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“ FOME NA TERRA DA FARTURA ”

Uma brisa seca soprava sobre as águas turbulentas do rio


Potomac quando cheguei à capital americana com meu amigo Ken
Dobson, Washington D.C. ( District of Columbia, para diferenciar a
cidade do estado com o mesmo nome ) estava a todo vapor, como se
aproveitasse as últimas energias antes da chegada do inverno. Camelôs
vendiam cachorro-quentes e badulaques para os turistas. estudantes
desciam dos ônibus escolares carregando suas mochilas. Executivos em
ternos bem talhados corriam para cumprir suas agendas. Contrastando
com tudo aquilo, pessoas dormindo nos bancos das praças mal notavam
o burburinho à sua volta.
Por conta de nossos mistérios, eu, Ken e Steve Wilson – outro
amigo pastor – havíamos visitado várias metrópoles americanas e
andado por suas ruas à noite, entrevistando a população de rua. Mas
nada do que vimos antes nos chocou tanto quanto a pobreza de
Washington. Nesta cidade, símbolo maior da nação mais próspera do
mundo, a convivência paradoxal de riqueza e pobreza é mais gritante.
Simultaneamente, políticos poderosos e pessoas miseráveis encaram
suas rotinas: os primeiros, dentro de grandes limusines e escritórios
refrigerados, tomando decisões de alto nível; os outros, carregando seus
poucos pertences enquanto procuram comida e um lugar para se
refugiar do frio. Todos sob a cúpula do Capitólio.
Ken e eu seguimos pela avenida Pensilvânia a caminho de uma
instituição de ajuda aos sem-teto. A população de rua parecia estar em
todo lugar, como se participasse de um desfile em homenagem à
miséria. Quem não estava arrastando sacos de lixo cheios de latas
vazias, dormia ou simplesmente olhava o mundo passar à sua volta.
Quando paramos no sinal, me vi diante de um homem que batia no
vidro do carro com sua mão mal protegida por uma luva velha e
rasgada. Fiz menção de baixar o vidro, mas quando vi em seu rosto um
semblante aparentemente ameaçador, fui tomado de um medo súbito.
Recuei rapidamente e o deixei para trás quando o sinal abriu.

Vergonha

A cada quarteirão que passávamos, a vergonha monopolizava


meus pensamentos. Ao chegarmos ao abrigo, uma tabuleta na porta só
fez aumentar meus conflitos: “ Da próxima vez que encontrar pessoas
na rua, não ignore. Fale com elas, pergunte como estão, dê a elas algo
para comer. Diga que você se importa com elas, e que você as
considera seres humanos de verdade. ” Não demorei a entender a
verdade daquelas palavras. Não importa a aparência, o estado físico e
mental ou a condição – as pessoas que vivem nas ruas são seres
humanos.
Eu e meu amigo vimos isso claramente durante as entrevistas que
fizemos com vários homens que se refugiavam na instituição. Suas
histórias pessoais não eram de gente irresponsável ou incapaz. Eram
homens de meia-idade que já tiveram uma família e um emprego
decente. No entanto, por conta de escolhas erradas e de um sistema de
distribuição de renda injusto, foram tolhidos de toda espécie de
dignidade e esperança.
Conforme conversávamos, eles não usavam palavreado sujo, nem
amaldiçoavam a vida, como se estivessem à beira da loucura. Ao
contrário, articulavam seus pensamentos com clareza e honestidade,
revelando sua lucidez e seus sentimentos. Ken perguntou a uma
voluntária da instituição por que ela dedicava seu tempo àquele
trabalho. “ Temo pelas pessoas que olham as necessidades das outras e
nada fazem ”, disse. “ No dia do Juízo, Deus dirá a elas: ‘ Tudo que
vocês deixaram de fazer pelo menor destes, deixaram de fazer a
mim ’. ”
Deixamos a instituição tentando assimilar o que havíamos visto e
ouvido. Durante o jantar, sentimos que só com a força extra seríamos
capazes de enfrentar a última noite de trabalho na cidade. Comemos em
silêncio. Naquela noite, sentado na mesa de jantar, ficou evidente para
mim como era diferente de Jesus. Cercado de toalhas de algodão,
taças de cristal e garçons sorridentes, orei silenciosamente. “ Senhor,
por favor, não permita que meu conforto ou as coisas que possuo me
afastem da dor dos famintos e dos se encontram em necessidade. ” Ao
terminar minha oração percebi que Ken também falava com Deus.

