, em queima de divisas, dispensa comentários. Até
um dos irmãos de Marcelo, o mais boêmio e cheio de charme e
inteligência, Haroldo, fundara a Nacional (morreu num desastre
de automóvel, afogado no canal do Rio Comprido, em
companhia de estrela de TV, Sônia Ketter). Haroldo pilotava.
Nesse amadorismo todo não resta dúvida que a aviação uniu o
vasto continente Brasil. Uniu bem à brasileira, de início para
uma elite que podia pagar as passagens. Leiam o seguinte, mas
sentados: quando um cidadão comprava passagem de primeira
classe, era um funcionário da direção que ia à casa dele, levá-la
em mãos. Paparicávamos à abjecão os mais intoleráveis
fregueses. Hoje, aqui, nos EUA, discos nos respondem e
aguardamos “horas” que a voz humana nos atenda. Os
aeroportos sugerem o Maracanã em decisão do campeonato do
Flamengo. Até na primeira classe o espaço é inadequado e não
se escapa da batalha da bagagem. Não há pior investimento de
capital do que malas caras. Em três viagens viram molambos.

Bagagem, parece, sempre foi problema insolúvel em


aviação. Ou seja, não existe computador ou controle que impeça
desvios, irritando democraticamente primeira e segunda classes.
As companhias se lixam. Não quer viajar conosco, passe bem.
No nosso tempo diferente, de cortejar uma população inocente
de tecnologia a reconhecer as utilidades do pássaro de ferro,
reagíamos rastejando diante dos insatisfeitos. Dado: é
vergonhoso, mas desconheço estados abaixo de São Paulo.
Nunca estive na Bahia ou no Espírito Santo. Mas conheço todos
os aeroportos do país aonde fui enviado procurando descobrir a
bagagem do Dr. fulano de tal que, destinada ao Rio,
desaparecera, sendo redescoberta (às vezes) em Belém do Pará.

Fui recebido por um chefe (Pinto também, ou alucino?)


“como um filho”, o que me coloca automaticamente de pé atrás.
Tímido, eu disse que não sabia se o “8 às 5h30” combinaria
comigo. Bobagem, cacarejou (se é que pinto...). A Panair era
uma grande família, e, de concreto, “não havia horário”.
Terminado o trabalho, go home. Magnífico, certo? Bem, não
havia horário porque trabalhávamos 24 horas ao dia. Inúmeras
vezes me chamaram de madrugada. E os colegas tinham paixão
pelo trabalho, apesar do salário baixo. Sentiam-se pioneiros da
maravilha

unificadora nacional. Meus interesses eram outros. Uma


noite, escapei. Boris Godunov, nunca visto, estava no Municipal.
Tomei banho. Vinha de Porto Alegre (aeroporto). Comecei a me
vestir. No dia seguinte, senti as calças na mão. Dormira enfiando
as calças até o joelho. Fui à máquina de escrever e bati carta de
demissão em caráter irrevogável. Adolpho explodiu.

Da Panair, à parte pilotos que julgavam voar tão arriscado


quanto subir num elevador, enquanto contavam que pifava isso e
aquilo em toda viagem, lembro Luís dos Santos Jacinto, colega,
mais velho, em posição diferente (superior à minha, esqueci
qual). Família conhecida, pouco dinheiro. De uma beleza
incomum, enlouquecia mulheres. Teve um caso com Lana
Turner, que de Hollywood o bombardeava de telegramas, não
respondidos. Uma resistência extraordinária. Bebia até as 5 da
manhã e aparecia impávido às 8, no escritório. Um gentleman,
mais saído de algum romance de Evelyn Waugh do que de
“nossa sociedade”, a que tinha horror, pelo provincianismo. Luís
desconhecia freios, zombava, sempre amavelmente, de pruridos.
Pouco se importava do que falavam dele, o diabo, na época; hoje
passaria despercebido. Saímos juntos algumas vezes, no grupo
dele, bastante diferente do meu, mas respeitador das posições de
cada um. Em retrospecto, aliás, acho que até os quebradores de
bares, quando não quebrando, eram menos ofensivos
esteticamente do que os cafajestes atuais, que se limitam a falar
alto e a nos imporem uma presença ostentatória. Fomos presos
uma noite, treze, juro, porque o delegado repetia escandalizado o
número, no MG de dois lugares de Luís, em frente do Café
Bonfim, uma das tradições da cidade, aberto a noite inteira,
tradição enterrada com tanta coisa mais. Andávamos, os treze,
na contramão da Avenida Copacabana. O delegado, ao ouvir o
nome da maioria dos indiciados, limitou-se a uma advertência.
Brasil.

Onde andará Luís? Espero que na Europa ou em qualquer


lugar distante do Rio presente.

Neste mesmo Bonfim, conheci Brutus Pedreira, grande


influência do teatro brasileiro, como organizador e tradutor, e
um dos meus melhores amigos. Outro gentleman, do Sul, que
achava o Rio estragado quando os gaúchos conterrâneos
tomaram a cidade em 1930. Tinha sido pianista prodígio,
estimulado por Rubinstein. Me introduziu ao simbolismo
musical e poético, ala francesa, que liguei à inglesa. Brutus
sofreu sífilis em último grau, então tratável com choque de
malária. Recuperou-se da doença, mas não de todo o equilíbrio,
andava em semiziguezague, e foi forçado a desistir do piano.
Um homem culto disponível. Bem relacionado. Veio-lhe a idéia
de criar uma ensemble teatral, inexistente no Brasil, onde o
comum, o único, era o ator famoso, Procópio, Jaime Costa, etc.,
se exibir cercado de gente apanhada na Cinelândia, iluminação
de cozinha, cenários pintados, ausência de diretor. Um grupo de
canastrões, o que não é pejorativo. Canastrão é quem sempre
representa a si próprio. A velha guarda, de Procópio a Dercy,
tinha talento e presença. Apenas não se disciplinava ao teatro
moderno, como o país... Autores de fama, Joracy Camargo (cujo
Deus lhe pague ganhou reputação de drama social), Henrique
Pongetti e, adiante, Guilherme Figueiredo.

Brutus formou Os Comediantes. Não havia estrelas. Havia


atores, ou, pelo menos, tentavam comportar-se como parte de
um conjunto. Trouxe Ziembinski, ator e diretor polonês fugido
de Hitler, para dirigir peças. Os Comediantes estouraram em
1943 com Vestido de noiva, do quase desconhecido Nelson
Rodrigues. No papel principal, Evangelina Guinle, o que só não
deu escândalo social porque a companhia se mantinha amadora e
o Guinle (e o Rocha Miranda, do marido) foram substituídos por
pseudônimo. O espetáculo não é do meu tempo de percepção. É
de 1943. Um marco. A idéia de que teatro era algo mais do que
o humor de Procópio semeou. Atingiu Dulcina e Odilon, minha
estréia como espectador, montando César e Cleópatra, de Shaw,
A filha do Iório, de D’Annunzio, Noel Coward, Chuva, do conto
de Maugham, etc. Uma nova mentalidade se esboçava. Vi tudo.

Brutus trouxera Ibsen e O’Neill, pesos pesados, à parte


encaminhar Nelson Rodrigues (não que Vestido de noiva esteja
no nível de obras-primas como Senhoras dos afogados, Álbum
de família e Dorotéia, esta antecipando Ionesco, Pinter, etc., no
que tolos críticos batizaram de “teatro do absurdo”). Eu lera e
lia, sem parar. Sempre gostei de diálogos, e teatro, como a tantos
tímidos, parecia um meio de berrar de forma coerente e
inteligente o que sufocava dentro de mim. Mas à parte os gregos,
de que tínhamos boas traduções em português clássico, ou
Shakespeare, que atravessei linha por linha, de dicionário na
mão, achava que o drama, banalizado pela intromissão de tanta
gente, de atores a eletricistas, não se equiparava à
individualidade do romance e da poesia.

Essa ilusão desapareceu em 1947 (me parece) quando o


governo francês, ansioso de recuperar a influência cultural
omissa na Segunda Guerra, nos enviou a companhia de Jean-
Louis Barrault.

Pela primeira vez vi ensemble totalmente profissional,


que, dos “desprezíveis” eletricistas a atores, funcionava criando
uma intimidade entre espectador e palco; essa relação, quando
estabelecida (o que é raro), tem ressonância imediata e
envolvente que só encontro igual nesse evento ainda mais
incomum, ópera encenada e cantada à perfeição. O Hamlet de
Barrault, apesar da tradução matar inevitavelmente muito do
original (o que o próprio tradutor, Gide, admitiu, comparando
francês a um piano sem pedal), ficou anos comigo. Das
brincadeiras de Marivaux, ilegíveis, a companhia fazia outra
forma de teatro, em que a imaginação cênica usa o texto como
trampolim criador. E pouco depois, ou quase ao mesmo tempo,
vimos os filmes Henry V, de Laurence Olivier, Shakespeare
engatinhando (mais alto que a maioria dos autores na
maturidade), também estendendo a riqueza de recursos do teatro
a quilômetros das possibilidades da câmera; e, em seguida, o
Hamlet freudiano, que, excluindo monólogos insubstituíveis
(“What a rogue and peasant slave am I” e “How ali occasions
inform against me”) e reduzindo bastante a peça nos confins do
complexo de Édipo, ainda assim nos mostrou o que era um
grande ator, ao contrário dos divertidos canastrões a que nos
habituáramos. Tentei meus Farrapos de novo, que saíram
farrapos. Não desisto fácil.
Em verdade, o governo francês não precisava se preocupar
com perda de influência. Os Comediantes, Brutus me contou,
nasceram, em idéia, de uma companhia de Louis Jouvet, que
visitava as Américas, em 1940, quando a França caiu diante da
Alemanha, e Jouvet preferiu permanecer em tournée
permanente. Contratou no Rio uma jovem francesa de talento,
formada no conserva-toire da Comédie, em Paris, “la petite
Risner”, mais conhecida como Madame Morineau. Quis levá-la
de volta com ele. Morineau preferiu marido e família, deitando
raiz no Brasil. Quando fomos amigos e trabalhamos juntos, antes
de eu virar crítico de teatro, naturalmente, não se disse
arrependida. Separada do marido, lhe restava a filha, me falha à
memória o nome (Henriqueta?), um amor de moça, talentosa,
mas preferindo o casamento e família. Um caso que requer
urgente pesquisa feminista. Dois casos, em verdade.

Assim é que, procurando conter Adolpho, quando resolvi


tentar o Teatro do Estudante, eu não era propriamente um
estranho ao teatro. Nunca me ocorrera representar, imaginem,
com a minha timidez. Não havia perigo disso, descobri, no
Teatro do Estudante.

Lia Paschoal Carlos Magno, crítico de teatro do Correio da


Manhã, o jornal que entrava em nossa casa. Não me parecia
conhecer os textos que eu amava, limitando-se a rápidas
observações da conduta dos atores,

rapidíssimas, em verdade, porque em geral dormia


profundamente na primeira cena, acordando apenas nos
intervalos e no final. Escrevia à inglesa, chamando os atores de
Sr. e Sra., Sra. Dercy Gonçalves, sem dúvida.

Paschoal produzia e promovia o teatro. Jogara um Hamlet


em cena que conquistou público e críticos. Era uma porcaria
indescritível, nada, literalmente, correspondendo ao original.
Mas o protagonista, Sérgio Cardoso, tinha talento. Maria
Fernanda, a Ofélia, entrara no castelo errado, confundindo
Elsinore com a mansão de Jorge Amado em Salvador. Tem,
apesar disso, talento e está conosco até hoje (Sérgio Cardoso
morreu jovem, nunca se recuperando da impostura do sucesso
inicial para converter-se no ator que existia dentro dele, apesar
de algumas performances memoráveis no tempo rápido que se
submeteu à disciplina do Teatro Brasileiro de Comédia em São
Paulo). Sérgio Brito, o Rei Cláudio, era muito ruim. Hoje, não é.
Evoluiu como intérprete, é diretor e produtor, uma das bases do
que resta de teatro no Brasil em face da indiferença popular e da
rendição cultural à TV.

O TE montara várias peças e lançara outras pessoas.


Lembro Myriam Carmem, excelente criatura, presença forte,
Lady Macbeth. Na tradição da peça, que dá azar, toc, etc., um
dia as feiticeiras do texto lhe queimaram a bunda; noutro, na
cena da loucura, em négligé, o dito ficou preso aos bastidores e
quase Myriam entra nua em cena; de resto, deveria ser assim que
a Lady andava à noite, segundo o estimado crítico Kenneth
Tynan (duvido, no frio dos castelos da Escócia). Macbeth, nome
do ator esquecido (vivi demais e conheci gente demais, este
último excesso inescapável a jornalistas), uma noite se excitou
tanto na luta final contra McDuff, que este, melhor esgrimista
(os duelos pareciam verossímeis), cortou-lhe o dedo, arrancando
gritos lancinantes de Macbeth, muito admirados pela crítica. Em
Romeu e Julieta, Narto Lanza e Sílvia Orthoff sugeriam
promessas. Sílvia permanece escrevendo e dirigindo teatro
infantil. É minha amiga. Narto preferiu a diplomacia. Suicidou-
se recentemente.

Convidei Marcelo a ir comigo a Paschoal, ao ler que o TE


montaria tragédias gregas, minha paixão, e, melhor, em face do
clima com Adolpho, seguiria em excursão de três meses ao
Norte e Nordeste, locais onde nunca pusera os pés (excetuados
os aeroportos) e, depois da viagem, não mais voltei. Adolpho,
sempre suscetível à cultura, não bronqueou, achando apenas que
eu perderia mais tempo. Me sugeriu o Itamarati. A origem dessa
idéia, dado o meu tom rude habitual, aparência
esculhambadíssima, cinismo brutal, etc., me escapa. Adolpho
talvez não me notasse direito, enfurnado na própria imaginação,
e a nova mulher, Lourdes, sem a timidez de Irene, dava-lhe
carinho, solicitude e vida calma. Fred e eu, a princípio, fomos
abomináveis em relação a Lourdes. Me redimi em tempo e
permanecemos muito amigos.

Marcelo, aos 23 anos, foi o primeiro hippie brasileiro.


Cabelos e barba nazarenos, calças cáqui remendadas, botas
embranquecidas pelo uso, uma indiferença total às graças
sociais, o que parecia, curiosamente, excitar as mulheres, as
mais variadas e algumas imencionáveis, porque o furor, ainda
hoje, seria certo. Os pais lhe exigiam, que Adolpho, uma
“decisão na vida”. Marcelo, cercado de um pastor-alemão feroz,
Nero, e um são-bernardo, Sultão, manso, que provocado
insistentemente por Nero o surrava de quando em quando,
partilhava meu desdém pelas coisas “desse mundo”. Foi expulso
do Santo Inácio porque esfolou a perna de um colega, a gilete,
Brenildo Meireles, me parece. Na passagem (curta) de serviço
militar obrigatório quase subverteu o quartel à zorra. Jogávamos,
bebíamos, delinqüíamos. Pretendíamos continuar assim
indefinidamente.

Aceitou o que propus, pelos mesmos motivos, mais ou


menos: três meses fora de casa, longe das recriminações da
família. Cortou o cabelo, fez a barba e banhou-se, concessões
que sublinhavam nosso desejo de fugir. A idéia era, pela nossa
altura não muito comum entre brasileiros, nos oferecermos a
Paschoal como soldados, mudos e fortes, que acompanham os
heróis e anti-heróis de Eurípides (Hécuba) e Sófocles (Antígona
e Édipo, a que o tradutor, prenunciando o resto do trabalho,
adicionara um “rei”, resultando em “porrei”). Nada mais.

Meu senso de direção é nenhum. Sempre confio que a


pessoa que esteja comigo me conduza. Com Marcelo isso era
perigoso, ou, no mínimo, cansativo. A primeira vez que subi ao
Sítio Oriente, em Secretário, ele calculou errado o horário de
ônibus, e andamos (precisamente) oito quilômetros a pé,
carregados de malas, sob o sol brasileiro. Rumo a Paschoal, o
cego guiando o cego, escalamos a Rua Hermenegildo de Barros
em Santa Teresa, suando álcool e tossindo Oliu ainda sem a
grande inovação que Rubem Braga celebrizou, o filtro. Propus
várias vezes dúvidas à legitimidade de Marcelo que, em
resposta, me comandava ao impossível, aquele palavrão de
partícula, F...

Fomos acolhidos amavelmente. Paschoal era cercado de


irmãos, Rosa e Orlanda, e sobrinhos. Ficava visível a diferença
social entre ele e o resto. Rosa e Orlanda tinham maneira única
de pronunciar certas palavras. Sexo, por exemplo, saía secho.
Constellation, o avião da moda, “costeleta”. Os sobrinhos viam
no tio uma mina de ouro. Walmir Ayala, um amigo, poeta e
jornalista de arte, me disse que Paschoal morreu só, abandonado,
pobre, numa enfermaria. Acredito.

Eu era muito feio, cheio de espinhas (nos dois sentidos), e


não interessei muito a Paschoal, exceto que se bestificou
literalmente de que o bagulho conhecesse os textos de Hécuba,
Édipo, Antígona e Romeu e Julieta, e para me fazer de
importante (e disfarçar a timidez), comecei a perguntar sobre o
estilo das encenações, do que não recebi resposta, tendo
finalmente minha curiosidade satisfeita quando ensaiamos. Já
Marcelo, apesar da acne também, das depredações de anos de
orgia, tinha, repito, um enorme charme sexual, e o nosso mentor
olhou-o cobiçosamente.

Paschoal não escondia o homossexualismo, o que, entre os


inúmeros homossexuais do Itamarati, os hipócritas, lhe custou
promoções e postos. Embaixador, nunca o enviaram a qualquer
capital, onde teria brilhado bem mais que a maioria dos bolhas
que conheço.

Marcelo e eu não ligamos a mínima à reputação bicharoca


do TE. Já se disse que os dois temas preferidos da humanidade,
em mentira, são sexo e dinheiro. A suposta separação rígida
entre héteros e homos na minha geração certamente não
correspondia à experiência. No nosso grupo em Botafogo, vários
dos rapazes freqüentavam e tiveram casos homossexuais.
Chamavam isso de “agitar”, “meia”, no meu tempo de infância,
sem penetração. Aqui, ó. Homossexuais ricos ou socialmente
eminentes eram os preferidos, porque abriam a esses
companheiros de classe média luxos e situações que conheciam
de cinema. Nenhum, que eu saiba, se “contagiou”, o que é,
repito, asneira propagada por ignorantes que, embora parte, são
eles próprios homossexuais enrustidos, os que tentam resistir na
inversão paranóide de ódio e guerra aos homossexuais. Lembro-
me, em particular, de uma dupla que namorava irmãs. De tanto
ouvir falar em “agitação”, deixaram as namoradas (com quem
casaram, produziram filhos, etc.) e passaram um fim de semana
juntos, num hotel. Voltaram radiantes. Se continuam radiantes
até hoje, não sei. Ambos seguiram carreira que não mencionarei,
se destacando a altos postos, e omito nomes porque detesto esse
tipo de fofoca, e a carreira porque a “abertura” pode ser o buraco
onde desaba a avalanche.

Marcelo e eu nunca nos sentimos atraídos pela “agitação”.


Tenho certeza de que, se vontade houvesse, nós cederíamos sem
hesitação, culpa, ou temor da boca dos idiotas. Fazíamos nossos
próprios valores, lixando-nos para a opinião do próximo.
Quando me tornei conhecido, claro, veio o folclore habitual que
persegue a fama no Brasil; em geral o indigitado é corno, ladrão,
impotente, ou esconde doenças incuráveis. Escapei do ladrão e
corno, este porque então solteiro, e ladrão porque me julgavam à
esquerda de Prestes.

A mãe de uma namorada me disse uma vez que temia pela


nossa relação, dada a minha ficha de alcoólatra, cocainômano e
homossexual. Respondi-lhe que se homossexual ela nada
precisava temer quanto à filha, que não exibia vocação lésbica.
O resto, francamente, sugeri que fizesse o que bem entendesse.
Não dou satisfações pessoais a ninguém. Me arrependi até de ter
respondido obliquamente a parte da acusação. Já contei o
número de pessoas cuja opinião intelectual respeito no Brasil. É
dúzia de livreiro, 13.0 resto é ralé ou motivo de total indiferença.

No TE, como no teatro brasileiro, havia héteros e homos.


Conviviam sem hostilidade, ninguém assumindo palmatória do
próximo. O show business sempre se marcou pela tolerância em
costumes. É das melhores qualidades do meio. Até o troglodita
Ronald Reagan, nos EUA, tomou posição que destruiu uma
ofensiva que visava a retirar, pelo voto, direitos civis aos
homossexuais. Sendo o direitista supremo, liquidou
(temporariamente. Os repressivos não morrem, dormem apenas)
o assunto. Por quê? Simples. Reagan passou a maior parte da
vida em Hollywood. Fez, ator, inúmeros amigos homossexuais
no cinema. Sentiu na carne o absurdo de se vedar direitos a
quem não é maioria heterossexual. Talvez conheça o comentário
de Gore Vidal, que se freqüência é o critério determinante de
normalidade, o punheteiro é o normal verdadeiro.
O próprio Paschoal dizia que há dois tipos de ator no
Brasil (ele não mencionava as mulheres), um é homo. O outro
fica na Cinelândia, de pernas abertas, em pé, acariciando o saco
e se oferecendo às mulheres. No meu tempo, perfeito, ou quase.
Quando crítico, eu diria que os homos predominavam, tanto que
um dos apelidos, posto pelos próprios homos, do Teatro
Brasileiro de Comédia, a principal companhia do país, era “Casa
de Bernarda Alba”, título da peça de Lorca onde só há mulheres.
Nos atores da geração de Procópio, os homos foram raros.
Quando o teatro brasileiro se polarizou politicamente, na década
de 1960, os héteros voltaram à maioria. Mas insisto em que, em
toda minha experiência no palco e de crítico, o tema não
excitava um milésimo das tensões e intolerância típicas da
sociedade dos “desgraçados”, a gente, na nossa opinião, fora do
teatro.

Paschoal estava longe de ser um homossexual agressivo,


quando o conheci. Se colar, colou, se não, tudo bem. É mentira
deslavada que só desse papéis principais a homos. Na nossa
temporada, os melhores papéis couberam a Marcelo e a
Cristóvão Filho, ambos héteros. O único homo de destaque
acontecia ser o melhor ator de nós todos. Antes, Sérgio Cardoso
foi Hamlet pelo talento e não hábitos sexuais (de resto,
variáveis). O Macbeth de nome esquecido, um hétero agressivo.
Nenhuma das moças do nosso grupo, ou dos anteriores,
praticava lesbianismo. Pelo contrário, de vocação, em geral,
eram cricris.

Paschoal escrevera romances (um traduzido em inglês) e


poemas. Foi na Inglaterra, durante a Segunda Guerra, que
emergiu personalidade. No consulado em Liverpool, as bombas
o apavoraram tanto que desenvolveu o cacoete célebre, de virar
abaixo compulsivamente o canto direito da boca, quando
nervoso. Uma vez visitamos um asilo de loucos em Belém do
Pará. Esgares adoidados. Paschoal: “Meu filho, esses aí estão
piores que eu”. A voz de Paschoal. Inconfundível, meio canora,
com as inflexões ondulantes que adquiriu, imagino, ouvindo a
elite inglesa. Quem o conheceu sempre tentava imitá-la de
brincadeira. Áureo Nonato, o compositor, reproduz à perfeição.
Jaime Maurício, crítico de arte e cria de Paschoal, se aproxima.

Em Londres, Paschoal entrou no teatro. Escreveu peças,


mas não é isso que o fez popular. Abriu apartamento de
diplomata, numa época de intensa austeridade dos ingleses, a
atores famosos, John Gielgud, Beatrix Lehman, Laurence
Olivier, etc., alguns homossexuais. Teve um grande caso de
amor com o bissexual Michael Redgrave, pai dos explosivos
Corin e Vanessa e da “mundo livre” Lynn. Jovem bonito, cheio
de charme, apelidaram-no The Brazilian Bombshell, o apelido
de Carmen Miranda em Hollywood. Sucesso absoluto.

De volta ao Brasil, meteu-se no que sabia melhor:


promoção das artes. Não é o fundador da Casa do Estudante, ou
sequer do Teatro do Estudante do Brasil. Tanto que os lesados
da criação exigiram e conseguiram que retirasse o “do Brasil” do
TE, usávamos apenas Teatro do Estudante, bastante vago, já que
outros grupos no país, de estudantes, poderiam pleitear o mesmo
nome. Mas ninguém batia Paschoal em promoção. Ele “fez”
Sérgio Cardoso e outros escrevendo sem parar sobre eles,
valendo-se do destaque incontestado do Correio da Manhã,
enquanto o Rio foi capital, e pré-renovação, nos anos 60, do
Jornal do Brasil, que antes só se abria à procura de empregadas.

Marcelo e eu percebemos rapidamente a impostura.


Pedíramos papéis de soldados mudos e não participantes diretos
nas peças. Ganhamos, ele, sete papéis, inclusive o protagonista
em O noviço, de Martins Penna, e eu, seis, coadjuvantes, mas
alguns fortes, como Frei Lourenço em Romeu e Julieta, Ulisses
em Hécuba e Engstrand em Espectros, de Ibsen. Nenhum teste
de voz sequer. Simpatia e decisão caprichosas de Paschoal. De
experimentados no grupo havia apenas Ruy Cavalcanti e Míriam
Carmem, remanescentes de outras temporadas. Outros novos,
sem qualquer experiência, também foram escolhidos à la
Paschoal. Cristóvão Filho, de uma família portuguesa, tendo de
acordar às 4 da manhã, trabalhando no mercado, louco por
teatro, foi escolhido sem o menor preparo cultural sequer para o
quase intransponível Édipo. Na tradução péssima do texto dizia
a folhas tantas, numa das cenas chaves da peça, “Parece-me que
este homem quer tergiversar”, tímido, bonito, excelente caráter,
sofrendo pressão da família, que o imaginava “perdido”,
talentoso ao extremo, apesar de um problema de voz que
qualquer professor real corrigiria, meses depois encheu-se de
coragem e me perguntou o significado de “tergiversar”.

Marcelo e eu topamos por dois motivos: primeiro,


sentindo o ambiente, com a nossa experiência do “mundo”,
aquilo era mais uma contestação ao convencional, sem ninguém
presente que nos pudesse infligir chateações de qualquer
espécie, que não pudéssemos tirar de letra, até pela violência
física, se fosse o caso. A maioria dos colegas vinha de famílias
de pequena classe média, ainda presas a inibições que Marcelo e
eu descartáramos no ginásio, no Santo Inácio. E, claro,
imaginamos, assim que os diretores nos vissem no palco,
absolutamente despojados de talento, nos expulsariam.

Não poderíamos estar mais enganados. Não havia


diretores. Quer dizer, pessoas ocupavam os cargos, mas não as
funções. D. Esther Leão é um exemplo. Ao marcar (distribuir
movimentos dos atores) Antígona, de Sófocles, obra de gênio,
que expressa como nenhuma o conflito de direito individual e
direito do Estado, modelo da estética de Hegel, foi perguntada
numa cena inicial pela protagonista, Luciana, uma estudiosa de
teatro, se devia carregar ali na emoção, ou contê-la de reserva às
cenas do clímax. D. Esther respondeu: “Num sei, minh fiulha,
porqui num li o rsto du peça” (sic). Ruy Cavalcanti, num papel
menor de mensageiro, elaborou uma entrada espetacular que
caía de joelhos e estendia o braço saudando o rei Creon. D.
Esther: “Ó Ruy, stá bunit, mas tu nun achas ess gest meiu
fuxista”? (sic).

