Você está na página 1de 6

Letras de Sangue

O Sangue Sempre
Fala Mais Alto

Edson Tomaz da Silva


Letras de Sangue

O Sangue Sempre Fala Mais Alto

Minha mãe morreu muito cedo, vítima de um coração que há tempos estava anunciando que
o próximo enfarte seria fatal.

Assim, ficamos em três homens naquela pequena casa: meu pai, meu irmão mais velho e eu.

Não sei porque, mas meu pai nunca mais se casou depois da morte de minha mãe. Ele
nunca falou sobre isso comigo e, acredito eu, nem com meu irmão.

Diz o ditado que cada louco com sua mania, então lá estávamos nós, seguindo o ditado: meu
pai, com sua mania de reformas, acho que ele gastou mais em obras do que muita
construtora por aí; eu, com meus livros e meus estudos; e meu irmão, com sua infindável
admiração pela marginalidade e tudo que tivesse ligação com o mundo cão.

O engraçado é que a única coisa que sempre tivemos em comum foi o fato de nós três
gostarmos de armas. Acho que por aquele inexplicável espírito de camaradagem masculina,
aliado à falta de uma presença feminina para discordar de tudo, nosso pai nos apresentou
muito cedo à sua automática velha de guerra.

Em vários finais de semana lá íamos os três para o sítio de meu tio Martinho, praticar tiro ao
alvo. Meu pai, diga-se em sua defesa, nunca atirou em nenhum ser vivo. Nunca matou nem
um passarinho com estilingue.

E lá ficávamos nós, numa pedreira que ficava aos fundos do sítio do meu tio, atirando em
latas, garrafas e outros alvos de baixo custo.

Meu pai tinha uma pontaria horrorosa. Vivíamos brincando que era perigoso ficar do lado
dele; quando ele atirava, tudo em volta virava alvo.

Meu irmão tinha uma mira apenas mediana, algo como acertar cinco ou seis vezes, a cada
dez tentativas.

Já o intelectual da família (ou seja, eu) tinha uma pontaria praticamente perfeita: nunca
menos que nove em dez tentativas!

Acabou isto sendo a única coisa que eu fazia na qual meu irmão me invejava. E essa inveja
não melhorou em nada nosso convívio.

Quando meu irmão sumiu de casa aos treze anos para se juntar de vez com os marginais
que ele tanto admirava, achei que eu, finalmente, iria ter um pouco de sossego. Mas só
estava certo em partes. Primeiro, porque a fuga de meu irmão fez mais estrago na saúde do
meu pai do que todos os maços de cigarro que ele fumou a vida inteira. Segundo, porque
meu irmão era o esqueleto em nosso armário: a cada encrenca em que ele se metia, lá ia
meu pai (comigo a reboque), fazer das tripas coração para tentar livrá-lo.

Um dia perguntei pro meu tio Martinho porque meu pai simplesmente não largava o meu
irmão apodrecendo na cadeia, que era o lugar dele. Nem sei porque cai na besteira de
perguntar. Como meu pai sempre repetia e meu irmão adorava lembrar, lá veio a frase que
sempre me atormentava:

- O que mais ele pode fazer? É o sangue dele, e o sangue sempre fala mais alto.

O Sangue Sempre Fala Mais Alto Página 2


Letras de Sangue

A ausência sempre presente de meu irmão acabava mais e mais com a saúde de meu pai. E
quando ele aparecia, lá iam nossas economias para o bolso de advogados, para tirá-lo de
trás das grades, ou para o bolso de algum bandido ou policial corrupto, pra quem ele
estivesse devendo dinheiro ou favores.

Até no meu primeiro emprego o infeliz me atrapalhou. Consegui emprego numa agência de
banco no centro da cidade e, com menos de um mês, não é que o pilantra e seus comparsas
resolveram assaltar justo aquela agência?

Sobrou pra mim porque, durante a investigação, descobriram que eu era irmão de um dos
assaltantes. Pronto! De funcionário exemplar, virei cúmplice! Passei uma noite na delegacia
apanhando dos policiais pra contar aonde estava meu irmão.

