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PERDÃO EMÍLIA!
TRANSMISSÃO ORAL E AURAL NA CANÇÃO POPULAR

Martha Tupinambá de Ulhôa

(In: Matos, Cláudia; Travassos, Elizabeth; Medeiros, Fernanda. (Org.). Palavra


cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, p. 249-267).

TRADIÇÃO ORAL E AURAL E O ESTUDO DA PERFORMANCE GRAVADA

Estas reflexões sobre a modinha popular gravada fazem parte de um estudo mais
amplo, o Projeto Matrizes, cujo objetivo é avaliar as matrizes musicais e matrizes culturais da
música brasileira popular, a partir de levantamento das práticas musicais do século XIX
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documentadas em jornais, revistas e memórias. Além desses documentos escritos, outra
fonte que tem se mostrado muito fértil são os discos da era de gravação mecânica. Pode
parecer estranho falar de matrizes culturais do século XIX através de gravações feitas no
início do século XX, mas aqueles fonogramas são os primeiros registros sonoros de uma
prática musical sendo feita pelos próprios músicos populares. No século XIX, músicos
letrados treinados na Europa e sem a prática da música popular de tradição oral eram quem
intermediavam o registro daquela tradição. Assim, canções populares tradicionais cantadas
nas ruas com acompanhamento de violão eram freqüentemente transcritas para voz e piano,
para uso nos salões e casas da classe média emergente da sociedade brasileira.
O estudo de canções de tradição oral do passado tem sido feito, no âmbito da
musicologia tradicional e mesmo da etnomusicologia, através de documentos escritos nos
quais tais práticas foram registradas por meio de descrições verbais ou por meio de algum tipo
de transcrição/notação/tradução. Tantas maneiras pelas quais a tradição oral pode se inscrever
na escrita revela a complexidade da questão. Um músico letrado por força educa o seu ouvido
para perceber as estruturas sonoras que aprendeu a reconhecer escritas. Quando anota música
“de ouvido” o faz através da mediação do seu treinamento, no processo acabando por
“traduzir” certos elementos estilísticos para uma linguagem mais culta. Um exemplo é o
álbum de Modinhas de Joaquim Manoel da Câmara, harmonizadas por Sigismund Neukomm
em 1824. Estas modinhas são canções da tradição oral, cantadas com acompanhamento de
violão, por um músico popular português/brasileiro, grafadas e arranjadas para canto e piano
por um músico austríaco letrado. Será que Joaquim Manoel cantava suas modinhas com a
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linha melódica ornamentada no estilo lírico clássico utilizado por Neukomm em várias de
suas composições?
Estudiosos da cultura popular, entre eles Peter Burke (1989), comentam como a
tradição oral deixa traços mesmo em documentos escritos, seja pela presença de elementos
não discursivos (como interjeições ou vocativos), seja pela presença de esquemas rítmicos
oriundos da linguagem popular (como estruturas de rima que permitem a improvisação e o
uso da redondilha). Desta maneira é possível identificar na produção de, por exemplo,
Domingos Caldas Barbosa, os indícios de que os poemas publicados na coletânea Viola de
Lereno foram feitos para serem cantados. Outro especialista em oralidade, Paul Zumthor
(1993:18), ao falar sobre os tipos de oralidade, comenta sobre essa “oralidade segunda”
resgatada com base na escritura.
Musicólogos têm recomposto um tipo de oralidade segunda em partituras de música
do passado, identificando nelas a presença de estruturas rítmicas que indicam gestos
característicos de estilos de música popular, de tradição oral (como por exemplo, as chamadas
síncopes e cesuras indicadoras de práticas fora do padrão rítmico regular europeu nas
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Modinhas do Brazil, do século XVIII). Nas gravações do início do século XX no Brasil é
possível encontrar inscrições de oralidade, especialmente nas canções de cunho mais
humorístico como os lundus e as canções usadas no carnaval. São interpolações de
expressões, falas, referências a músicos, que aparecem principalmente no repertório de
Eduardo das Neves (1874-1919) e de Bahiano (1870-1944).
A música popular urbana tem muitos aspectos característicos da oralidade, tais como
frases curtas, padrões harmônicos simples, repetições estruturais. Ou seja, ser transmitida de
forma oral e depender da memória biológica para sua transmissão impõem algumas restrições
à música popular.
“Oral” tem a ver com a palavra, tanto que o termo história oral é ligado a relatos
históricos obtidos através de depoimentos e entrevistas. “Aural” tem a ver com a escuta,
sendo um conceito adequado tanto para se referir ao campo da música tradicional, geralmente
transmitida da boca para o ouvido, quanto para indicar o campo da música eletroacústica,
onde a escuta do som altamente mediado e transformado pela máquina é central. Muitos
estudos têm sido feitos comparando a tradição oral/aural com a tradição escrita. A escrita
musical, apesar de não dar conta de todas as nuances sonoras de uma obra é, sem dúvida, uma
ferramenta de grande utilidade não só para o estudo, como também para a prática de um
repertório vasto de música, o repertório erudito de tradição ocidental.
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O estudo da música escrita ocidental é geralmente feito através de um sistema de


