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TRABALHO E ESCOLA:
A APRENDIZAGEM FLEXIBILIZADA
Acacia Zeneida Kuenzer¹
1. Doutora em Educação pela PUC de São Paulo, professora titular aposentada da UFPR e professora do Doutorado em Diversidade e Inclusão
Social da Universidade Feevale.
A forma de participação do aluno nessa dessa proposta, para ser adequada, precisa
proposta muda bastante: de espectador, pas- buscar suas raízes nas bases materiais que a
sa a ser sujeito de sua própria aprendizagem, geraram, o que extrapola os limites da tecno-
o que exigirá dele iniciativa, autonomia, disci- logia, atingindo as relações de produção que
plina e comprometimento. Nas modalidades configuram o regime de acumulação flexível,
de aprendizagem flexível disponibilizadas, cimentado pela ideologia pós-moderna.
ele fará seu próprio horário de estudo, esta-
belecerá as condições e o ritmo em que irá Esse movimento é necessário, uma vez
estudar, segundo seu perfil e suas possibili- que a concepção apresentada, aparente-
dades. Em tese, ao gerenciar seus tempos e mente, se confunde com as categorias do
espaços, aprenderia a aprender, sozinho ou materialismo histórico. Há portanto, que su-
em colaboração, o que conduziria a um me- perar o nível fenomênico para buscar as re-
lhor aproveitamento; e, lações que explicam esse
nas práticas colaborati- novo discurso, e assim,
vas, deixaria de ser iso-
lado em suas tarefas e
“A forma de participação ao completar o seu ca-
ráter lacunar, evidenciar
leituras, de modo tam- do aluno nessa seu caráter ideológico.
bém a superar posturas proposta muda bastante:
individualistas. de espectador, passa a O discurso pedagógi-
co do regime de acumu-
Na aprendizagem
ser sujeito de sua própria lação flexível
flexível, o conceito de aprendizagem, o que
comunidade de apren- exigirá dele iniciativa, A aprendizagem flexí-
dizagem implica o des- vel surge como uma das
autonomia, disciplina
locamento do professor expressões do projeto pe-
e do conteúdo para o e comprometimento ” dagógico da acumulação
grupo, que participa, se flexível, cuja lógica conti-
envolve, pesquisa, inte- nua sendo a distribuição
rage, cria, com a mediação de algum orien- desigual da educação, porém com uma for-
tador. O professor passa a ser organizador de ma diferenciada.
conteúdos e produtor de propostas de curso,
de abordagens inovadoras de aprendizagem, Assim é que o discurso da acumulação fle-
em parceria com especialistas em tecnolo- xível sobre a educação aponta para a neces-
gia; a relação presencial passa ser substituída sidade da formação de profissionais flexíveis,
pela tutoria, que acompanha a aprendiza- que acompanhem as mudanças tecnológicas
gem dos alunos. decorrentes da dinamicidade da produção
científico-tecnológica contemporânea, ao in-
Em princípio, essa concepção seria resul- vés de profissionais rígidos, que repetem pro-
tante do avanço da base microeletrônica; cedimentos memorizados ou recriados por
reduzi-la, contudo, a essa dimensão, é uma meio da experiência. Para que esta forma-
simplificação que atende apenas a interes- ção flexível seja possível, torna-se necessário
ses de caráter ideológico. A análise acurada substituir a formação especializada, adquiri-
Por outro lado, a afirmação do conheci- é tomada em seu sentido de atividade, desti-
mento como resultante do confronto de dis- tuída de caráter teórico.
cursos, ao não reconhecê-lo como resultante
da relação entre teoria e prática, entre traba- Sem a mediação da teoria, e sem referên-
lho intelectual e atividade, põe por terra a cia à materialidade, o conhecimento resulta
concepção de práxis, o que conduz a duas da reflexão prática sobre a prática, sem que
dimensões que caracterizam o pós-moder- se supere o senso comum ou o conhecimen-
nismo: o presentismo e o pragmatismo, que, to tácito, resultante da negação da teoria;
não por coincidência, alimentam o consumo declarada a impossibilidade de conhecer, e
e portanto, sustentam a lógica mercantil. desta forma, negado o caráter científico do
conhecimento produzido em decorrência
A negação da praxis de seu viés cultural e
enquanto possibilidade de exercício de poder,
de transformação a par- adentramos ao campo
tir da relação entre teoria “Aqui, a prática da epistemologia da prá-
e prática (a teorização
é uma impossibilidade)
é tomada em tica, que teve em Schön
um de seus principais
implica na negação da seu sentido propositores no início da
centralidade da catego- década de 1990.
ria trabalho, compreen- de atividade,
dido em sua dimensão destituída de Esse autor, a partir de
geral, ontológica, como seus estudos sobre edu-
constituinte do ser so- caráter teórico” cação profissional, apre-
cial; nessa concepção, senta uma nova episte-
passa a ser substituído mologia, que advém do
pela categoria cultura, conhecimento que os
dimensão superestrutural que se constitui a profissionais constroem a partir da reflexão
partir de diferentes modos de vida, que por sobre as suas práticas, "pensando o que fa-
sua vez constituem múltiplas identidades a zem, enquanto fazem", em situações de in-
partir da coexistência de múltiplos papéis vi- certeza, singularidade e conflito.
vidos pelos sujeitos.
