Você está na página 1de 3

“ LIÇÕES DE VIDA ”

É domingo bem cedo. Desço do apartamento do hotel onde estou


hospedado e vou até a banca de jornal mais próxima. Paro alguns
momentos, e detenho-me percorrendo, com a vista, as manchetes dos
jornais expostos, sempre marcadas por um sensacionalismo
emocionante.
Junto de mim, um senhor idoso procede da mesma maneira, lê as
manchetes e comenta revoltado.
- Assim não dá ! Ora que esse custo de vida não pára de
aumentar, todo dia sobe uma coisa, outra duplica o preço da noite para
o dia, o salário do trabalhador vai ficando defasado e todo mundo sofre
as conseqüências da carestia, arre !...
Nada comentei, mas o homem idoso insisti em conversar e eu,
que naquela hora, não dispunha de muito tempo para conversas, tento
afastar-me da banca dando um passo firme para trás, distraidamente,
sem ao menos verificar se havia alguém atrás de mim. Sem que
esperasse, fui assustado por um grito, grosso e sentido, que soou bem
junto aos meus ouvidos, como gemidos de alguém que estava sentindo
uma dor terrível. Viro-me rapidamente na direção de onde partem os
gemidos e ouço, repetidas vezes, interjeições de dor.
- Ai !... Ai !... Ai, meu calo está sangrando !...
- Que foi que houve, meu amigo, que foi que houve ? – indaguei
aflitíssimo.
- Foi o senhor que ao dar o passo para trás, sem olhar direito,
pisou no meu calo e machucou e feriu o meu dedo do pé – respondeu o
homem, que calçava um sandália japonesa.
Encarei-o e ele, tomado de dor, gemia e fazia uma cara feia para o
meu lado. Era um negro alto e forte, o tipo do lutador profissional, ou
alguém acostumado ao trabalho duro e pesado, músculos desenvolvidos
e fortes, modestamente vestido, com a cabeça coberta com um já bem
usado chapéu de palha.
Quando, por alguns instantes, olhei a figura hercúlea do homem
cujo dedo do pé eu ferira involuntariamente, tremi de medo. Medo, não;
pavor. Então, monologuei, baixinho, comigo mesmo:

Meu Deus, e se esse homem gigante, aborrecido como está,


resolver revidar com a sua força física a pisadela que sem querer eu dei
no seu dedo ? E se ele não aceitar o meu pedido de desculpas, de
perdão, e partir para a ignorância esbofeteando-me de todo o jeito que
ele quiser aqui no meio da rua, o que é eu vou fazer para me livrar de
tamanho vexame ? – tudo isso passou-me pela cabeça em um milésimo
de segundo. Voltei-me para o homem, que continuava gemendo, e pedi-
lhe desculpas:
- Me desculpe, meu amigo, não tive a menor intenção de causar-
lhe um mal como este; por favor, me desculpe...
Aguardei a reação do homem, já esperando pelo menos ouvir da
sua boca uma meia dúzia de palavrões clássicos em que o ofendido se
vinga sempre xingando e maldizendo toda a nossa ascendência, mas
nada, as dores iam diminuindo e a fisionomia do homem, que no
começo me dava a exata impressão de um marginal, foi-se, pouco a
pouco, transformando numa fisionomia dócil e meiga. Eu continuava,
apesar disso, aflito e temeroso, insistindo no meu perdão de desculpas e
procurando um meio de suavizar a dor do meu próximo. Não durou
muito e, passado os piores momentos de dor, o homem forte olhou para
mim e falou com franqueza e humildade:
- O senhor não tem de que pedir desculpas, meu amigo, eu é que
fui o culpado; o senhor estava de costas e jamais poderia adivinhar que
houvesse alguém lendo as manchetes do jornal, olhando por cima do
seu ombro...
- Meu Deus – comentei, intimamente, a atitude do homem – mas
isso é espantoso ! Confesso que não estou acostumado a presenciar um
comportamento tão elevado quanto este !
Finalmente, passada toda a dor e externando tranqüilidade na
fisionomia, o homenzarrão concluiu:
- Sabe de uma coisa ? Se alguém teria de pedir desculpas, esse
alguém deveria ser eu, pois o senhor jamais poderia ter evitado o que
aconteceu.
Surpreendente ! Extraordinário, não acham ? Em lugar de um
murro ou um palavrão, um gentil pedido de desculpas ! Lições de vida.
Lições que servem para mim e para muita gente. Primeiro, foi o fato de,
mesmo machucado, o homem reconhecer que ele é que estava errado.
Ainda que prejudicado, não se revoltou. Segundo, não tentou tirar
partido do seu físico avantajado, para me humilhar, o que poderia até
ter feito. Terceiro, não teve o menor acanhamento de me pedir
desculpas, atitude que, para mim, foi o máximo.
Quando o homem se afastou do local e dobrou a esquina lá
adiante, tive vontade de correr atrás dele e perguntar-lhe ansioso: Meu
amigo, será que o senhor é um crente em Cristo ? Seu comportamento
se parece muito com o de um seguidor de Jesus; por acaso não é o
senhor alguém que tem Jesus no coração ?

Confesso a minha fraqueza: não tive coragem de perguntar,


porque já imaginaram a minha decepção se o homem respondesse que
não era e não gostava de crentes e começasse a enumerar o
procedimento de certos irmãos nossos em situações semelhantes ou até
menos graves ? Eu ficaria com a cara no chão. Mas a minha esperança é
que voltarei a encontrar o dito negão forte e atlético, agora preparado
para fazer-lhe perguntas cabais.

Você também pode gostar