notação que detalha altura, ritmo, instrumentação e a organização polifônica das partes.
Aspectos tais como técnica instrumental, timbre, detalhes de tempo e dinâmica,
ornamentação, articulação, a combinação de todos estes elementos no que se chama de
expressão, bem como a improvisação, são transmitidos em grande parte de forma oral,
precisando inclusive de contato com e demonstração por um mestre especialista. Há muitos
elementos de oralidade na transmissão da música escrita em partitura, como as instruções
verbais sobre alguns aspectos técnico-interpretativos (por exemplo, instruções para tocar mais
lentamente ou mais forte) e, principalmente, instruções referentes aos estilos e técnicas
apropriadas a repertórios específicos. A transmissão aural tem a ver com a escuta do som,
como mencionado acima, com a performance “ao vivo”, mas principalmente, depois do
advento da tecnologia de gravação musical, mesmo no caso da chamada música de concerto,
com a escuta de gravações.
Como menciona Timothy Rice no verbete sobre transmissão do Grove (2001), a
gravação e transmissão através de fonogramas, rádio e televisão, áudio cassete, CD e internet
compartilham algumas características tanto da tradição oral quanto da escrita, além de
adicionarem outras qualidades. A gravação preserva o registro de uma composição musical
(como na partitura), mas vai além da notação ao transformar uma performance em texto,
deslocando detalhes antes transmitidos em ambientes restritos (oral e auralmente) para formas
físicas altamente acessíveis (associadas à notação escrita). 3
A expressão oral/aural tem sido utilizada pelos estudiosos de música de tradição oral.
No entanto, a música popular urbana difere da música de tradição oral tradicional pela
distância cada vez maior entre sua produção e seu consumo. Assim, dependendo das fontes de
dados primários de cada estudo, talvez seja prudente a distinção entre oral/aural para um
estudo das práticas musicais observadas através do contato etnográfico e aural para o estudo
das práticas musicais através da análise de fonogramas.
No caso das gravações de canções brasileiras populares do início do século XX, há
que se considerarem alguns aspectos contextuais da sua transmissão. Uma boa parte das
canções é de autor desconhecido, como se pode constatar na Discografia Brasileira 78 rpm
(Santos e outros, 1982), sendo em parte canções de tradição oral, já conhecidas no século
XIX. 4
O processo de gravação (como vimos nos depoimentos da cantora Adriana Calcanhoto
e do preparador vocal Felipe Abreu no II Encontro da Palavra Cantada em 2006) é um
processo bastante restritivo, exigindo para seu desempenho que o cantor aprenda e domine
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uma série de habilidades, sendo capaz inclusive de dar a impressão de “espontaneidade” em


condições altamente artificiais. Músicos mais acostumados com a prática da improvisação e
flexibilidade interpretativa nem sempre são bem sucedidos na performance gravada. Dentre os
cantores pioneiros do início do século XX, Bahiano foi um dos músicos que parece ter feito a
ponte ao vivo/gravada muito bem. Músico de circo e do teatro musical, não perdeu a
naturalidade ao gravar, principalmente seu repertório de lundus e cançonetas.
A transmissão aural deixa uma margem de flexibilidade interpretativa/performática
pequena, menor do que a transmissão escrita. O texto musical precisa de um músico ou grupo
de músicos para se transformar em som. Partindo da partitura e com uma bagagem
musicológica, a performance resultante pode ser re-criativa. Uma música gravada “congela”
uma interpretação específica, sendo que algumas gravações chegam a se transformar em
“tradição”, como é o caso de “Urubu malandro”, conhecida na interpretação antológica de
Pixinguinha a ponto de ele ser considerado como seu “autor”. O fato é que é difícil dar uma
interpretação muito divergente para uma música depois que aquela versão foi gravada. Nas
gravações pioneiras do início do século XX no Brasil, tem sido possível encontrar exemplos
de músicas de fato de tradição oral, reconhecíveis pela variedade de versões diferentes da
mesma canção, como “Isto é bom” gravado por Bahiano em 1902 e por Eduardo das Neves
alguns anos depois. Já em “Perdão Emília”, os elementos de tradição oral e a interferência da
mediação tecnológica aparecem de uma maneira peculiar, como veremos abaixo.

“PERDÃO EMÍLIA” – CONTEXTO HISTÓRICO

Um caso de canção popular de tradição oral registrada em disco já na primeira década


do século XX é a canção inicialmente identificada como “motivo popular” e depois como
“modinha”, intitulada “Perdão Emília”, da qual pudemos encontrar cinco versões gravadas:
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duas das três gravações da fase mecânica mencionadas na Discografia Brasileira mais a
gravação de 1945, feita por Paraguassu, além de duas paródias gravadas entre 1908 e 1913,
“Perdão Miloca” e “Perdão Candongas”, sendo que, no caso desta última, a Discografia
menciona ter sido composta por Brito. Fontes adicionais não discutidas aqui são duas
partituras da canção, uma adaptada como “baião” por João Portaro em 1956 para a Fermata
(FB 482), a outra parodiada para o carnaval de 1938 por André Filho e Antonio Almeida (E.
S. Mangione 1495). Outros documentos sobre a canção são transcrições de “Perdão Emília”
como cantada por seresteiros já na década de 1970 (Maurício 1982 e Paula 1975). Em seu
livro sobre a música popular em São Paulo na década de 1930, José Geraldo Moraes (2000)
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transcreve a letra de mais outra paródia da modinha famosa, que começa com o verso “Amor
eterno, jurou Sebastião Ramos...”
“Perdão Emília” é mencionada ao lado de “A Casa Branca da Serra”, por Luiz