Ao afirmar "que os problemas da prática
A dimensão pragmatista da aprendiza- do mundo real não se apresentam aos pro-
gem flexível fissionais com estruturas bem-delineadas" e
que, "na verdade, eles tendem a não se apre-
A prática é tomada como ponto de par- sentar como problemas, mas na forma de es-
tida e ponto de chegada do conhecimento, truturas caóticas e indeterminadas" (2000, p.
mas não na perspectiva materialista histórica, 16), Schön destaca que há situações em que
que supõe a reflexão teórica sobre a prática, não há respostas certas ou procedimentos
que leva a sínteses teóricas mais elaboradas, -padrão, fugindo das estratégias convencio-
que por sua vez orientam práticas diferencia- nais de explicação. Propõe, então, um ensino
das, de caráter transformador. Aqui, a prática prático reflexivo, baseado numa epistemolo-
gia da prática que abra espaço para o talento dade que ele conhece.
artístico, apresentando outros dois conceitos: O problema que esta concepção apresen-
conhecimento-na-ação e reflexão-na-ação. ta, é a redução da formação ao conhecimen-
to tácito e à prática, ao seu caráter meramen-
Ao desenvolver o ensino prático reflexivo, te instrumental.
Schön esclarece que é "um ensino prático vol-
tado para ajudar os estudantes a adquirirem A epistemologia da prática, contrapondo-
os tipos de talento artístico essenciais para se à concepção de práxis, desvincula a práti-
atuarem em zonas indeterminadas da prática" ca da teoria, que passa a supor-se suficiente;
(2000, p. 25). As principais características do a prática, tomada em seu sentido utilitário,
ensino prático-reflexivo são o aprender fa- contrapõe-se à teoria, que se faz desnecessá-
zendo, a instrução e o diálogo de reflexão- ria ou até nociva. Neste caso, a teoria passa a
na-ação entre instrutor e estudante. O autor ser substituída pelo senso comum,
utiliza a expressão "talento artístico profissio-
nal" para referir-se "aos tipos de competências que é o sentido da prática, e a ela não
que os profissionais demonstram em certas se opõe. Em decorrência, justifica-se uma
situações da prática que são únicas, incertas formação que parte do pressuposto que
e conflituosas" (SCHÖN, 2000, p. 29 - grifos no não há inadequação entre o conhecimento
original). do senso comum e a prática, o que con-
fere uma certa tranquilidade ao profissio-
Conhecer-na-ação revela-se, para Schön, nal, posto que nada o ameaça; o contrário
por um tipo de inteligência tática e espontâ- ocorre com relação à teoria, cuja intromis-
nea que somos incapazes de tornar verbal- são parece ser perturbadora. ( KUENZER,
mente explícita. Já a reflexão-na-ação agrega 2003, p.9).
uma função crítica, questionando a estrutura
dos pressupostos do ato de conhecer-na-ação.
Para ele, ao pensarmos criticamente na ação,
podemos reestruturar as estratégias de ação
(SCHÖN, 2000, p. 33).