Minha sorte é que ele e os bandidinhos pé-de-chinelo com quem ele andava foram pegos
logo no dia seguinte. E o desgraçado não ia me inocentar, não. Como ele disse pro
advogado, estava louco pra ver o irmãozinho cdf na cadeia, aprendendo a virar homem de
verdade.

Foi meu pai que correu atrás do líder da bandidagem no pedaço e pediu pelo amor de Deus
pra ele intervir por mim. Em troca da minha vida e da minha liberdade, meu pai deu o carro
que ele comprara com tanto suor. O bandidão mandou meu irmão falar a verdade e eu
acabei sendo libertado.

Perdi o emprego e minha vida profissional só não acabou ali porque eu abri uma empresa e
comecei a trabalhar por conta. Sempre fui bom com computadores e logo estava ganhando
um bom dinheiro.

Meu irmão, apesar de tudo que meu pai gastou com advogado, não escapou de pegar vinte
anos de cadeia. Aquilo acabou com o que restava da saúde do velho.

Mas eu e mau pai ainda tivemos direito a um último momento de felicidade, antes que ele
falecesse, no final daquele ano.

Em agosto, no final de semana do dia dos pais, disse a ele que fazia questão de passar
aquele dia dos pais praticando tiro com ele, no sítio do tio Martinho.

- Mas filho, essa esposa nova do seu tio não vai dar sossego pra gente. Não viu o quanto ela
reclamou do barulho na última vez que fomos lá?

Era verdade. Mas eu já tinha pensado nisso. E entreguei a meu pai uma caixa embrulhada
em papel de presente.

- Feliz dia dos pais!

A cara de surpresa do meu pai me encheu de alegria, que aumentou ainda mais quando ele
abriu a caixa.

- Você fez um silenciador caseiro! Filho, eu fico cada dia mais impressionado com a sua
inteligência!

Pra mim, esse foi o final de semana mais feliz da minha vida. Fomos ao sítio do tio Martinho,
gastamos umas três caixas de munição e eu pude descobrir que meu talento nato, apesar se
ser completamente inútil para mim, continuava ali, intacto: mesmo sem disparar um tiro
depois de tanto tempo, não errei um sequer naqueles dois dias.

----xxxx----

Meu irmão recebeu o indulto de natal para que passasse as festas de final de ano com a
família. Pois assim que colocou os pés na rua, ele desapareceu.

O Sangue Sempre Fala Mais Alto Página 3


Letras de Sangue

Para meu pai, aquilo foi fulminante. O velho soube da notícia da fuga de meu irmão de
manhã e, lá pelas duas da tarde, já estava morto. O coração não agüentou mais aquela
decepção.

Mal tive tempo de chorar a morte de meu pai. Fora a correria com os preparativos do enterro
- ao qual meu irmão, obviamente, não compareceu - eu ainda tinha um sistema gigantesco
de banco de dados para entregar na primeira semana de janeiro, e estava bastante atrasado.
Além disso, meu pai me deixara mais um problema de herança.

Nossa casa fora construída sobre um córrego aterrado e o piso e as paredes da cozinha
viviam caindo aos pedaços por causa da umidade. Meu pai decidiu que ia dar um basta
naquilo antes do Natal. Contratou um pedreiro, já que ele mesmo não estava mais em
condições de tocar uma obra daquelas.

Então, meu pai faleceu, me deixando o piso da cozinha completamente escavado, rebaixado
em pelo menos meio metro de profundidade.

Naquela noite de sexta, eu estava me matando em cima do computador, tentando recuperar


o prejuízo do meu trabalho. Foi quando ouvi a chave girando na porta da sala. O filho pródigo
retornava à sua casa.

- Olá, irmãozinho!

- Estava esperando você aparecer. Tudo bem?

- Agora que eu tô fora daquela merda, tá ótimo! Tem algum rango aí?