Edmundo (1957: 232-4), como das modinhas mais procuradas pelos fregueses da Livraria do
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Povo de Pedro Quaresma. Quaresma, o primeiro brasileiro a entrar no mercado de música
impressa, desde 1880 vinha publicando cancioneiros com compilações de letras de modinhas,
lundus e recitativos para serem cantados ou declamados a partir de música já conhecida pelo
público, seja porque a canção era de domínio público, seja por informação de que era para ser
cantada com melodia de outra canção conhecida e indicada no cancioneiro. 7
Que música era essa que ou era da tradição oral ou tinha, de alguma maneira, chegado
aos ouvidos dos brasileiros? Que tipo de música se ouvia no Brasil do século XIX? Magaldi
(2004 e 2005) mostra que seria inconcebível pensar o Rio de Janeiro sem a presença da
cultura européia, principalmente pelo fato da cidade, além de capital do país, ter sido a sede
do império português (a partir de 1808), reino unido a Portugal (a partir de 1815) e,
posteriormente, a única monarquia das Américas (1822-1889). O filtro da música européia a
vir para o Rio de Janeiro era Paris; tudo que a burguesia parisiense consumia ao longo do
século XIX – ópera italiana, canto de salão, música sinfônica e de câmera alemã, música de
dança espanhola “exótica” – repercutia nos salões, salas de concerto e teatros cariocas. Esse
processo de transmissão era mediado por imigrantes portugueses, italianos, franceses e
alemães que passaram a ocupar posições de liderança no teatro e no negócio da música em
geral (provendo música para bailes e ocasiões sociais, além de ensinar privadamente e
instituir casas de impressão musical).
Por não serem percebidos como obras de arte acabadas e inalteráveis, especialmente
porque a percepção que os cariocas tinham da música européia era em grande parte parcial e
diferenciada, a ópera e outros produtos teatrais sendo adaptados a novas circunstâncias de
performance. As obras eram alteradas e rearranjadas de acordo com a existência e capacidade
técnica de músicos amadores e intérpretes, sendo misturadas a gêneros diferentes e
transformadas, muitas vezes, em burlescas e paródias. Por exemplo, uma das peças de sucesso
no Brasil foi a adaptação da opereta de Offenbach, Orphée aux enfers, em duas paródias:
Orpheo na roça e Orpheo na cidade. No Orfeu rural, o número de dança final do original, um
can can, é transformado num cateretê, tipo de música e dança caipira, e ainda por cima com a
denominação genérica de “fadinho” (!).
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A melodia de “Perdão Emília” não parece ser adaptação de música já existente, como
era costume acontecer com temas de óperas de sucesso (como Il Trovatore, parodiado como
O capadócio). Também não segue o padrão recorrente de estrutura melódica encontrada nas
modinhas anônimas a que temos acesso nas gravações do início do século XX. Em quê
estaria apoiado o contorno melódico da melodia? No entanto, de alguma maneira, a estrutura
melódica de “Perdão Emília” foi transmitida de forma oral, sendo gravada em 1902 e 1903
pelo Bahiano para a Casa Edison.
Foi somente ao ouvir palestra e demonstração do etnomusicólogo Tran Quang Hai
sobre a palavra falada, declamada e cantada do Vietnam que me lembrei dos inúmeros
recitativos encontrados nos cancioneiros do século XIX, inspirando a hipótese de que “Perdão
Emília” tenha surgido no contexto do teatro popular, talvez até mesmo num salão, como um
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melodrama declamado. Mas o que da declamação teatral estaria inscrito em “Perdão
Emília”? Que elementos deste tipo de oralidade emergem aqui?

O ESTUDO DA MÚSICA DE TRADIÇÃO ORAL

Ao tratar de repertórios ligados à tradição oral, os estudiosos têm se preocupado em


descrever as características marcantes dos mesmos, no intuito de tentar compreender seus
princípios estruturais. Assim são estabelecidos padrões de organização de seções, o esquema
de rima e estrutura métrica da letra, seus padrões rítmicos etc. Em relação à melodia, um dos
processos de análise mais utilizados tem sido a comparação paradigmática das várias versões
de uma dada canção. Nos estudos de repertórios nacionais de canções folclóricas, chegou-se
a considerar a existência de famílias de canções, presumivelmente derivadas de uma fonte
única, uma espécie de padrão melódico a assumir fórmulas múltiplas através de variações,
imitações e assimilações.9
O que não quer dizer que seja possível estabelecer uma “genealogia” confiável para
qualquer canção, sendo a formulação de algum modelo uma situação hipotética. Como
menciona James Cowdery (1984), ao escutar qualquer material dum dado repertório, o músico
o avalia por comparação com outros materiais ou versões, e não por confrontação com
qualquer espécie de arquétipo ancestral. Trabalhando com melodias tradicionais irlandesas,
Cowdery se distancia da noção de categoria, classe, grupo ou hierarquia encontrando, em vez
disso, princípios gerais de organização de grupos de canções, talvez mais próximos da
maneira flexível e cheia de sobreposições da prática musical popular. Assim, a noção de
matriz ou de família de canções pode ser repensada, contribuindo para uma compreensão mais
ampla do processo criativo da música de tradição oral.
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Cowdery apresenta três princípios de organização pelos quais pode-se agrupar um


