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08/02/2020 O POETA NO CINEMA BRASILEIRO – CineCachoeira

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O POETA NO CINEMA BRASILEIRO

ANO IV N 7 2014 DOSSIÊ ANO IV N 7 2014 OUTROS ARTIGOS

O POETA NO CINEMA BRASILEIRO JOANNE LABIXA ENIGMÁTICA:


16 SETEMBRO 2014 GUILHERME SARMIENTO CAMP COM ORGULHO
MAYA DEREN E O MOVIMENTO
CRIATIVO NO/DO CINEMA
ELEONORA E CHAYA
NADANDO CONTRA A MARÉ DO
RACISMO
ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD

Por Guilherme Sarmiento

Houve uma época em que a poesia era maior do que o poeta. Ela era
tão maior que seu criador desaparecia no ato de uma fala, de uma voz,
sempre reencarnada, ao preço de apagar o nome dos que a proferiam
seguidamente. A fluência e a musicalidade das estrofes passavam
pelos rapsodos como a água levada por um riacho: elas chegavam até
ele em função de um acidente, de um desvio, não raro, de um brusco
declive que entornava parte da corrente em sua perplexidade e o fazia
declamar como se não pudesse mais conter seu transbordamento. A
isso chamavam – e chamamos – de inspiração. Roger Chartier, em seu
ensaio Formas da oralidade e publicação impressa, comparou muito
bem a “Ode”, o canto ritual declamado nos banquetes dos deuses, a
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“um arrebatamento” que se exauria no presente, um acontecimento


fugidio pelas constantes reinvenções da oralidade e, por isso, um
substrato muito rarefeito para o apoio de uma assinatura. Se hoje
vemos o “vate”, o poeta, como alguém original, devemos isso ao
romantismo. E, sem dúvida, quando observamos com atenção a
maneira como o poeta vem sendo representado pelo cinema
brasileiro, observando  filmes marcantes de sua cinematografia,
veremos que sua estampa deve mais aos casacos puídos de
Baudelaire, recortados sob os linóleos de uma taberna imunda, do que
à etérea, quase indivisível, figura de Hesíodo em meio à opressão do
cosmos.

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,


Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro,


Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas;
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva


Nas cavernas do peito sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam
Nos reflexos dos bailes fascinantes.

Álvares de Azevedo, expoente máximo do romantismo no Brasil, detém


o poder de uma cartilha onde se funda um repertório posteriormente
aproveitado por inúmeros cineasta brasileiros modernos e
contemporâneos. Como não ver neste despojamento orgulhoso e
independente, neste feliz passeio pela sarjeta, o modelo de uma
postura de vida presente tanto na caracterização de Zizo, de A febre do
rato, ou Torres, de Alma corsária? Castro Alves, personagem da
cinebiografia de Sílvio Tendler, extraiu diretamente da fonte romântica
aquilo que outros filmes reproduziram ao projetar no presente os
conteúdos legitimadores do heroísmo do poeta, condutas capazes de
satisfazer as expectativas do público com relação a seu estar no
mundo: inconformismo. Dentro desta perspectiva de construção
exemplar, paradigmática, fica difícil assumir as honrarias adquiridas
com a escrita, ou mesmo a inércia prevista no ato, sendo pouco
provável a representação de poetas cujas vidas transcorreram
encerradas nos gabinetes, polindo seus versos simplesmente para fins
estéticos, ou totalmente satisfeitos com seus Jabutis expostos em
meio às poltronas e aos abajures da sala de jantar. Olavo Bilac teria
poucas chances de protagonizar um longa brasileiro a não ser como
um antipático e pomposo antagonista, martelando seus broches no
brejo das letras, enquanto, antes da chegada das chuvas, o girino
modernista tornava-se sapo, de um pulo, para desacatá-lo:

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
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Aos pulos, os sapos.


A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,


Berra o sapo-boi:
– “Meu pai foi à guerra!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.

Com esses versos, Manuel Bandeira sela de forma definitiva a atitude


irônica do poeta diante da tradição parnasiana e, certamente, esta
impostura se somará ao legado romântico, bronzeando sua palidez
tuberculosa nos piqueniques à beira mar e na saída dos blocos
carnavalescos sem, contudo, tranquilizá-lo diante de uma missão literária
e ideológica sobre humanas. Esse romantismo mitigado pela verve
modernista parece ser a matriz de nosso desconsolo poético. Não é
coincidência o fato de Joaquim Pedro de Andrade iniciar sua carreira de
cineasta dirigindo um curta sobre, justamente, seu padrinho, O poeta do
castelo – Manuel Bandeira – e, posteriormente, encerrá-la com a
cinebiografia de Oswald de Andrade no irregular O homem do pau
brasil. Acompanhamos com esses dois exemplos, cada um colocado em
um extremo de sua trajetória artística, o percurso de uma identidade
intelectual e afetiva crescentes com o modernismo, retirando a
experiência romântica do seu isolamento monástico inicial para jogá-la
no erotismo ostensivo e transgressor que, ainda assim, não esconde do
público os motivos de uma filiação já bem sedimentada. A personalidade
controversa de Oswald em O homem do pau brasil desdobra-se na
interpretação de dois atores, Flávio Galvão e Ítala Nandi, espelhando
uma personalidade duplicada, cindida por forças diametralmente opostas,
uma encenação tipicamente romântica por recorrer de forma original ao
tema do duplo, na verdade, um duplo carnavalizado, com objetivos
menos sinistros se comparados aos clássicos da literatura fantástica como
Dr. Jekill e Mr. Hyde, de Stevenson, ou as criaturas saídas dos contos de
Hoffmann. Porém, isso não quer dizer que o recurso aqui tenha apagado
certos conflitos de ordem ideológica referentes a estas escolhas
estilísticas que, no fundo, servem para “alegorizar” a postura do
intelectual diante dos desdobramentos da história.