E havia Kossóvski, meu diretor em Espectros. Disse que


nos dirigiria seguindo o (inexistente) método de Stanislávski. Ou
seja, que encontrássemos em nós os equivalentes dos
sentimentos das personagens de Ibsen. Até aí, tudo bem, é uma
sólida máxima diretorial em realismo (há, claro, outras
possibilidades). Agora, se espera do diretor que, a) explique a
peça como um todo; b) que explique a equivalência que o
intérprete deve escavar de si próprio. Nenhuma palavra de
Kossóvski, nem sequer que Espectros, em particular a
protagonista, a Sra. Alving, é uma continuação de Casa de
bonecas. A Sra. Alving é a Nora, a “boneca”, se tivesse ficado
em casa. Eu lera isso em Bernard Shaw, ou George Jean Nathan.
Um dia, timidamente, sugeri a interpretação a Kossóvski. Ele
pareceu genuína e agradavelmente surpreendido. “Bom achado,
meu filho, olha aqui, pessoal, ouçam o Paulo Francis.” Paschoal
já decidira que Franz Heilborn, junto ao público, seria
impronunciável e me batizara “Paulo Francis”. Aceitei porque
achava que aquela brincadeira jamais passaria dos limites da
casa dele, que, no subterrâneo, continha o Teatro Duse,
minúsculo, onde “ensaiávamos”.

E, finalmente, havia S. F., mais conhecido como “a


sofisticada”, pelas costas, pelos íntimos. Ator sem nenhum
talento, estudara, ou dizia ter estudado, teatro em Paris. Viveu
em Paris, às custas de imensos sacrifícios de uma mulher com
quem se casou e que explorava, pois obviamente homossexual, o
que pretendia esconder. Repito, ali ninguém ligava para as
inclinações sexuais dos outros. Logo, o disfarce de S.F escondia
outra coisa, à parte o medo da reação da sociedade a homos,
escondia um caráter esquivo, intrigante e malicioso. Apesar de
inteligente e sensível, conhecendo mais teatro que Paschoal,

Kossóvski, Esther e nós todos, nunca produziu nada na


vida. Foi o único do grupo a quem Paschoal chegou a odiar.
Bajulava Paschoal e o desfazia quando conosco. Deus, às vezes,
castiga.

Ainda assim nos deu lições preciosas de direção,


representar, iluminação, conjunto. Explicou linha a linha o texto
de Romeu e Julieta, que dirigiu, sem dúvida o menos ruim dos
espetáculos que apresentamos. Romeu e Julieta se beneficiava
de uma tradução em verso de Onestaldo Pennafort, que há quem
não goste, mas ao menos era, quase sempre, um texto dizível.
Depois de tentarmos dissuadir o tradutor dos gregos, Justino não
sei de quantas, que palavras como “delongas” não cabem em
teatro, eu próprio reescrevi várias passagens da tradução,
retirando focos da praga acadêmica de Justino (professor de
grego, bom rapaz. O problema é que nunca aprendera português
de gente).

Romeu e Julieta teve uma carreira interessante no Teatro


do Estudante. Abriu-o, se não me engano, em 1938, com Sônia
Oiticica, rosto belíssimo, e Paulo Gracindo, outro que, talentoso,
entrou na cidade errada. Ia a Salvador e terminou em Verona. É
um bom ator, quando contido dos muitos vícios que intérpretes
desenvolvem sem freio de direção. Ambos, Sônia e Paulo,
voltaram aos vícios nas novelas da TV Globo, em que não há
direção ou crítica.

Já na versão Sílvia Orthoff e Narto Lanza, o pai de


Romeu, Montéquio, usando a tradução de Onestaldo, cismou
que na fala final da personagem seria construída uma “estátua de
urubu” (sic) em homenagem aos trágicos amantes. O texto, bem
entendido, fala de “estátua de ouro puro”. Onestaldo, um
gentleman, vendo ensaio corrido, protestou delicadamente o
equívoco. O ator, me esqueço o nome, reagiu violentamente,
insistindo na adequação de “urubu” à tragédia e, claro, urubu
ficou.

Na nossa versão, o pai de Julieta, Capuleto, conta que a


Sra. Capuleto “morreu de dor” por causa da filha morta. Depois
de um mês e meio em cartaz, no Norte e Nordeste, alguém notou
que a referida senhora, interpretada por Ana Edler, aparecia
ressurrecta, ao lado do marido, enquanto este lhe anunciava a
morte... Ana chorava tanto que lhe dizíamos baixinho, “que que
há, perdeu o cabaci-nho?” e outras amabilidades. Mas era tal a
esculhambação que “sobreviveu” até quase o fim da temporada.

Durante seis meses ensaiamos naquela base. Alguma coisa


saiu. Não há dúvida que parte de representar é uma assimilação
lenta e segura, que cobre toda nossa personalidade, de outra
pessoa, via texto, atitudes, etc. Tudo feito em cena é
rigorosamente marcado, quase que ao mínimo gesto. Não há
improvisações. E seis meses de horas de convívio diário, somos
criaturas condicionáveis, produziram “interpretações”. O fato de
que raramente tinham algo a ver com as intenções dos autores,
ou que não seguissem a gradualização e modulações que
diretores de verdade conduzem, nada disso impedia que o
espetáculo corresse, baseado no talento (ou falta) de cada um, e
que existisse entre nós uma familiaridade em cena que ao olho
destreinado sugerisse ensemble. E vários eram talentosos, Ruy,
Cristóvão, Míriam, Ana Edler, Luciana, Jorge Chaia, Marcelo,
eu próprio e outros mais que omito apenas pela falta de
memória.
Nada funcionava. Cenógrafos e figurinistas sofreram
mutilação de projetos. Trajes de outras peças eram “adaptados”
às novas produções. Meu Ulisses em Hécuba, para citar um
exemplo, tinha couro e outros petrechos autênticos sobre o
saiote preto e branco. Na prática, restou o saiote, que me fazia
parecer moça do Botafogo (logo de que clube), uma baliza,
talvez. Romeu vestia a roupa de Oberon. O próprio texto de
Onestaldo provocou dificuldades, dessa vez não atribuíveis a
ator “pancada”. Chaia, Capuleto, no falso enterro de Julieta,
falava da filha “desflorada”, o que era acompanhado das
sacudidelas de riso de todos, “morta” inclusive, moreninha
brasileira, nosso tipo mais popular, Celma, que durante a viagem
fazia imitações esplêndidas das irmãs Batista e Dalva de
Oliveira, cantando “Eu gostei tanto, quando me contaram”, etc.
A cena terminou cortada. No final, Frei Lourenço, eu, entrava no
túmulo, descobria o corpo de Romeu e, em seguida, o do Conde
Páris. Dizia: “Como, Páris também”, que soava, claro, “pares
também”. Gargalhadas. Convenci Onestaldo a reduzir a “o
Conde Páris!” inflexionando a contento o pasmo e dor do frei
trapalhão.

A promoção funcionava. Paschoal conseguiu hospedagem


gratuita de todos os governadores dos estados que visitaríamos.
Verbas do Ministério do Trabalho para que em cada cidade
fizéssemos um espetáculo aos operários, entrada livre. E fomos a
Getúlio Vargas, pedir transporte. A única vez que vi, em pessoa,
a figura. Primeiro apareceu o secretário particular, cortesão
perfeito, Roberto Alves. Ao fundo, Gregório. Na “República do
Galeão”, na revolta iniciada contra Getúlio pela FAB, em 1954,
Gregório acusou Alves de “espique(r)”, “Roberto, tu é um
espique”...

Getúlio entrou com a aura que marca toda pessoa que os


meios visuais de comunicação nos implantam na retina. De
charuto na mão, sorridente, atento a si próprio apenas,
projetando uma imagem que parece dirigida a nós, mas que em
verdade é o auto-reflexo do poder. Jogava a cabeça para trás,
rindo, movimento que, a meu ver, pegou de Franklin Roosevelt,
que gostava dele. Paschoal pediu dois aviões, um que carregasse
a parafernália cênica, outro, o elenco. Getúlio deu um,
comentando: “Levei o avião a Teresina. Você vai levar
Sófocles”. Estava certo quanto ao avião.

A viagem foi inconfortável, longa. Levamos 18 horas do


Rio a Belém e de lá a Manaus mais seis. Não havia assentos, e,
sim, bancos de pára-quedistas, o cenário e trajes amontoados na
frente, nós espremidos nos bancos. Foi nesses vôos que
conversei muito com Paschoal. Ele não dormia, de medo,
rezando bastante, de Novo Testamento na mão. Eu nunca dormi
em avião. Durmo em automóvel, talvez porque este chateie pela
vista de estradas. De avião, apesar da palavra insistente do
piloto, não se vê nada e, entregue a mim mesmo, não conseguia
relaxar, nem sequer de estado a estado, em que nas últimas
noites alguns de nós tomávamos pileques, passando sem cama
(para dormir).

Não nesse primeiro vôo. Para quebrar a monotonia,


Marcelo e eu convidamos aquelas pobres crianças, os rapazes, a
um sete e meio. O jogo tem três regras fundamentais: só se
ganha na banca. Fora da banca, se possível blefar, não passando
de cinco pontos (7,5 é o máximo, um 7 e figura é 7 meio real,
que passa a banca ao vencedor. O banqueiro distribui uma carta
fechada e as demais abertas. Contesta as que tira para si próprio
às dos outros. Ganha até se houver empate); e, se recebendo um
7, pedir carta, porque há 12 figuras no baralho (em que são
excluídos 8s, 9s e 10s), as chances do real (e a banca) são
grandes. Os outros não conheciam esses básicos. Acho que na
altura da Bahia, Marcelo e eu já os havíamos limpado
completamente, inclusive o mais sofisticado, Eugênio Carlos,
bela figura mas decididamente não de palco. Teria dado um galã
de cinema, o que de resto tentou, inclusive em Hollywood. De
bom humor, divertido, nada bobo. Marcelo, ele e eu resolvemos
pedir uma diária a Paschoal, que no fim de contas amealharia
bilheterias fartas pela publicidade prévia e a novidade que
qualquer coisa do Rio representava no interior.

Paschoal terminou cedendo, não graciosamente, sob


ameaça de greve. Foi meu primeiro ato de “subversão política”.
Ganhávamos 50 ao dia. É difícil calcular o valor desses 50, hoje.
Não eram 50 cruzeiros, pois tomamos pileques federais no Hotel
Amazonas, deixando conta gigantesca de 68 cruzeiros, estes,
sim, equivalentes aos cruzeiros da época. Alugamos, Fred irmão
e eu, em 1956, um apartamento de quarto e sala, dependências,
em Copacabana, por quatro cruzeiros. O apartamento de dois
quartos, sala, etc., mobiliado, em que morei antes do golpe de
1964, na Rua Rodolfo Dantas, custava 86 cruzeiros ao mês.
Logo imagino que os 50 equivalessem a 500 pratas de hoje, ou
15 milhas mensais (também de 1980). Não pagávamos nada,
logo os “alfinetes” foram consumidos em proveito de cada um.
Lembro que dava para Eugênio Carlos, Beatriz Veiga e eu
almoçarmos, com vinho, num delicioso restaurante francês, A
Brasileira, em São Luís do Maranhão. O cálculo ainda assim é
pura especulação. A partir da “reforma cambial” que Roberto
Campos extraiu do ministro da Fazenda, Lucas Lopes, em 1958,
o dinheiro nosso perdeu qualquer realidade.

Falando nisso, dizem que Roberto Campos é agente da


CIA. Espero que seja. Ao menos, estaria cumprindo um dever.
Se não for, o que pensar dele? É o maior tortu-rador e assassino
da nossa História, não em atos diretos, mas pelo que inspira de
gabinete. Que motivos, à parte o serviço a outra nação, ou causa,
poderiam inspirá-lo? Na CIA, se humanizaria.
A desolação de Manaus, Belém, Fortaleza, Natal, João
Pessoa, Teresina, São Luís e Recife. E nem fui ao interior. As
capitais bastaram. Nunca imaginei que existisse algo igual na
terra. A subnutrição, a miséria, o atraso, a inconsciência quase
absoluta do que é bem-estar, do que é uma sociedade civil, o
isolamento cultural acima do crível, o atordoamento do ser
humano bestializado por um clima (nos dois sentidos do termo)
intolerável, inconcebível nos meus confortos de classe média, do
circuito Zona

Sul do Rio, que agora me sugeriam luxos aristocráticos. E,


mais chocante, a passividade dócil, amiga, infantil, a festa que
nos faziam. Pela primeira vez vi o Brasil, vi a nu o crime secular
de uma classe dirigente que em crueldade conhece poucos
paralelos, que se esconde em falsa afabilidade e em patriotismo,
aqui não o último, mas o primeiro e único refúgio dos velhacos.

Quando, a partir de 1952, comecei a estudar a revolução


bolchevique, estudo que é produto direto dessa viagem, a
violência me feriu, porque acredito e sinto compaixão, ou
piedade animal, se preferirem, até pela vítima que merece tudo
que recebe, mas o raciocínio por trás da cirurgia radical, que
Lênin e Trótski iniciaram e Stálin completou, cheio de
deturpações e monstruosidades desnecessárias, me pareceu
lógico e coerente. A revolução comprime e às vezes exacerba o
horror em nome de suprimi-lo de vez. Será pior que a violência
“normal”, do desleixo, da negligência em “nome da lei”, das
sociedades que se arrastam séculos em injustiças crônicas e não
minoradas?

A questão revolucionária que ponho em xeque, no mundo


de hoje, em que revoluções meramente nacionais são forçadas,
onde ocorrem (sempre em países miseráveis), a se atrelarem às
superpotências, é se os meios trazem os fins propostos, ou se
apenas mudam a fachada da tirania e sofrimento. Quem disse
que os meios justificam os fins não foram os bolcheviques e sim
os jesuítas. E o que disseram é que os meios não podem ser
julgados independentemente dos fins, o que é muito diferente da
simplificação que a direita faz dessa idéia, à parte atribuí-la
erroneamente aos comunistas. É lógica elementar. Os jesuítas,
propondo uma vida extraterrena e eterna, não precisaram
enfrentar as dúvidas dos revolucionários ateus, que pressupõem
uma vida única e material. Sacrificá-la assim e a do próximo em
nome da História?

O fim do capitalismo me parece certo. Vou fundo ao


assunto quando retomar o tema que iniciei no capítulo sobre o
golpe de 1964. Por enquanto, deixo claro o que me atraiu ao
trotskismo, a idéia da revolução permanente. Ou seja, uma vez
que Marx se enganou prevendo que começaria em países ricos e
industrializados, que imporiam o socialismo de cima para baixo,
a nações dependentes; uma vez que começa, ou começou até
hoje, em dependentes e na rabeira do progresso, a solução
menos desumana, ao menos em teoria, é procurar alastrá-la de
baixo para cima e não cair no ensimesmamento nacionalista do
stalinismo, que, em nome da defesa do patrimônio
revolucionário, em face do poderio superior do capitalismo,
termina adiando às calendas gregas o progresso e
desenvolvimento social dos seres humanos colhidos na
“vanguarda”, porque dissidências ameaçam a integridade do que
é fraco e embrionário, e a tirania tática de autodefesa termina se
institucionalizando indefinidamente, tática se torna estratégia,
disfarçada em ideologia, o que tem sido, na essência, o
stalinismo na política interna dos países em que vingou.

Essas idéias não me vieram de rojão desfilando no Norte e


Nordeste. Fincaram apenas raiz, irremovida até hoje. Havia o
imediato, o dia-a-dia, os problemas pessoais.
E fomos recebidos como paxás. As “sociedades” locais
nos abriram os braços, outros membros, músculos e orifícios. O
mito de separação de “direitas” e “desfrutáveis”, já
desmascarado no Rio do meu ambiente, se provou igualmente
falso onde o diabo perdeu as botas. Em Manaus, havia sete
mulheres para cada homem. É possível que, em face dos nativos,
mantivessem a reserva de manual. Conosco, não. Bastava apenas
escolher. A outra escolha, e isso me surpreendeu um pouco,
dada a virilidade enfática dos homens da região, era ainda mais
escancarada. Os homos locais, em que incluo prefeitos, chefes
de polícia e membros da profissão imencionável, iam aos
aeroportos, à la chasse. Nenhuma pretensão de que estivessem lá
com outro objetivo. É bem diferente o texto da vida do que
ouvimos do púlpito ou lemos nas inscrições dos pilares do
establishment, imprensa, etc.

Paschoal, inimitável, num clube em Manaus, quando as


moças (o que é praxe local) nos tiravam para dançar: “Pra que
você precisa de mulher, meu filho? Você já nasceu”.

As nossas moças do elenco, as que namoravam colegas, se


enciumaram com a agressividade das provincianas e a fraqueza
da carne dos amados. Muitas juras e perjuras e, principalmente,
mentiras, eram audíveis em fim de noite, nos corredores do
Hotel Amazonas.

Marcelo e eu já experimentáramos tudo isso, ad nauseam,


e não partilhamos o entusiasmo aquisitivo dos colegas, que, no
Rio, Zona Norte, provavam no Norte as liberdades que eram
rotina na Zona Sul, ao menos no nosso grupo. Organizamos, isto
sim, badernas, talvez uma inconsciente reação anárquica ao
horror ambiente, que o conforto relativo de que dispúnhamos
não conseguia desalojar de nossa sensibilidade. Bebemos o bar
do hotel. Organizamos festas em que, numa, de pileque,
discursei de uma sacada ao povo de Manaus, sandices e
incoerências, lembrando nossos políticos, até que um popular
me definiu: “Tu tá bebo”. Certo, amigo, e por que tu tá sóbrio?

O hotel, de luxo, saiu todo errado. Naquele calor, os


lençóis eram de nylon, um americanismo estúpido que, mesmo
dormindo nus, nos esquentava horrivelmente. A comida,
intragável, porque “internacional”. Coisas como batata frita doce
e engulhos semelhantes. Só quando provamos os refrescos da
terra, de frutas variadas, e caça local, é que comemos bem, ainda
que a maioria devolvesse “a chicote” no W. C. O prazer picante
e gorduroso. O som de descargas e o consumo de elixir
paregórico foram constantes. Meu organismo, nesse tempo,
resistia a tudo, uma das poucas saudades reais que tenho da
juventude, e atravessei incólume a Amazônia e adjacências,
inclusive um hotel em São Luís do Maranhão, em que qualquer
comida representava o tiro de arranque geral aos banheiros.

Estreamos e já contei que minha voz ganhou corpo e se


quebraram grilhões de timidez. Certo ou errado nos papéis, há
poucas sensações tão intensas quanto aparecer num palco em
face de centenas de pessoas. É uma grande suruba emocional.

Começa naquele momento em que o contra-regra (que


conduz os atores ao palco, zela por cenário e efeitos cênicos) nos
leva às coxias, à lateral da cena, ou fundo, onde entraremos, e
esperamos ali segundos. O corpo literalmente ferve de excitação
intoxicante. Pomos o pé no palco e sentimos, sem ver, os olhos e
os sentimentos da multidão. Cada gesto ou palavra nossa se
misturam quimicamente a essa atenção. Aprendemos a
manipulá-la e é delicioso sentir o poder que exercemos (ainda
que nos estejam amaldiçoando em silêncio, na platéia). Cinema
e TV, remotos e mecanizados, não comunicam esses prazeres,
porque o ator representa para diretores e técnicos. E a
continuidade do espetáculo teatral significa uma forma de vida
alternativa, de que, ao contrário da nossa vida, temos absoluto
controle. Quem experimentou essas sensações compreende com
maior facilidade e tolerância os sacrifícios e o ego gigante das
estrelas, assim como os excessos a que às vezes se entregam fora
de cena, porque tudo parece tão menor e tedioso depois daquelas
horas em que nos tornamos o centro do “mundo”, e,
curiosamente, na pele de outra pessoa, sem carregarmos os ônus
inevitáveis da nossa existência real.

Abafamos em Manaus. De mim não direi nada. Marcelo se


revelou uma presença poderosa em cena, presença de estrela,
apesar de não conseguir inflexionar certo. E, protagonista de O
noviço, a única peça brasileira, de fácil acesso a qualquer
platéia, não é exagero afirmar que se tornou o mais popular de
nós. O sucesso (e, ou, o tédio das repetições) lhe subiu à cabeça.
À la Procópio e geração, começou a soltar “cacos”, palavras fora
do texto, a inventar situações inexistentes na peça. Algumas
eram engraçadas, outras não. Ambas são impermissíveis, em
teatro sério, logo permissiveis no Teatro do Estudante.

A desolação cultural. Às vezes tristemente cômica. Numa


recepção ao grupo do governador do Amazonas (verifiquem a
data e terão o nome), o líder, entusiasmado, disse a Paschoal:
“Parabéns. Agora, Édipo, essas coisas estrangeiras, não
surpreendem. Maravilhoso é o ‘nosso’ (.sic) Romeu e Julieta”.
Portanto, se o petróleo não é nosso, ou talvez nem exista, ao
menos nacionalizamos Shakespeare. A peça provocava outras
confusões. Ruy Cavalcanti, Romeu, é mulato. O papel é
chatíssimo (Romeu e Julieta acaba na morte de Mercúcio no
segundo ato. O resto, apesar da poesia, é de doer. Julieta é
irrepresentável, exigindo uma menina com sensualidade de
adulta. Romeu pouco tem a declarar depois que se fixa na paixão
impossível). Ruy dava tudo. Viril, passional, morria
especialmente bem, levando um tombo espetacular depois de
beber o veneno, sugerindo uma águia abatida (o segredo de cair
em teatro é o relaxamento completo dos músculos, o que atenua
a um mínimo tolerável o baque no solo).

A mulatice era um problema. Ruy lembrava Cantinflas, na


paródia da tragédia. O público ocasionalmente “via” Cantinflas
e ria nas horas erradas.

E a esculhambação se alastrava. Marcelo, Polidoro, filho


morto de Hécuba, tinha uma única cena, em que desfilava
carregado pelos outros. Estes lhe enfiavam o dedo no cu,
obrigando Marcelo a prodígios de contenção e lhe arrancando
palavrões às vezes audíveis na platéia. Eu, Ulisses, vinha buscar
Polixena, última filha viva de Hécuba, que os gregos decidiram
sacrificar em troca de bons ventos dos deuses. Usava barbicha e
bigode. Em João Pessoa, abri a boca e a barbicha me rolou a um
dos cantos, quase caindo. Passei o resto da cena segurando-a.
Nos bastidores, quis surrar o contra-regra. Ele me explicou que o
“Dr. Paschoal”, por motivos de economia, aceitara verniz de
mobília, bem menos colante que o usado em palco. Imprequei
palavrões contra Paschoal e fui beber no hotel. Lá, no bar,
encontrei José Lins do Rego, que me cumprimentou
efusivamente pelo desempenho, gostando em particular do toque
de mexer “ironicamente” na barbicha...

Paschoal, antes das estréias, fazia um discurso standard,


invariável, em que lembrava uma igreja que viu destruída pelos
nazistas em Liverpool e, no dia seguinte, pedreiros e
marceneiros começaram a restaurá-la. Nesse espírito, o Brasil
precisava construir, etc. Estreávamos sempre com Romeu e
Julieta, interminável. Todos queriam ir embora, fazer o que bem
entendessem. Eugênio Carlos (o conde Páris) e eu (Frei
Lourenço) dobrávamos como criados dos Montéquios e
Capuletos, na cena inicial de duelo, porque sabíamos alguns
golpes de esgrima. Numa noite, cheios do discurso, espetamos a
espada no cu de Paschoal, que, para pasmo da platéia,
interrompeu a odisséia de Liverpool com um grito lancinante.
Grande alarido quando voltou aos bastidores.

Esses duelos criavam dificuldades. Eugênio Carlos, o


melhor esgrimista, tinha praticamente de abrir o peito para Ruy
matá-lo na cena final de Romeu e Julieta, como dita o texto, já
que Ruy apenas encenava (bem) os gestos, não pegando o
molejo real da luta. Eu, razoável, quase arranquei o dedo do meu
adversário no duelo da abertura, um certo Spínola, boa-praça,
mas sem noção do que fosse esgrima. Havia sempre o perigo de
que a cabecinha da arma, protetora, caísse. Em Teresina,
Marcelo, Eugênio e eu, de pileque, em trajes da peça e
maquilados, esgrimimos em plena praça central. Pasmo das
massas. Nos ferimos no entusiasmo. Paschoal manteve o senso
de humor, entrando em “cena” e parafraseando o príncipe de
Verona, nos desejando “uma praga sobre vossas três
ferramentas”, em inglês, em que ferramenta equivale ao membro
masculino mais obviamente que em português.

Insistimos em ir a Teresina, outra revolta do elenco,


porque Paschoal não queria. Um inferno. Os amabilíssi-mos
prefeito e governador puseram as moças no hotel melhor, e nós,
homens, entre os oficiais da Polícia Militar. A noblesse oblige
não funcionou. As moças entravam no banheiro do hotel e
encontravam leitões e outros animais. Nós, no quartel, éramos
tratados a uísque escocês e frutas frescas, no café, almoço,
jantar, dia e noite.

Há lugares agradabilíssimos no Norte e Nordeste. Lembro


em particular a praia Ponta Negra, em Natal, e a do Futuro, em
Fortaleza, que vai, me disseram, a Alagoas, e em que na areia
dura se pode andar, em partes, de automóvel. A idéia do
cearense cabeça chata sumiu em face das moças bonitas de
Fortaleza. A beleza arquitetônica de São Luís diminuía o
impacto certo da comida do hotel na maioria dos intestinos.
Apesar disso, na “Atenas brasileira”, descobri apenas uma
livraria-papelaria... E se Ponta Negra é bela, o Ponto Chique de
Natal sugere uma favela.

O horror maior eram rostos e corpos da maioria e, em


Teresina, a dificuldade de se arrancar duas frases articuladas de
qualquer popular. Evoco a qualquer momento essa lembrança de
29 anos atrás e me dói em fúria.

O paternalismo não escondia os contrastes. Em Natal,


levei Marcelo a almoçar na casa de uma irmã de Lourdes,
mulher de Adolpho. O marido, um médico dedicado, a quem os
pobres amavam pela caridade. No almoço, a amável anfitriã nos
ofereceu uma dúzia de pratos, no mínimo, e 14 sobremesas, que
provocaram uma cólica hilariante em Marcelo, que andou horas
em volta da casa, tentando digerir o excesso. A nossa resposta ao
contraste em Rio e São Paulo é que um jantar de dois casais, que
bebam um pouco, sai por mais de dois salários mínimos...

Fomos friamente recebidos pelo público em Fortaleza e


Recife. Na primeira porque o teatro não tinha fundo, terminando
em espaço aberto, ou seja, só vozes poderosas eram audíveis.
Em Recife, porque, a capital do Nordeste, existia uma tradição
de amadorismo, de Valdemar de Oliveira, tão ruim quanto nós,
mas melhor organizada, apesar do ranço de velhice cênica.
Incapazes de autocrítica, nos criticaram.

No avião, caí em cima de Paschoal. Falei do travesti de


teatro que perpetrávamos, entrando em detalhes. Ele não
discordou. Me surpreendeu, admitindo tudo. Confessou achar
teatro chatíssimo, as artes representadas em geral (entrava no
Metro Passeio do Rio durante uma sessão apenas para dormir
duas horas em ar condicionado). Dormia, repito, como crítico,
na primeria cena, ele e uma apaixonada que trouxe de Londres,
Claude Vincent, crítica da Tribuna da Imprensa, que usava
óculos escuros, pensando que iludia alguém. Propus renovação,
ensemble, mencionando Barrault e Olivier. Paschoal disse que
eu sonhava, que não conhecia a realidade do Brasil, que Barrault
e Olivier eram produtos de culturas seculares, estruturadas,
enquanto que nós mal estávamos no nível de compreensão de O
noviço. O importante, insistiu, é plantar uma bandeira numa
sociedade miserável como a nossa, não importa que mal
executada. Me chamou de livresco. Propôs que me tornasse
crítico ou professor, afirmando que me daria mal tentando impôr
de cima para baixo minhas idéias na mediocridade ambiente.
Respondi que preferia tentar corrigir o que via e detestava.