Tragédias pessoais

Chegamos ao Memorial de Lincoln às 11 da noite. A enorme


estátua de Abraão Lincoln [ um dos presidentes americanos ] parecia
olhar condoída para os dois homens que se encolhiam a seus pés,
apenas o mármore frio como colchão. Antes que conseguissem
adormecer, os guardas já os punham de pé. à meia-noite, quando os
membros do Congresso e os lobistas estão dormindo em suas casas
quentes e confortáveis, pouco ou nada sobra da Washington que se vê
nos jornais.
Paramos no estacionamento escuro e ermo. “ É uma tragédia,
resmunguei, enquanto caminhávamos por entre barracos de papelão
paupérrimos. Meus olhos se fixaram em uma criança de bochechas sujas
agarrada à mãe, dentro de um saco de dormir esfarrapado. Naquele
momento, toda a grandeza arquitetônica e a ostentação política da
cidade perderam o significado. Sentada num banco, uma velhinha
olhava para mim. Em sua figura quase mumificada pelas várias camadas
de roupas superpostas, destacavam-se os tênis de tamanhos diferentes.
Entre as árvores, mais gente sem-teto. Do bando onde estava
deitado, um homem dizia que estávamos invadindo seu território. Outro
se cobria com jornais. Todas as pessoas faziam de usas bolsas e sacolas
os travesseiros, em parte para buscar um pouco mais de conforto, mas
também como forma de proteger os poucos pertences antes que fossem
roubados. Foi no meio delas que encontramos Joe, um homem de uns
50 e poucos anos. “ Os ratos são um problema grande por causa das
doenças que causam ”, disse, apontando para um ralo de esgoto.
Sentei perto dele. “ Você é daqui, Joe ? ”, perguntei. “ Acho que
estou no parque a uns dois meses ”, respondeu. “ Sou da Carolina do
Norte. Não tenho casa, pelo que você pode ver. ” Quis saber se ele tinha
algum emprego. Ele disse que, vez por outra, conseguia um biscate,
mas nunca o suficiente para pagar um quarto de hotel e um banho
quente. “ Sua família sabe onde você está ? ”, continuei. “ Algumas tias
sabem, mas eu não falo com elas porque têm vergonha de mim. Sabe
aquela velha história de ovelha negra ? ”

“ Mãezona ”

No parque é possível ouvir inúmeros relatos de tragédias pessoais.


Encontramos uma mulher apoiada em uma árvore. Seu nome era Cathy,
tinha 68 anos e morava nas ruas desde 1988. “ Decidi fazer isso a muito
tempo ”, contou. “ Já que minha fé em Deus era grande e eu O amava,
com certeza Ele me ajudaria a resolver os problemas que eu
encontrasse. Não me preocupo, porque sei que Ele cuida de mim. ”
Cathy falou que seu mundo caiu quando foi violentada. Foi para as ruas
porque sua família cristã não aceitava uma “ bêbada que os fazia sentir
como pecadores ”. “ É duro, mas acabei me tornando uma espécie de
mãezona deste povo sem-teto. Tomo conta e dou a eles o amor que só
uma mãe pode dar ”, disse.
Já no avião que nos levaria de volta para casa, o cheiro, os sons e
as imagens da miséria ainda me incomodavam. Entendi que, a partir
daquela experiência, eu não poderia usar o rótulo de “ Cristão ” sem me
comprometer efetivamente com o mandamento de Jesus sobre o
cuidado com os pobres. Jesus nunca disse que a miséria seria
erradicada do mundo. Mas oro a Deus que, mesmo que não possa
eliminar a pobreza do mundo, a Igreja seja capaz de dar aos desvalidos
uma chance de, um dia deixar de dormir em bancos de praça ou
barracos de papelão para andar nas ruas de ouro.

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