repertório vasto de música tradicional irlandesa. O primeiro deles tem a ver com o
agrupamento de canções de contorno melódico semelhante, comparando-as como um todo. O
segundo princípio – de conjunção ou associação –, freqüentemente combinado ao princípio de
contorno, agrupa melodias com partes novas misturadas a partes já conhecidas, a melodia
diferente geralmente no princípio da canção e o material conhecido no final. 10
O terceiro princípio – de recombinação – trata do agrupamento de canções com
motivos ou gestos sonoros semelhantes, o contorno melódico podendo variar
significativamente. Principalmente este último princípio, que reconhece a complexidade do
processo criativo da melodia de tradição oral, traz um sentido novo para o conceito de família
melódica e uma noção mais plástica para a idéia de arquétipo melódico, admitindo a
improvisação e a criatividade individual. Neste caso, “certos gestos melódicos parecem se
agrupar não como uma cadeia fixa de eventos, mas como um sistema de potencialidades”
(Cowdery, 1984:499). O alerta de Cowdery é de que estes princípios freqüentemente se
sobrepõem, uma melodia se relacionando com certo grupo de melodias por um desses
princípios e com outro grupo por outro princípio.
A escuta preliminar do repertório disponível de modinhas de tradição oral gravadas
ainda não permite qualquer generalização. Algumas modinhas parecem ligadas a uma
estrutura tradicional (canção com estrofes de quatro versos, melodia em seqüência, clímax e
frase conclusiva, sendo que não sabemos ainda o significado da repetição freqüente do
terceiro e quarto versos); outras divergem bastante deste modelo tradicional, sendo talvez
adaptações de melodias de árias de ópera, zarzuelas ou operetas.11
Em “Perdão Emília” há, em nosso entendimento, outro tipo de relação com a
performance, no caso a declamação enfática ligada à teatralidade melodramática do final do
século XIX e início do século XX. “Perdão Emília” estaria classificada no segundo grupo de
modinhas, plenamente romântico, entre a segunda metade do século XIX e a virada do século
XX, caracterizado por “crescente dramatização”, conforme Veiga (1998:109). Poderia até ser
incluída no tipo de modinhas que ele chamaria de “dramalhões mórbidos”. De fato, o enredo
da canção é tipicamente melodramático, estando bastante afinado com as temáticas de ópera
italiana que fizeram tanto sucesso no Brasil dos oitocentos. Mas a temática moralista sobre
virtude, pureza, honra e vingança é bastante presente nos folhetins e noticiário de periódicos
do século XIX, como pudemos ver no âmbito da pesquisa “Matrizes”. Quais as características
do melodrama presentes em “Perdão Emília”?
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“PERDÃO EMÍLIA” – MELODRAMA E MELODIA

O sentimentalismo conservador e a preocupação moralizante são fundamentais no


melodrama clássico francês e não desaparecem nas modalidades, desenvolvidas tanto na
França quanto na Inglaterra, do melodrama romântico, melodrama sobrenatural e melodrama
doméstico. O último que nos interessa bastante aqui se concentra no universo de penúrias
femininas e na exaltação de valores patriarcais (Oroz 1992:17-20). 12
O cenário da canção é o cemitério quando, no meio da noite enluarada e silenciosa,
entra um vulto de negro que se curva num sepulcro e pede perdão a Emília por ter-lhe
“manchado os lábios”, roubando-lhe assim a vida. Eis que Emília (ou é a consciência do
personagem masculino?) responde lamentando ter se deixado apaixonar pelo “monstro tirano”
e afirmando a vingança inevitável pelo crime da sedução e abandono. O desfecho é
dramático, com a aurora encontrando o corpo inerte do vilão sobre a tumba – não se sabe se
morto ou desfalecido, talvez pelo remorso e pela culpa (a letra diz que está a “dormitar”). 13
No Brasil, como em toda América Latina, o melodrama sempre fez sucesso, desde sua
introdução por João Caetano dos Santos (1808-1863) no século XIX, numa tradição que
continua nas variantes do folhetim nos jornais, na radionovela, no cinema e na televisão com
a telenovela.
Talvez seja esse viés melodramático, especialmente do mote “perdão para um
desgraçado!”, um dos grandes atrativos que ecoaram em tantas paródias e versões para
“Perdão Emília”. 14
Entretanto, um elemento que chama bastante a atenção é a estabilidade da linha
melódica da canção. Como observamos acima, o uso de material existente na canção
tradicional é bastante recorrente, mas em geral, os contornos melódicos têm variações
significativas, o que não acontece nos exemplos discutidos aqui.
Adicionalmente, é interessante observar que o contorno melódico de “Perdão Emília”
é razoavelmente diferente do das modinhas tradicionais gravadas no início do século XX.
Como foi dito acima, uma hipótese é que a canção seja uma repercussão da prática teatral não
só na sua temática, mas também no estilo de performance da declamação dramatizada.
Encontramos algumas informações sobre a declamação na quinta das Lições
Dramáticas, publicadas inicialmente em 1862, como ampliação de Reflexões Dramáticas, de
1837, do mencionado João Caetano dos Santos.15 Para o grande ator:

