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Witz & Agressividade

Julio Mafra*

O termo ‘chiste’ não é utilizado com muita frequência na língua portuguesa. É um


termo tomado do espanhol e foi usado na tradução da obra de Freud para o português para o
termo alemão Witz, tema de um ensaio de Freud de 1905. A língua francesa utiliza mot
d’esprit, o dito, a palavra espirituosa, o que nos oferece uma idéia melhor daquilo que se
trata no chiste. Lacan também se refere ao Witz como trait d’esprit, tirada espirituosa,
expressão que se aproxima mais ainda do que Freud propõe do Witz ‘e sua relação com o
inconsciente’ enquanto conceito. Para Lacan, o título do trabalho de Freud confirma a não
completude sexual, a ausência de rapport, de relação, no caso, entre o chiste e o
inconsciente, ou seja, não é o inconsciente, mas algo do inconsciente que vem a se
presentificar no chiste.
Tanto neste ensaio de 1905 sobre o Witz quanto em seu artigo de 1927 sobre o humor,
Freud diferencia o chiste do humor e do cômico para enodá-los. Do ponto de vista
dinâmico, Freud observa que “enquanto a gênese do chiste deve supor que um pensamento
pré-consciente é liberado por um momento à elaboração inconsciente e o chiste seria, então,
a contribuição que o inconsciente presta ao cômico; de maneira inteiramente semelhante, o
humor seria a contribuição ao cômico pela mediação do supereu”. Freud coloca o cômico,
Imaginário, como aquilo que dá consistência, no sentido de co-existência, ao humor
(Simbólico) e ao Witz – uma irrupção, um curto-circuito – que aponta para o impossível do
Real.
O cômico é quando algo cai no campo do Outro, tesouro dos significantes – como, por
exemplo, a queda do palhaço que tanto faz rir a criança – e produz algum alívio por ter
como função fazer furo neste campo (do Outro), campo que pode ser ameaçador quando se
apresenta como um todo não barrado.
Já o humor é, para Freud, um mecanismo de defesa (o mais elevado destes mecanismos)
do eu por intermédio do supereu (o representante da castração, da lei), o qual, apesar de não
deixar de cumprir sua função, apresenta-se, no humor, de modo amigável. Ou seja, o
mecanismo do humor pode ser desenvolvido, construído pelo sujeito, em análise, e implica
uma mudança de posição fantasmática deste sujeito quanto ao seu sintoma. Freud pergunta
quanto ao mecanismo do humor:
“[Mas] recordemos a [outra] situação do humor, provavelmente mais originária
e substantiva, em que alguém dirige a atitude humorística para sua própria
pessoa para defender-se deste modo de suas possibilidades de sofrimento. Tem
algum sentido dizer que (o eu) trata a si mesmo como a uma criança, e
simultaneamente desempenha frente a essa criança o papel do adulto superior?”

O eu do humorista está, então, ao mesmo tempo, no lugar do adulto e no da criança, e ri


da nulidade, do ponto de vista do adulto, do sofrimento que parece tão grande para a
criança. Tal divisão do eu ocorre no interior de uma única pessoa: o humor não necessita de
um outro para que se realize, contrariamente ao cômico, que precisa que um caia para que o

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Membro da Escola Letra Freudiana.

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outro ria, o que não é nada agradável para aquele que caiu. O humor estaria, portanto, mais
na dimensão do Simbólico – o humor, por excelência, é o que lida com a morte, o ‘humor
patibular’ – e representa não só o triunfo do eu, ou seja, do narcisismo enquanto função,
como também representa o triunfo do princípio de prazer sobre o princípio de realidade
pelo evitamento de um gasto de afeto, isto é, de angústia.
Freud também identifica diferentes risos: o chiste e o cômico produzem uma gargalhada
(no cômico, proporcional ao efeito de furo no campo do Outro e, no Witz, privilégio do
terceiro), enquanto que o humor pode restringir-se a um sorriso discreto. O escritor Mark
Twain supõe que, se há diferença entre humor e chiste, esta diferença está na duração: o
chiste é como um relâmpago enquanto que o humor é luz elétrica.
Quanto ao processo de realização do Witz, Freud diferencia os inocentes dos
tendenciosos, aos quais nos limitaremos aqui. O propósito do chiste tendencioso é, a partir
da não-realização do ato agressivo, a obtenção de ganho de prazer (Lustgewinn) pela
realização desta tendência por outros meios. Freud se refere à tendência agressiva como
hostil (de agressividade, sátira ou defesa – há risos e risos) ou obscena (ou de
desnudamento – que não deixa de ser intenção de agressão sexual). O chiste não só realiza
tal tendência agressiva pelo significante, como produz ganho de prazer ou não será um
chiste e sim outra coisa, por exemplo, um ato falho. Tal ganho de prazer é reeditado pela
necessidade daquele que produziu o chiste de transmiti-lo, fazendo laço social: além
daquele que o produz, deve haver um outro que é tomado como objeto da agressividade e
um terceiro no qual se cumpre a intenção do Witz de produzir ganho de prazer
(Lustgewinn).
Eduardo Vidal, em seu seminário de 2004, nota que o Lustgewinn, antecedente do objeto
‘a’ causa de desejo em sua função de coinçage, é o que faz a falta no princípio de prazer, o
que não é aí contabilizado, é o mais-de-gozar – plus-de-jouir, em que o plus remete tanto a
uma renúncia, a uma perda, quanto a algo a mais, a um deslizamento sustentado no objeto
‘a’ causa de desejo na medida em que o Lustgewinn é o propósito (aquilo que impulsiona
ao trabalho do chiste) e também seu ganho, seu efeito, efeito a posteriori (Nachträglich). O
termo em alemão para perda é Verlust: Lust significa prazer e o prefixo Ver é aquele
encontrado na Verneinung e nos operadores estruturais.

Bibliografia:

FREUD, S. “Os chistes e sua relação com o inconsciente” in Obras


Completas, vol. VIII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1996.

_______ "O Humor" in Obras Completas, vol. XXI, Rio de Janeiro, Imago
Editora, 1996.

TWAIN, Mark
Disponível em: http://www.great-quotes.com/quote/42203.
Acesso em 27/10/2010.

VIDAL, Eduardo A. Seminário Do “ser” do sujeito e do gozo. 1º. Semestre


2004. Lições de 11, 18 e 25 de Março.

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