Paschoal me pareceu cínico e corrupto, ainda que lhe


admirasse a franqueza. Hoje, reconheço que em parte tinha
razão. Continuo achando que se entregou fácil demais à
mistificação cultural brasileira. Mas o tipo de resistência obtusa,
primitiva, irracional, que encontrei em imprensa, teatro e política
no Brasil não me deixa dúvida de que o diagnóstico dele, em
1951, se aproximava mais da verdade do que meus desejos,
teóricos e não testados. Terminei crítico de teatro. Fui o ator
mais votado ao prêmio de revelação da crítica do Rio, em 1952.
Ainda assim, o charme da profissão se esvaiu em mim,
rapidamente, depois de uma passagem ligeira na companhia
Morineau. O comercialismo triunfante na nossa sociedade
destruiu um a um os planos que Marcelo, Cristóvão, Beatriz
Veiga, Lígia Nunes (uma nova, hoje em teatro infantil, me
parece) e eu, rebeldes na maioria da contrafação do Teatro do
Estudante, tentamos concretizar num grupo, Teatro da Semana,
que se exibia às segundas-feiras no Copacabana. Descobri o
elementar, que repertório se escolhe em função dos atores
disponíveis e não de nossa preferência estética. O dinheiro
acabou depois de duas peças...

A corrupção era generalizada. R. Magalhães Júnior


dominava na SBAT (Sociedade Brasileira de Autores) o
comércio de traduções. É um exemplo apenas. Rara é a peça que
traduziu que não tenha sido reescrita por Brutus Pedreira ou
Mário da Silva, jornalista e intelectual europeizado, filho de
empresário famoso, Celestino da Silva, que trouxe Sarah
Bernhardt ao Brasil. O Sr. Júnior, no entanto, sem dar o braço a
torcer, papava os 5 por cento das receitas a que batoteara direito,
“não notando” as alterações que lhe faziam na joça produzida.
Perguntado uma vez qual a próxima peça, e não é piada,
Tennessee Williams respondeu que não sabia, mas que um certo
“Magalhães” no Brasil já havia traduzido...

O teatro evoluiu, claro. Hoje, há tradutores do nível de


Millôr Fernandes. Companhias se formaram, como o Teatro
Brasileiro de Comédia, de São Paulo, que apesar do desprezo do
empresário, Franco Zampari, pelos autores e diretores
brasileiros, nos trouxe diretores estrangeiros, Adolfo Celli e
Luciano Salce, empregou Gianni Ratto e Ziembinski, os quais
criaram uma visão próxima do que propus a Paschoal, em 1951.
Em tempo, Millôr, Dias Gomes, Callado, Jorge Andrade, Nelson
Rodrigues, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho,
etc. começaram a competir com Pirandello, Górki, Williams,
Arthur Miller, em assiduidade nos palcos. Surgiu o Teatro de
Arena de São Paulo, politizando a cena, tentando um
naturalismo interpretativo na linha do Actors Studio (importação
de Augusto Boal) bem superior ao declamatório inepto que
predominara antes. Intérpretes de talento, Cacilda Becker, Tônia
Carrero, Walmor Chagas, Paulo Autran, Fernanda Montenegro,
Maria Delia Costa e outros, formaram companhias em que a
presença normativa do diretor era o ponto de partida.

Havia, portanto, um meio-termo entre o cinismo realista e


derrotista de Paschoal e minhas supostas fantasias. Ou houve,
naquela quase década de 1955 a 1964, enquanto não baixaram
sobre nós os obstinados do retrocesso, da estagnação, da
censura, da vulgarização massifi-cada da cultura, do circo
permanente em TV, os subprodutos culturais do sistema de
1964.

Minha participação nisso foi mais como crítico. Dirigi seis


peças. Nenhum espetáculo fez sucesso bastante (exceto a
primeira versão de Pedro Mico, de Antônio Callado, outro
dramaturgo de potencial sustado pela ignorância e repressão),
que me firmasse diretor. Esse fato aceito sem ressentimentos.
Poderia discutir razões, mas não vale a pena e não me interessa
olhar para trás, ou melhor, para onde não pretendo voltar.

Passei um tempo nos EUA estudando literatura teatral


comparada com Eric Bentley, certamente o mais intelectualizado
dos críticos do nosso tempo. Ele propunha o que eu queria, um
teatro que pensasse, que não fosse apenas de bugios emocionais.
Mais honesto do que eu. Deixara (temporariamente) a política,
ex-marxista, enquanto que política já era minha preocupação
suprema, o que eu tentava ocultar dos outros e de mim mesmo,
procurando conciliar as duas coisas num teatro intelectualizado,
em que idéias políticas tivessem lugar garantido. Bentley, uns 15
anos depois, escreveu um livro se desdizendo quase linha por
linha, propondo a vitalidade espe-cífico-formal do teatro,
contrapondo-a ao intelectualismo que pregara antes, louvando o
melodrama e farsa como gêneros, o que me ensinara tabu em
1955, na Universidade Columbia. Editei-o para um amigo: O
teatro vivo6, Zahar Editores, 1969 ou 1970. Não vendeu, de
resto, encalhou junto com a coleção inteira, que reunia o supra-
sumo da crítica de teatro moderno. Ecos do derrotismo de
Paschoal repercutiram na minha cabeça.

Nos EUA, me “lotei” de Marx e teatro. Sim, em pleno


macartismo, Marx era encontrável em qualquer livraria, ao lado
de Harold Robbins. É, a liberdade burguesa é pseudo, mas nesse
pseudo sobram manjares para os privilegiados...

Não queria me meter em política no Brasil. Assisti à queda


de Getúlio do meu Olimpo trostkista. Uma briga de facções

6
Bentley ganhara fama mundial com The playwright as thinker
(1948), em que praticamente introduziu o método e teatro brechtianos ao
mundo anglo-americano, traduzindo ainda várias peças do autor. O
dramaturgo como pensador é uma análise do poderio intelectual do drama,
ao contrário de O teatro vivo. Contém desvastadores ensaios contra Arthur
Miller, Tennessee Williams, e a Broadway em geral. Exalta os méritos de
Shaw, Sartre e Pirandello. Bentley editou várias antologias de clássicos
antigos e modernos, que considerava injustamente banidos do palco
americano. Escreveu uma excelente biografia crítica de Bernard Shaw. É
dramaturgo, tradutor, diretor e ator. Ex-marxista, quando o conheci, no
macartismo, havia recuado ao liberalismo meramente anti-soviético na
moda em Nova York. Voltou à esquerda na guerra do Vietnã, chegando a
demitir-se do cargo vitalício de catedrático da Universidade Columbia, em
1968, em sinal de protesto à atitude brutal da reitoria contra os estudantes
que ocuparam o campus. É um dos mais influentes críticos de teatro nos
EUA e Inglaterra, leitura compulsória em todas as escolas de dramaturgia,
ao lado de Kenneth Tynan, George Jean Nathan, Harold Clurman, Ronald
Peacock, Martin Esslin, John Willet, etc. Bebi em todas essas fontes,
absorvi e devolvi. Continuo achando que Shaw e Nathan, anteriores aos
outros citados, me influenciaram mais a que desenvolvesse opiniões
próprias. O problema de Bentley é que só se descobriu sexualmente aos 60
anos. Hoje, escreve ensaios brilhantes defendendo o direito e liberdade
homossexual, não tendo, apesar disso, abandonado o teatro. Conheci-o
casado com o outro sexo.
burguesas, intrinsecamente reacionárias7, que me interessava
isso?

Os trotskistas não formavam partido. Os stalinistas os


difamavam como “ponta de lança do imperialismo”. Este, se nos
notava a existência, não via diferença entre nós e stalinistas. A
maioria nos desconhecia. Trótski só voltou lentamente à
consciência civilizada depois da biografia em três partes de Isaac
Deutscher, O profeta armado, O profeta desarmado e O profeta
proscrito. O primeiro volume saiu em 1952, na Inglaterra e
EUA. No Brasil, Ênio Silveira editou-os na década de 1960.
Contribuí bastante.

Havia grupos trotskistas, algumas famílias e pessoas


isoladas do meu tipo e vários amigos que me proíbem de citá-
los. Não há porquê. Respeito-lhes a vontade. Talvez não
queiram ser confundidos com os sectários juvenis e às vezes
terroristas que hoje usam o título.

Havia uma briga comigo mesmo que só resolvi em 1960.


Hesitava em dar a menor contribuição à aventura de Lênin e
Trótski repetida no Brasil, em particular porque o PC me parecia
estulto, oportunista e rabo menor stalinis-ta, não existindo
alternativa conseqüente de esquerda. E, ao mesmo tempo, Marx

7
Lembro que Adolpho me acordou às 8 da manhã, anunciando o suicídio
de Getúlio. Respondi, de mau humor, “E daí?” voltando a dormir.

O PC se portou de maneira menos inteligente que os trotskistas do


meu conhecimento. Prestes e Arruda decidiram que a linha justa era os
comunistas serem “mais anti-Getúlio que Lacerda” (sic). No dia do suicídio,
a Imprensa Popular, órgão do Partido, saiu com editorial exigindo a
renúncia do presidente. Quando a direção percebeu a revolta popular de rua
é que, revelando o oportunismo típico, uniu-se à massa e se gaba até hoje,
sem a menor justificação comprovável, de havê-la “guiado”, o que se
tratava obviamente de um movimento espontâneo.
lido e digerido, me era difícil até acompanhar o que passa por
política no Brasil (ainda é...).

Política burguesa é intragável depois que se lê O dezoito


brumário de Luís Napoleão, o maior strip-tease crítico do meu
conhecimento da liberdade sob o capitalismo. Marx nos mostra
minuciosamente o que todas as facções políticas fazem, às vezes
inconscientes disso, as forças reais que as manipulam, e é
preciso ser muito burro para continuar levando-as a sério,
exceto, claro, na “opção do mal menor”. Isso no Brasil, que, em
1980, permanece, no nível de consciência, atrasado em relação à
França de Luís Napoleão (que, afinal, em 1848, inaugurara
revoluções comunistas); se torna risível, não consigo sequer rir,
porque me defendo num enfado inexpugnável ao asneirol.

E eu queria fazer teatro nos anos 50. De jeito algum me


dispunha a relegar o que acumulara culturalmente em troca de
um engajamento restritivo e contra moinhos de vento. A
consciência me doía. A lembrança dos deitados “eternamente”
nas calçadas de Fortaleza. Me consolava em Shaw, surpreendido
por William Archer, na sala de leitura do Museu Britânico,
lendo alternada e alternativamente O capital e a partitura de
Tristão e Isolda. E Trótski e trotskistas (da minha e precedentes
gerações) sempre foram contra a conversão das artes em mero
expediente político. Quem leu Arte e revolução sabe disso.
Quem conhece a História da Revolução conhece a polêmica de
Trótski versus Lunatchárski e Bukharin (nível cultural idêntico),
Trótski se opondo ao prolekult e os dois outros, apesar de
humanistas de igual experiência (Lunatchárski chegou a flertar
com a idéia de trazer valores espirituais ao socialismo,
escandalizando Lênin), a favor. A alienação suposta do
modernismo me parecia mais revolucionária do que a pieguice
raivosa do realismo socialista, que projeta santos proletários
contra cruéis caricaturas burguesas, posição que mantenho ainda
agora. Aprendo mais da morte da civilização burguesa no
reacionário Eliot do que no revolucionário (um tanto relutante)
Górki. E, no Brasil, o prolekult teria nossa cara. Tem...

Tudo mudou quase sem eu perceber, quase


acidentalmente. Dois dos meus melhores amigos, na ocasião,
Francisco Pereira da Silva, um dramaturgo de talento, estilista
completo, que não encontrou a companhia séria que lhe
permitisse desenvolver a inspiração literária a nível equivalente
de execução dramática, e João Augusto, aspirante como eu a
diretor, eram críticos de teatro, do Diário Carioca e Tribuna da
Imprensa, respectivamente.

Uma noite na Gôndola, em Copacabana, ponto do pessoal


de teatro do Rio, vi-os cumprimentando Ziembinski, Walmor
Chagas e o resto do talentoso elenco que havia estreado em
Volpone, a adaptação de Stefan Zweig da peça de Ben Jonson,
no TBC. Talentoso o elenco, o espetáculo tinha sido lamentável.
Perguntei-lhes, a sós, se estavam me gozando. Não,
responderam, concordavam comigo, mas de que adiantava
baixar o malho na melhor companhia do país? Não mudaria
nada a auto-suficiência do TBC (de uma arrogância que “nada
deixava a desejar”, comparada à minha, cujo cabedal se limitava
às aventuras já descritas e à direção de uma peça infantil para
orfanatos que, de tão ruim, cortei metade e reescrevi o resto, não
conquistando a amizade do autor, e espetáculo que, à parte as
crianças órfãs, ninguém vira). Se criticassem a sério fariam
apenas inimigos pessoais.

Me queimei. Nada de pessoal contra Chico ou João,


nenhum dos dois carreirista ou oportunista. O que disseram
ontem, hoje e amanhã é constante do nosso subdesenvolvimento,
em que aqueles acima disso, como Chico e João, preferem evitar
o dragão, porque, morto, renasce na próxima esquina, sendo, em
última análise, filho de forças contra as quais pouco temos a
contrapor. Abram qualquer publicação. Há os intocáveis, os
rejeitados e os vetados. Mudam caras e nomes. O dragão se
permite alguns passos de valsa, no mesmo lugar... Sugere
movimento aos menos observadores.

E a vocação deles não era crítica. Nem minha. Juro.


Resumo da ópera: discutimos à madrugada e fizemos um pacto.
Se eu conseguisse um lugar na imprensa e começasse a testar a
política de dizer o que pensava, eles me acompanhariam. Paulo
Francis polemista nasceu desse incidente, uma discussão entre
amigos, em botequim de quinta categoria em Copacabana.

Procurei emprego. Todos os postos ocupados; não, claro,


as funções. A maioria dos críticos de teatro no Rio da época
apenas bajulava o establishment, se limitava ao noticiário
(excetuando os já citados, havia Henrique Oscar, do Diário de
Notícias) e não raro levava comissões de empresários de quem
recebia a publicidade teatral, o que as direções dos jornais, quase
todas, aceitavam.

Sobrava a Revista da Semana, a mais antiga revista


ilustrada da cidade, parte de um patrimônio que fora gigantesco,
e incluíra os popularíssimos Tico-Tico e Cena Muda, então
reduzido a quase nada, pelo desinteresse e unhice-de-fome do
herdeiro, Gratuliano de Brito. Diretor Hélio Fernandes. Eu era
amigo de Millôr, irmão, que em pouco tempo se tornaria íntimo
e assim permanece, uma ilha cercada de conformismo por quase
todos os lados.

Hélio começara a vida jornalista de esportes, que o


apaixonam até hoje. Em seguida, passou ao colunismo político
no Diário de Notícias. Participara da campanha Juscelino à
presidência. Desentendeu-se. Continua se desentendendo muito,
urbi et orbi. Os Fernandes brothers jamais poderão ser acusados
de marias-vão-com-as-outras.

A grande chance lhe veio em Manchete. Fundada com o


dinheiro do povo, cinco mil cruzeiros do Banco do Brasil,
dinheiro esse facilitado a 99 por cento dos donos da imprensa,
embora muita gente acredite que somente Samuel Wainer se
beneficiou (o assunto será tratado em tempo), Manchete nascera
sob a maior boa vontade dos meios intelectuais e jornalísticos,
pois não só expandia o mercado de trabalho como enfrentaria o
monopólio informal de O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, a
revista semanal que até hoje mais vendeu no país, atingindo, na
década de 1940, quando nossa população e minoria alfabetizada
eram bem menores, uma circulação de 700 mil exemplares
(Millôr foi uma das estrelas, se não a máxima, de O Cruzeiro,
tendo criado o modelo de humor de toda uma geração, no Pif-
Paf, e escrevendo hilariantemente contra as mulheres, em
mensário da empresa, A Cigarra, sob o pseudônimo de Adão
Júnior). Hélio passara pelo Cruzeiro. Também Nelson
Rodrigues, que escrevia folhetins de sacanagem que assinava
Susana Flagg. Franklin de Oliveira ganhou fama nacional. É de
perder a conta o número de talentos que Chateaubriand usou.
Manchete enfrentaria uma parada.

Os Bloch eram gráficos, da chamada extração humilde,


extração esta que inclui acreditar em “nomes” que sabem se
promover. Escolheram diretor da revista Henrique Pongetti,
cronista subliterato, belle époque em tricentésimo carbono, no
estilo, e dramaturgo dos que ajudei a varrer do palco em
definitivo.

Em pouco tempo, Manchete estava à falência, reduzida a


cinco mil leitores, dos quais 1.500 são compulsórios, pois
representam instituições que compram automaticamente tudo
que é publicado. A paginadora da revista era a Sra. Lucy Bloch,
mulher do Bloch-chefe, Adolfo. D. Lucy decorava a revista
usando critérios de Casa e Jardim. A subliteratice de Henrique
Pongetti, da escola “emprego apenas amigos e no escuro”,
dominava de ponta a ponta. Encalhe certo.

Samuel Wainer quase comprou a revista por 500


cruzeiros. Desistiu, ocupado na Última Hora, em fera
competição pelo mercado vespertino com O Globo. Numa
dessas reuniões na empresa, supostamente íntimas e para se
tratar de assuntos confidenciais, em que terminam participando
estranhos, o que é tipicamente cosa nostra, Hélio deu alguns
palpites, provavelmente elementares, mas jornalísticos, sobre
como salvar a revista. Ouvindo falar do mundo misterioso do
jornalismo, pela primeira vez, os Bloch lhe ofereceram a direção
de Manchete.

Hélio aceitou. Em meses, Manchete subiu a 140 mil


exemplares e se fez. Hélio admite que se limitou a contratar
jornalistas de talento, a ordenar a produção de jornalismo que
fosse da política às artes, a paginar a revista em vez de decorá-
la, a instituir uma personalidade jornalística inconfundível
(decisivo numa publicação, indispensável, em verdade) para
Manchete. À parte reportagens memoráveis, de uma abertura à
crítica e à polêmica, então relativamente raras em toda a
imprensa, Hélio trouxe um bocado de gente nova, ignorando a
tediosa coleção de medalhas que Pongetti colecionara (Pongetti,
de consolação, recebeu uma página de crônica, uma página em
branco, em suma). Manchete estava em todas e beneficiou-se da
já inequívoca decadência de O Cruzeiro, entregue a Leão
Gondim, um dos condôminos dos Associados e outro que, é
certo, ficaria surpreendidíssimo se alguém lhe descrevesse o
funcionamento do jornalismo. Hélio aumentou o pagamento dos
colaboradores (naquele tempo eram raríssimos os jornalistas
que, fora do bolso alheio, sobreviviam da profissão, a maioria
trabalhando em dois ou três lugares). Entre outras coisas,
incentivou um obscuro cronista da escola Rubem Braga, Sérgio
Porto, a abandonar pretensões de copiar o incopiável e soltar-se,
no humor carioca, Zona Sul, o que deu à luz Stanislaw Ponte
Preta.

Hélio impôs condições, a primeira e principal proibindo


(sic) a entrada de Blochs na redação. Os irmãos, acho que todos
vivos, na época, não gostaram e, muito menos, D. Lucy, que, à
maneira de Pongetti, recebeu de consolação uma revista
(acredito que já desaparecida), Jóia, título dado a sério, antes que
a gíria de hoje existisse.

Os Bloch foram apelidados por um dos sucessores de


Hélio, Otto Lara Resende, de irmãos Karamabloch. O humor é
um tanto ambivalente. Eles brigavam ferozmente entre eles. Se
jogavam máquinas de escrever um no outro. Não os conheço
direito e não acho que valham uma análise, pois há muito tempo
a orientação da empresa tem um parentesco apenas remoto com
jornalismo. Ainda assim, conversei algumas vezes na longa
mesa na Rua do Riachuelo (antes que se instalassem no Russell),
em que generosamente convidavam visitantes a almoçar. Fiz
alguns free lances em Manchete, na gestão Nahum Sirotsky, em
que Alberto Dines chefiava a reportagem e entre os copidesques
estavam jornalistas que deixariam presença na imprensa, Jânio
de Freitas e Reynaldo Jardim. Os Bloch empregaram e
empregam profissionais de primeiro nível. Raramente os deixam
trabalhar, o resultado sendo que não conheço uma pessoa que
leia Manchete, e ouvi várias vezes no Rio queixas de colegas
que precisavam do emprego, mas se sentiam no “túmulo do
jornalista desconhecido”.
Boris Bloch me fascinava, talvez porque comesse com as
mãos, dispensando talheres. O éxotique retém um certo charme
para mim, admito. Num desses almoços se sentou a meu lado
uma senhora de aparência plácida e sofrida. Muda. Apesar do
tom que na época assumia em face de quase todo mundo, sei
pegar no talher certo (nenhuma intenção de analogia), ou seja,
mantinha um mínimo de cordialidade social. Dirigi-lhe a
palavra. Notei que era americana. Trocamos de língua e ela se
revelou Mrs. Boris e me disse estar preocupadíssima. Motivo:
Boris em casa descrevia as mil maneiras que mataria o irmão,
Adolfo. Acalmei-a o melhor que pude, cão que ladra não morde,
etc.

Nesse clima, a revista garantida, os Bloch tentaram reaver


o controle, que haviam cedido humilhantemente, no desespero, a
Hélio, uma reação predizível, que provocou a briga também
predizível, e Hélio passou-se à Revista da Semana. Sem
recursos, Gratuliano deveria ter algum horror de “irmãs” de
Osny a jornalismo, Hélio escrevia dois terços da publicação.
Levou gente nova. Me apresentei a ele. Me empregou na hora,
valendo-se de recomendações que já ouvira de Millôr e porque
nos entendemos de saída.

Estreei, portanto, assinando, o que é raro. Já fizera alguns


free lances anônimos, antes de ir para os EUA em 1954, e de lá,
no segundo caderno do Correio da Manhã, dirigido por um velho
amigo (e de todo mundo), Guima. Brincadeiras. Agora me
profissionalizava. De cima.

Sou gratíssimo a Hélio, claro, e acredito que ele não se


tenha arrependido do investimento cultural e do risco. Quanto ao
financeiro, bem, Gratuliano me pagava 1 cruzeiro a colaboração
(a bem da justiça, um dia disse a Hélio que eu merecia...). Os
raros de fora (Ely Azeredo, me lembro, que nunca escreveu tão
bem) recebiam o mesmo caraminguá. Hélio, repito, usando
vários pseudônimos, enchia a revista. Divertidíssimo foi quando
ao chegar o Carnaval ele compareceu a todas as festas principais
e deu, sozinho, um banho em Manchete, que alardeava vasta
equipe. Hélio e o fotógrafo Alberto de Oliveira fugiram dos
clichês. Descreveram o que viram, palavras e fotos. Um
autêntico ovo de Colombo.

Comecei explodindo uma bomba no teatro. Comparei


Cacilda Becker a Fernanda Montenegro, que disputavam a
primazia entre as atrizes. Não que isso fosse reconhecido pelos
críticos velhos. Achavam as duas “divinas” e continuamos todos
amigos. Nada de original na inspiração do artigo. Repeti à minha
maneira a comparação que Shaw fez de Bernhardt e Duse.
Sarah, notou Shaw, sempre impunha a própria personalidade à
personagem. Duse encarnava a personagem. Há quem discorde,
Max Beerbohm, o sucessor de Shaw, por exemplo, achava Duse
um saco. Na linha de Shaw descobri em Cacilda uma
personalidade extraordinária, enquanto que Fernanda
“desaparecia”, iluminando os papéis. A diferença entre Sarah e
Cacilda é que esta exibia momentos de gênio, a meu ver
insuperados, em meio ao show pessoal. Lembro-me em
particular da cena em que na Longa jornada de um dia para a
noite, de O’Neill, quando, dopada de morfina, implorava a
companhia da empregada (Kleber, Santos ou Fernandes. Um é
homem outra é mulher. Desculpem, mais uma vez, a amnésia).
Fernanda fazia e faz tudo certo. É nossa melhor atriz.

Depois, refiz a reputação de Nelson Rodrigues, esquecido


como autor, insultado por uma corja de reacionários, a mesma
corja a quem apoiou durante a longa noite pós-1964. Também
produzi um ensaio imenso sobre Gonçalves Dias, dramaturgo
que, se houver no Brasil uma companhia de repertório decente,
terá um lugar certo, pois falhas como são as peças, atingem altos
raros em nossa literatura dramática. Inês de Castro é um dos
grandes espetáculos do teatro brasileiro, na versão TBC de
Flávio Rangel.

Chico e João pontualmente abriram fogo. Animamos


outros e a polêmica, esse corpo estranho na alma brasileira,
ressuscitou no palco. Em São Paulo, Décio de Almeida Prado,
Sábato Magaldi e Delmiro Gonçalves, os três do Estado, nos
haviam precedido em estimular o estabelecimento de valores e
em negar os falsos. Sábato, o mais aguerrido, criou bons e
necessários casos, mas o tom do trio nos parecia mais didático
(deliberadamente, sem dúvida) do que julgávamos adequado à
“ação entre amigos” no teatro brasileiro.

Tenho de fazer uma revisão desse período, que, afinal, me


deu nome como jornalista. A primeira confissão é técnica. Na
maturidade, os jornalistas mais rápidos dos que conheci sem
dúvida foram Lacerda, Hélio, Casteli-nho, Franklin de Oliveira e
eu. Não comecei assim. Cozinhava dias o que hoje escrevo em
triplo diretamente no telex. Escrever rápido não quer dizer bem.
Há lentos esplêndidos, mas todos os rápidos citados marcaram a
imprensa desse tempo e ainda em 1980, menos, claro, Lacerda,
morto.

Não há regras gerais. Arrisco apenas um palpite. Os lentos


competentes, e há dúzias, têm de vencer inibições pessoais antes
de se expressarem. O problema é psicológico e não de talento ou
técnico. Certos patrões, da estirpe Bloch ou Gratuliano,
desconfiam que estão sendo roubados se alguém lhes redige
matérias em minutos. Não entendem o lastro cultural, a
experiência e a técnica por trás da velocidade. Franklin, ao se
juntar a José Lino Grunewald, a Edilberto e a mim no Correio,
como editorialista, tive de arrancá-lo da máquina e convidá-lo a
um sanduíche, porque escrevia em 10 minutos as 60 linhas
principais. Editorial, claro, é mais fácil que um artigo nosso.
Editorial expressa uma linha coletiva. A nossa opinião é sempre
mais individualizada. Agora, isso não significa que o editorial,
numa publicação de qualidade e do “contra”, à la Correio, não
exija uma pauleira mental. É que a dita foi concentrada e
acelerada nessa palavra fácil, vaga e misteriosa, talento. O leigo
que vê o jornalista-metralha, imagina que imitaria a
performance, se quisesse, naturalmente. Vi alguns patrões
tentarem. Depois de horas de luta chamavam a um de nós.

Chico se cansou logo do papel de tutor. Nenhuma


surpresa. Queria mesmo era escrever peças. É um dos muitos
talentos desperdiçados no Brasil, pela falta de um meio
ambiente, da irrigação cultural que permitiria que crescesse. A
parte isso, é um homem educadíssimo, gentil, de sensibilidade à
flor da pele, ou seja, “inadequado” à brutalidade na luta pela
subida ao pau-de-sebo. Ele, outro amigo, Anísio Medeiros,
pintor, cenógrafo de talento, personalidade forte e crítica, e eu,
passamos muitas horas de papos em que não só aprendi muito
dos dois, como me ensinaram (na medida do possível) a arte
brasileira da convivência. Devo-lhes mais do que imaginam e do
que me dei conta na ocasião. Que não os veja nesses últimos
anos é perda minha.

Chico, generosamente, me indicou ao lugar que deixou, de


crítico de teatro do Diário Carioca. Amizade e sorte me
impulsionaram. A sorte é que um dos diretores do jornal,
Pompeu de Souza, tinha sido um fero crítico de teatro no
período dos Comediantes e acreditava em “ferro na boneca”, na
senhora velha, superpintada e desdentada que víamos nos
palcos. A maneira de Hélio (que, inevitável, se enchera de
Gratuliano, voltando ao colunismo e, posteriormente, assumindo
a Tribuna da Imprensa, onde tornamos a trabalhar juntos em
1971-1976), me deu liberdade total. Editavam o Diário Carioca,
alternadamente, Evandro Carlos de Andrade e Carlos Castelo
Branco.

Deste aprendi uma das raras lições proveitosas de


jornalismo. Um dia, depois de ler meu artigo, antes de baixá-lo
(à oficina de composição), devolveu-me o dito, por contínuo.
Isso não acontecera antes. Fiquei espantado. Onde eu tinha
escrito “via de regra”, Castelinho puxou um traço à margem,
adicionando: “é buceta”. É a primeira vez que escrevo “via de
regra” desde 1957.