Conheço que o gênero da tragédia é, sem dúvida nenhuma, um tanto ideal, pela linguagem
versificada e pomposa: seja, pois, também um pouco ideal a maneira de a dizer, porém
sempre nobre, revestida de dignidade, sem estilo empolado; mas também sem trivialidade,
linguagem que habitualmente convém aos personagens trágicos, devendo-se-lhes dar
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sempre uma energia sustentada, e uma largura proporcionada, porque a tragédia dita com
muita simplicidade e singeleza deixa de ser verdadeira. Quanto mais a ação tende à
dignidade e nobreza, mais deve ser tomada de um estilo fora do comum.
Persuadem-se muitas pessoas que declamar é falar gritando, e os exemplos comprovam o
contrário; porque não é a força da voz que forma a declamação, mas sim a maneira de
produzir os sons, sobretudo a freqüente recaída deles nos intervalos da mesma espécie.
(...) declamar não é falar gritando, mas sim dizer tudo, cantando em dois ou três sons
cadenciados a certo compasso.
É indispensável falar com nobreza, mas não com uma uniformidade chocante. (...) Os
versos têm uma medida uniforme; mas como eles mudam a cada instante de pensamento e
de sentimento, da mesma maneira a cada momento é preciso variar de tom (Caetano dos
Santos, 1956: 33-37).
É possível que o contorno melódico de “Perdão, Emília” seja uma “transcrição
musical” da inflexão da declamação melodramática. Não a inflexão da fala, que traz
naturalidade à canção -- a voz que fala por trás da voz que canta, como diz Tatit (1996). Seria
mais a inflexão trágica de que fala João Caetano. Pois as inflexões da fala do ator, segundo
Lília Nunes:

(...) são modulações da voz que se eleva ou se abaixa, quando expressamos o nosso
pensamento. (...) constituem a música das palavras. (...) A série de notas musicais que
constituem uma inflexão pode ser uma cadência ascendente, descendente ou direta. (...)
Numa só palavra e nas frases curtas a voz sobe ou desce; nas frases mais longas descreve
curvas. As inflexões ascendentes traduzem interesse, curiosidade, entusiasmo ou cólera; as
descendentes indiferença, desdém, raiva; e as diretas, sentimentos tranqüilos ou
enunciações. (...) Para ressaltar as inflexões servimo-nos de acentuações em determinadas
consoantes, das palavras de valor, da pontuação, das pausas e dos processos do (sic)
ênfase. (...) Toda frase falada descreve uma curva melódica e não há uma inflexão que não
seja musical (Nunes, 1973:107).
Adriana Calcanhoto, na sua intervenção durante o II Encontro da Palavra Cantada, ao
ser perguntada sobre seu processo de composição em parcerias com poetas ou ao musicar
trechos de prosa, menciona que concebeu a melodia de um texto do poeta Waly Salomão ao
ouvi-lo declamá-lo pelo telefone. Em outra resposta para pergunta semelhante, comentou
que, partindo da letra, presta atenção nas acentuações. Ou seja, ela mantém a prosódia natural
da letra, o esquema rítmico do verso que é, em última instância, o elemento “musical” que
distingue a poesia da prosa. 16

Não estou me referindo aqui à inscrição da entonação da fala cotidiana no contorno


melódico das terminações de frases melódicas (tonemas), um dos elementos responsáveis pela
sensação de “naturalidade” da canção, descrita por Luiz Tatit, mas à declamação teatral do
texto poético, elemento que mais se aproxima do que ele chama de tensividade passional, o
aumento de freqüências (altura) materializando o aumento de densidade emocional ligada à
disjunção amorosa. Ou seja, o contorno melódico de “Perdão Emília” não mostra uma voz
10

que fala por trás da voz que canta, mas uma voz que declama enfaticamente. É a “música” da
declamação, ou seja, o contorno melódico retórico da recitação exaltada. Mas passemos à
comparação das versões e paródias de “Perdão, Emília”.

“PERDÃO, EMÍLIA” – VERSÕES, PARÓDIAS E PERFORMANCE

Inicialmente, algumas observações sobre a letra que, por razões de espaço, só


discutimos nas estrofes iniciais até o aparecimento do mote “Perdão...”. As versões de
“Perdão, Emília” são semelhantes, com apenas algumas variantes pequenas de letra. A
diferença significativa aparece na gravação de Paraguassu, que suprime as estrofes onde
Emília reclama ter perdido a virgindade, crime sem perdão, recebendo as zombarias do traidor
que julgara ser um anjo. Este corte se explica pelo estilo da versão, num contexto de
performance da seresta, onde modinhas “antigas” são relembradas de maneira nostálgica,
despidas de elementos mais rústicos.

É na comparação entre original e paródias que emerge um aspecto bem interessante.


Como podemos ver no quadro comparativo entre “Perdão Emília”, “Perdão Candongas” e
“Perdão Miloca”, os valores judaico-cristãos são ridicularizados deixando ver um pouco do
humor popular carnavalesco e grotesco, bem no espírito descrito por Bakhtin no seu estudo
sobre Rabelais (1984). A estrofe inicial apresenta um cenário noturno e deserto. A segunda
estrofe introduz o personagem vilão, o cemitério sendo trocado pela despensa em “Perdão
Candongas” e pelo galinheiro em “Perdão Miloca”. Ao chegar ao palco da ação, o vilão ou se
coloca como arrependido, ou “entra na carne seca”, ou “chupa devagar os ovos”. Ou seja, em
vez da moralidade pequeno-burguesa o humor grotesco, de duplo sentido. Na terceira estrofe
a descrição do caráter do personagem central da canção que, apesar de se dirigir a um
personagem feminino, está de fato falando de si mesmo e dos seus valores.

Como guia para o leitor, apresentamos a transcrição do contorno básico de “Perdão


Emília”. As outras versões, bem como as paródias podem ser escutadas no sítio do Instituto
Moreira Salles, onde se poderá observar que as variações individuais das interpretações não
comprometem a identidade da canção.
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Quadro comparativo de estrofes iniciais de “Perdão Emília” e paródias.