Marginais, transgressores, originais: estes são os adjetivos que ajudam


a construir o perfil deste ser onde a vida e a arte se conjugam e o
conflito se dá sempre de forma grandiosa, grandiloquente, pois o
poeta no cinema brasileiro, mais do que qualquer outro personagem,
adquiriu seu semblante taciturno ao concentrar em si tanto os dilemas
envolvendo as implicações entre arte e indústria, importados dos
países imperialistas, como os nascidos das contradições de uma
cultura pós colonial e em constante embate com sua matriz européia.
Esse aspecto dilacerante de seu caráter impede-o de experienciar o
simples entusiasmo de se alçar acima da História e, conforme a
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necessidade do próprio ato que professa, ser atravessado por um raio


cuja origem se perdeu para além do tempo. Necessariamente, o poeta
jamais pode abdicar de sua atribuição primeira, ou seja, agir sobre o
mundo e, de forma inequívoca, ser o porta-voz de um discurso
esgarçado por uma expectativa irremediavelmente frustada. Talvez o
exemplo mais bem acabado deste personagem esteja em Terra em
transe, de Glauber Rocha. Paulo Martins, seu protagonista, declama
monólogos shakespearianos sondando sua amargura justamente por
servir ao populismo tecnocrata quando, como poeta, deveria cantar a
liberdade. E em nome deste ideal que na contemporaneidade deixa de
ser algo transcendente, ontológico, e passa a reivindicar seu estatuto
de corpo, Zizo, de A febre do rato, acaba devorado pelo esgoto de
Recife, nu, sacrificando sua vida num ato libertário, como um Cristo do
mangue.

Este microcosmos onde se dá o choque de forças antagônicas


monumentais, lugar ocupado pelo poeta, torna sua figura expressiva
de contradições socio-econômicas mais amplas e, por isso, no rastro
de sua agonia individual fica impresso o desconforto de toda uma
geração. Algo em sua caracterização lembra o “herói mediano” que
George Lukács – e a citação de Lukács aqui também não é uma mera
formalidade – denominou ao identificar a composição actancial do
romance histórico clássico. Esta personagem, geralmente um homem
comum ao invés de uma figura expressiva hierarquicamente, cumpre o
papel de uma célula, uma mônada, dentro da qual pulsam
determinados conteúdos que impõem sua natureza bipolar,
conduzindo-o em zigue-zague pelos espaços articulados com a
manutenção da tradição e por aqueles onde se trama sua derrubada.
Ao tempo que observa de perto a manipulação dos poderosos para
manter o poder, sofrem diretamente os movimentos da insatisfação
popular, costurando com suas andanças o mosaico de forças sociais
que, segundo essa teoria literária, seriam a motriz da História e o
modelo energético ideal para a elaboração de uma épica elaborada
por esse percurso de natureza cronológica. Tais marcações firmam-se
com maior nitidez quando colocadas sobre períodos de transição, e,
geralmente, a voz de um vate soa muito mais altissonante desde este
nicho predestinado aos mártires de seu tempo – aqui se deflagra o
quanto podem (e devem) ser incompreendidos e sacrificados.

Os poetas no cinema brasileiro, portanto, sempre estão em “transe”,


mas na sua acepção original latina, transire, ir através, cruzar,
atravessar. Condenados a seguir o fluxo articulado pelo materialismo
histórico, onde o atrito da burguesia com o proletariado produz a
ignição da narrativa dialética, o literato conduz sonambulicamente
pelas marginais os despojos da catástrofe sem, contudo, ter um plano
preciso para reencaixar as peças e fazer a máquina voltar a se
locomover. Mesmo personagens extemporâneos a esse dilema, como
Gregório de Mattos, poeta baiano do século XVIII retratado pela
cineasta Ana Carolina, comporta-se como um flaneur desviando-se
tanto das ruínas do século XVII, sua cultura clerical, como dos projetos
malacabados da revolução pombalina, algo muito próximo do
movimento realizado por intelectuais no bojo das políticas
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desenvolvimentistas do século XX e XXI. Paulo Martins transita por um


país cujas promessas de governo popular acabaram frustradas pela
tecnocracia, assim como Torres e Zizo caminham mais a frente
circunscritos pela sufocante cultura neoliberal pós queda do muro de
Berlim. Talvez Zizo transcreva um percurso ainda mais estreito por se
ver transfigurado por um acontecimento tão chocante e definitivo
como a explosão das Torres Gêmeas, forçando-o a se embrutecer
numa utopia do passado – aquela para a qual todas as vítimas do fim
da história se dirigem quando são impedidas de sonhar –, estacionada
entre as décadas de 1960 e 1970, década, segundo esta visão
nostálgica, vivida e não perdida.