Uma nota sobre Hélio: a maioria o conhece colunista


ferrabrás, o que ele não nega, pratica. A decisão é dele. Provoca
ódios impublicáveis em pessoas e círculos. É um dos maiores
polemistas da imprensa, gostemos ou não. Numa época escrevi
que houve três polemistas profissionais no jornalismo brasileiro:
Lacerda, Hélio e eu. Não mudo uma palavra. E “profissional” é
uma definição de temperamento e técnica. Agora, lamento que
Hélio, chateado de Blochs e Gratulianos, tenha perdido o gosto
de editar. Compreendo o desgosto. Sofri desapontamentos
parecidos, em posições de mando. Mas Hélio foi um dos mais
inventivos, tolerantes e experimentais chefes que conheci. Não
padecia do ridículo senso de inferioridade de tantos editores, que
temem se cercar de gente de talento que possa “ameaçar” o
deles. Ao contrário, quanto melhor, melhor recebido por ele.
Nada lhe agradava tanto como lançar gente desconhecida e
talentosa. E até em assuntos que desconhecia, se confiando no
subordinado, dava-lhe liberdade absoluta de expressão. Não
mexia numa linha de colunistas ainda que divergisse do que
escreviam. Os que o supõem intransigente e rancoroso, é bom
que fiquem sabendo disso. Fazem-lhe toda espécie de acusações.
É parte da guerra e Hélio dispensa defensores, cuidando muito
bem de si próprio.
João Augusto também desertou a crítica. Mudou-se para a
Bahia, onde estabeleceu companhia de teatro popular, com
muito sucesso, me dizem, antes trabalhando numa escola
experimental de teatro da Universidade Estadual, que Eros
Gonçalves, diretor, cenógrafo, intelectual, montou e dirigiu,
atraindo gente como Brutus Pedreira, Gianni Ratto, Domitila do
Amaral (atriz brasileira que fizera sucesso em Paris,
personalidade reclusa), Ségio Cardoso, Maria Fernanda, Glauber
Rocha e Luis Carlos Maciel. O experimento, em parte, não deu
certo por culpa de Eros, que, talentoso e culto, era de difícil
convívio pelo temperamento colérico e uma insegurança —
profissionalmente — injustificada, mais um caso de “irmãs” de
Osny, que, um senhor respeitável, já deve estar achando chato
que eu o arraste a toda hora à narrativa, batizado de síndrome.
Nota breve: soube da existência de Glauber Rocha num artigo
em que ele me atacava porque bombardeei Eros. Muitíssimo
bem escrito. Não respondi, concluindo, corretamente, que o
silêncio o enfureceria. Finalmente nos conhecemos e emergiu
uma amizade resistente até hoje. Também fiz as pazes com Eros,
então se chamando Martim Gonçalves, o que muito me agradou,
porque sempre gostei dele, um dos raros intelectuais do teatro
brasileiro que sustentava uma discussão séria.

Escrevendo este livro, descobri, chocadíssimo, que João


morreu recentemente, ainda jovem, do coração. Foi um dos
meus melhores amigos em teatro e formamos UIIl grupo cheio
de esperanças, que incluía, à parte os citados, ítalo Rossi e
Brutus Pedreira, nos tempos que achávamos que o Brasil se
renovaria e amadureceria pelos nossos esforços e talento.
Ingênuo, sem dúvida, mas uma constante dessa geração.

Nada houve de espontâneo no que escrevi no Diário


Carioca. Foi um “trabalho do negativo” cuidadosamente
planejado. Primeiro, iniciei campanha de desmoralização
sistemática da Velha Guarda, o que incluía empresas, atores e
críticos, a meu ver, coniventes. Depois enfatizei a importância
dos textos. Às vezes, antes de criticar espetáculos, consumia
colunas (e dias) discutindo a dramaturgia. Terceiro, promovi os
novos, autores, diretores e atores brasileiros que me pareciam a
chance de sairmos do retrógrado e criar algo novo e expressivo
da nossa cultura. Não ataquei os estrangeiros, de Celli a
Ziembinski, os quais me pareciam contribuir à reforma e, à parte
isso, nunca fui chauvinista. Combati apenas as pretensões
excessivas do Teatro Brasileiro de Comédia, excessivas em
relação a resultados, e o chauvinismo estrangeiro do empresário,
Franco Zampari.

Tudo deu certo, na medida (limitada) que um crítico influi.


E ao assumir simultaneamente a crítica de Última Hora dispus
de duas tribunas diárias, um duplo e incessante martelo. Em
pouco tempo, os “velhos” estavam em retirada, o que incluía
autores do tipo Pongetti e Guilherme Figueiredo, de que nunca
mais se ouviu falar desde então. Citei acima a geração de autores
brasileiros que apareceu e que, hoje, é aceita ao mesmo nível de
qualquer dramaturgo estrangeiro. Não falo de qualidade, o que
não é possível impor, se tem ou não. O empresário da época,
porém, concluía, a priori, que tudo escrito originalmente em
português não prestava, “não atraía público”, a desculpa
esfarrapada que ofereciam. Isso mudou.

Tão importante, a nova crítica abriu caminho para uma


geração de diretores, Flávio Rangel, Antunes Filho, Boal, etc.
Os atores, afinal, sempre tinham sido brasileiros, na maioria
esmagadora. O diretor brasileiro é que podia “nacionalizar” o
teatro, ou seja, retirá-lo da tutela estrangeira exclusiva. Apesar
disso, um dos maiores sucessos da época foi do brasileiro Jorge
Andrade, em São Paulo, com A moratória, dirigida pelo italiano
Gianni Ratto. Isso não me preocupava, repito minha completa
rejeição do chauvinismo (e Ratto, como Ziembinski, não
considerava o Brasil uma escala antes do retorno à Europa.
Estudaram o país, se assimilaram).

Me acusavam de “brutal”, ou na palavra mais precisa de


Paulo Autran, “ferino”. É verdade, mas não se catuca o balaio da
nega com afagos. O negócio é demolir. Ninguém, talvez, me
acredite, mas insisto em que (à parte uma exceção lamentável)
nada havia de pessoal na minha blitzkrieg. Usei, sem dúvida, um
tom único de violência na crítica às artes daquele tempo. Mas
isso se devia não apenas à certeza de que eu estava certo, certeza
determinante, como a questões de família e formação. Os
Heilborn diziam um na cara do outro o que pensavam. Não
fomos chegados às mumunhas e eufemismos brasileiros, ao que,
em jornalismo, chamo a escola do “por outro lado”. Somos mão
única, únicas em verdade, não temendo colisões. Jesuítas
consideravam ilusões uma forma de corrupção da alma
(consideravam corrupção qualquer atitude fora da “linha justa”
que propunham...). Na turma de Fernando, ou entre os amigos de
Marcelo e meus no circuito Zona Sul, inexistiam candidatos ao
Itamarati (exceto na cabeça de Adolpho). E, finalmente,
decisivo, eu freqüentava intelectuais marxistas. Estes, desde os
tempos de Lênin, se caracterizam por uma rudeza que parece
espantosa aos não-iniciados. Basta ler as atas do Partido da
URSS, antes que Stálin começasse a falsificá-las em decisões
unânimes, redigidas em burocratês. O marxista que não dissesse
precisamente o que pensava não seria levado a sério. Lênin, o
suposto ditador, várias vezes tentou pedir demissão, tal a fúria
com que os colegas o atacaram em debates difíceis, em
momentos de crise. Paulo Francis se condicionou assim.

De exclusivamente meu não nego o que mais doeu: o


temperamento satírico, “ferino”. Rejeito porém explicações
psicológicas imediatistas. Desde criança ferida e “alienada”, a
ironia, a mordacidade e, quando evoluí, a sátira, me foram armas
de defesa contra o que perdi emocionalmente. Essa explicação
psicológica aceito, até certo ponto. Recebeu considerável
reforço, muito mais influente, em conclusões a que cheguei
intelectualmente. Depois de ler Darwin, Freud, Marx, apreender
o sentido das descobertas de Copérnico a Einstein, levar o ser
humano, essa mutação acidental, segundo Darwin, inteiramente
a sério, atribuindo-lhe o “reinado da criação”, etc., me era
impossível, repito, impossível, intelectualmente. Só rindo, ainda
que tentando criar valores que a ciência e a lógica filosófica me
demonstravam improváveis, mero esforço existencial da nossa
parte, que nos alivia a vida da insignificância intrínseca afirmada
pela nossa própria cabeça, em face de provas esmagadoras. E o
deboche de Shaw e Nathan não os impediu de se tornarem
defensores e promotores do que nos redime, temporariamente
que seja, dessa insignificância que termina em cinzas. Essa, a
minha escola.

Em retrospecto, talvez eu devesse ter sido menos “ferino”


com os “velhos”. Em 1958, no auge da campanha sofri
humilhações emocionais (“reabri”, como disse em capítulo
anterior): me provaram na carne que o ser humano não pode
viver sem compaixão. A experiência me ensinou tolerância. Aos
27 anos, flexionando pela primeira vez de público os músculos
intelectuais, em face de adversários peso-pena, sentindo a
“História do meu lado”, essas coisas não me ocorreram. Se
injustiça houve, ou crueldade, foi de tom apenas. Reconhecia o
talento dos “velhos”, de Dulcina, Procópio, Alda Garrido, Dercy
Gonçalves, etc., criticando-os porque estagnaram no
canastronismo, por recusarem corrigir a visão de teatro que me
parecia errada, e, pior, obstruindo o caminho dos renovadores. E
dispunham de um amplo aparato, maioria, de relações públicas
na imprensa que os protegia e mantinha em lugares imerecidos,
ou que haviam perdido o direito cultural de reter. Disso não me
arrependo. Em matéria de autocrítica, admito ainda minha
intolerância bentleyana a gêneros menores, à farsa, à revista,
etc., mas mesmo nestas o que me irritava mais era o ranço e não
o conteúdo.

Hoje, à la Bentley de O teatro vivo, qualquer prazer me


diverte, desde que executado com criatividade e não meramente
apoiado em clichês.

E não que enchesse de pétalas o caminho dos novos. Fui, o


quanto é possível, imparcial. Ataquei inovações mal feitas e
pensadas. Critiquei os meus melhores amigos, quando me
pareceram falhar, ou desapontavam. Minha consciência está
tranqüila.

A exceção foi um ataque pessoal a Tônia Carrero, a quem


admiro mulher e atriz. O artigo é muito bom, lamento dizer, do
ponto de vista técnico, enrubesci ao relê-lo, dias depois. Eu
estava física e emocionalmente doente, trabalhando em excesso
(assumira uma das editorias de Senhor, à parte o Diário e Última
Hora), febril da doença física (um sinal de tuberculose que me
atacava) e febril de um assunto que censurarei à la Mediei. Não
há, nem é isso, desculpa. O artigo é sórdido, imperdoável, uma
das mais pungentes vergonhas da minha vida, porque pessoal,
mesquinho, deliberadamente cruel, sem que houvesse motivo.
Na zonzeira em que vivia, no Diário, aceitei, inexplicavelmente
para mim até hoje, uma interpretação suburbana de um colega de
uma brincadeira que Tônia Carrero fizera comigo na coluna de
Antônio Maria, em O Globo. Ou seja, além de cachorro, me
portei como idiota.

O marido de Tônia, o diretor Adolfo Celli, muito meu


amigo, me procurou à noite no Teatro do Leme, onde, à parte
jornalismo e chateações pessoais, eu dirigia uma peça. Em frente
do elenco, me insultou pesadamente. Ouvi, encabulado, dando
razão a ele, no íntimo, e despido, pela vergonha, da habitual
agressividade. Em seguida, trocamos alguns sopapos frouxos.
Todo o elenco viu. Celli é pesado. Apesar disso, em estado
normal, acredito que não apanharia dele, sem precisar sequer
recorrer a golpes baixos. Não apanhei assim mesmo. Ninguém
apanhou. O choque foi rápido, separado pelos atores, Celli foi
embora, gritando insultos.

O grande fã-clube de Tônia na imprensa, encabeçado por


Antônio Maria, transformou o episódio num melodrama em que
eu, difamador, me provara covarde, fugindo dos punhos de Celli.
Manchetes em alguns jornais. Me defendi no Diário, e,
brasileiramente, chamei o difamador Maria à briga, preparando
contra ele expedientes de delinqüência na minha humilhação e
raiva. Maria que, em pouco tempo, se tornou até morrer um dos
meus melhores amigos, nossas saídas noturnas, em companhia
de Ivan Lessa, rendendo um interminável folclore, felizmente,
para mim, recusou o desafio. Ele, sim, me quebraria em dois.
Vi-o exibir a força de brincadeira, no Grego (agora chamado
Partenon, ou asneira semelhante), restaurante na Rua Barata
Ribeiro, onde Maria, Ivan e eu nos entretínhamos, em
companhia de moça chamada “Miss Borboleta”, e, pela mostra
da brincadeira, o sério seria mortal.

Esse caso me saiu caro. O único amigo de teatro que me


procurou, prestando solidariedade condicional (isto é, ao amigo,
não ao artigo), foi Flávio Rangel. Duas vezes, uma em
particular, outra em público (para “provar”), ataquei fisicamente
Paulo Autran, outro amigo perdido (é um dos melhores amigos
de Tônia), que me humilhara. Na tradição do macho brasileiro,
Paulo acha que ele ganhou, eu acho que eu ganhei... Até hoje
não nos falamos.
Na Última Hora, não entendia a hostilidade pessoal dos
dois diretores abaixo de Samuel Wainer, Paulo Silveira e
Moacyr Werneck de Castro. Paulo, o mais fechado (não só
comigo), se abriu primeiro, por gostar da inteligência dos meus
ataques a Lacerda, inteligência um tanto rara naquele tempo de
polarização. A Última Hora, em geral, à parte xingar Lacerda de
“canalha fascista”, “ladrão”, etc., o que é rotineiro nesse tipo de
luta, insistia absurdamente em que Lacerda era burro. Meu
primeiro artigo começava declarando-o o mais inteligente, culto
e articulado dos políticos brasileiros, baixando-lhe depois o
chanfalho pelas posições. Paulo me convidou a um uísque e
tomando-o, com o ar de imperador romano que é
exclusivamente dele, disse: “Me rendo ao talento”, etc. Explicou
que ele e Moacyr se chocaram pela minha crueldade
injustificada contra Tônia Carrero. Em tempo, Moacyr e eu
também nos tornamos amigos. Samuel Wainer, acima dessas
coisas, como só sabe ser quem já esteve por baixo dessas coisas,
sempre foi um modelo de cordialidade comigo.

Encerrando a crônica dessa queda desagradável, fui um


dia convidado por Carlos Thiré, ex-marido e amigo de Tônia
(tiveram um filho, o ator e diretor Cecil), para surpresa minha, a
fazer reportagens na parte de jornalismo que dirigia num
programa de variedades de Vítor Berbara, na TV Tupi. Thiré,
cujo folclore também encheria páginas, me recebeu sisudo e
correto. Nos entendemos profissionalmente e ele gostou e
manteve o meu “quadro”: entrevistei Celso Furtado, ministro do
Planejamento de Jango, examinei o Fundão (a universidade
fantasma, agora parece que apenas “semi”) e vários problemas
sociais, até que o chefe de polícia de Lacerda, coronel Borges,
que me odiava (bons motivos), deu um susto em Berbara, que
me demitiu, cortando assim o avanço de um futuro, quem sabe,
Amaral Neto, às avessas.
Notem que Thiré, à parte Yaffaire Tônia, tinha outro
motivo (sem base real) feminino para me detestar. Sempre foi
impecável comigo, lamentando a covardia de Berbara, contra a
qual protestou o quanto pôde. Falavam malíssimo dele. No que
me toca, se portou como um gentleman e profissional a quem
não faço restrições. Quando morreu de enfarte, também antes do
tempo “normal”, me achei no dever pessoal de visitar-lhe o
corpo na capela do São João Batista. Lá estavam todas as
pessoas que haviam tomado partido, às vezes estridente, contra
mim. Eu não tinha sequer a quem prestar condolências, a menos
que usasse luvas de boxe, ou armadura. Fiquei alguns minutos e
fui olhado tão atentamente quanto em minha breve experiência
de ator. Ninguém rosnou ou, que eu percebesse, fez nada de
agressivo. Ainda assim, vivi momentos “prenhes” de tensão.

O teatro finalmente me levou ao que eu desejava evitar: o


envolvimento político direto no Brasil marginal. O impulso veio
do próprio teatro, do que eu escrevia, do que há e contrastava à
realidade. A nova geração e novo teatro se consolidaram. Em
tempo, à parte o TBC, surgiram as companhias de Cacilda
Becker, Tônia-Celli-Autran, Maria Della Costa (a mais antiga,
que se recauchutou às regras que exigíamos), e o Arena, em São
Paulo, politizava abertamente o prolekult. Fui receptivo a tudo
enquanto os “velhos” se aposentaram, ou sobreviviam
desprestigiados. Os críticos não currioláveis do Rio formaram
um círculo que excluía os noticiaristas publicitários. Se
Fernanda Montenegro, também de companhia organizada
(Ratto, Sérgio Brito, ítalo Rossi, Fernando Torres), ganhava
quase todo ano o prêmio de melhor atriz, a “culpa” era dela e
não de tendenciosismo dos críticos votantes.

Derrubado o anáen régime, o que pôr no lugar? Me cansei


das exegeses de Shakespeare, Shaw, O’Neill, Pirandello, Jorge
Andrade (sobre quem um dia, em vários artigos, perdi o controle
e terminei inflando à incoerência o material), Nelson Rodrigues,
Millôr, etc. Os elencos permaneciam, excetuando um e outro
ator, ruins, apesar de submetidos à disciplina diretorial de
brasileiros. Um impasse.

Nosso ator, em geral, não sabia e não sabe falar. Declama


ou cria um modus artificial de dizer. É a réplica patética do
empolamento da elite dirigente. Patética porque é um dos
escravos e não senhor. O nosso coloquial lhe parece coisa de
“gente baixa”. Não me refiro ao coloquial mesmo, ao
naturalismo de que Robert Altman abusa, no cinema, em que
perdemos metade do diálogo. O ator de teatro precisa projetar a
voz à última fila, o que é problema de respiração, claro, e não de
gritar. Aprende-se. Agora, se queríamos o coloquial,
precisávamos de um texto que o ator, ser humano, brasileiro, em
geral de pequena classe média, pudesse enunciar como coisa
dele, parte da modesta identidade cultural do país. Era visível,
até nos melhores intérpretes, a distância cultural em que ficavam
dos originais ingleses, franceses, italianos e até espanhóis. Isto
sem mencionar as gafes de superfície, lordes ingleses usando
meias soquetes fantasia, criaturas pardas representando nórdicos,
os choques do nosso temperamento, expansivo, e a secura, ou a
mesura cadenciada, de ingleses e franceses elegantes.

Precisávamos, em suma, do autor brasileiro. E do autor


que representasse o Brasil que nos parecia possível no interregno
de 1955-1964. Claro, o autor político, politizado, que expusesse
a luta entre a “linda criança” que gestávamos e “o negro porvir”
que nos reservava, e à criança, a reação.

Nada disso me ocorreu da noite para o dia. E, claro,


ocorreu a outros também. Augusto Boal, enquanto dominou o
Arena, nos precedeu a todos, por exemplo, mas escrevo minhas
memórias e, na posição de crítico, diário e mensal (em Senhor),
ocupava um posto único, pelo alcance e assiduidade, para
promover uma revisão e começar a propaganda.

Fui maturando essa idéia, repito, da experiência de anos,


enfrentando os mesmos erros e insuficiências dos novos, depois
de derrotarmos os “velhos”.

Lembro-me até do título que marcou a mudança: Uma


proposta modesta. É de Swift e a proposta é modesta coisa
nenhuma. Swift, pastor da Irlanda esfomeada, sugeriu que os
opressores ingleses permitissem às vítimas comerem os rebentos
mais jovens, assim saciando a fome e contendo o crescimento
populacional. A única semelhança entre nossos objetivos está na
palavra “fome” e usada em contextos diferentes. Nesse artigo
falei da importância concreta do Brasil para os brasileiros, da
necessidade de que efetuássemos uma autocrítica e exame
crítico da nossa sociedade, em vez de continuarmos,
deficientemente, presos a culturas que só muito raro e das alturas
tocavam nos nossos problemas.

Politizei as críticas. Há várias que gostaria de comer ou


incinerar. Ataques a autores que admiro, como O’Neill e Pinter,
porque falavam de mundos mortos e não pregavam a nova
ordem revolucionária. Comecei a cobrar engajamento. Dizia-se
que Paulo Francis se politizara. Não é bem assim. Politizado eu
já estava, no lusco-fusco semi-secreto do trotskismo intelectual
que assistia de camarote à falência conjunta de burguesia e
stalinismo. O que decidi, isto sim, foi seguir o conselho sartriano
de meter as mãos na merda, e, em seguida, o que Sartre omitiu,
as mãos me, nos puxam a cabeça...

A verdade é que eu me cansara da crítica de teatro. Não é


profissão que me atraia ou a alguém ambicioso, e sempre fui
ambiciosíssimo. É uma profissão a que “se chega”, na falta de
melhor. É uma profissão de jovens. Agüentar três produções ao
ano de Aurimar Rocha, Eva Todor, Alda Garrido, ou mesmo os
italianismos apaulistados do TBC, só conseguia, depois de certo
tempo, na base de ingerir previamente meio copo de uísque
puro. Engrossei. Se o espetáculo era ruim, me mandava em
cinco minutos, o pano aberto.

E brasileiro, finalmente, a polarização política me atraía a


participar do geral, apesar dos encantos (ocasionais) do
específico, do teatro, a ir do cenário à cena maior. E o
jornalismo, outra carreira em que ingressei acidentalmente,
passara a ser vital como interesse e ganha-pão. Confinar tudo
isso ao teatro se tornou impraticável. O Paulo Francis
comentarista e editor emergiram do casulo teatral, que achei
esgotado. Talvez minha vida tivesse sido mais mansa se eu
ficasse na casca velha, redecorando-a. Certamente evitaria
muitas chateações e desapontamentos.

Nunca desisti de ser escritor, meu primeiro e resistente


amor. Mas um longo período de separação me aguardava, a
partir dos 30 anos, quando explodi politicamente, nas páginas de
Última Hora, agora sem o pretexto de corrigir a mentalidade de
atores, autores e empresários. Trinta anos é o fim da juventude,
prazo limite que se permite (ou me permito) à debilidade mental,
à negligência do que é importante, ou assim me parece. Seja
qual for o veredicto do próximo, escolhi meu destino, dentro do
possível, na idade e momento certos, em que a reação encontrara
maquilagem enganadora, no populismo de caspa e bananas
descascadas em público de Jânio Quadros, enquanto o progresso
parecia confinado no uniforme de um homem decente e
injustiçado, o marechal Lott. Não houve até hoje outra
transformação na minha vida que se igualasse a esse mergulho
no centro político e jornalístico do país. Ficção e exílio
voluntário, expatriamento, são subprodutos, já eram parte latente
do que fiz de mim esses anos todos.
Ninguém me forçou a nada. Assumo sempre a
responsabilidade pelos meus atos. O livre-arbítrio é uma ilusão
intoxicante.

V. “DEUS É BRASILEIRO”

LEMBRO-ME de uma visita ao Brasil, acompanhado de


casal jovem, bem de vida, ela carregando bebê; voltavam de vez
depois de anos em Nova York. Ao nos instalarmos, Varig, uma
aeromoça veio, se colocou à disposição, fez graças e agrados ao
bebê, uma babá uniformizada. Foi-se e a mãe caiu em lágrimas
de gratidão, me dizendo: “Tá vendo? Não há povo igual ao
brasileiro. Onde você encontra esse calor, esse carinho?” Moitei.
É regulamento das companhias que as aeromoças socorram
mães que não dispõem do senso prático do canguru. Havia,
porém, nuances, a língua, o estilo, nosso jeito. “Que raízes se
agarram?” Estas.

Não pensem que escapo à agressão gravitacional quando


vou ao Brasil. Meus amigos íntimos estão lá, aí. O que resta de
família, idem. Algumas horas com Millôr Fernandes, Ênio
Silveira, Jorge Zahar, se eles riem às bandeiras despregadas,
para cunhar uma frase, me pregam a velha e boba esperança
positivista da nossa “Ordem e Progresso”, que a esquerda
juvenil, em 1963, chamava “Ordem Pró-Esso”. Não consigo
formar intimidades aqui. Tenho amigos, alguns, uns poucos bem
agradáveis até, mas certas ligações, aquelas em que o
pressuposto em comum, e não o explícito, predomina, se
formam na juventude, ou infância. A vida não começa aos 40.
Começa a terminar, se tivermos sorte de resistir tanto.
Um exemplo: no meu último endereço de Ipanema, todo
dia Millôr e eu nos víamos. Ou ia ao estúdio dele, próximo, ou
Millôr vinha à minha “biblioteca”, o lugar mais confortável da
casa. Quando não saíamos juntos à noite (o que fazíamos muito),
ficávamos horas no uisquinho discutindo, sem ordem ou sentido
conscientes, do trabalho a vitórias e derrotas, o próximo, vida e
morte. Nos psicanalisávamos mutuamente. Não que
pensássemos nisso. Amizade, repito, é feita de pressupostos e
subentendidos. Almoçamos juntos, anos a fio, Ênio, Jorge e eu.
Estranhos, até estimados amigos menos íntimos, perturbavam a
estabilidade química da relação.

Sérgio Lacerda me disse que, numa volta da Europa, o


avião parou inesperadamente na Bahia. Os passageiros na sala
de trânsito, ele pediu a um dos faxineiros do aeroporto que lhe
comprasse algumas revistas e jornais, em local vedado ao acesso
dos transitórios. O cara se foi e trouxe a pilha. Sérgio quis
recompensá-lo. O homem se recusou terminantemente. Sérgio se
comoveu.

Há pouco tempo, vendo o papa na favela do Vidigal, a


cara do povo me partiu o coração. Como podem rir aquelas
pessoas subnutridas, anêmicas, faltando dentes, cobertas de
andrajos, a quem nada é dado, exceto a “potemkização”
momentânea da favela, onde o governo, para engambelar João
Paulo II, fez uma capela e cedeu um pouco de luz e água
corrente? Mário Faustino e eu, dirigindo a Tribuna da Imprensa,
no intervalo entre Carlos Lacerda e Hélio Fernandes, em que o
jornal era de propriedade de Nascimento Brito, do Jornal do
Brasil, fomos tomar café em botequim na Rua do Lavradio,
onde fica a Tribuna. Entrou um bando de populares, suados do
futebol que jogavam em terreno baldio, pedindo cerveja ao
português. Riam, se abraçavam, se catucavam, alegres. Era
domingo. Mário e eu sorumbáticos, aguardando que nosso
organismo eliminasse a ressaca da noite anterior. Eles riam,
Santa Maria.

Às 3 da manhã, no velho Jirau, Samuel Wainer me chama


e convida a ir ao jornal. Àquela hora? Precisávamos enfiar na
vespertina um editorial sobre o estado de sítio que Jango
“cancelara” na noite prévia (se não cancelado, o golpe de 1964
teria acontecido naquele outubro de 1963. Sabíamos. O público
leitor nunca foi informado). Fomos, escrevemos. Na volta, na
manhã, paramos num sinal. Alguns populares chutavam uma
bola de meia. Samuel olhou para mim e disse simples,
compassivo, numa contenção que raramente conseguimos até
dos nossos melhores atores: “Eles querem tão pouco e lhes
negamos”.