PERDÃO CANDONGAS
PERDÃO EMÍLIA PERDÃO MILOCA
Caia a noite já lavara os pratos
Já tudo dorme, vem a noite em meio, É madrugada, já cantou o galo,
A pia limpa ressurgia além
A turva lua vem surgindo além, A luz do sol já vem surgindo além
E a pobre moça estava ali pensando
Tudo é silêncio, só se vê na campa Tudo é barulho mas eu desconfio
Que na cozinha não entrou ninguém
Piar o mocho no cruel desdém. Que lá por dentro não está ninguém
Mas nisto um gajo de camisa suja
Depois um vulto de roupagem preta, Mas nisso um tipo de farpela branca
Pela despensa com vagar entrou
No cemitério com vagar entrou, No galinheiro assustadiço entrou
Por entre as coisas que encontrou no
Junto ao sepulcro se curvando a meio, Junto às galinhas se curvando ao
meio
Com tristes frases nesta voz falou: meio
Na carne seca com vontade entrou
Uns quatro ovo com vagar chupou
Perdão, Emília se roubei-te a vida,
Perdão Candongas que se foi à tarde,
Se fui impuro, fui cruel, ousado! Perdão Miloca, se roubei teus ovos,
Se tem comido um bacalhau danado
Perdão Emília, se manchei teus Se fui malandro muito esbodegado
Perdão Candongas se esganei teus
lábios, Perdão Miloca, se deixei as cascas
beiços
Perdão Emília, para um desgraçado. Perdão Miloca para um desgraçado
Perdão Candongas para um desgraçado

A seguir, faremos uma análise comparativa da performance de três versões de “Perdão


Emília”, a do cantor de ópera Mário Pinheiro (c. 1907-12) e do seresteiro Paraguassu (1945),
e a paródia gravada pelo cançonetista Bahiano, intitulada “Perdão Candongas” (c. 1912-13).
Mário Pinheiro (1880-1923) tentou cantar no circo, mas com a projeção vocal de sua
voz de barítono e dicção clara, se adaptou melhor à gravação de canções e também a uma
carreira na ópera. Da sua discografia de 369 registros, a maior parte foi gravada entre 1904 e
1912. Depois disto reaparece em 1917, quando grava 33 canções até 1918. Bahiano, Manuel
12

Pedro dos Santos (1870-1944), fez inúmeras gravações históricas para a Casa Edison,
incluindo “Isto é bom” (1902) e “Pelo Telefone” (1916). Como cançonetista, participou do
Teatrinho do Passeio Público e no Circo Spinelli. A sua discografia de 399 itens, gravados
entre 1902 e 1924 testemunha uma carreira longa e bem sucedida. Proporcionalmente, gravou
menos que Mário, o que é explicado pelo fato de que trabalhava muito também no teatro e no
circo. Paraguassu, Roque Ricciardi, (1894-1976) fez sucesso cantando modinhas, serestas e
toadas sertanejas. Gravou “Perdão Emília” para a Columbia em 1945, acompanhado pelo
Conjunto Rago. 17
Inicialmente, observamos que as duas versões de “Perdão Emília” refletem bem o
estilo característico de cada cantor, o de ópera/salão e o de seresta. Mário acelera durante a
gravação, começando num andamento de 87 pulsos por minuto (ppm) e terminando a canção
a 112 ppm! Sua interpretação pouco enfática se restringe a fazer o registro da canção em
disco. Com uma impostação vocal lírica, faz uma apresentação que remete a um recital de
música de concerto (ou de salão), o que é reforçado pelo acompanhamento de piano. A versão
de Paraguassu está num andamento moderato, cerca de 70 ppm. Seu estilo de cantar é um
tanto estereotipado; faz respirações antes de completar os versos, demonstrando uma atitude
mais ligada à música que ao texto da canção (Já tudo dorme, / vem a noite em meio // Perdão
Emília, se manchei / teus lábios, //Lá nesse mundo em que vivi / chorando, // Mas eis que um
corpo resvalando / à terra). O acompanhamento é típico da seresta, com instrumental variado
(clarinete, flauta, violões, acordeom, pandeiro) usando os contracantos e conduções do baixo
(baixaria) característicos do choro.
Já Bahiano, talvez por sua carreira de cançonetista, acostumado à atmosfera bem-
humorada das revistas e burlescas do teatro, canta “Perdão Candongas” com espírito,
utilizando seu estilo rasgado para expressar a comicidade da situação. Além disso, há uma
diferença sutil do contorno melódico que expressa ironicamente a crítica à moralidade
patriarcal da versão original. As frases cantadas por Mário Pinheiro e Paraguassu são em geral
onduladas, numa lógica mais “musical” em termos de direção do contorno musical e ritmo da
articulação das palavras. Já Bahiano (seguindo talvez a interpretação de João Barros para
“Perdão Miloca”) interpreta cada verso com sutileza (os outros dois não têm este cuidado).
Abaixo, apresentamos uma tentativa de representação para o contorno melódico da estrofe
Perdão Candongas, onde os movimentos ascendentes da voz, mostrados pelo tamanho da
fonte enfatizam os contrastes temáticos:
13

Perdão Candongas que se foi à tarde


Se tem comido um bacalhau danado
Perdão Candongas se esganei teus beiços
Perdão Can dongas para um desgraçado