não sistematizadas, derivadas das respostas como totalidade ricamente articulada e com-
criativas para resolver os problemas do co- preendida, mas também como prenúncio de
tidiano do trabalho e das relações sociais, novos conhecimentos que estimulam novas
no esforço de compreendê-las e sistematizá buscas e formulações. (Kosik, 1976)
-las, mas sempre a partir delas mesmas. Ou
seja, à medida em que conhecimentos táci- No processo de construção do conheci-
tos vão sendo desenvolvidos pela experiên- mento, o ponto de partida é apenas formal-
cia, serão objetos de reflexão em busca de mente idêntico ao ponto de chegada, uma
sua sistematização, sem a mediação da te- vez que, em seu movimento em espiral cres-
oria; esse processo leva a aprendizagens no cente e ampliada, o pensamento chega a um
próprio processo – o aprender a aprender, a resultado que não era conhecido inicialmen-
criar soluções pragmáticas que podem ser in- te, e projeta novas descobertas. O ponto de
tercambiadas pela linguagem, uma vez com- partida para a aprendizagem é sincrético,
preendidas pela reflexão. As aprendizagens nebuloso, pouco elaborado, senso comum;
colaborativas, mediadas pelas tecnologias, o ponto de chegada é uma totalidade con-
serão resultantes desse processo de troca de creta, onde o pensamento recapta e com-
experiências práticas sem, necessariamente, preende o conteúdo inicialmente separado
reflexão sustentada teoricamente. e isolado do todo; posto que sempre síntese
provisória, esta totalidade parcial será novo
No campo epistemológico do materialis- ponto de partida para outros conhecimen-
mo histórico, ao se afirmar que o conheci- tos. Os significados vão sendo construídos
mento resulta da ação do aluno, tem-se uma através do deslocamento incessante do pen-
compreensão radicalmente diferente. A ação samento a partir das primeiras e precárias
do aluno resulta de um movimento no pen- abstrações para o conhecimento elaborado
samento, mas a partir da materialidade para através da articulação entre teoria e prática,
apreendê-la, compreendê-la em suas múlti- entre sujeito e objeto, entre o indivíduo e a
plas dimensões e inter-relações. sociedade em um dado momento histórico.
(Kosik, 1976)
Em síntese, o método de produção do
conhecimento é um movimento que leva o A ação do aluno, portanto, diferentemen-
pensamento a transitar continuamente entre te da concepção da epistemologia da práti-
o abstrato e o concreto, entre a forma e o ca, refere-se ao movimento do pensamen-
conteúdo, entre o imediato e o mediato, en- to da prática para a teoria, e desta para a
tre o simples e o complexo, entre o que está prática, para ressignificá-la; esta explicação
dado e o que se anuncia. Esse processo tem é necessária para que fique claro que, em-
como ponto de partida um primeiro nível de bora em ambos os casos se defenda a ação
abstração composto pela imediata e nebulo- do aluno, as concepções, a ação docente e
sa representação do todo e como ponto de as metodologias que delas decorrem, são,
chegada as formulações conceituais abstra- mais do que distintas, opostas. No materia-
tas; nesse movimento, o pensamento, após lismo histórico, situam-se no campo da prá-
debruçar-se sobre situações concretas, volta xis; na aprendizagem flexível, no campo do
ao ponto de partida, agora para percebê-lo pragmatismo decorrente do ceticismo epis-
Na concepção materialista histórica, dife- Jogar a criança fora com a água do ba-
rentemente da concepção de epistemologia nho?
da prática que inclusive fundamentou as di-
retrizes curriculares em suas distintas versões, A de análise levada a efeito nos itens an-
o processo de formação de professores deve teriores, em que se afirma a vinculação da
abranger não apenas o desenvolvimento aprendizagem flexível ao regime de acumula-
de competências técnicas para o exercício ção vigente, no qual o ceticismo pedagógico,
profissional, mas o desenvolvimento da capa- o pragmatismo utilitarista, a fragmentação,
cidade de intervenção crítica e criativa nos o presentismo, a individualização, desem-
processos de formação humana, porque esta penham o papel de cimento ideológico ao
é a própria natureza dos processos educati- acirramento do processo de exploração em
vos. E, na perspectiva da simetria invertida, curso, pode levar à constatação da impossibi-
a objetivação desta relação no percurso for- lidade de utilização das tecnologias de infor-
mativo melhor capacitará o futuro professor mação e comunicação nos processos de en-
para exercê-la em sua prática laboral. sino, o que seria um equívoco. Se contudo,
por contradição, há positividades, elas só po-
dem ser adequadamente percebidas a partir
da radicalização – ida às raízes – da crítica.
Uma vez a crítica realizada, necessário se faz
o resgate das possibilidades pedagógicas das
novas tecnologias.
dos novos significados a partir de estruturas ção, a certificação pode se dar a partir do
cognitivas pré-existentes. Nesse processo, que cada aluno, no exercício de sua indivi-
ambos os conhecimentos se modificam: o dualidade, pode alcançar. Reforça-se, dessa
novo passa a ter significado, é compreendi- forma, o aligeiramento do processo educati-
do e passível de aplicação; é assimilado ao vo, bem como seu caráter meramente certifi-
conhecimento prévio, que, por sua vez, fica catório. Por outro lado, sendo bem definidos
mais elaborado. O resultado é uma síntese de os critérios de avaliação, pode haver número
qualidade superior, que se objetiva em novas significativo de alunos que não alcancem os
formas de pensar, de sentir e de fazer. objetivos propostos e não sejam certificados,
que não interessa aos cursos cuja finalidade
Em resumo, há que organizar ativida- seja mercantil.