Todo brasileiro privilegiado sabe que é cúmplice de um


crime, seja praticante (minoria), omisso (maioria), ou
esbravejante (minoria). Somos todos, de certa forma, “iguais”.
Passado o susto de perseguições em 1964, perseguições que
viriam a partir de 1968, voltei aos bares e restaurantes de
sempre. A direita triunfante me recebeu cavalheirescamente,
dizendo-se preocupada, na minha “ausência”, pelo meu bem-
estar. Alguns ofereceram auxílio financeiro, se eu precisasse.
Banqueiros me emprestaram dinheiro, a pagar quando pudesse
(com os juros devidos, naturalmente. Em todo caso, prazo
ilimitado, na miséria, não é concessão desprezível). Antes de
encontrar refúgio permanente, me imaginando mais importante
do que sou, me escondi horas na casa de um irmão de Lourdes
Heilborn, Fraterno, nome que descreve o homem, uma flor de
pessoa. O medo, grande, de Borges, não me roubou o senso de
humor. Fraterno, almirante reformado, apoiara integralmente o
“restabelecimento da verdadeira democracia”, o apelido inicial
do golpe, hoje “esquecido”. Me colocou numa sala suíte, medida
de proteção, e que eu ficasse à vontade. Em volta de mim notei,
à parte as tradicionais ornamentações católicas e mementos da
marinha, uma coleção de fotografias e lembranças de Carlos
Lacerda. Fraterno, amabilíssimo, família é família, “relevou”
meus pecados à imaturidade. Ali, falando ao telefone, Carlos (eu
o conheceria nos anos finais, graças ao filho Sérgio, e
estabelecemos bastante cordialidade, jantando juntos duas vezes
em Nova York e uma no apartamento do próprio Carlos, no Rio)
me olhava hipnoticamente, à maneira do poster de Kitchener,
recrutando ingleses ao massacre da Primeira Guerra, com os
dizeres “your country needs you”, que traduzi, na sala de
Fraterno, “Borges te caça”.

Recebi, por intermédio de um banqueiro, o recado de


velho amigo e colega de colégio, figura-chave no círculo
Lacerda, que eu nada tinha a temer de Borges ou do governo da
(então) Guanabara. Garantia de quem podia dá-la, melhor que
ninguém, logo digna de crédito total. E assim foi feito. Isto, bem
entendido, antes de Lacerda “cair”, quando, ao contrário, se
pensava que ele seria o herdeiro natural do golpe. Voltei à vida
“normal”, livre como um táxi, na frase de Millôr Fernandes.
Todas as minhas canas seriam futuras e federais, precedidas de
tediosos IPMs.

Pessoas que me conhecem no meu atual ceticismo, a


“metralhadora-giratória”, na definição tipicamente elegante e
exata de Veja, se surpreendem que eu pudesse ser, ou tenha sido,
comunista na juventude. Depois de esclarecer, faço questão, as
diferenças entre Trótski e Stálin, respondo com outra pergunta:
como é possível não ser, ou não ter sido comunista, no Brasil
que descrevi nessas vinhetas?

É possível a gente de sólida base cultural, penso logo em


Alceu Amoroso Lima, Adonias Filho e Marcílio Moreira, já
“armados” antes de encontrarem as legiões agressivas, até certo
ponto irresistíveis de Marx, cuja bandeira brilha, nos ofusca e
submete, a exemplo da luz divina que cegou Paulo na estrada de
Damasco. A maioria, claro, é omissa e ignorante e se enclausura
nessa ignorância, defensivamente. Noutros, bem numerosos no
meio intelectual e jornalístico, é puro mau caráter, a vocação
irrestrita ao egoísmo e vassalagem aos poderosos, que os faz
desviar os olhos do que nos cerca, nos nossos privilégios.
Impressionaram muito mal e simbolicamente os óculos escuros
de Ernesto Geisel a uma amiga e intelectual americana,
Elizabeth Hardwick, a qual depois de escrever um ensaio
devastador contra nossa realidade, no New York Review of
Books, faltou-lhe ânimo, tal a repulsa, de concluir o trabalho.
Elizabeth não viu as lentes de contato usadas pela maioria dos
que sabem e negam, colorindo o que não querem enxergar, e
cujas cores favoritas são as trevas.

Pagamos um preço pelos nossos privilégios, num país em


que as diferenças de classe, apesar da bonomia de superfície,
fazem as da Inglaterra parecerem mera excentricidade. Em
intelectuais, o preço, em geral, é a limitação criadora.

Estive com Otto Lara Resende, no Rio, em maio deste ano


[1980], no escritório dele na TV Globo. É difícil alguém
corresponder tão bem ao folclore que corre sobre si próprio,
repetido à náusea por gente que não o conhece (no Brasil, a fama
atrai incontáveis amigos de infância que nunca vimos sequer). É
tudo verdade: Otto cintila em humor, às vezes cáustico, nada lhe
escapa, e equilibra esse poder com maneiras impecáveis.
Quando nos derruba, intelectualmente, temos a impressão de que
nos ninou ao solo. Muitos admiradores dele, já notei, não
percebem o quanto recebem, em troca, de zombaria, amável, na
forma, a mestria em manipular a linguagem do ícone que
adoram. Otto é um católico liberal. Nesse prisma estreito (na
minha opinião), sabe distinguir o Bem do Mal. Não precisa de
lupa.

Li contos dele. O poder da linguagem, a capacidade de


concretizar substantivamente relações pessoais e coisas, relações
pessoais a coisas, é inequívoco. O substrato e o próprio extrato
de violência nesses contos são também inconfundíveis. Um
grande escritor. Em potencial. Falta um centro de aferimento do
que nos transmite. Existe uma barreira à consciência, à
“explicação” (em realização estética, obviamente), do que nos
escreve. Por quê? Por que, vivendo no centro do poder
brasileiro, que penetrou mais que qualquer intelectual brasileiro,
permanece no casulo regionalista? Por que, em suma, escreve
tão pouco? Em quantidade e alcance?

Não é, deixei claro, falta de talento ou de experiência


social, que tem de sobra. Nem o fato de que seja um cínico.
Todos, ou quase, somos. A sociedade burguesa é cínica, o que
até um fiel defensor das virtudes do capitalismo, Joseph
Schumpeter, admite no clássico de defesa do sistema,
Capitalismo, socialismo e democracia (ver capítulos 5 e 14).
Schumpeter lamenta que o capitalismo morrerá de ceticismo e
autodesmoralização, o que os artistas burgueses, notei num
capítulo anterior, previram e expressaram.

Uso Otto como exemplo porque ele me parece perfeito,


um espécime refinado do intelectual brasileiro, para o que digo.
É um editor e jornalista contratado à menor chance que der. Faz
tudo bem. E culto. Por que, portanto, o bloqueio?

Me parece que é uma resistência fundamental de enfrentar


o monstro que criamos (explico já o grifo), por descrença que
seja mortal, ou que, se morrer, a alternativa será o stalinismo.
Otto apoiaria reformas, certamente, ele e muitos outros,
inclusive capitalistas, alguns. Trabalhei (e trabalho) em várias
publicações reformistas. Nunca trabalhei para os propagandistas
do sistema e, muito menos, colaborei na propaganda do dito.

Otto não quer dar o crédito ilimitado do que nos exige o


stalinismo, em que todas as crueldades podem ser explicadas
como defensivas. Nenhuma ironia aqui. Podem mesmo ser
defendidas e com argumentos marxistas, ou seja, solidamente
alicerçadas no maior arsenal revolucionário que o homem
produziu. Por esse motivo é que o marxista, ainda que não
stalinista, é indiferente à crítica burguesa, feita em bases
idealistas, moralistas, meramente psicológicas, que não resistem
à luz impiedosa do marxismo, que as incendeia ao menor
contato. A propaganda anticomunista é dirigida às vítimas do
sistema capitalista. Não é séria, dos economistas neoclássicos
aos lamentos de Solzhenitsyn. O que enfurece os stalinistas é
quando marxistas voltam Marx contra eles. Aí, sim, se sentem
ameaçados e reagem violentamente. Nada disso deverá
surpreender. A Igreja Católica ignorava intelectualmente o
islamismo, tão ecumênico quanto o catolicismo, ou o judaísmo,
budismo, xintoísmo, etc. Não passavam de pagãos, retrógrados
desinformados, ou obtusos. No momento que Lutero virou as
Escrituras contra a Igreja a reação foi uma guerra secular, sem
quartel, em que o próprio armistício de hoje está cheio de
cláusulas condicionais e restritivas.

O problema de intelectuais como Otto, de boa parte dos


melhores escritores e intelectuais, é a desatenção a um dos mais
agudos comentários de Marx, que a sociedade teve como pai “o
trabalho do ser humano, enquanto que a natureza é a mãe”. Ou
seja, Marx nunca negou que exista o que os economistas
convencionais chamam, em miúdos, o “que vende ou não”, o
“que produz ou não”, “terra rentável ou não”, etc. O que
acrescentou é que esses valores naturais são determinados, no
capitalismo, pela quantidade de trabalho humano que é
empregado na “mãe”, e que o capitalismo, se apropriando da
dita senhora, cobra uma taxa do trabalhador, a mais-valia, que
consiste no lucro e produz a subumanização dos que servem
meramente vendendo mão-de-obra, sem partilha real dos
benefícios do serviço. Isso me parece irrefutável e irrefutado,
apesar dos erros comprováveis de várias profecias de Marx.

A mais-valia é impossível de provar empiricamente,


tamanha a diversidade social que atingimos, o crescimento
excrescente das instituições (governo, burocracia) que se
intrometeu nesse processo, e até dos fatores imponderáveis que a
camada dos privilegiados impôs ao valor de objetos. Ainda
assim, Otto e eu, bem pagos e não subumanizados, podemos
duvidar a sério de que nossa fatia do bolo seja, em última
análise, calculada em função das relações de custo e lucro dos
nossos empregadores? Não precisa resposta.

Marx, em síntese, demoliu a economia convencional, que


atribui lucros, pobreza e a “ordem das coisas” a acidentes de
recursos, produtividade, forças competitivas do mercado, ao
avanço da tecnologia, etc. O último argumento andou muito em
moda, na década de 1950. Daniel Bell escreveu um livro célebre
chamado O fim da ideologia. O argumento central é que o
desenvolvimento infinito da tecnologia tornava superada a
necessidade de exploração do trabalho, que justificaria, em tese,
a proposta revolucionária do marxismo. Bobagem. Marx
respondera a esse argumento antes de Bell nascer, em
Gründrisse (esboço das principais idéias que exporia, texto
“redescoberto” em 1939 e ignorado até por marxistas antes dos
anos 60). Escreveu: “A natureza não constrói máquinas,
locomotivas, mulas de autopropulsão, etc. Essas coisas são
produtos da indústria humana. São órgãos do cérebro humano,
criadas pela mão humana: o poder do conhecimento,
objetificado” (grifos no original, pp. 704-706).
Bem, não pretendo expor marxismo aqui, o qual, de resto,
me parece uma inestimável contribuição à nossa consciência,
mas que rejeitei, em boa parte, porque não é uma resposta a tudo
e deixa muitas perguntas importantes irrespondidas. O que acho
insofismável, e Marx o demonstrou conclusivamente, é que as
relações sociais e a mais-valia determinam a natureza e o
funcionamento do capitalismo sob que vivemos, e não que os
japoneses apliquem mais eficientemente tecnologia que os
americanos, ou que meu grande amigo Carlos Nasser, vivíssimo,
jogue na bolsa melhor que A ou B. Criamos o Brasil, repito meu
grifo.

Excetuando, porém, os stalinistas, à maneira deles, que


acho sectária e sentimental, escritores e intelectuais como Otto
vivem à margem dessa realidade. Descrevem, brilhantemente, às
vezes, os “acidentes” da natureza e do comportamento humano.
São capazes, à la Guimarães Rosa, de inventar uma linguagem
que exemplifica a criatividade estética do modernismo, que tanto
me encanta e encantou pessoalmente. Mas mesmo nos melhores
não-politizados, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, ou Otto, falta
a cabeça que norteie a experiência que transformam em arte.
Não estou sugerindo que escrevam tratados, ou sequer se tornem
marxistas. É possível usar Marx, da mesma forma que Freud (de
quem Marx precisa, falando nisso) ou Platão. Considero
desperdício é ficar na vontade misteriosa de Deus (Octávio de
Faria), no acidental e no psicológico exclusivista.

Esses escritores são sensíveis à lacuna. Não querem, ou


não podem, identificá-la. Fabulam a violência numa
extraordinária violência anímica e física expressa nos textos de
Rubem Fonseca, Adonias Filho, Otto e, em clave mais sufocada,
de Dalton. É a violência da nossa sociedade que a consciência
criadora exige deles, agora não conseguem, seja qual for o
motivo, objetificar-lhes as causas, que, se não restritas a Marx,
não podem excluir o que ele descobriu.

E não são suecos ou alemães ocidentais, filhos de


sociedades onde o capitalismo se deixou domesticar, em parte,
internamente, na social-democracia que vive, claro, em última
análise, da mais-valia que extrai das novas e crescentes
conquistas internacionais da multinacionalização, sociedades,
portanto, em que o capitalismo reverte à sua barbárie intrínseca
às custas dos 2 bilhões de pobres-diabos que vivem à margem da
nossa precária civilização. A tecnologia, nesse contexto (que,
segundo o pobre Bell, anularia Marx), comprova Marx,
mostrando-se um dos instrumentos supremos de dominação dos
fracos pelos fortes, da exploração do “valor de troca” do
trabalho, que caberia, ainda hoje, no capítulo mais devastador da
ideologia burguesa, no primeiro volume de O capital: “Um dia
de trabalho”.

Privilegiados, a caminho do escritório e do ar


condicionado, vemos das janelas dos automóveis a massa de
autômatos, enferrujados e batendo pino nas ruas. Onde
trabalhamos, esbarramos nos contínuos e faxineiros, cujo salário
é mais “barato” que o preço do jantar e do uísque de ontem.
Notem: não estou chamando esses escritores de propagandistas
da burguesia. Eles a condenam revelando a violência em que
vivemos, apenas excluindo a lógica brutal que a determina
(sempre em última análise, pois há, claro, outros fatores
contribuintes).

Não me é difícil compreender como se sentem. Descrevi o


meu Rio de criança, idílico, em relação ao presente, no meu
canto de classe média. O silêncio do campo era, bem, inaudível.
A miséria visível, ainda comparativamente pequena e, na
aparência, resignada. Dominávamos as ruas em que hoje
seguramos as carteiras e as mulheres escondem as correntes de
pescoço. A própria brutalidade comercial não mostrava, às
escâncaras, a verdadeira face. Lembro que novos moradores
recebiam de presente doces e pães escolhidos dos fornecedores
e, até, segurem-se nas cadeiras, carne dos açougueiros.

Éramos a cabeça do iceberg que em breve se ergueria


imprevisivelmente e não somente na nossa modesta escala
nacional, mas se chocando com o Titanic do capitalismo em
expansão internacional.

Nossa cultura não nos preparou para isso. Essa classe


média do Rio rico (em termos), ao contrário, desconhecia a ética
da ambição. “Seu garçom, faça o favor, etc.”, Noel nos
repercutia em referência ao “baixo extrato”, dormente.
Queríamos sombra e água fresca. Nada disso é acidental.

O Brasil foi colonizado por uma das potências da contra-


reforma. Me repito e expando. Os jesuítas, em face das ameaças
de protestantismo e decorrentes, capitalismo, nacionalismo, sem
falar da ciência, pregando o pensamento livre e materialista,
decidiram, no Concílio de Trento, 1545-1563, congelar o mundo
feudal, em perigo, contra a modernidade. O resultado prático
disso foi que as potências protestantes em breve assumiriam o
controle do mundo, enquanto que os velhos impérios católicos
decaíram e terminaram em insignificância, Espanha e Portugal
incluídos. A Itália lutou até o século XIX contra o
transnacionalismo da Igreja, apoiado na Áustria católica, para
converter-se em nação unificada. A exceção, a França, teve os
grilhões eclesiásticos partidos em 1789, e o subproduto
cesariano da dita, Napoleão, chegou a pensar seriamente em
extinguir o Vaticano, porque se opunha aos projetos
multinacionais dele.
O Brasil, sob o feudalismo português, emergiu da caatinga
à grama, a primeira “reservada” aos miseráveis, a segunda aos
senhores da terra, apontados por determinação divina,
incontrastável. Sim, o direito sagrado dos reis é subproduto da
Igreja, da doutrina de predestinação de Santo Agostinho, em que
Santo Tomás passou panos quentes, aliviando sem conseguir,
realmente, encobrir o “mistério” de que uns se salvam, outros
não, tudo já sabido previamente por Deus, o que nos ajuda a nós,
pecadores vocacionais, que aproveitemos enquanto podemos
porque, apesar do “livre-arbítrio”, nosso destino está selado.
Essa é a ideologia que fundamentou secularmente os privilégios
da aristocracia, os escolhidos de Deus, e que o capitalismo
transformou em relação dinâmica (e opressiva) de capital e
trabalho.

A influência da contra-reforma não pode ser subestimada


na criação do Brasil. Promoveu a indiferença da classe dirigente
à emergência do capitalismo e industrialização, os dois
propulsores supremos da burguesia no século XIX. Enquanto os
EUA, o outro país continente das Américas, explodiam
industrialmente depois da guerra civil de 1861, já em 1890 se
convertendo na primeira potência industrial do mundo, o Brasil
pastava sob Pedro II. Os EUA, em tempo, assumiriam o quase
monopólio colonial de Inglaterra e França, consolidando a
supremacia no pós-guerra de 1945. Nossa única aventura
imperial foi o estúpido e inútil genocídio de 750 mil do milhão
de homens paraguaios. Os EUA produziam fábricas e
racionalizavam a agricultura, nós importávamos escravos. Em
1865, os EUA destruíram o feudalismo, a escravidão e o
“modelo exportador” do Sul, estabelecendo a primazia do poder
central. Nossa primeira Constituição republicana, em 1891,
graças ao absurdo Ruy Barbosa, foi um retrocesso, pois cópia
malfeita da Constituição americana de 1787, em que o direito
dos Estados prevalecia contra â centralização, o que a guerra
civil americana renegara, em nome do progresso. Foram o
Estado Novo e o golpe de 1964 que reimpuseram o centralismo
que o Segundo Império criara, a exceção à regra das idiotices de
Pedro II.

Perdemos literalmente um século de História, sob o


feudalismo contra-reformista imperial. Antes, claro, desde o
Tratado de Utrecht no século XVIII, Portugal se tornara mero
satélite da Inglaterra, situação agravada pelas guerras
napoleônicas, as quais puseram D. João VI a correr em cima de
nós. E os ingleses nos confinaram no “modelo exportador”,
agora herdado pelos EUA. Na História do Segundo Império há
dezenas de Robertos Campos e Delfins Nettos enunciando que
“exportar mais é a solução”, devendo os olhos da cara a Londres
e negligenciando o desenvolvimento interno do país. A maioria
do povo pagava e continua pagando todas as contas, enquanto a
classe “compradora” permanece na sela do burro manso que é o
Brasil. Dos títulos aristocráticos aos de agora, a diferença é do
fedor da nobreza à pseudo-auste-ridade pseudo-apolítica da
tecnocracia.

Em face desse monstro é compreensível que os


privilegiados que não o manipulam diretamente prefiram
alienar-se na “tradicional cordura do bom humor” do brasileiro,
a enfrentá-lo. O ser humano, porém, é um bicho estranho, pois o
único a pensar no que constrói (Marx). Abelhas e formigas são
tão hábeis ou mais que nós. Mas não padecem da consciência do
que fazem. E o intelectual é o pensante in extremis. Não pode
deixar de ver o custo ao próximo, às dezenas de milhões de
desgraçados, que a omissão de um cérebro vivo, capaz de
formular reformas, ajuda a promover. Então o intelectual bebe e
se desespera em personalismos, na mulher amada impossível
(quanto mais, melhor, aumenta a ilusão de seriedade), ou tenta,
se bem pago, imitar os grão-senhores. Não dá certo. É da
condição do intelectual enxergar a realidade. Esnobes sociais,
Proust e Fitzgerald terminaram virando a mesa grã-fina. E daí o
pessimismo crônico, as explosões alcoólicas, desproporcionais à
suposta causa (“irmãs” de Osny, outra vez), a autodepreciação
masoquista, o senso opressivo de futilidade da nossa vida
intelectual.

Esse escapismo, em última análise, é suicida. Pasmo,


sempre que vou ao Brasil, com o grau de ingestão de álcool de
amigos intelectuais, o tipo de briga que criam entre eles,
motivadas por cismas e suspeitas paranóides, que, no fundo,
escondem apenas, ou essencialmente, a recusa de assumir um
papel de combate ao horror ambiente.

O presente, ridículo ou humilhante, termina aceito porque


decretado inevitável. Assim é que os stalinistas fingem orgasmos
em face do popularesco nas artes (que é, claro, mero reflexo da
indigência material dos que o praticam), descobrindo-lhes
virtudes e potencial revolucionários, quando é esse tipo de
cultura que uma revolução socialista eliminaria, criando um
estágio superior, não da grandiloqüência proposta, num
entusiasmo excessivo de Trótski, ao falar que o comunismo
converteria o proletário num Goethe (o mesmo Trótski, sóbrio,
disse que levaríamos cem anos, pós-revolução, até que a cultura
socialista atingisse o nível dos melhores exemplares de
superestrutura dos burgueses. Marx, que esnobava líderes
operários falando grego clássico na frente deles, preferiu
prudentemente abster-se).

Otto ri e debocha melhor que ninguém do fardão que


envergou. Drummond se recolhe, certo da poesia que deixou,
certeza que partilho, mas generosamente elogia, em crônicas,
subliteratos que não valem a fita de máquina em que
perpetraram tudo que Drummond é contra e que, no íntimo, ele
mantém inviolável. Os senhores do monstro recaem à infância
em delíquios de paixão pelas simplicidades do futebol, onde
ganha, em geral, quem jogar melhor, o que é o oposto da forma
em que assaltam a vida e a bolsa do alheio. Ou há, mais
revelador, talvez, o culto da MULHER.

O homem brasileiro de elite trata, quase sempre, as


mulheres como aparecem caricaturadas nos panfletos feministas.
Um objeto. Ela, se esperta, tira a forra, chifrando-o e, em
separações, arranca-lhe boa parte da conta numerada na Suíça.
Ouçam no entanto nossa música popular. Quando não chora os
coitadinhos, vítimas da exploração, o que pouco incomoda a
burguesia (Didu de Souza Campos debulhou-se em lágrimas, a
meu lado, na estréia no Rio de Eles não usam black-tie. Tereza
dizia e repetia: “Vai estragar a camisa, vai estragar a camisa”,
revelando um senso prático ausente da peça e da reação da
platéia), temos um lirismo tatibitate entre homem e mulher, que
é um vomitório, ou, a alternativa, as dores de coração dos
rejeitados. Ninguém canta as glórias das “pistoleiras” de alto
coturno, as Billy the Kid de saias, que, ao menos, no plano
pessoal, contestam a opressão masculina que é a constante da
sociedade. Merecem cobertura “heróica” igual à dos meliantes
na imprensa, aqueles que tanto atraem o povo, pois neles cheira
a revolta...

É natural que intelectuais e artistas gostem da companhia


dos ricos e poderosos. À parte primitivos vocacionais, Guarnieri,
Plínio Marcos, ou Henfil, eles pertencem à elite, por mais que o
neguem, inclusive pregando e atuando em revoluções. As duas
coisas, elitismo e “subversão”, podem coexistir numa pessoa.
Como fugir ao elitismo quem se sabe capaz de transformar
experiência em formulação lógica, ou beleza, esse trabalhador
que carrega as ferramentas na cabeça, na frase de Maugham? E
riqueza e poder são esteticamente agradáveis a cérebros
suscetíveis por excelência às atrações do estético. Se come
melhor na mesa dos ricos, em geral (há muito novo-rico no
Brasil...). As bebidas costumam ser excelentes. Há casas
magníficas em que vemos, no ambiente adequado, um hábitat
humano, quadros só encontráveis na monotonia impessoal dos
museus. Algumas mulheres, à parte cheirarem sempre bem
(nada do honesto suor e desarranjo de um dia de trabalho), se
vestem, pintam e penteiam em nível de modelos internacionais.
E aprenderam à perfeição as artes da gueixa. O próprio rico e
poderoso tem a aura, o charme perigoso, do tubarão, que, no
filme aquele, me pareceu, apesar de ser de borracha, mais
interessante que os caçadores, feitos de papelão histriónico. E
muitos senhores viajaram, falam diversas línguas, possuem
informações inacessíveis à “ignara”, sabem das coisas,
conhecem a variedade cultural do mundo e são, desde que não
falemos de dinheiro, refinadamente tolerantes.

Os intelectuais e artistas são tão esnobes da “diferença”


que os marca quanto aristocratas e bem-nascidos dos nomes.
Estes, a sós, não falam de outro assunto que a ascendência que
supostamente os distingue do resto dos mortais. Os intelectuais
exibem maior versatilidade, mas sempre chega o momento que,
a sós, comentam a indigência mental dos “outros”, nem sempre
caridosamente...

É uma atração entre elites. Muitos tubarões devem


apreciar a elegância e inteligência dos delfins, e estes a fúria
poderosa dos tubarões, que não pedem, tomam o que querem.
Nada disso precisa significar compatibilidade de objetivos, ou de
valores. Os vassalos da classe dirigente na imprensa e
(sub)intelectualidade se irritam com o acesso do intelectual de
opinião própria à grande burguesia. Cunharam o pejorativo
“esquerda festiva”. Wilde dizia que fala mal da (alta) sociedade
quem não consegue penetrá-la. Minha opinião dos críticos da
“esquerda festiva” é que gostariam de participar dela.

Há nuances, claro, entre freqüentar gente socialmente


“bem-nascida”, por prazer estético (os pobres são extremamente
desagradáveis. É um dos motivos que tantos intelectuais de
esquerda pretendem, pela revolução, elevá-los à dignidade
humana que condições sociais lhes negaram), e as auto-ilusões
dos que se rendem e servem aos interesses da burguesia, ainda
que pela omissão. Acho mais útil bebericar com Walter Moreira
Salles, que pode me ensinar fatos que a imprensa perdeu, à parte
o charme do cavalheiro, do que escrever a enésima peça
mostrando que operários, “tadinhos”, são explorados pelos
capitalistas, “bicha, bicha”. O Flamengo, ou o Coríntians, são
times de futebol (os meus) e não magnetos da capacidade
(primitiva, naturalmente) das massas contestarem o sistema.

As novelas da TV Globo foram melhoradas, me dizem


(estou fora do Brasil há quase 10 anos), pelo velho amigo Dias
Gomes, que suou bravamente a camisa no teatro, tentando,
inclusive, em A invasão, fazer peça que mostrasse os destituídos,
como grupo, classe, personagens centrais, evitando as fórmulas
heróico-familiares em que Guarnieri e Vianinha se expressam,
que terminam convertendo a idéia de crítica socialista em
freudianismo (insuspeitado pelos autores). Agora, as novelas de
Dias, é evidente, não incomodam o mais arguto, eficiente e
próspero empresário de comunicações no Brasil, Sr. Roberto
Marinho, que não esconde o conservadorismo. Logo...

Prefiro a companhia dos excêntricos e marginais, digo, os


marginais das côteries, como Jânio de Freitas, Millôr Fernandes,
Cláudio Abramo, Ivan Lessa, Antônio Maria, Sérgio Porto e o
Alberto Dines pós-Jornal do Brasil. Alguns se ofenderão que eu
os coloque juntos. Vários gostariam de agredir-se mutuamente.
Já se agrediram por escrito, se fizeram barbaridades no trato (no
names, please). Politicamente, minha formação é parecida com a
de Cláudio. Em temperamento, de preservar a independência e
dignidade pessoais à loucura, Millôr, Jânio e o Dines que se
redescobriu aos 40 anos são bem próximos. Ivan Lessa, o mais
íntimo. Em comum têm que são incapazes de aderir a qualquer
rebanho. Nunca foram sequer companheiros de viagem da
esquerda oficial, papel a que me prestei, fechando o nariz e
desenvolvendo uma violenta dermatite alérgica, entre 1960-
1964.

Não é muito ou pesa muito em face dos condutores da


horda, desta própria, ou dos que se refugiam em coteries ou na
subserviência aos poderosos. É uma vela acesa, quase invisível
em meio ao neon mistificador das trevas que nos circundam.
Não raro nos queima os dedos. Há uma ponta de orgulho
irracional na nossa atitude e, claro, sofremos escorregões
ocasionais, sem falar de fúrias neuróticas em que passamos do
crítico ao meramente pessoal, às vezes cruel, quase sempre
desnecessário. Mas nos preserva do conformismo pseudo-alegre
do “deixa disso” (“joga pro alto”, no meu tempo de garoto), ou
do radicalismo de gabinete, que nunca mostra as cores, exceto
em botequins, ou da certeza histérica dos imaturos. Os que citei
acima, notem, são meus amigos. Poderia incluir outros. Falo
apenas dos que conheço bem.