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escuta comparativa de Perdão Emília nas suas versões e paródias nos permite
algumas afirmações a serem mais bem investigadas. Primeiro a existência no final do século
XIX de práticas interpretativas mais “burguesas” e outras mais “populares” como o
melodrama no Brasil do século XIX e, concomitantemente a crítica pelo ridículo à moralidade
patriarcal vigente. Segundo, a existência de padrões de performance diferenciadas no disco,
em parte por exigências “técnicas” – afinal o disco é um produto que deve oferecer ao ouvinte
um som limpo e estável, coisa que Mário Pinheiro, por ser cantor lírico podia oferecer – em
parte por razões “comerciais”: mesmo sendo um produto popular, o público alvo era em
última instância o público burguês, com maior poder aquisitivo. No entanto, apesar de um
número menor de gravações, a presença de Bahiano fazendo gravações de quando em quando
(inclusive da emblemática Pelo Telefone), nos mostra que a expressividade e brejeirice
popular têm sempre o seu lugar.
Assim, por um lado podemos perceber a força da transmissão oral, mantendo padrões
de práticas interpretativas por um período longo de tempo (a declamação exaltada e teatral) e
por outro, a instalação gradual da transmissão aural, na medida em que a mediação do disco
começa a interferir nos padrões estéticos. Para gravar, principalmente na cera e de forma
mecânica, era necessário um sinal com uniformidade em volume e densidade. Bahiano,
acostumado à interpretação variada e a mudanças de timbre próprios do teatro e do circo não
era um intérprete ideal para o disco, mas sua popularidade junto ao público lhe assegurava a
possibilidade de gravar.
Finalmente, só através da auralidade, da gravação conservada, podemos ter acesso, por
mais mediado e filtrado que seja pelas mudanças de mídia e adequação para transmissão pela
internet, a um repertório de práticas musicais e culturais que ecoam do passado sonoridades e
sensibilidades ainda presentes hoje, como podemos escutar nas telenovelas e suas trilhas
musicais.
14

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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15

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FONTES DISCOGRÁFICAS
MÁRIO PINHEIRO. Perdão Emília. Odeon 108261 (1907-12).
CARAMURU. Perdão Emília. Columbia 303 (1908-12).
JOÃO BARROS. Perdão Miloca. Victor Record 98854 (1908-12).
BAHIANO. Perdão Candongas (Brito). Odeon 120303 (1912-13).
PARAGUASSU. Perdão Emília. Continental 15411 (1945).

1
Ver www.unirio.br/mpb/matrizes para mais informações. Agradeço ao CNPq e à UNIRIO pelo suporte. Sou
também grata a Beth Travassos, Cláudia Azevedo e os alunos de Análise da Canção Popular do Bacharelado em
Música Popular Brasileira da UNIRIO pela leitura e comentários sobre o texto.
2
Somente nos últimos anos do século XX, os musicólogos – antes voltados prioritariamente para os estudos da
música enquanto texto musical, enquanto partitura – começaram a se interessar pelo estudo sistemático da
música enquanto evento, enquanto processo interpretativo. Dentre eles, um grupo sediado na Grã-Bretanha,
liderado pelo musicólogo Nicholas Cook, fundou um centro para o estudo da música gravada (CHARM) cuja
base é a comparação de gravações e o foco a performance. Exceção tem sido a área das práticas interpretativas
[também conhecida como performance histórica] que tem lidado com evidência histórica para certos aspectos da
performance do passado, em geral aspectos que podem ser estudados com um certo grau de exatidão
(ornamentação, afinação, o uso de instrumentos históricos reconstruídos, entre eles). No entanto, a performance
histórica se concentra na partitura e, no caso deste estudo, consideramos mais próximo aquele tipo de
musicologia advogado pelo CHARM, o qual do ponto de vista analítico considera a ‘música em performance …
onde análise, estudos culturais, hermenêutica e práticas interpretativas se encontram” (Bowen, 1999:451).
3
Observações sobre os estilos de música tocada a partir de partituras registrados em gravações constatam que é
possível pensar numa história aural da música, baseada num repositório de evidência enorme, que são as
gravações feitas nestes últimos cento e poucos anos (Day, 2000).
4
Muitas dessas gravações, inclusive os exemplos discutidos aqui, podem ser encontradas no acervo de Humberto
Francheschi e José Ramos Tinhorão abrigados no Instituto Moreira Salles e disponíveis on-line no endereço
www.ims.com.br, o que facilita seu estudo.
5
Não conseguimos ouvir a gravação de 1902, feita por Bahiano para a Casa Edison no disco Zon-O-Phone
10.015 e Zon-O-Phone X-692.
6
Ver Leme (2004) sobre o mercado editorial e música impressa no século XIX tanto para o público de salão,
para canto e piano, quanto de seresteiros com as letras das canções cantadas nas ruas.
7
Exemplar é o cancioneiro Mistérios do violão do cantor, compositor, ator e palhaço Eduardo das Neves (1905),
onde são publicadas as letras do “Grandioso e extraordinário repertorio de Modinhas Brasileiras por Eduardo das
Neves”, algumas com indicações mencionadas entre parêntesis das melodias correspondentes a serem usadas:
“Serenata a Leonor” (Com a musica da valsa “Muchacha” de Aurelio Cavalcante); “Cançoneta” (Paródia à
“Exposição”); “O caixote” (Com a música do famoso “Cake-Walk”); “A Vacina e os Ratos” (Para ser cantada
com a música da cançoneta “Manhã na Roça”) [No IMS há uma versão cantada por Eduardo das Neves, Odeon
108 738]; “Canção” (de Flavio Fontoura, Música da modinha “Por mais que eu queira abafar”) [No IMS há um
“Por mais que busque abafar”, cantada por Geraldo Magalhães, Odeon 40.593].
8
Tran Quang Hai estava a discutir como numa língua tonal como o vietnamita certas declamações, mesmo tendo
contornos melódicos bastante variados não eram consideradas como canto naquele contexto. Na cultura
ocidental as variações de contorno melódico são sempre consideradas “musicais”, mesmo quando inscritas na
fala... Mais ainda numa fala tão “cantada” quanto a brasileira! No entanto, não chegamos a confundir esta “fala
cantada” com o canto; o que distingue o último é a regularidade e a repetição, da mesma maneira que o que
distingue a fala da poesia é o ritmo e o metro.
9
Experimentos com computadores para propósitos lexicográficos (Suchoff, 1967) e a reconstrução de
protomelodias (Boilès, 1973) são alguns desses estudos nos quais é freqüente a utilização de materiais
semelhantes entre si.
16