Transportado para esta zona intermediária, o herói mediano não


poderia encarar outro dilema a não ser o experimentado por aquele a
quem volta o maior desprezo, representando, com suas andanças
malequilibradas, os passos do homem de classe média, o burguês
hediondo tantas vezes cuspido pelos estrepitosos versos de
Maiakovski.

Come ananás, mastiga perdiz.


Teu dia está prestes, burguês.

Parece que o cineasta encontrou no poeta uma figura capaz de unir


cristo e judas numa só representação, ou seja, um reflexo tanto de sua
predisposição em trair o ideal para o qual foi talhado como em
suportar nas costas as chibatadas, as torturas físicas e psicológicas,
impingidas pelo sistema. Para Bernardet, a história do cinema
brasileiro moderno desenvolveu-se como a emergência de uma
consciência, na verdade, de uma autoconsciência de classe surgida
como uma chaga no interior dos próprios cineastas, cuja impotência
diante do regime totalitário forçou a exposição de uma crise
intelectual profunda, reflexiva das ambiguidades decorrentes do
entrelugar social de onde partiam suas sentenças cada vez mais
desacreditadas. E, certamente, o poeta seria a personagem ideal para
declamar, a partir desta geografia metamorfa, as dissonâncias de uma
tragédia privada e, também, ser o alter ego para que a revolta juvenil
contra o capitalismo encontrasse algum escape. Se há um princípio
lógico que une todos os diretores em torno deste arquétipo é o
princípio da identidade, a identidade autor/criatura e criatura/público,
movimentando um circuito de empatias em torno da revolta sem
revolução, do estopim surdo de um tiro sufocado, pois o poeta
romântico-modernista, este, depende de sua individualidade
perfeitamente admirável antes de ter o corpo esmagado debaixo de
uma arquibancada, ter seu perfil estampado nas camisas dos rebeldes
sem causa antes de se deixar consumir pela febre ou uma frase citada
na boca de um âncora de jornal antes de se desintegrar como poeira
de estrelas. Ou seja, o artista não quer abrir mão de seu lugar no
imaginário pequeno burguês, e a promessa de fama póstuma funciona
para ele como a última unção ao pé da cama.

Portanto, o grande paradoxo tanto para o cineasta como para seu alter
ego sacrifical é que uma das marcas do nascimento do liberalismo no
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ocidente foi deixada pela bengala de um arrivista social, de um


mercador de sonhos, capaz de, como um demiurgo, elaborar formas
para o deleite de um público cada vez mais desejoso de novidades, ou
seja, a revolta do poeta volta-se contra si ao perceber em sua
agressividade ao sistema um ato suicida – destruí-lo seria impedir que
seu nome se perpetue além do seu tempo. Existe a “imortalidade”
doada pelo sistema, a imortalidade institucional ou midiática, sem a
qual esse rapsodo já não pode mais viver. Se um dia o poeta abriu mão
da divindade a quem dedicava seus versos, foi pela permanência de
seu próprio nome sobre a terra, ainda que devastada.

Guilherme Sarmiento é Professor Adjunto de Dramaturgia e


Narrativas Audiovisuais na UFRB (Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia. Foi um dos coordenadores do 1 Festival
Brasileiro de Cinema Universitário (FBCU) e co-dirigiu Conceição Ou
Autor Bom é Autor Morto primeiro longa produzido pela UFF. Tem
experiência como roteirista de longas e curtas-metragens
cinematográficos, como Sudoeste; e a A infância da Mulher Barbada,
ambos premiados em editais ou festivais de cinema. Na UFRB, edita a
revista eletrônica Cinecachoeira e exerce a função de líder do Núcleo
de Pesquisa em Dramaturgia.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

BERNARDET, Jean Claude. Brasil em tempo de cinema. São


Paulo:Companhia das Letras, 2011.

CHARTIER, Roger. Do palco à Página – publicar teatro e ler romances na


época moderna ( século XVII e XVIII). Rio de Janeiro:Casa da Palavra,
2002.

LUKÁCS, György. O romance histórico. Rio de Janeiro: Boitempo, 2011.

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One thought on “O POETA NO CINEMA


BRASILEIRO”
1. par perfeito
10 de maio de 2015 at 13:20

Esse filme é realmente muito bom um filme que te faz pensar


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08/02/2020 O POETA NO CINEMA BRASILEIRO – CineCachoeira

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