Existe nesse meio, que se convencionou apelidar


“Ipanema”, uma douceur de la vie, ao alcance dos bem dotados
de cabeça, ou dos que tenham charme. É um equívoco
subestimar charme pessoal, como atrativo. Quem diverte o
próximo será festejado pelo próximo. O presunto, repito, está
sempre pendurado nalguma porta de interior luxuoso, onde todos
os confortos são gratuitos. Os almoços terminam quando as
pessoas determinam. O álcool e etc., fluem mais barato que
água, ou seja, de graça. A companhia é variada e cativante, das
mulheres bonitas (ou rapazes, dependendo do gosto de cada um)
aos espirituosos, à informação a que só privilegiados têm acesso,
a um sentimento, em essência infantil, que o sensorial puro pode
ser o centro da vida, entremeado de um sono de exaustão e
outro. Até trabalhar não é artigo de primeira necessidade. Algum
co-habitante do paraíso descobre um posto de aspone (assessor
de porra nenhuma) aos que precisem pagar o aluguel. A
liberdade de preferência sexual, ou de experimentos não
aprovados pela polícia (a menos que subornada previamente), é
total, desde que o praticante não engrosse contra os direitos dos
outros. Casas em Búzios, na serra, etc., oferecem ao “anjo
exterminador” locais diversos e, claro, escolhidos, onde pousar
as asas.

Tenho amigos produtivos que conciliam sem dificuldade


trabalho e “isso”. A mim não me serve. Não é que eu seja
virgem da experiência, ou que, nela, me sinta violado. Vez ou
outra cai bem, e por que não? É a continuidade monótona que
me perturba, e, pior, entedia mortalmente. Preciso de uma certa
solidão ocasional. Prefiro ler à maioria dos papos ou a álcool, o
que não quer dizer que não sinta falta dos amigos, conversas, da
vida que deixei no Brasil, ou que, bebendo, eu não me exceda.
Esta última atitude me deixa perplexo. Passo meses literalmente
sem tocar em álcool, que há à beça em casa. Nada de drinques,
antes, durante ou depois do jantar. Já se vou a um restaurante
acompanhado, bebo, como pau-d’água. Às vezes, idem se
convido gente que bebe a me visitar. Corto o fumo, quando
quero. Deixei uma vez quatro anos, outra um ano e meio. Voltei,
no momento. Largo assim que terminar este livro. Quanto a
outros itens que nos levantam artificialmente o moral, “amo-os e
deixo-os”, sem me fixar numa ou outra posição. Sei que há gente
que se cria problemas mexendo nessas coisas. Acredito que
“essas coisas” apenas trazem à superfície os problemas latentes.
A balbúrdia moralista em torno do assunto me provoca o torpor
único do enfado.

A perturbação é mais decisiva que o tédio. Como tantos


que escrevem, não gosto de escrever, mas me sinto infeliz, mais
do que o habitual, se não escrevo. Sou, como disse, ambicioso,
pessoalmente, não resisto à vontade de me destacar, essa
vulgaridade em que me confesso “viciado”, e porque me realizo
espiritualmente no trabalho. Há muito pouco na vida que se
compare ou dure tanto com e como a sensação do dever (que nos
impusemos) cumprido. Fui dotado de uma capacidade de
trabalho, que desenvolvi, verdadeiramente elefantina. Perco a
consciência de mim mesmo, esse miserável feixe de nervos e
sensações que é o ser humano, elevando-a, paradoxalmente, ao
pôr no papel o que me interessa. Não gosto de fama, aquela em
que nos apontam o dedo na rua. Me agrada ser conhecido,
respeitado e, principalmente, não humilhado.

E a consciência intelectual, que ganhei pela lógica e


estudo, se tornou parte inextricável, orgânica, de mim. Ainda
hoje, que ninguém mais me convence, ou nenhum conjunto de
idéias, que exista uma verdade, hoje que reconheço a prudência
tático-estratégica de Cristo em não responder à pergunta de
Pilatos (duvido que ambos tenham existido na forma que
chegaram a nós, claro), sei ao menos o que detesto e rejeito.
Reverti, dizem marxistas amigos, ao moralismo subjetivo, que
lastreio cosmeticamente do cabedal que armazenei quando
proponente revolucionário. Me consideram um caso perdido, um
pequeno-burguês que tornou às origens, se acreditando o centro
do mundo. Talvez. No dia que me explicarem Stálin, dentro do
marxismo, quem sabe assumo o rótulo que me colaram, ou volto
ao aprisco.
Mas antecipo. Não desconheço as limitações de uma
posição pessoal, não integrada à teoria e ações coletivas. Nos
meus romances explorei esse dilema. Em Cabeça de papel,
Hesse é o revolucionário comunista que, julgando o capitalismo
incorrigível e o stalinismo sórdido (ver últimas páginas do
penúltimo capítulo), ainda assim optou pelo último porque
acredita que, apesar de tudo, contém uma saída da crueldade, da
estagnação e morte certa da burguesia. Paga um imenso preço
psicológico. É um monstro no trato de quem lhe atravessa o
caminho, mente, dissimula, “trai” amigos velhos e novos,
engana mulher e filhos, maltrata quem se interponha a desejos
inconcebíveis num socialista, no novo homem, de quem se
imagina vanguarda. A experiência me fez, enfim, entender a
ressaca emocional de Raskólnikov, a personagem que me
encaminhou ao rumo e ao desvio da racionalização. Sem uma
ideologia revolucionária que lhe sustente o ato voulu que
cometeu, só resta a Raskólnikov a rendição à piedade animal,
que Sônia e a miséria russa lhe provocam, e termina se
submetendo à crueldade das coisas, submisso à autoridade.

Dostoiévski, mais que qualquer autor, nos demonstra a


inevitabilidade da demolição do edifício podre do tzarismo. Não
sabendo o que pôr no lugar, ou temendo algo pior (...), nega
desesperadamente o que o gênio lhe obriga a escrever, imagina
fantasias de redenção religiosa, ou da impossível reforma do
tzarismo na fé cristã, ou, ainda, baixando ao babalaô racista do
pan-eslavismo. É maravilhoso e pateticamente ridículo.

Se a reação de Dostoiévski é, em si, absurda, não deixa de


conter um cerne geral de realidade. O trabalho subversivo nos
leva a violar sentimentos de fraternidade, inibições de
consciência, etc., para com o próximo, se este nos cria
obstáculos. A revolução bolchevique pressupõe a liquidação de
uma classe social, a coação de toda e qualquer pessoa que
impeça o objetivo, inclui o assassinato (“liquidação”, no
eufemismo) de contra-revolucionários ou meros dissidentes, ao
menos no período crítico em que os revolucionários procuram
submeter o situacionismo ao que aspiram. Classes, porém, são
pessoas, individualizadas, e é assim que o revolucionário real
teve e terá de confrontá-las. Dzerjinski, o primeiro chefe da
Tcheka (hoje KGB), era um homem cheio de calor humano,
bondoso e afável, que desejava no governo de Lênin ser o
comissário do bem-estar da criança. Mandou matar centenas de
milhares de pessoas, ou milhões, na luta e guerra civil que se
estenderam de 1917 a 1921. Certo da necessidade de defender a
revolução, cumpriu o que lhe ordenou o Partido. Sabemos que se
deprimiu quase ao suicídio, porque, ser humano, e excepcional,
a matança, não importa a justificação intelectual, “histórica”,
deixou-o em angústia incurável. Em plano incomparavelmente
mais modesto, meu Hesse é um alcoólatra, cocainômano, um
sádico sexual. Até o sadismo esse, na minha concepção, é parte
do humano que reprime, à la (a última vez, juro) “irmãs” de
Osny. Imaginem viver assim, fingindo-se do que não é, dia e
noite, anos a fio, inclusive, no caso de Hesse, agüentando as
injúrias de velhos companheiros de esquerda. O sogro dele,
inimigo ativo e perigoso in extremis, porque advogado principal
de multinacionais, se revela uma pessoa adorável: é o “acaso”
que Dostoiévski fixou imortalmente quando Raskólnikov tem de
matar outra pessoa depois da velha avara, socialmente
parasitária e deletéria, inútil e dispensável. Hesse gosta dele,
ama-o como o pai que (o natural) rejeitou, e, no entanto, é do
sogro que extrai o que precisa, cafiolando-lhe a estima
reciprocada.

Neste romance dei minha opinião política, limitada de


certa forma e ampliada de outra, pela forma que usei, a ficção;
esta, se corta a coerência do ensaio, expande o fator humano que
os ideólogos, Marx inclusive, costumam deixar de fora. Marx
nos disse tudo que é necessário sobre o “reinado da
necessidade”, em que o ser humano organiza formas de
sobrevivência, de dominação da natureza e do próximo, da
revolta dos oprimidos, e, no caso do capitalismo, sobre as
contradições que a expansão, indispensável ao dito, trazem à
tona, levando a um processo de autodestruição. Silencia quanto
ao “Reinado da Psicologia”, típico iluminista científico do
século XIX (pré-revolução freudiana, que afirmava a
permanência do irracional...), pois humanizadas as relações
sociais, evoluiríamos aos poucos à sociedade comunista
altamente desenvolvida, “de cada um de acordo com a
capacidade, a cada um de acordo com a necessidade”.

Stálin, depois da heresia inicial bolchevique tentar


revolução num país pré-capitalista (ao assumir, Lênin previu que
o governo duraria 66 dias, meio de brincadeira...), cumpriu os
essenciais do manual de transformação marxista, de uma
posição inequivocamente defensiva. O que inclui, durante a
mudança de estruturas, os diferenciais de salários e privilégios
dos líderes (Marx, Crítica do programa de Gotha, 1875), tão
criticados por submarxistas e a burguesia que adora a escrotidão
do próximo, se sentindo refletida...

Matou 10 milhões de camponeses, disse a Churchill.


Violência indispensável, em face do atraso e resistência, à
modernização da agricultura. Matou de 1 a 2 milhões de
bolcheviques e famílias, que pudessem contestar, em potencial, a
abolição de facções e divisões perigosas, abolição votada por
Lênin e Trótski e a maioria do Comitê Central, em 1921; pregou
obediência cega em face do perigo nazicapitalista que temeu
unir-se contra a URSS. Esmagou a dissidência cultural pelo
mesmo motivo. Disse a Djilas, o ex-revolucionário iugoslavo,
que Dostoiévski era um grande escritor, mas perigoso à
juventude mobilizada, o que é, de uma posição defensiva,
justificável.

Usou sem pudor a Internacional a serviço da URSS,


sacrificando a vida de milhões de comunistas. De novo, explicou
que a defesa da URSS, já encaminhada ao socialismo, se tornara
prioridade absoluta, superando quaisquer outras considerações,
pois, caso contrário, os Chamberlains e Hitlers a reconduziriam
à servidão capitalista e, na década de 1930, ninguém contesta
que as aparências indicavam uma possível aliança entre o velho
imperialismo anglo-francês e o nazismo emergente.

Se é possível defender o marxismo stalinista, não é difícil


prová-lo numa contrafação do original. Trótski afirma que
socialismo nacionalista (“num país só”) não é socialismo. Certo.
Não é. Mas Trótski assistiu ao fracasso da revolução permanente
em que ele e Lênin basearam o Outubro soviético. Logo, o que
fazer? Os trotskistas notam, entre o orgulho e a repulsa, que
Stálin roubou o programa de Trótski de desenvolver a URSS:
industrialização pesada a todo vapor, coletivização e
mecanização da agricultura, a modernização e
profissionalização das Forças Armadas, em defesa do Estado,
enquanto o mundo não aderia ao socialismo. É certo também.

Então de que se queixam? Trótski certamente não foi um


ambicioso vulgar, a quem a mera perda de poder convertesse em
inimigo de Stálin. Se queixam que os métodos de Stálin foram
desnecessariamente brutais. Merda. Quando Trótski lançou essas
idéias no Comitê Central, nos tempos de Lênin, todos
perceberam o que implicariam em violência e coação. O
profissionalismo militar, por exemplo, pareceu à maioria dos
bolcheviques o caminho do bonapartismo. Trótski foi o mais
ardoroso defensor da extinção dos direitos do trabalhador à
greve. Chamava-o funcionário público do Estado socialista,
logo, greve contra quem, contra si próprio? Sugeriu que se
copiasse a lei Taylor, americana, que proíbe greve a funcionários
públicos. Dirigiu o massacre dos marinheiros anarquistas da
Kronstadt, em 1921. Trótski, apesar do gênio, dos serviços
prestados à revolução e na guerra civil, que dirigiu
executivamente, sugeria à maior parte dos bolcheviques o que
Stálin se tornou.

A crítica mais devastadora a ele partiu de Lênin, no


famoso “Testamento”. O próprio Deutscher, num raro momento
de desonestidade, não aprofunda o assunto. Fiquei sem entender,
quando li a primeira vez o comentário de Lênin. Digo, o motivo
da fúria de Trótski. O motivo é uma palavrinha inocente no
nosso linguajar: administrativa. Lênin, afinal, chama Stálin de
rude (se considerando a rudeza normal bolchevique, já referida,
esse rude aí tem o peso de um petardo nuclear), de desleal (sic),
e propõe que Stálin seja removido da secretaria (chefia) geral do
Partido (da burocracia que governa o país). Horrível, não? De
Trótski, diz que é indiscutivelmente o mais capaz dos líderes,
que a oposição dele, pré-1917, às regras do partido bolchevique,
não deve ser usada contra ele. Ridiculariza o marxismo de
Bukharin, a falta de seriedade de Rikov e a covardia moral de
Zinoviev e Kamenev.

A crítica a Trótski é que ele se deixa fascinar por soluções


administrativas. Repito que nos soa um tapinha de moça (não
feminista). Em linguagem bolchevique o significado é outro:
administrativo é o eufemismo de peremptório, de cima para
baixo, antidemocrático, de apolítico, no sentido de que não leva
em consideração os sentimentos do povo, dos fiéis, que, mesmo
no erro, devem ser persuadidos (digo, insisto, que Lênin fala dos
proletários e camponeses, não da burguesia. Contra esta era o
supremo “administrativo”) e não dobrados ditatorialmente à
vontade do Partido.
Trótski, no exílio, voltou a pregar a democracia partidária,
a tolerância da dissidência, se não contra-revolucionária, e se
defendeu com raro brilho das acusações infames de Stálin, e foi,
em suma, um grande marxista, revolucionário e intelectual. Não
perdi a admiração por ele, nesses pontos de dúvida de tantos
marxistas. Agora, apresentá-lo em 1917-1924, sob as cores que
reassumiu gradualmente no exílio, me parece falsificação
histórica. Admito também que ele, no poder, modernizaria a
URSS sem os excessos paranóicos de Stálin e duvido que
matasse bolcheviques apenas porque discordassem dele. Mas
isso é especulação. Sabemos como as pessoas se portam no
poder apenas quando estão no poder.

Concedo mais, ex-trotskista, que Bukharin e apologistas


estão certos em que Lênin, confrontado pelo isolamento e
pobreza da URSS, pós-1923, quando as outras revoluções
haviam falhado, preferisse uma solução conciliatória entre “o
campo e a cidade”, em suma, entre as ânsias de modernização às
pressas a fim de garantir o novo Estado e o terrível primitivismo
das diversas nacionalidades soviéticas. A Nova Política
Econômica, NEP, de 1921, é um exemplo disso, pois permitia
um retorno a certas atividades capitalistas, e Lênin procurou
(sem muito sucesso) comerciar normalmente com as nações
capitalistas, propondo, assim, pela primeira vez, o que se batizou
de coexistência pacífica ou détente, até, claro, que a URSS se
desenvolvesse, houvesse novo surto revolucionário no mundo e
que as crises cíclicas do capitalismo chegassem ao paroxismo
final. Acontece, porém, que Stálin liquidou a NEP em 1929
porque a conciliação de “campo e cidade” fracassara, porque
sentiu na Grande Depressão uma nova chance de
internacionalismo revolucionário e a necessidade urgente de
mobilizar a URSS, o alvo provável e prioritário do capitalismo
em crise. Como teriam reagido Lênin e Trótski, no lugar dele?
Não podemos saber.

Não estou fazendo a defesa de Stálin e do stalinis-mo.


Apenas procuro colocar as coisas em perspectiva. É fácil
demonstrar que se de um lado a repressão e coação que aplicou
transformaram a URSS numa potência de primeira grandeza,
trouxeram também uma miséria infinita ao povo do país, aos
comunistas estrangeiros, e, mais grave, Roy Medvedev, o
marxista soviético dissidente, prova, em Deixem a história
julgar, falando de experiência que ele e família viveram na
carne, que Stálin tolheu, pela intolerância e pavor que inspirava8,
boa parte do progresso material e científico do país. Criou
problemas de produção, pelo excesso de centralismo,
irresolvidos até hoje. Em 1980, a URSS dispõe de um PIB de 1
trilhão e 400 bilhões de dólares. E no entanto é uma sociedade
culturalmente atrasada, em ciência exata e humanismo, na
tecnologia (exceto a militar, porque, nota Medvedev, aos
cientistas militares Stálin concedeu o direito raro da dissidência,
restrita ao plano técnico), e sociedade que não provê à imensa
maioria do povo o mínimo básico de consumo material e de
bem-estar, à parte lhe haver cerceado a diversidade de costumes,
maneiras e criatividade, que deveriam florir sem impedimentos
uma vez formada a base econômica socialista. O maior serviço
que a URSS presta à humanidade, e um grande serviço, é
impedir que os EUA e aliados ricos nos escravizem totalmente
na barbárie capitalista de que já desistiram em boa parte, nos
respectivos países, e que nos infligem, ao Terceiro Mundo, à
menor chance.

Marx, repito, desprezando o “Reinado da Psicologia”, não


nos explica o aparecimento de um Stálin, uma vez estabelecida a
abolição do capitalismo. Rosa Luxemburgo foi mais aguda:
8
O pai de Medvedev foi assassinado por Stálin.
disse que a morte (certa) do capitalismo traria socialismo ou
barbárie. O veredicto sobre a URSS se equilibra entre esses
opostos.

Alguém acredita que a burocracia dominante, que se


reproduz e expande, irá altruisticamente ceder um dia as rédeas
do poder? Sem uma revolução? Duvido. A explicação da
burocracia amenizada, pós-Stálin, que o líder padecia de uma
enfermidade chamada “culto da personalidade” é palhaçada
antimarxista, de um reles psicologismo. Stálin, claro, diria Marx,
foi gerado das relações sociais do Estado soviético. Os marxistas
silenciam quando se toca nisso, ou nos propõem o “se” de
Trótski ou o “se” de Bukharin, sem falar desse retorno mal
disfarçado à social-democracia de Kautsky e Bernstein, vulgo
“eurocomunismo”.

Haverá sempre os Hesses acreditando que emergirá do


colapso capitalista a ordem que Marx previu. Não lhes falta base
na previsão do colapso. Toco nos essenciais no processo nas
páginas adiante. Marx escreveu tanto e tão bem que permite a
exegetas toda espécie de desvio e devaneio. Não nos iludamos.
A força incontestável dele, a meu ver, reside na análise do
sangrento suicídio do capitalismo, e não no socialismo que
espera nascer do morto. Marx, que escreveu 2.500 páginas de O
capital (ainda assim visão genérica, a qual deixou inacabada,
nem entrando na visão específica, prometida a Engels em tantas
cartas...), nos deixou duas páginas e meia sobre o futuro Estado
socialista.

O narrador, Hugo Mann, é um perplexo, perdido entre a


terra e o céu, submetido a impulsos e idéias que se contradizem.
A experiência que teve de revolução foi o patético aborto
brasileiro de 1961-1964. Acredita, como Freud, que o ser
humano contém um cerne biológico intratável, indomesticável,
que erguerá a cabeça irracional em qualquer contexto humano,
“parecendo a flor inocente mas se revelando a serpente por trás”.
Detesta a burguesia. Ex-trotskista, admira o “Velho”, descrendo
no entanto que existam respostas “certas”. Hugo duvida da
capacidade de intelectuais influenciarem os acontecimentos, pela
razão ou à la Hesse. Hugo respondeu a si próprio (e expande a
resposta no romance seguinte, Cabeça de negro) a pergunta de
Luxemburgo: acha que o cadáver do capitalismo gerará os
vermes da barbárie.

A justaposição de Hesse e Mann é o tema de Cabeça de


papel. Resumi neles a alternativa do intelectual de esquerda,
situando no debate a posição específica do Brasil, fora do
paroquialismo do Figueiredo, ou melhor, do Geisel versus o
prezado Faoro, dos diversos Ps, os partidos dispostos a repetir a
tragicomédia de 1946-1964, da qual, noto triste sempre que vou
ao Brasil, não extraíram uma única lição evolucionária.

Que é que eu tenho com isso? Mais e mais me pergunto.


Por que não me dedico, no que me resta de vida, a escrever o
que acho necessário? Espero que meus romances tenham dado
prazer e informação a quem os aceitou. Sem malícia, invejo
autores como Adonias Filho, ou Dalton Trevisan, que, à parte o
talento comprovado, constroem uma oeuvre, um volume e
continuidade de trabalho, ausentes (Adonias de uns tempos para
cá) do barulho e bagunça de superfície da calamidade brasileira.
Não incluo Jorge, o mais bem-sucedido, porque afinal gastou
boa parte da juventude enfiado até o pescoço na shit que
partilho, se bem que escapou do diversionismo jornalístico.
Tenho um canto fora do Rio onde sonho me isolar, escrever o
dia inteiro e, à noite, cultivar amigos íntimos, ouvir música, ler,
adquirir o gosto pelas coisas simples (minha incultura do
rotineiro da vida é incomum), gozando o conforto afetivo que
minha mulher provê. Não abrir jornal, ouvir rádio, ou ter sequer
TV. Se alguns se masturbam pensando em Bo Derek, meu
balanço de mão é outro.

Há uma contradição, claro. Foi à distância, nos EUA, que


encontrei a relativa paz de espírito em que exorcizei os
demônios de Cabeça de papel e Cabeça de negro. Escrevi um
livro político de uma sentada, descrevendo as duas Américas, a
de McGovern (se recolhendo) e a de Nixon. Reuni três volumes
de ensaios. E, notem, escrevo cerca de 700 artigos ao ano, um
mínimo de nove por semana e sempre há extras, nos momentos
de crise, quase diários. No Brasil, provavelmente, eu teria de
pedir emprestados os óculos escuros de Geisel, ou, melhor, do
cego honesto da esquina, se quisesse não ver. O que nos aflige,
para mim, é tão fácil de evitar quanto Les demoiselles d’Avignon
a primeira vez que enxergamos.

A lógica dita essa posição de recolhimento produtivo, se é


que vou cumprir o desejo infantil de ser escritor, e Freud nos
avisou que só os desejos infantis saciados nos trazem um
mínimo de felicidade, o possível mínimo, no que acredito. Já
lutei mais batalhas, participei de mais polêmicas, de
“campanhas”, do que tenho fios brancos na cabeça. Nunca achei,
bom e ex-marxista, que pessoas sozinhas conduzem movimentos
históricos. Estes ganham uma dinâmica própria. O líder é,
quando muito, expressão do coletivo (Hitler), ou sintoma
(Stálin). Poder político, política de “p” minúsculo, me são
soporíferos. Claro, sempre se pode dar mãozinha à História, ou
mão-cheia, em casos excepcionais, Lênin e Trótski. E no entanto
consideremos os objetivos supremos desses indivíduos. Hitler
inclusive. Hitler queria exterminar os judeus e comunistas. Israel
não existiria sem Hitler e a URSS não se haveria expandido tão
rapidamente sem Hitler. O que diria o Lênin de Estado e
revolução, o mais humano e esperançoso dos tratados
socialistas, do Leviatã de Stálin? O que diria Trótski do Exército
Vermelho, que ele criou de massa imunda e analfabeta de
camponeses, quando esmagou o socialismo democrático de
Dubceck?

“We know what we are but we know not what we may be”,
sabemos o que somos, mas não o que viremos a ser, diz Ofélia,
“louca”. O escritor, ao menos, tenta fixar um presente e passado
como nos pareceram reais e vivos, apesar da decadência e
mortalidade intrínseca do que é humano. Proust, torturando
ratos, decorando bordel de homossexuais com os móveis de
mamãe Proust, nos deixou, mais amplamente, humanamente,
que qualquer historiador, a cortina final da sociedade
aristocrático-burguesa, enterrada em 1914-1918. Euclydes da
Cunha, nosso maior escritor, em Os sertões, e o Jorge Amado,
de Capitães de areia e Jubiabá, nos fixaram na mente que as
notícias da abolição da escravatura no campo brasileiro são
prematuras.

Não renego o jornalismo. Paga o meu pão-de-ló. Mereço


todas as migalhas. Não discuto qualidade, mas nenhum
jornalista brasileiro trabalha em quantidade como eu. Alguns
troféus na parede me consolam, à maneira de posters que nos
lembram a grandeza do original. Fui o autor do editorial
anônimo, “Rico ri à toa”, que destruiu a candidatura de Juracy
Magalhães a senador da Guanabara, em 1960 (o próprio irmão
de Juracy o admitiu a Samuel Wainer).

Paulo Silveira, Moacyr Werneck e eu quase impedimos a


eleição de Carlos Lacerda ao governo do Estado. Nosso
candidato, Sérgio Magalhães, insistia na asneira de tirar votos de
Carlos na UDN, tão fácil quanto a Albânia bater a URSS numa
guerra. Paulo Silveira queria atrope-lá-lo. Eu, que não guio,
sugeri afogá-lo. Moacyr, aristocrata de nascimento (um estilista
impecável), não condescendeu em expressar opinião sobre a
cabeça de Sérgio (um excelente deputado). Sérgio foi à TV
exibir uma irmã freira (a Igreja, antes de 1960, não “aderira ao
comunismo”). Tudo inútil. Política, no Rio, naquele tempo, se
dividia em pró e anti-Lacerda. Nossa chance remota estava em
identificar o “anti” em Sérgio Magalhães. Havia dois
pseudopopulistas (dizem que financiados pelos “pró”) rachando
o voto “anti”, Sérgio persistia boquejando “moderação”.
Perdemos a paciência. Um dia, pegamos uma reportagem (Ib
Teixeira, acho), sugerindo que o Carlos entrara em negociata no
prédio da Tribuna, na Rua do Lavradio. Redigi “entrevista” em
que Sérgio Magalhães pedia “enérgica investigação” da suposta
safardanagem. Ficção pura.

Sérgio ficou furioso. Carlos também. Este resistia a tudo,


menos a uma boa provocação. No dia seguinte, saiu de artigo
assinado na primeira página da Tribuna, “A ofensiva
comunista”, da qual Sérgio seria o agente. Em uma semana
Sérgio subiu 10 pontos no IBOPE. Aí, gostou. Também
elegemos Aurélio Viana (que apoiou 1964), um bestalhão,
pastor protestante. Todas as “entrevistas”, perguntas e respostas
foram escritas pela equipe política de Última Hora. Esta dobrava
de circulação em época eleitoral. E Samuel, que detesta
polêmicas, entregava o comando a Paulo Silveira e Moacyr.
Sérgio perdeu somente por 22 mil votos, numa arrancada que,
uma semana mais (a culpa do atraso foi dele), ultrapassaria
Lacerda.