des em que se parta do conhecido para o
novo, da parte para a totalidade, do simples Outra característica apontada por Castels
para o complexo; isso só será possível pela é a integração de todos os tipos de mensa-
ação teórico-prática do aluno nas situações gens em um padrão cognitivo comum:
de aprendizagem planejadas pelo profes-
sor, com base, sempre, em práticas sociais diferentes modos de comunicação
e de trabalho que deverão ser analisadas tendem a trocar códigos entre si... crian-
e transformadas a partir de aportes teóricos do um contexto semântico multifaceta-
cada vez mais amplos e mais complexos. do composto de uma mistura aleatória
Nas atividades presenciais o professor terá de vários sentidos... reduzindo a dis-
condições de identificar os conhecimentos tância mental entre as várias fontes de
prévios dos alunos e organizar e reorganizar envolvimento cognitivo e sensorial: pro-
atividades que viabilizem a aprendizagem, gramas educativos parecem videoga-
de modo a enfrentar diferenças de acesso ao mes; noticiários são construídos como
conhecimento e a experiências significativas espetáculos audiovisuais, julgamentos
derivadas de condições materiais de existên- parecem novelas (CASTELS, 1999, p.
cia desiguais. E, a partir da identificação das 394).
desigualdades, ter como horizonte a univer-
salização do acesso à educação como direito Em decorrência, o usuário precisará
fundamental. ter um amplo domínio sobre as diferen-
tes formas de linguagem para exercer a
Na aprendizagem flexível, o atendimento diferenciação crítica sobre seus usos e
individualizado só se dá no que tange a tem- finalidades não explicitadas, assim como
pos e espaços; no mais, o percurso metodo- autonomia para trabalhar intelectual e
lógico é padronizado, independentemente eticamente, o que não é a realidade de
das condições de vida e conhecimentos pré- expressivo número de estudantes, dadas
vios; as diferenças até podem ser objeto de as clivagens acima apontadas, em parti-
tratamento pelo tutor, mas há limites a essa cular a de classe social, que define formas
intervenção, que pode ser efetiva quando desiguais de acesso ao conhecimento e
as diferenças são pouco significativas. A não desenvolvimento de competências cogni-
haver critérios bem estabelecidos de avalia- tivas complexas.
Outra dimensão a considerar, apontada das injustiça fazem parte da sociedade do es-
desde os anos 90, é o risco da banalização petáculo. (Debors, 2013)
do esforço, da passividade cognitiva, da per-
da de interesse pela leitura, características Nesse contexto, a motivação, o esforço e a
cada vez mais presentes entre os estudantes disciplina necessários ao trabalho intelectual
de todos os níveis e modalidades educativas. são rapidamente descartados.
Aprender depressa e sem esforço, é o desejo
permanente manifesto. Para atendê-lo, de- Finalmente, Castels aponta o que denomi-
senvolve-se uma pedagogia mercantilizada na de característica mais importante da multi-
que oferece opções de curta duração, baixo mídia: a captação da maioria das expressões
custo e reduzida qualidade, presenciais e à culturais, em toda a sua diversidade,
distância, e que o pouco esforço intelectual
é recompensado com um certificado tão va- equivalendo ao fim da separação entre
zio de significado quanto incapaz de facilitar mídia audiovisual e mídia impressa, cultu-
a inclusão. ra popular e cultura erudita, entretenimen-
to e informação, educação e persuasão;
Ainda há que considerar que a relação todas as expressões culturais, da melhor à
com o conhecimento mediada pelas novas pior, da mais elitista à mais popular, vêm
tecnologias se dá de outras formas, em par- juntas neste universo digital que liga, em
ticular em face da fragmentação caleidoscó- um supertexto histórico gigantesco, as
pica propiciada pelos avanços tecnológicos, manifestações passadas, presentes e futu-
amplamente disponibilizados em equipa- ras da mente comunicativa; com isto, elas
mentos de todos os tipos e preços; ao nave- constroem um novo ambiente simbólico;
gar no hipertexto, perde-se o foco e esque- fazem da virtualidade a nossa realidade (
ce-se do objetivo inicial com facilidade; desta CASTELS, 1999, p. 394).
forma, as informações, muitas de qualidade
discutível tanto do ponto de
vista científico quanto ético, se
sucedem rapidamente; perde-
se a capacidade de reflexão e
de crítica, em nome do espetá-
culo. O que a mídia reproduz é
a verdade; os ídolos midiáticos
definem formas de linguagem,
posturas e padrões de consu-
mo; a ética é substituída pela
estética e o que atrai e motiva é
a conjugação de movimentos,
cores, formas e sons, integrados
pelas mídias de forma cada vez
mais espetacular. A estetização
da violência e a banalização