- Da uma olhada aí na geladeira, acho que tem macarrão.

- Beleza!

Enquanto meu irmão comia fiquei pensando no que eu ia fazer agora. Foi quando ele me
surpreendeu.

- Será que eu podia trabalhar com você na sua empresa?

Fiquei bestificado.

- Ué, você nunca gostou de computadores...

Sem parar de comer, ele respondeu:

- Cansei de me ferrar com o método antigo. Com um troço desses aqui - disse, apontando
para meu notebook - um cdf como você entra nos computadores de um banco e rouba
milhões sem suar uma gota!

Eu conhecia bem meu irmão, não sei porque me permiti um fio de esperança. Mas ele ainda
não havia terminado:

- Ademais, agora que o pai se foi, você tem de cuidar de mim. E continuou comendo.

Ele falou calmo e pleno de certeza, como se tivesse repetido uma verdade universal
inquestionável. Ele voltara, demonstrando claramente que não aprendera nada com tudo o
que acontecera, e esperava que eu estivesse ali por ele, para carregá-lo nas costas, como
meu pai fizera a vida toda.

Me desviando entre os móveis atulhados pela casa, cheguei até o armário. Meu irmão
sequer olhou para ver o que eu estava fazendo. Não tirava a cara do prato.

- No mais, lembre-se do que o pai sempre dizia: o sangue sempre fala mais alto!

O Sangue Sempre Fala Mais Alto Página 4


Letras de Sangue

- Então está na hora de fazer o sangue calar a boca!

Surpreso com minha resposta, finalmente meu irmão olhou para mim. E ficou surpreso ao me
ver empunhando a automática do meu pai com o silenciador.

- Mas o que...

Atirei. E foi o tiro mais preciso de toda a minha vida. Acertei meu irmão exatamente no
espaço entre as sobrancelhas. Ele caiu no chão como uma marionete que perdeu as cordas.

Joguei o corpo sem vida de meu irmão no imenso buraco em que se transformara o chão da
cozinha. Confesso que, num arroubo de superstição, joguei sobre ele todo o conteúdo de um
saco de sal grosso. Ele tinha a mania de estar sempre voltando, nunca se sabe...

Quando o pedreiro chegou na segunda-feira, encontrou a obra pronta. Paguei pelo serviço
que ele fizera até ali e o dispensei.

Não sei se foi o sal grosso, ou se realmente os mortos não voltam, ou se o diabo não deixou
meu irmão dar uma voltinha fora do inferno, mas o fato é que morei o resto de minha vida na
casa sem ser incomodado por mais nada ligado ao meu irmão.

O sangue finalmente se calara.

----FIM----

O Sangue Sempre Fala Mais Alto Página 5


Letras de Sangue

Sobre o Autor

Edson Tomaz da Silva nasceu em São Paulo, capital, em 26 de abril de 1971. A paixão pelos
gêneros de terror e suspense é antiga, mas o autor só começou a publicar seus textos em
2009.

Em 2010, criou o site Letras de Sangue (www.letrasdesangue.rg3.net), onde publica seus


textos, na companhia de outros escritores amadores, também apaixonados por terror e
suspense.

Para ajudar na divulgação do site, passou a publicar seus textos também no Scribd
(www.scribd.com/edsontomaz), criando a coleção Letras de Sangue.

Sobre a Obra

“O Sangue Sempre Fala Mais Alto” foi escrito em agosto de 2010 e publicada pela primeira
vez no site do “Recanto das Letras” (www.recantodasletras.uol.com.br/autores/edsontomaz)
e hoje faz também parte do acervo do Letras de Sangue.

Licenciamento da Obra

A presente obra encontra-se licenciada sob a licença Creative Commons Attribution-


NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported. Para visualizar uma cópia da licença, visite
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/ ou mande uma carta para: Creative
Commons, 171 Second Street, Suite 300, San Francisco, California, 94105, USA.

O Sangue Sempre Fala Mais Alto Página 6

Você também pode gostar