10
Nas escutas que estamos fazendo de modinhas gravadas, pudemos identificar algumas canções que lembram a
cantiga de roda “Nesta Rua” (principalmente nas terceira e quarta frases). Manuel Veiga comenta o uso de
“Nesta Rua” no texto intitulado “Achegas para um sarau de modinhas brasileiras” (1998:83). O contexto da
utilização é a paródia maliciosa, numa versão que em vez de traduzir a sentimentalidade ingênua da canção
folclórica a ridiculariza pelo uso de chavões e disparates.
11
Sobre o grande afluxo da ópera, principalmente italiana, bem como outras modas, tais como as óperas cômicas
francesas, as operetas (especialmente de Offenbach) e as zarzuelas – obras cômicas em espanhol misturando
diálogo e números cantados, incluindo materiais populares e folclóricos –, ver o trabalho de Magaldi (2004)
sobre a música européia no Rio de Janeiro imperial, já comentado acima.
12
As bases do melodrama surgem no século XVII em Florença com os experimentos em torno da idéia do drama
grego e a centralidade da compreensão do texto cantado, o “falar cantando”. Esta prática, baseada no canto
acompanhado e voltada para os sentimentos humanos básicos (dor, raiva, doçura e resignação) e a concentração
nos dramas individuais profanos se contrapunha à prática anterior, voltada para o canto litúrgico polifônico. Com
a consolidação da ópera, o melodrama sai de cena, retornando no final do século XVIII na França, apresentando-
se na forma de peças teatrais com canto e declamação. Neste período de predomínio do racionalismo sobre a
religiosidade, o melodrama assume a função pedagógica de realçar a moral e os bons costumes (Thomasseau,
2005).
13
Letra completa: Já tudo dorme, vem a noite em meio, / A turva lua vem surgindo além, / Tudo é silêncio, só se
vê na campa / Piar o mocho no cruel desdém. // Depois um vulto de roupagem preta, / No cemitério com vagar
entrou, / Junto ao sepulcro se curvando a meio (a medo), / Com tristes frases nesta voz falou: // _ Perdão, Emília
se manchei-te (roubei-te) a vida, / Se fui impuro, fui cruel, ousado! / Perdão Emília, se manchei teus lábios, /
Perdão Emília, para um desgraçado. // _ Monstro, tirano, p’rá que vens agora / Lembrar (me) as magoas que por
ti passei, / Lá nesse mundo em que vivi chorando, / Desde esse instante em que te vi e amei?! // Chegou a hora
de tomar vingança / Mas, tu ingrato não terás perdão / Deus não perdoa tuas culpas todas / Castigo justo tu terás
então // {trecho suprimido na versão de Paraguassu}: [Perdi as flores da capela virgem, / Cedi ao crime, que
perdão não tinha / Mas tu manchaste a minha vida honesta / Depois zombaste da fraqueza minha! // Ai quantas
vezes, a meus pés curvado, / Davas-me provas do teu puro amor! / Quando eu julgava que tu fosses (um) anjo, /
Não via fundo nesse olhar traidor.]// Mas é agora em que o corpo em terra / (Mais eis (que) um corpo
resvalado(ndo) à (em) terra) (Caramuru) / Tombou de chofre sobre a pedra fria / E quando a aurora despontou na
lousa / Um corpo inerte a dormitar se via // _ Perdão, Emília se manchei-te (roubei-te) a vida, / Se fui impuro, fui
cruel, ousado! / Perdão Emília, se manchei teus lábios, / Perdão Emília, para um desgraçado.
14
Minha mãe, quando lhe falei de “Perdão Emília”, se lembrou imediatamente de sua avó cantando a canção em
torno das décadas de 1930-1940, mencionando ser o mote (perdão para um desgraçado!) o que mais chamava a
atenção pela dramaticidade.
15
Agradeço a Lídia Becker pelas indicações bibliográficas sobre declamação.
16
Ao ser perguntada sobre quais textos poderiam ser musicados, Adriana Calcanhoto responde : “Tudo, até
mesmo bula de remédio!...” No entanto, ao falar sobre um trecho sobre cinema que musicara, comenta como,
mesmo sendo prosa, tinha alguns elementos de poesia (frases curtas, por exemplo).
17
Antônio Rago violão solo, Orlando Silveira ao acordeom, Siles na clarineta, Petit e Carlinhos nos violões,
Esmeraldino no cavaquinho, Correia no contra-baixo e Zequinha no pandeiro (Dicionário MPB).

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