Métodos feios, sem dúvida, mas guerra é guerra, e “mãos


na merda”. Tive a sorte também de participar do Diário
Carioca. Não nos pagava antes de seis meses de atraso, em que
sustentávamos, na mais-valia, o proprietário, Horácio de
Carvalho, em Paris. Tínhamos em troca liberdade absoluta,
inclusive de cometer a minha gafe contra Tônia Carrero. O
Diário revolucionou a linguagem pedante, professoral, da
imprensa. Manchete famosa: “Galinha bêbada põe mais”. Autor:
José Tinhorão. O Diário colocou gente de costas e de lado, na
primeira página, expôs animais no mesmo espaço de honra, tudo
novidade completa. Procurava o coloquial brasileiro. Lançou
dezenas de jornalistas que se destacaram e conseguiram, depois
da escola “austera” do Diário, ganhar a vida. Lembro Pompeu de
Souza, diretor, sempre suspendendo as calças, rindo excitado,
quase à la filme de horror, de deleite, em face de nossas
travessuras contra o convencional. Samuel Wainer criara um
jornal populista, pró-Getúlio Vargas, numa imprensa em que os
proprietários todos usavam o governo e o atacavam,
representando a mínima e cruel elite do país (havia exceções
liberais. Sempre há. A Folha hoje substitui o Correio da
Manhã). Samuel se tornou incômodo. Tecnicamente
desenvolveu o chamado Segundo Caderno, antes um monturo de
press releases e picaretagem.

Iniciou-se furiosa campanha contra Samuel. Motivo: teria,


graças à amizade com Getúlio, feito a Última Hora, apanhando
dinheiro no Banco do Brasil. Presumo que seja verdade. No meu
trotskismo distante do período, 1953-1954, essas questiúnculas
burguesas não penetravam. É

claro que a maioria dos donos da imprensa, dado o poder,


se servia de Caixa Econômica, Banco do Brasil, etc., da mesma
forma que os privilegiados do “modelo exportador” consideram
o dinheiro do povo conta particular deles. Neste momento
mesmo que escrevo, o Sr. Roberto Marinho é acusado de haver
comprado a participação inicial de Time Inc. na Rede Globo, via
Caixa Econômica. O que há de novo nisso? Nada, rigorosamente
nada, em toda nossa História. E o Sr. Roberto Marinho, ao
menos, dispôs do crédito do povo afastando um sócio
estrangeiro, o que deveria ser motivo de júbilo do nacionalismo
caboclo. E não é esse o motivo por que a Globo encaçapou as
rivais. O motivo é competência, no contexto.

Samuel Wainer, claro, era o biombo, a primeira e frágil


barreira do verdadeiro alvo dos acusadores, Getúlio Vargas. Um
governo corrupto? Sem dúvida. E qual não é, ou foi, na História
do país? “Corrupção” é da essência do sistema capitalista, um
dos óleos que azeita a máquina propulsora do dito. Agora, esse
corrupto criara a Petrobrás. E, bem ou mal (mal, a meu ver),
garantira alguns direitos dos trabalhadores urbanos. Pretendia
impor uma lei de remessas de lucros. Advertia contra a ganância
(ai, o tédio do vocabulário pleonástico da burguesia) das
multinacionais, produzira a Instrução 60, que garantia à indústria
nacional que o cruzeiro não se esfrangalhasse sob o dólar. Essa a
razão real da campanha, que quase arruinou Samuel, homem de
muitos fôlegos, e conduziu Getúlio ao ato heróico do suicídio e
da carta-testa-mento, que, movimentando emocionalmente as
massas, adiou a totalidade do Leviatãzinho caboclo, o Golpe de
1964, por 10 anos.

Também fui um dos fundadores de Senhor. Simão e


Sérgio Waissman, dois empresários editores de enciclopédias
(Larousse) e de coleções (Nobel, Freud, etc.), decidiram lançar
uma revista mensal de cultura, diferente do que existia,
garantindo liberdade absoluta ao editor-chefe, Nahum Sirotsky.
Este me convidou a ser editor de texto, de ficção, das matérias
pesadas da revista. Carlos Scliar dirigia a arte e brigava comigo
pelos mesmos motivos que Trótski e Stálin, só que éramos e
permanecemos amigos pessoais. O caráter de Scliar é sólido.
Havia Luís Lobo, encarregado de serviços e da sacanagem que
davam o molho a Senhor. Por que nunca subiu muito na
imprensa é, para mim, motivo de perplexidade. Talvez lhe falte
vocação. Certamente influiu na leveza e humor da revista,
produzindo-os ou contratando-os, das melhores fontes. Tivemos,
entre outros prazeres, o de refletir a glória de Clarice Lispector,
em face de quem a crítica se baba, hoje, mas que, na época, era
praticamente inédita (apesar de famosa nos meios intelectuais),
pois não encontrava editor. E demos a Guimarães Rosa (que
gostava muito de dinheiro, o que é bem mais comum do que se
imagina entre talentos literários altamente desenvolvidos) quase
uma renda fixa, editando-lhe todos os contos que se
celebrizaram. Vários outros participaram de Senhor, Newton
Rodrigues (com quem co-editei a revista quando Nahum saiu),
Glauco Rodrigues, substituto de Scliar (que preferiu uma
concentração total na pintura), Bea Feitler (que, desapontada
pelo pouco progresso na carreira, radicou-se nos EUA,
tornando-se diretora de arte de Harper’s Bazaar e,
posteriormente, MS, à parte produzir diversos livros de arte e
fotografia), sem falar do talento de dezenas de colaboradores,
boa parte desconhecida, entre os quais algumas serpentes que
envenenam a cultura...

Senhor tinha dois critérios: talento e tom. O primeiro


excluiu inúmeros medalhões, quase todos membros da academia
brasileira do túmulo gratuito. Tom é mais vago. Queríamos uma
certa ironia, uma seriedade temperada pelo humor, à parte
humor puro e simples, rejeitando o solene e grandiloqüente.
Recusamos bons amigos, de valor, porque não pegavam o tom.
Isso doeu, em nós também, logo censuro menções.

Não vou descrever toda a minha carreira jornalística. Cito


apenas o que me parece importante. Senhor foi uma pequena
revolução cultural, no Brasil critério de excelência é
revolucionário, enquanto os Waissman agüentaram a carga
financeira. Os proprietários seguintes entregaram a revista a
Odylo Costa, filho, a quem faltava o tom. Reynaldo Jardim, o
último proprietário e editor, tinha tom de sobra, mas tentou
popularizar Senhor, descaracterizando-a, e a coitada morreu,
jovem e gloriosa.

Participei de outra revolução, a da linguagem, de O


Pasquim, que estendeu o coloquial do Diário aos extremos
possíveis num país puritanizado (de fachada) à força. O
Pasquim, nascido do crédito de Altair de Souza, amigo e
distribuidor, em meses vendia 200 mil exemplares, em 1969.
Reunia muito da sacanagem e sátira autenticamente Rio, Zona
Sul. Brigas, algumas neuróticas, outras justificadas, diluíram o
espírito inicial, a ponto de quase não resistirmos à censura (e
prisão de dois meses) Médici, nos salvando da falência os
esforços de Millôr Fernandes, Fernando Gasparian e vários
amigos. Hoje, sobrevive confortavelmente, um membro
agigantado da nanica, edita livros, etc. É um semanário político,
incluindo algum humor. Começou ao contrário, humor e um
pouco de política (eu, Millôr, Sérgio Augusto e, agora, Alberto
Dines, ocupando o lugar de ponta-de-lança. O problema me
parece, sem intenção de piche, é que a ponta virou a lança toda,
ou perto disso, talvez porque no Brasil a absorção política seja
inevitável). Permaneço amigo (reciprocado, espero) da casa e da
“turrrmmaa”.

Perdi, ou participei minimamente, da revolução do Jornal


do Brasil, cujo líder principal é Jânio de Freitas. Começou sob
Odylo Costa, filho, a contragosto dele, um conservador, no
Suplemento Dominical, a que Reynaldo Jardim deu aparência
gráfica única, Ferreira Gullar, substância então concretista,
ideólogo in extremis do movimento (chegando a considerar os
pais do dito, no Brasil, os irmãos Campos de São Paulo,
cultíssimos, meros “centristas”) e que Mário Faustino levantou
pela qualidade da crítica poundiana de poesia. Colaborei lá
algumas vezes. Odylo me contratou crítico de cinema. No
primeiro dia, tão velho era o jornal, um contínuo me perguntou
quando eu ia apanhar o “dinheiro”. Que dinheiro? Uai, dos
anúncios de cinema, que meu antecessor recebia, bem
comissionado. Ri. Sinal de maturidade. No Diário Carioca, um
jovem me propôs dinheiro se eu promovesse o Teatro Castro
Alves da Bahia. Dei-lhe uma bofetada.

Fui demitido, me disse Odylo, por provocar um chilique


na estimável proprietária, Condessa Pereira Carneiro, porque
chamei o Cardeal Spellman de débil mental e reacionário. Não
foi outra coisa, esse padre, que abençoou os canhões americanos
no Vietnã. É que, no caso, ele criticara o ingênuo e mal feito
Baby Doll, de Kazan, proibindo que católicos o vissem,
garantindo assim a bilheteria do filme no mundo inteiro.

O que me deu mais prazer foi editar o Quarto Caderno do


Correio da Manhã. Quem era inteligente e não nazista, se quis,
escreveu no dito cujo. Meu co-editor, José Lino Grünewald,
cuidava do modernismo literário. Eu, das polêmicas políticas. O
criador do Caderno é meu velho, atual amigo e colega da Folha,
Newton Rodrigues, que, editor do jornal, me empregou depois
de me vetarem em todas as publicações (exceto, anonimamente,
em Visão, setor cultura), entre 1964 e 1967. O Correio não tinha
dinheiro e nos pagava mal. Eu ganhava bem na revista do
Diner’s, que tentei transformar numa mini-Senhor, revelando
dois talentos extraordinários, Alfredo Grieco e Flávio Macedo
Soares (que se suicidou). O trabalho no Correio, apesar de
pesado e improfícuo, nos alimentava a alma. Fomos a trincheira
quase única em que se defendia o país da ditadura. A
proprietária, Niomar Moniz Bittencourt, tem horror a ditaduras
de qualquer espécie, exceto a dela, que é, porém, despotismo
feudal, benévolo. Amo-a. Depois de Newton, outro amigo
assumiu o jornal, Oswaldo Peralva, ex-comunista famoso por
um livro, O teatro, descrevendo mazelas do stalinismo (falta o
ardor que o levou ao Partido. Se o incluísse, o livro seria uma
obra-prima). Peralva, tendo ido à forra, reverteu ao liberalismo,
ao contrário de tantos ex-comunistas e trotskistas, que terminam
na extrema direita, ou seja, apenas trocam a cor do fanatismo e
radicalismo.

Nunca sofri a menor censura onde trabalhei, dos patrões,


isto é. Fiz um elogio a Che Guevara, no Correio. Saiu na sexta
página, ao lado dos editoriais, de que fui também um dos
redatores. Continuo assim na Folha de S.Paulo.

Lamento não ter trabalhado com um dos dois maiores


jornalistas da minha geração, Jânio de Freitas. Trabalhei com o
outro, Cláudio Abramo, o diretor da renovação da Folha de
S.Paulo, que me levou ao jornal. Jânio mudou a face do
jornalismo brasileiro ao assumir JB. A cara do jornal ele a
encomendou e executou, estabelecendo uma estrutura e uma
intenção. No recuo da última, caiu. A estrutura permaneceu, sob
outro amigo, Alberto Dines, que a expandiu, mas então
conservador, ou, melhor, dando prioridade ao anticomunismo.
Não se pode ou se deve propor prioridade ao anticomunismo no
Brasil (nada tenho contra o antistalinismo, que é o verdadeiro
nome do comunismo, agora, na nossa situação, é desconversa
concentrar-se na luta contra o dito). Não estou pondo em dúvida
a integridade de Alberto Dines. Cometeu erros como todos nós.
O que emerge, num balanço, lhe é altamente favorável.

Há tipos na imprensa que detesto, pela vassalagem sórdida


aos poderosos. Não pretendo mencioná-los. É dar-lhes imerecido
destaque. E fedem tanto que o poder termina lhes apodrecendo
nas mãos, ou o poluem de maneira tão óbvia, que ninguém sério
os leva a sério, lacaios histéricos de uma classe condenada.

Não sendo um pequeno-burguês moralista, reconheço que


a imprensa é a cara da sociedade. E a nossa oferece tantos
respiradouros, é margem ou no meio do conformismo opressivo
à classe dirigente, que não me impressionam muito os críticos
radicais da Velha Senhora. À parte os nichos liberais e de
contestação, onde me enfio, existem as “superestruturais”
decência e orgulho profissional. Evandro Carlos de Andrade e
equipe transformaram O Globo numa das publicações mais bem
feitas tecnicamente no país. O jornal vende tanto não apenas
porque é respaldado na Rede Globo, ou apela ao popularesco, e,
muito menos, pelo conservadorismo editorial. Evandro luta e
ganha muito preservando a integridade da notícia. Nem sei o que
ele pensa politicamente, nem me interessa (nisso permaneço um
liberal). Sei que é um profissional. O profissional Cláudio
Abramo, quando secretário de O Estado, regia o noticiário ao
lado de editoriais do século XIII. Transformou o jornal no
melhor do país, naquele período, pela defesa da precisão da
notícia e o estofo cultural. Li Isaac Deutscher a primeira vez na
edição dominical de O Estado.

Há, portanto, nuances, um meio-termo entre a


subserviência e a contestação cegas. Os editoriais que expressem
opiniões, todas. O jornalista maduro luta pelo fato, o fato
interpretado e analisado. Na era da TV, aliás, não há outra saída
para a imprensa. O modelo que sobreviverá é Le Monde, não
importa a cor ideológica. O jornalista print, não-eletrônico,
necessita de um capital de História e Economia, no mundo de
hoje. São dispensáveis as escolas de jornalismo, que ensinam
(errado, em muitos casos) técnicas ao alcance de qualquer
pessoa medianamente inteligente em alguns dias de redação.

“Rodei a bolsinha” num bocado de publicações. Nunca


briguei, ha! Duvido que alguém trabalhando diretamente sob
minhas ordens tenha queixa da arrogância que me atribui o
folclore. Demitido do Jornal do Brasil e de Visão, sempre soube
que sobreviveria sem dificuldades. Houve dores. A morte lenta
de Senhor, as bobagens personalistas que fecharam a revista do
Diner’s contra a vontade do proprietário, Horácio Klabin. O fato
de que Said Farhat9 vendeu Visão a um certo Maksoud, quando
Luiz Garcia, editor, Zuenir Ventura, eu e outros amigos
tínhamos planos que ainda hoje me parecem excelentes de
converter a revista no melhor veículo liberal e de cultura do país.
O assassinato do Correio da Manhã; o de Niomar, pela ditadura.
O tempo em que O Pasquim se esvaía em lutas internas. Se não
fosse a alma de mãe tolerante de Jaguar, que esconde uma
obstinação férrea (na órbita dele), acredito que o jornal houvesse
explodido. Os outros fundadores cansaram.

Restam prazeres. O maior é torcer o nariz dos poderosos.


Participar de aventuras (no início, apenas) do tipo Status, da
Editora Três, e Vogue, pela liberdade que me deram e pelo
perigo que o troço afundasse antes de chegar às bancas. Às
vezes improvisamos bem e consolidamos, no Brasil. Às vezes.

Meus poucos inimigos na profissão me enchem de


orgulho. São a gente mais repulsiva da imprensa, opinião que sei
majoritária. Até num jornal do PC trabalhei, de graça, Folha da
Semana, enquanto a ditadura não o fechou. Espero não ofender

9
Foi sob Antonio Pimenta Neves, hoje meu colega nos EUA,
correspondente da Gazeta Mercantil, que Visão começou a deixar de ser
apenas uma revista de business, convertendo-se aos poucos numa
publicação que abrangia análises econômicas em profundidade,
apresentando pluralismo e equilíbrio de opiniões, o melhor material
disponível do estrangeiro e uma grande abertura cultural. Jornalistas
competentes como Luiz Weiss, Rodolfo Konder e Vladimir Herzog, à parte
Zuenir Ventura, no Rio, participaram dessa transformação, que teria
continuado caso Farhat houvesse mantido a revista. Depois da queda do
sucessor de Pimenta (que foi trabalhar, a princípio, na Editora Abril), Luiz
Garcia, desisti de vez de trabalhar em editoria na imprensa brasileira.
Prefiro, de qualquer forma, escrever, atirar livre. Mas não nego o
desapontamento, já experimentado em Senhor, Correio da Manhã e O
Pasquim.
aos corajosos editores escrevendo que me trataram como
fidalgos, nunca sugerindo sequer censura de qualquer espécie.

Acredito que a Folha seja meu fim de carreira. Me dou


bem lá, eles me garantem reciprocar, não tenho motivos de
dúvida. É um dos quatro maiores jornais do país e o único
liberal. Estou onde é possível estar na profissão, se vivendo de
jornalismo (o que é meu caso) e não me auto-humilhando ou
sendo humilhado moralmente. Lamento, claro, a perda do
público do Rio, por sentimentalismo, dada minha origem. O de
São Paulo é mais atento e sério. Recebo perto de 100 cartas ao
ano. Brasileiro não é chegado a cartas, quanto mais ao exterior,
sem que saiba sequer o endereço do destinatário. E a editoria da
Folha me informa que envia seleções, apenas. É a maior
receptividade escrita que experimentei.

É agradável ter furado toda a imprensa mundial na queda


de Somoza, ou prevendo a derrubada do ex-xá, quando toda a
imprensa mundial, adversária inclusive, o imaginava seguro, ou
haver percebido a fajutice e incompetência de Jimmy Carter, já
na campanha contra Ford, e, no governo, antecipar a opinião
sobre a debilidade do dito cujo, no mínimo um ano antes dos
outros; não se preocupem, a autopromoção, justificada, acabou.

Ninguém me nega independência. Os americanos me


acham inimigo do sistema deles, gratuito e grosseiro. Os
soviéticos, não me podendo chamar de agente da CIA,
conhecedores dos protestos dos americanos, fabricaram que
sirvo a Bonn, que se queixou formalmente ao jornal do meu
tratamento ao método “administrativo” que dispensaram à
Baader-Meinhof. E por aí vai. Citem um artigo anti-humanista
que tenha minha assinatura, ou em que adule poderosos.

A minha assinatura é essa.


VI. “E O QUE QUE VOCÊ VAI CANTAR, MOÇO?”

QUASE não terminei Cabeça de papel, a melhor coisa que


já escrevi. Durante um ano suspendi o trabalho, empacado na
discussão central entre Hesse e Hugo. No original, era maior que
o livro e ia de Tucídides a Kolko... A forma definitiva
permanece meio “esquizo”. Ia ser tudo como é no início, um
longo monólogo interior de Hugo, premeditadamente dispersivo,
desconexo, saltando à frente e para trás, carregado
poundianamente de paráfrases, citações, paródias, em que o
intelecto de Hugo, em última análise, reuniria os fios da meada,
inclusive se ironizando porque, apesar de poderoso, tanto tempo
deixou que Hesse o iludisse.

Ênio Silveira viu trechos e me escreveu que era melhor


tirar uma edição numerada de seis exemplares para seis pessoas
sofisticadas que, ele imaginava, entenderiam o livro. Ivan Lessa
se queixou que eu deblaterava ad infinitum. Duas opiniões que
respeito. Me desencorajaram bastante, me deprimiram horrores.
Considero o julgamento de Ivan em literatura difícil de bater,
política à parte, pois ele demorou bem mais que eu a se
interessar pelo assunto. Juntos, jovens, sou mais velho cinco
anos, passamos noites e noites, discutindo nossas ambições
literárias, trocando idéias sobre autores que amávamos. A
propósito, muito me diverte quando leio que sou criatura
literária americana. Ao contrário, pré-Ivan, toda minha formação
é européia, de Dostoiévski a Stendhal, a Sartre (romancista).
Ivan me levou aos americanos, me esculachando o
conservadorismo, de Hemingway a Fitzgerald, a Norman
Mailer, a Capote, a Faulkner, etc. Li-os quando já era um senhor
de 27 anos. E Ivan me mostrou as delícias de Auden, Berryman,
Lowell, sem falar da enciclopédia de música popular de
qualidade que carrega na cabeça, de que me passou verbetes
selecionados. Brigamos Ivan e eu, várias vezes, uma, feio. Não
adianta. Bastante gente o odeia e certas explosões paranóides
dele me ofendem (tenho as minhas). Mas é o irmão mais moço,
como Jorge Zahar, Ênio Silveira, Millôr Fernandes e Cláudio
Abramo são os mais velhos, que me faltaram na adolescência,
papel suprido por Marcelo Aguinaga, exclusivamente, naqueles
tempos: são os que me aliviaram a solidão. Romper com eles
seria queimar inutilmente energia nessa era de escassez dirigida
pela Exxon e irmãs, aliadas à OPER

Foi Sônia, minha mulher, que me fez acabar Cabeça de


papel. “Fi-lo” para agradá-la. O casamento (coisa que jamais me
passou a sério pela cabeça antes dos 40 anos) tem um custo
oculto não computado na contabilidade feminista, o que
qualquer espectador de Bergman (a quem cito como ponto de
referência, já que tão pouca gente lê mesmo) percebe. O que não
quer dizer que eu não tenha posto o bacalhau para fora, no
romance. O meu Livro Branco e Negro de política. Intimidado
em face do fracasso certo, que Ênio e Ivan previam, o fato é que
fiz “concessões”. Deixei os outros falarem, reverti em várias
passagens ao realismo narrativo, que acho restritivo; o monólogo
e o poundianismo erguem a cabeça aqui e ali, do todo passaram
a acessório. Da forma original restam a oração oblíqua (as
pessoas não estão dizendo precisamente aquilo que parecem
dizer; em verdade, não raro, dizem o oposto do que pretendem
dizer), minha raiva e a “noite negra da alma” que herdei da vida
e de longas leituras de São João da Cruz.

Não renego a criança recauchutada que é Cabeça de papel.


Compreendo, sem condescendência de qualquer espécie, a maior
(comparativa e relativamente) popularidade de Cabeça de negro.
Ambos venderam bem, vendem ainda, para Brasil. Ênio acha
estupenda a vendagem de Cabeça de papel, que publicou,
considerando as dificuldades intelectuais do livro e que eu era
um romancista estreante. Omite, delicadamente, que esse
estreante é jornalista plastrado em quase toda a imprensa há no
mínimo 23 anos. Não vamos agora pretender que saí de Pirapora
anteontem, aplaudido pelos parentes, na estação de trem, rumo
ao Rio de manuscrito debaixo do braco, o.k.?

Me surpreendeu em Cabeça de papel que nenhum


intelectual de esquerda, pró ou contra, quisesse entrar, por
escrito, na briga de Hesse e Hugo. Afinal, é, ou me parece,
paradigmática dos problemas da esquerda, depois de Stálin e na
relação específica, no livro à condição brasileira. Alceu, um
liberal católico, foi o único a anotar o caráter multinacional do
romance, escrevendo que eu colocara a revolução brasileira no
contexto mundial. Reclamei desse desinteresse na Folha. Fui
recebido, respondido, com derrisão. Continuo perplexo. Dei meu
recado. Talvez, com o tempo, receba a resposta. É a consolação
do escritor que se sente rejeitado.

Cabeça de negro é um romance sobre o Terceiro Mundo,


em face da revolução. Ou seja, esse o tema político; sublinha
outros, vários e diversos. Formalmente, é um experimento sobre
os limites da fala humana. É quase um matraquear contínuo, em
que deixei todo mundo falar pelos cotovelos, calcanhares,
orifícios, etc. Repete um dos temas de Cabeça de papel. O
intelecto forte de Hugo Mann não percebe coisas que lhe estão
diante do nariz. Contraponho assim racionalismo e
irracionalismo, o problema filosófico que mais me preocupa.
Agora, é também um thriller que se lê de uma sentada, sem as
dificuldades de Cabeça de papel. Isso não significa que evite
paráfrases de outros autores, citações (não identificadas),
paródias, etc. Apenas estão incorporadas ao livro sem exigir que
o leitor precise parar buscando a fonte. E coloquei o script da
revolução mundial que enxergo: os 2 billhões de destituídos,
cedo ou tarde, mais cedo do que tarde (embora, à la Marx, não
proponha prazos fixos), vão explodir sobre os ricos numa fúria
que devastará a terra, fúria que de jeito algum aceitará o
reformismo ou sequer o corretivo revolucionário de Marx, que é,
afinal, premissado em economia clássica inglesa (David Ricardo
e Adam Smith é que inspiraram Marx na mais-valia, ainda que
fossem conservadores e social-darwinistas), socialismo francês e
filosofia alemã. Cabeça de negro, em política, propõe a já
mencionada alternativa de Rosa Luxemburgo que do capitalismo
morto surgirá socialismo ou barbárie. O romance “opta” pela
barbárie. É minha posição, exposta, inequivocamente, na leitura
que Hugo Mann faz do sombrio, profético e inigualável poema
de Yeats, The Second Corning (devidamente traduzido linha a
linha).

Esperava muito, comercialmente, de Cabeça de negro. Me


esbaldei promovendo-o. Fiz noites de autógrafos. Amigos na
imprensa foram da maior gentileza, dando-me um lançamento
que em geral só Jorge Amado, veterano estabelecido de tantas
guerras, recebe. O custo psicológico dessa promoção me foi
caro. Nenhum assanhamento me move a aparecer em TV todo
dia. Ao contrário, é uma autoviolação de profundas resistências
internas. Me sinto Chacrinha Jr. Eu queria testar se me seria
possível sobreviver como romancista, não dependendo
exclusivamente de jornalismo.

O resultado, desapontador (o livro, repito, “vendeu bem”


pelo critério de Ênio e outros editores), me levou a uma
depressão única na vida. Durante dias, me mantive na base de 10
Libriums, quase um de hora em hora. Me custou a perda de uma
amizade querida (nenhuma briga ostensiva. Afastamento mútuo
apenas). Uma velha obsessão de adolescência e boa parte da
maturidade, antes que eu começasse a escrever romances, me
voltou insistente à cabeça: o suicídio. Jurei que não escreveria
mais ficção, ou poria os pés no Brasil. Por decisão própria,
comemorei 49 anos sozinho, olhando fixamente as paredes do
aparta-mento em Nova York. Depois das primeiras críticas,
proibi que me enviassem qualquer referência ao livro.

Bem, aqui estou, terminando este, e em 1981 acabarei a


trilogia com Cabeça. Não guardo rancores ou cultivo a
vitimização. A mesma voz que me dizia, “bicho, isso não é
contigo”, em outros paroxismos, se reafirmou. Minha mulher,
Sônia, e um amigo íntimo, Jorge Zahar, ajudaram bastante a me
“trazer de volta” à sanidade de que disponho, nos melhores
momentos. E o próprio trabalho jornalístico de que não perdi,
eterno cê-dê-efe, um dia, também garantiu um mínimo de
estabilidade no pior da crise.

Decidi deixar para lá, jogar pro alto. Escrever, afinal, é


uma necessidade irresistível. Seria ótimo se pudesse converter
necessidade em liberdade. Se não é, vai assim mesmo.
Descubro-me, à beira dos 50 anos, um “moderado”, palavra que
abomino em política. Todos nós somos humilhados de uma
maneira ou outra, afetivamente, profissionalmente, etc. Me
considero até pouco humilhado, em comparação a tantos amigos
que vi perderem potencial de grandeza na brutalização da vida
brasileira.

E houve compensações. Alceu Amoroso Lima e Franklin


de Oliveira, dois dos poucos intelectuais que respeito,
escreveram poderosos ensaios sobre Cabeça de negro. Eu nem
sabia que o criticariam e muito menos lhes pedi. O “de sempre”
ocorreu entre os resenhadores. Às vezes me é difícil distinguir
no que escrevem se o ataque ou o elogio é o mais insultuoso.
Acho que, invariavelmente, se insultam a si próprios. Nenhum
escritor sério os leva a sério. Claro, é chato ter um livro pichado
em publicação que vende. Não é o piche que incomoda. É o
público provavelmente perdido que acredita no resenhador. E há
os acadêmicos, tentando esconder impostura e esterilidade em
erudição de orelha de Lukács, Benjamin, Lacan, etc. Dei umas
lambadas num grupo, pesadas, não dou lambadas leves. Foi um
erro. Coloquei-o no mapa, o que o grupo desejava, nas sinecuras
obscuras em que sobrevive à custa de (mais) dinheiro furtado do
povo. É uma ralé pomposa. Deveria se dedicar a escrever ordens
no dia da Bucetona de 1935...

E houve uma surpresa que quase compensou todo o


desapontamento. Um crítico jovem, do Rio Grande do Sul, de
quem nunca ouvira falar, José Onofre, não só leu
cuidadosamente Cabeça de negro (o que os resenhadores
parecem não fazer. Dou-lhes esse crédito, tamanhos os erros
factuais que cometem, eles e a praga acadêmica); analisou-o, em
detalhe, em 13 páginas da revista Oitenta, de uma editora do
Estado, LPM, que é dirigida por jovens dispostos a sacudir o
tradicionalismo paternalista típico dos editores de Rio e São
Paulo. O comentário de José Onofre me é favorável, apesar de
restrições bem fundadas. Se não fosse, ainda assim eu escreveria
o que está aqui. O que me impressiona nele é a seriedade sem
frescuras pseudo-eruditas, a capacidade de emitir opiniões sem o
prefixo “já dizia fulano de tal”. São opiniões pessoais forjadas
em contato e contraste com o texto. Isso é crítica, o que nos falta
quase completamente no Rio e São Paulo. Temos alguns
brilhantes ensaístas. O crítico, porém, é aquele que praticamente
reescreve a obra do autor, à margem, usando-a como parte
integrante do que põe no papel, em contato e contraste, repito.

Insisto em que ataques ou elogios me fazem mal e bem à


vaidade, respectivamente. Nada mais. Esqueço rápido. Não
tenho rancores porque disponho de uma tribuna onde posso me
expressar. Se me sinto atingido, revido. É tão simples assim (e
acredito que não seja, de natureza, rancoroso). Crítica nos leva à
autocrítica. Interessa menos ao leitor que procura se divertir, que
é servido pelos resenhadores, em verdade palpiteiros de
marketing, mas é indispensável ao autor que procura aferir o que
produziu ou em que pifou. Que Deus, o Diabo, Marx, ou quem
seja, preserve José Onofre longe da “vida literária” do Rio e São
Paulo, é o que lhe desejo, se bem que, pelo que escreve, me
parece ter personalidade que resistiria à corrupção carreirista
habitual. Afinal, outros, uns mínimos, mantêm a integridade que
Carlos Lacerda (generosamente, a meu ver) atribuiu a Castelo
Branco, a integridade de “anjo da Rua Conde Lage” (aos que
não conhecem o Rio: a rua foi um dos centros de bordéis da
cidade).

E chega, aguardem o próximo e emocionante capítulo, se


me acompanharam até aqui.

Aos 50 anos, politicamente, continuo, de coração, na


esquerda. Minha cabeça me lança sinais contraditórios. Acho
que a esquerda tem muito a explicar sobre as desmoralizações
que lhe foram infligidas e que se auto-infligiu no stalinismo,
hoje espraiado de Moscou a Cuba. As sociedades que produziu
não são destituídas de certos méritos. Toda criança recebe um
litro de leite ao dia na pobre, miserável Cuba. Houve uma
nivelação por baixo que, na maioria desses países, exterminou a
miséria absoluta, o analfabetismo e as epidemias que persistem,
em “bolsões”, até nos mais ricos países capitalistas. Um litro de
leite ao dia aos 2 bilhões (DOIS BILHÕES, FAVOR PRESTAR
ATENÇÃO) de destituídos do mundo não comunizado, sob
influência dominante do capitalismo, seria tido como milagre,
salvaria milhões de vidas que se estiolam sob selvagem
negligência e exploração. O preço foi alto. Não posso pagá-lo.
Nenhuma racionalização me fará participar de um movimento
que mate 10 milhões de seres humanos pela “causa”. A
cumplicidade nisso, ainda que pela omissão, me é
definitivamente impossível. Sei e disse que essa morte é mais
rápida do que o extermínio crônico e lento, agônico, desses
DOIS BILHÕES referidos acima. É, portanto, menos cruel. Mas
não agüento. Chamem de pruridos pequeno-burgueses, ou do
que acharem conveniente. Sou assim, fiquei assim e não abro.

Se a burocracia stalinista, tentacular (progressivamente), é


um fenômeno de transição da tirania indispensável à destruição
de uma ordem antiga e o estabelecimento da liberdade no
contexto marxista, me parece uma pergunta fútil. Tudo na vida,
na História, é transitório. Sempre me diverte que tantos
capitalistas e ideólogos do dito o imaginem hegelianamente uma
síntese histórica, a final. Leiam Tucídides e Gibbon, cuja tese,
amplamente comprovada empiricamente sobre os esplendores e
misérias de Atenas e Roma, seriam redutíveis ao carioquismo
“tudo na vida é passageiro, menos o condutor e o motorneiro”.
Mas o que advirá da burocracia, quem serão os condutores e
motorneiros? A transformação radical das relações sociais, como
propõe Marx, não garante que a barbárie (também transitória)
não herde a terra, ou, como São João Apóstolo previu no
Apocalipse, que as feras não prevaleçam. Talvez — uma
impossibilidade no tempo de Marx — uma das facções
dominantes incinere a Terra, preferindo o suicídio coletivo à
“subversão”. EUA e URSS, juntos, no momento, podem nos
destruir 66 vezes.

Marx me parece ter previsto o fim do capitalismo. A


necessidade de crescer e consolidar é essencial à manutenção do
domínio e mais-valia. A contradição é que enriquece, em última
análise, empobrecendo: destrói os competidores fracos; notem o
que os grandes do petróleo fizeram a milhares de capitalistas. O
avanço tecnológico que abate custos e aumenta lucros levará à
miséria (“a relativa superpopulação”) a imensa maioria da
humanidade. Contraditoriamente, essa pujança é autodestrutiva,
pois super-produz, eficiente, enquanto perde, na pobreza
dispensável da mão-de-obra humana, os frutos da exploração. O
monstro do capitalismo, que se alimenta de sangue, morre de
anemia, dos próprios excessos.

O capitalismo sobreviveu a 1914-1918, rendendo-se, nos


centros mundiais, ao impacto da revolução bolchevique, nas
reformas internas, em que se autoconteve. Se compensou
estendendo a barbárie que lhe é peculiar na multinacionalização.
A luta de classes permanece, ou nasce. Nos centros, a
“aristocracia do proletariado” exige mais e mais. Os capitalistas
pagam extorquindo a mais-valia do Terceiro Mundo. Este, no
desespero crescente, termina explodindo. A Ford, nos EUA, se
rende aos operários. No Brasil, prestigia a polícia que prende e
mantém os metalúrgicos submissos. E o Brasil é um pálido
exemplo. Da Indochina ao Irã, a revolta ruge (as aparências do
babalaô do Irã não nos devem iludir quanto à origem da
revolução). O processo de exploração é finito, pela sistemática
inexorável que descrevi no parágrafo acima.

A besta-fera da revolta não será, a meu ver, o animal


comportadinho que os marxistas esperam, o Messias coletivo da
classe operária, que realizada a tarefa de “expropriar os
expropriadores” se recolherá à busca da sociedade de homens
livres, livremente associados, cujas personalidades florescerão
nos bilhões de “Goethes” de Trótski.

O intelectual que entra nessa é um “poeta”. Melhor que


fiquemos de olho aberto, recusando e combatendo a injustiça,
não importa o rótulo em que se apresente. Melhor, como Freud,
não subestimar o poder do irracional, que Marx limitou à
ideologia (falsa consciência) dos capitalistas e respectivos
ideólogos, que justificam a tragédia da opressão em “forças do
mercado”, “recursos”, “produtividade”, “acidente”,
“tecnologia”, etc. O mundo sempre viveu pegando fogo. As
pausas, como a que preservou o equilíbrio de esferas de
influência, de 1815a 1914, terminam em explosões que superam
as expectativas dos mais pessimistas (e pausas, lembremos,
intercaladas de revoluções, 1848 e 1871, e de guerras limitadas).

Todas as ciências exatas, da física à astronomia, nos


mostram que inexistem ordem e harmonia universais, como as
concebe o cérebro humano. Nossas vidas, gotas dágua no
oceano, são tempestuosas até no íntimo familiar, não há
inteligência, cultura ou ética, todas características adquiridas,
que consigam impedir a desordem e o sofrimento pessoal e
coletivo. É quixotesco pressupor que um dia a sociedade se
domesticará se as relações sociais deixarem de ser as que
existem hoje, no capitalismo, entre senhor e escravo.

Dom Quixote, claro, apesar de ridículo, é imortal. Não


proponho a solução do avestruz, que afinal tem a bunda colhida
pelos ventos, se forem — e serão — suficientemente fortes.
Lutemos de todas as formas pelo que nos parece justo, sem
porém nos rendermos aos confortos ilusórios da utopia, que a
exemplo do bumbum do avestruz terminam alvo fatal da
realidade cruel. Só se desilude quem se iludiu.

No que me toca, permanecerei jornalista, dizendo o que


penso, enquanto me quiserem, me deixarem e eu for capaz,
mental e fisicamente. Nos meus romances e outros livros
tentarei ampliar minha experiência, em benefício próprio, de
auto-expressão, e a quem possa interessar, o gesto de
fraternidade a que me sinto apto, ou, em face dos críticos, a que
me sinto disposto.

Aos que gostam de mim (sempre suspeito que cometeram


equívoco de identidade) procuro retribuir na medida do que
posso, grato pela atenção dispensada. Quem me ama e me gosta,
me enriquece e consola a vida, me alivia do tormento que é a
consciência que tenho do que sou, da sociedade que criamos.
Me privei durante muitos anos desse conforto, traído e
ressentido da traição, e temendo correr novos riscos. O temor
persiste e o pé atrás. Se atenuaram com a idade e o afeto tantas
vezes testado e mantido pacientemente por uns poucos, da
minha mulher a alguns íntimos e já citados amigos. Desapareceu
a dúvida de que preciso desse conforto. Acredito que também
quem me conheça hoje me achará cordial. Sublimei quase
totalmente a hostilidade e, pior, o esnobismo intelectual que
exibi durante tanto tempo em face dos que tentaram aproximar-
se de Paulo Francis sem credenciais autenticadas. Paulo Francis
e Fransh menino, antes da queda, encontraram um pequeno
porém real denominador comum. Aspiro à visão de George Eliot
em Middlemarch, ou, vamos ao cinema, na nossa era “visual”, à
visão de Louis Malle, em Lacombe Lucien e Pretty Baby, que a
crítica, que me flui fácil como o sangue nas veias, é substituída
pela tentativa de apreender precisamente o que os outros, o
“resto”, a otherness, na palavra de D. H. Lawrence, representam,
sem tirar ou muito menos explicitar conclusões. “Forbearance,
a good word”, está nos diários de F. Scott Fitzgerald, incapaz de
não amar qualquer personagem que escrevesse. É, clemência é
uma boa palavra, e precisamos tanto dela quanto os que nos
cercam. E o intelectual deve lembrar o encontro de Freud e
Bleuler (o descobridor da esquizofrenia). Freud a um amigo:
“Ele é um pobre-diabo”, acrescentando, rapidamente: “Como
nós”.

Todas as eras são insatisfatórias e trágicas para os que as


viveram, de que temos testemunho escrito interminável.
Idealizam o passado os que temem o presente e o futuro. É um
temor justificado, mas intrínseco à vida, que termina em morte,
na derrota irrecorrível.

É interessante que não acreditemos que vamos morrer,


apesar de sabermos que vamos morrer. Até com a hora marcada
sentimos em tanta gente aquela esperança ilógica de que
perdurará. Nossa sensibilidade, por mais sofrida, exceto quando
entregamos definitivamente os pontos, resiste à idéia da
extinção. É dessa chama que ora vemos, ora desaparece, nunca
nos abandonando de todo, que as religiões e, em plano baixo-
astral, os políticos, se alimentam e opiam o povo (a referência
leninista ao ópio do povo, falando nisso, é caridosa, não
zombeteira, ao contrário da propaganda anticomunista).

É um bom momento de nos observarmos quando raspamos


por “madame”. Ao ficar tuberculoso, em 1961, eu estava de tal
maneira noutra, de enrijecimento intelectual e marxista, que,
passado o choque da descoberta; que devo a um amigo solícito,
o endocrinologista José Carlos Cabral de Almeida, que venceu
minha recusa de ver especialistas, me acompanhou uma noite
inteira de explosões e vomitório neuróticos (estes causados por
problema pessoal); não posso dizer que me assustei muito,
principalmente porque dois médicos de alta competência, Jesse
Teixeira e Hélio Fraga, me garantiram cura, porque o meu
organismo aceitava bem duas das três drogas prescritas. Cumpri.

Já quando me cresceu um tumor de tiróide, que se revelou


benigno em três biopses, pré e pós-operatórias, antes, na
expectativa dos testes, durante e depois, salvo, minha vida
inteira me passou pela cabeça, o desenraizamento a que me
condenei, a semimorte que foi a morte de Irene, a tragédia
política de 1964, as esbórnias insanas com que procurei encher o
vazio afetivo; tudo permeado pelo fato corriqueiro que se
morresse, apesar de, na época, 1973, ganhar mais de 3 mil
dólares ao mês, precisaria que alguém telefonasse a um amigo
no Rio que investisse no enterro. Adolpho morrera naquele ano,
eu, covarde, querendo manter distância, não ousando enfrentar o
desfecho da nossa longa relação de atritos, amor e culpa,
satisfeito e me odiando simultaneamente quando Sylvio, tio, ao
telefone, me deu, gentil, a notícia da morte e enterro de meu pai,
se desculpando que não me avisaram a priori porque eu nada
poderia fazer... Grunhi os ruídos apropriados ao telefone. Ele
entendeu...

No hospital de câncer, cercado por caras e pescoços que


fazem Picasso, no auge da deformação experimental, parecer
figurativista, apoiado por alguns amigos, entre os quais apenas
Sônia (então de passagem, morava em Paris) participara do meu
passado, a força das coisas germinou em mim, enquanto eu
assistia na TV à guerra árabe-israelense de outubro, estopim da
desagregação do Terceiro Mundo sob controle capitalista,
abusava do carinho de Sônia, de que eu necessitava
desesperadamente, mas ainda não preparado para recebê-lo, e à
noite dormia sob o refrão de minha autoria, antes motivo de
orgulho, agora de choque autocrítico: “Não tenho onde cair
morto, deixo apenas papel de jornal em que se embrulha o lixo
do dia seguinte”.

Não saí do hospital lépido, disposto de repente a uma


organização existencial da minha vida. Isso é filme de
Hollywood. Retomei o trabalho, os mil free lances de que vivia.
Nunca o interrompi, aliás. Antes da operação que poderia, na
biopse segunda e terceira, me condenar à morte, preparei
adiantadas as colunas diárias da Tribuna da Imprensa,
reportagens de Visão, artigos de Status, etc. O business
continuou as usual, quase. Uma noite consegui chorar a morte
de Adolpho, convulsivamente e com força que até me
surpreendeu. Descobri que precisava de Sônia
permanentemente, o que terminou em casamento.

As formulações políticas escritas aqui já fermentavam no


Brasil, em 1967-1968. Nos anos de EUA, a experiência, o
acesso ao centro do poder e da cultura me mostraram, em longas
horas de conversas e leituras, e também pelo que via e sentia,
complexidades que, se tive consciência delas, nos tempos de
jornalista “quadro”, e tive, afastava-as como o cristão tentado
que brada: “Atrás de mim, Satanás”. O que me faltara antes era a
coragem moral de pôr no papel a situação clara, de um mundo
rico e casa-grande, dos EUA à URSS, e o mundo senzala, numa
interdependência inextricável, em que os dependentes têm duas
saídas: a soviética, a ferro e sangue, enfrentando isolamento por
tempo indeterminado, usando métodos que se tornariam iguais
aos fins, pois de uma violência que se institucionaliza, se por
mais não for em autodefesa, temendo retribuição; e tamanha a
pobreza desses dependentes, tamanha a rabeira industrial,
tecnológica e cultural, que só lhes restaria atrelar-se em nova
dependência à superpotência oposta à derrotada
revolucionariamente; isso, ou a tentativa de regresso a um
comunismo primitivo, agricultural, de subsistência, rejeitando a
revolução industrial, o que é fantasia. E me pergunto se o Brasil
revolucionário, sob a tutela da URSS, não levaria os EUA à
guerra nuclear, ditada, apesar de suicida, por imperativo
geopolítico e militar-estratégico. Gore Vidal acha que sim. Eu
também.

Não estou propondo que chafurdemos na dependência.


Proponho, isto sim, que a esquerda brasileira, a que pensa, não
imagine, do gabinete, que o povo brasileiro é remotamente
semelhante ao vietnamita, uma nação milenar de guerreiros, cuja
infantaria, segundo os generais franceses que a combateram, é
melhor que a prussiana na Primeira Guerra.
Proponho que se abandone a ilusão que as companhias
estatais e os grupos financeiros brasileiros são mais que duas
partes do tripé que garante a um por cento dos privilegiados 60
bilhões de dólares, ou 1/4, do nosso PIB, criando um câncer,
uma “Bélgica” dentro da nossa “índia”. O Brasil precisa antes
de uma revolução burguesa e liberal, iniciada em 1930 e
abortada em 1937, revolução que crie uma sociedade civil no
país, que se inicie pelas garantias constitucionais dos direitos
elementares de que já gozam os cidadãos das desprezadas e
“conciliatórias” democracias burguesas, inclusive o direito à
sindicalização e à greve. O resto é impraticável, a médio prazo.
O que está nesse parágrafo seria o início da nossa entrada no
século XX. Continuamos no XIX, não só nas atitudes recíprocas
da classe dirigente e dos que as contestam, mas em alfabetização
social. Quando comparo o Brasil aos EUA, concluo que os
negros aqui, a verdadeira subclasse americana, têm mais direitos
que 90 por cento dos brasileiros, independente de cor, credo ou
sexo.

Desejo boa sorte aos que gostam de política e às novas


gerações, ou remanescentes da minha, que caiam na realidade.
Quanto a mim, procuro recriar em literatura o que
experimentamos, o grupo que me fez, saciando o último desejo
infantil que me resta. Jornalista, continuo atirando no escuro
donde saem as feras, esperando acertar algumas. Agora, não
quero enganar a ninguém. Vejo esse trabalho em termos
internacionais. Português é minha língua, nasci no Brasil, os
amigos estão lá, etc., etc., e espero ser enterrado onde nasci,
“revertendo a meu lugar”. E só.

Vejo a Nicarágua, Brasil, EUA e URSS dentro de um


prisma único, do humanismo apátrida de que ajudo a segurar a
tão ultrajada bandeira. Está em frangalhos a bandeira, mas
sempre tive um fraco por causas perdidas. Seguro e defendo os
trapos enquanto seu lobo não vem. Desejo mais. Não faço por
menos.

Exagerei talvez a aridez emocional da minha vida antes da


maturidade de hoje. Me ficou o gosto bom do companheirismo
de Marcelo Aguinaga quando pintávamos o sete na
adolescência, uma louca sanidade na nossa prisão provinciana.
As noites de desespero de 1964, que Antônio Maria, Ivan Lessa
e eu partilhamos, convertendo em alegria, ou sobrevivência, se
preferirem, à custa de riscos à nossa saúde. A insistência de
Sérgio Porto nessa alegria “contra todas as apostas”, na última
noite que o vi, na varanda do Antonio’s, me pedindo loucuras,
quando mal podia respirar, loucuras que rejeitei, mas
embasbacado diante da coragem. Maria e Sérgio tinham uma
capacidade de viver que me deixa humilde. Sim, amei, fui
amado, humilhei e fui humilhado. Quem não? Respondo: votam
em Ronald Reagan, votaram em Carlos Lacerda, em 1960. Se
enganaram quanto a Lacerda, governador desenvolvimentista, o
que mais construiu na cidade, dentro do possível e das
limitações do sistema, sem abandonar a retórica de direitismo
extremado. Conheci-o um pouco vivendo os anos de terrível
ironia, quando tudo que pregara aconteceu no Brasil,
marginalizando-o, enquanto, no sistema que condenou, atingiu
os pináculos. A História trata cruelmente os candidatos a
Prometeu, o que já sugeri em relação a Lênin, Trótski e Hitler.
Carlos não dava pena. Era inteligente demais para isso, tinha
charme até em excesso. Me pergunto se entendeu o destino dele.
Se entendido, morreu tranqüilo. Foi o que lhe desejei, ao saber a
notícia.

Lembro as noites acordadas em que Ivan Lessa e eu


discutimos tudo, ou assim imaginávamos, explicando tudo, ou
tal imaginávamos, compreendendo tudo, imaginamos, tudo
imaginado menos que essencialmente nos consolávamos um ao
outro do isolamento claustrofóbico em que vivíamos do Brasil
horrível. A luta frenética de Millôr Fernandes, cheia de sátiras
autodepreciativas, de entrelinhas irônicas, por manter uma
identidade que não se deixe avacalhar na corrupção ou se perca
no conforto conformista dos rinocerontes. As guerras verbais
ideológicas vis-à-vis Ênio Silveira e companheiros, as
comparações de notas que outro isolado e meu companheiro,
Cláudio Abramo, promovemos, sem a regularidade que
desejaríamos, me deram a indispensável, porque sempre
ameaçada, consciência de que existe vida política inteligente no
Brasil. A serenidade e solidariedade de Jorge Zahar, que nunca
nos fala do que vai mal na vida dele, e que se solidariza conosco
nas minhas besteiras, tentando corrigi-las. É homem cuja editora
é a universidade que ainda não existe no Brasil, trata a todos
democraticamente. Se não aprendi a viver, não foi por falta de
bons professores.

Preservo na memória até o fogo de palha de jornal; queima


rápido mas intensamente. É um prazer no Brasil oprimido ter
escrito o editorial do Correio que sugeria ao marechal Castelo
Branco onde enfiar o papelucho hitleriano da lei de segurança
nacional. Ou, ainda em editorial, o espanto deste ateu em face da
audácia social da encíclica O progresso dos povos, em que o
pêndulo da salvação pela fé (São Paulo) uma vez volta a São
João Apóstolo, também (a salvação pelos atos). Escreveria três
livros maiores que este com momentos semelhantes.

Lamento as amizades reais que perdi, pois continuo


gostando pessoalmente dos amigos afastados por divergências
irreconciliáveis. Das gafes e crueldades públicas, ao menos, à
parte a vergonha, aprendi que, antes de ditar regras sobre o
irracionalismo do próximo, eu deveria examinar o meu próprio...
Lamento também não ter sido mais paciente e compreensivo em
face de gente que não se podia defender da minha mão, língua,
ou Smith-Corona elétrica. Reconheço: sou um cristão manqué,
se fixaram em mim os aspectos fraternais da fé em que não
posso racionalmente crer. Esse cristianismo, legado dos
beneditinos e de alguns jesuítas, é um sonho. Acordei. Me
pergunto se não era melhor continuar dormindo.

Fiz tudo, errado ou certo, na hora certa. “Não há, por


exemplo, aquele perigo que ronda os coroas de tentar reverter à
baderna da juventude, porque deixaram a juventude passar em
convencionalismo e conformismo. Alguns anos de Marcelo,
Fernando e Cia. valeram vidas, que, fosse eu da classe “errada”,
não teria estado preso apenas por resistir aos neoxavantes do
obscurantismo 1964-...

Acho que não preciso repetir onde está meu coração


político. A cabeça se libertou das simplificações e paliativos, das
certezas de manual. Examina e se auto-examina constantemente.
É meu inferno e delícia, minha única justificativa plausível de
alegar que evoluí dos macacos. Aceitos os riscos e incertezas
dessa liberdade, essencialmente modesto, pois me acho disposto
a aprender do que ou de quem me persuadir. Ainda que sozinho
continuarei assim, mas sei que estou muito bem acompanhado.
FRANZ PAULO TRANNIN DA MATTA HEILBORN, OU
PAULO FRANCIS, nasceu em 2 de setembro de 1930 no Rio de
Janeiro. O jornalista que maior influência exerceu na formação e
na conduta política e cultural do intelectual brasileiro era
descendente de alemães e freqüentou escolas de elite do Rio. Em
1952 abandonou o curso da Faculdade Nacional de Filosofia e
ingressou no Teatro do Estudante do Brasil como ator. Paschoal
Carlos Magno, diretor da companhia, cunhou o pseudônimo de
Paulo Francis e o levou em uma tournée teatral pelas regiões
Norte e Nordeste do país, onde o contato com a miséria e o
atraso do Brasil profundo viria a marcá-lo perenemente. Por essa
época, Francis se tornaria um trotskista convicto. Entre 1954 e
1957 estudou literatura dramática na Universidade de Columbia,
nos Estados Unidos, e ao regressar ao Brasil começou sua
carreira jornalística no exercício da crítica teatral, primeiramente
na Revista da Semana, depois no Diário Carioca. Praticou uma
crítica militante e defendeu uma dramaturgia de vanguarda, livre
de estrelismos e concessões comerciais. Em seguida passou ao
jornalismo político nos jornais Última Hora e Correio da
Manhã. Esteve entre os primeiros editores da mitológica revista
Senhor e editou ele mesmo a revista Diners, a primeira e talvez
até hoje melhor custom magazine do país. Esteve entre os
fundadores de O Pasquim, em 1969, o tablóide semanal que
renovou a linguagem da imprensa brasileira e liderou a imprensa
alternativa, de resistência, durante a ditadura militar. No ano
seguinte, depois de quatro prisões e da censura sistemática a
seus escritos, mudou-se em definitivo para os Estados Unidos e
casou-se com a jornalista Sonia Nolasco. Em 1975, a convite de
Cláudio Abramo tornou-se articulista exclusivo da Folha de S.
Paulo e começou aí sua famosa coluna Diário da Corte, “um
esquisito buquê de crítica literária e artística, análise política,
palpitologia econômica e saborosa psicanálise de amigos e
inimigos”, segundo a crítica a favor. A coluna viria a servir de
norte político e cultural para gerações de leitores, e para a
geração de jornalistas que, desta vez em São Paulo, iniciaria um
novo movimento de renovação da imprensa brasileira, Francis
tornou-se o maior modelo e influência. Em 1990 ele levou a
coluna para O Estado de S. Paulo e O Globo, em uma transação
de repercussão só comparável às transferências de craques do
futebol entre grandes clubes. Francis era também, então, uma
das mais marcantes personalidades do jornalismo na televisão
brasileira, um diferencial ruidoso, na inteligência e na crítica, a
romper a apatia dos telejornais. Com o advento da Globosat
juntou-se ao time de Manhattan Connection e ajudou a criar o
mais movimentado e interessante programa de idéias da
televisão brasileira. Publicou dois livros de memórias, O afeto
que se encerra e Trinta anos esta noite; os romances Cabeça de
papel, Cabeça de Negro e Filhas do segundo sexo e inúmeras
coletâneas de artigos. Foi um jornalista de opinião, homem
marcado pelos acontecimentos, que passou "do trotskysmo
idealista da juventude para as ilusões perdidas da idade madura”
-mas conservou até o fim o mesmo retrato de Trotsky na parede
em frente à escrivaninha de trabalho, à altura do olhar. Morreu
no auge da carreira e da influência, em 5 de fevereiro de 1997,
de um ataque cardíaco.
PAULO FRANCIS
O AFETO QUE SE ENCERRA
Memórias

ISBN 978 85-89362-71-9


EDITORA FRANCIS
capa: TONY RODRIGUES
imagem de capa: MUSEU METROPOLITANO DE ARTE MODERNA -
RJ.
© JOSON/ZEFA/CORBIS/LATINSTOCK

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em qualquer forma ou meio, seja mecânico ou eletrônico, por
fotocópia, gravação etc. sem a permissão por escrito da editora.
1ª edição pelo selo Francis, maio de 2007
Capa e diagramação: Tony Rodrigues
Preparação: Maria da Graça Mendonça Couto e Francisco José
Mendonça Couto
Revisão: Bruno SR e Ceei Meira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
_____________________________________________________________
Francis, Paulo
O afeto que se encerra : memórias / Paulo
Francis. — São Paulo : Francis, 2007.

ISBN 978-85-89362-71-9

1. Francis, Paulo, 1930-1997 - Memórias


2. Literatura brasileira I. Título.

07-1707 CDD-928.69
_____________________________________________________________
índices para catálogo sistemático:
1. Francis, Paulo : Memórias : Literatura brasileira 928.69

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EDITORA FRANCIS, OUTONO de 2007.

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