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Sobre a Prática

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Muito obrigado pelas perguntas Dominar a arte de amar é ultrapas-
enviadas até agora. Através delas este sar o desejo de controlar e de de-
material pode servir cada vez mais para pender
dar resposta às dúvidas de cada membro Um dos grandes obstáculos à alegria
ou novo praticante. Para qualquer questão de amar é o nosso desejo de contro-
sobre o budismo de Nichiren Daishonin, lar. Confundimos por vezes o desejo
continuem a enviar perguntas para:  de controlar os outros com a nossa
sobreapratica@gmail.com  preocupação por amor. Podemos
pensar que somos afectuosos; no
entanto, o nosso “amor” pode ser um
O Que o Amor Não É desejo disfarçado de manipular os
outros para o nosso próprio proveito.
Nos seus escritos, Nichiren Daishonin
O que parece ser amor, por vezes usa frequentemente um criatura bu-
pode não ser amor de todo dista mítica chamada o “rei demónio
“Amor não é amor…” Tal como do sexto céu” como uma metáfora
Shakespeare escreveu (Soneto 116), para o desejo enraizado do ser hu-
o que por vezes parece ser amor, mano de controlar os outros. De fac-
pode não ser amor de todo. Por muito to, outro nome para este rei demónio
que o assunto do amor ocupe muito significa literalmente o “ser celestial
as mentes das pessoas (e talvez mui- que faz uso livre dos outros” (Jap.
to do seu tempo e dinheiro), a sua takejizaiten). Através das suas des-
grande preocupação parece centrar- crições vívidas deste “demónio”,
se em encontrar amor ou tornar-se Daishonin parece indicar a importân-
amável aos olhos dos outros, em vez cia de nos tornamos vigilantes e
do significado do amor ou da capaci- conscientes do nosso desejo de usar
dade de amar. A premissa subjacente os outros como um meio para os
de tal atitude pode ser que o amor é nossos fins egoístas. Um vez que a
um sentimento de prazer e conforto dependência é essencial para o con-
que apenas é estimulado por um ob- trolo, o rei demónio usa vários es-
jecto externo. O remédio comum para quemas para fazer as pessoas de-
uma vida sem amor, portanto, é en- pendentes dele. Uma das suas gran-
contrar esse objecto – alguém novo e des ferramentas para encorajar a
melhor. Erich Fromm, um psicólogo dependência é através de falso afec-
conceituado e filósofo social, conside- to. Apesar da percepção geral do rei
ra o amor como uma “arte” que “re- demónio como um monstro terrível,
quer conhecimento e esforço”; ele ele é perito em apresentar-se de for-
define o amor como “a preocupação ma afectuosa. Para enganar as pes-
activa pela vida e crescimento daquilo soas e mantê-las debaixo do seu con-
que amamos” (A Arte de Amar, pp. 1, trolo, o rei demónio é descrito como
25). Se o amor é a nossa capacidade fazendo-se parecer como um Buda
de desejar e agir pela felicidade e li- ou um pai. Por exemplo, Daishonin
berdade de outra pessoa, uma solu- afirma, “O rei demónio de sexto céu é
ção fundamental para o sofrimento do dotado com as 32 características do
amor deve ser procurada não fora, Buda e manifesta o corpo do Buda”
mas no desenvolvimento do carácter (Gosho Zenshu, p. 114). Daishonin
e força interior que nos torna capazes cita um comentário budista, que afir-
de amar de forma mais genuína e ma, “se pessoa não se tentar afastar
poderosa. dos sofrimentos da vida e da morte e
aspirar ao veículo do Buda, o demónio irá oportunidade de mostrarem a sua superio- 25
olhar por ele como um pai” (WND-1, p. ridade e assim lembra aos que sofrem da
770). De facto, também existe um tipo de necessidade de dependerem. No cerne de
demónio na tradição budista chamado “o uma relação construída sobre o domínio e
demónio da compaixão” (Gosho Zenshu, p. a submissão, reside um profundo sentido
526). Aqueles que estão desejosos de con- de insegurança e de impotência de ambos
trolar os outros frequentemente parecem os lados. Aqueles que gostam de dominar
afectuosos – “tomando conta deles” ou não podem verificar o sentido das sua exis-
“sendo queridos para com eles” – com o tência sozinhos, pelo que têm de ir buscar
objectivo de os manter dependentes mate- um sentido de poder à subjugação dos ou-
rial ou emocionalmente. Na peça de Ibsen, tros. Da mesma forma, aqueles que se
“A Casa de Bonecas” o aparentemente submetem facilmente a uma autoridade
afectuoso, mas controlador marido Torvald exterior não conseguem ver o seu próprio
Helmer lembra à sua mulher, Nora, o seu valor. Portanto, eles sentem-se impelidos a
“amor” expresso sob a forma de apoio fi- tornarem-se parte de alguém “melhor “ e
nanceiro: “A minha querida gatinha é muito “mais forte” abandonando a sua identidade
doce, mas escapa-se com imenso dinheiro. e integridade. Para estas pessoas submis-
É incrível o quão dispendioso é para um sas, controlar significa protegerem-se con-
homem manter uma tal gatinha” (Acto 1, tra a sua própria insegurança. Aqueles que
para inglês de James McFarlane e Jens são submissos perante uma autoridade ex-
Arup, para português tradução livre). terna não vêem as suas vidas como mere-
A verdade do amor encontra-se na nos- cedoras de ser vividas, mas também não
sa sinceridade para agir pela felicidade conseguem aguentar o vazio de não terem
e liberdade dos outros alguém para quem viver. Por isso têm de
procurar um objecto externo com o qual
É fácil confundir controlo e dependência possam fundir a sua identidade de modo a
com amor. A aparência do amor egoísta, não terem de enfrentar a fraqueza e o va-
contudo, tal como a do rei demónio, é me- zio das suas próprias vidas. Esta relação
ramente enganadora, uma vez que depen- simbiótica entre o que domina e o que é
de da submissão. Tal como Dashonin assi- submisso é perturbada quando o elemento
nala, o rei demónio é afectuoso “desde que submisso desvenda o seu valor e desen-
uma pessoa não tente afastar-se do seu volve a força interior para se tornar inde-
controlo” (WND-1, 770). Algumas pessoas pendente. É então que a insegurança do
podem dar tudo aos seus “seres amados” elemento dominante vem à superfície na
com o único objectivo de os manterem de- forma de frustração e ira. As seguintes
pendentes. Porém, para aqueles que estão descrições de Daishonin em relação ao rei
obcecados com o controlo é difícil desejar demónio ilustram o seu intenso medo e an-
a genuína felicidade e independência dos siedade em relação a esta questão:
outros. Ao invés, eles desejariam ver os “Quando então nos aproximamos de atingir
outros diminuídos de uma forma ou de ou- a Budicidade… o rei demónio do sexto céu,
tra de modo a manterem o seu sentimento senhor do mundo tríplice, pensa: “Se estas
de superioridade. O teste do nosso amor, pessoas se vierem a tornar Budas, eu vou
neste sentido, reside na nossa sinceridade sofrer uma perda por duas razões. Primei-
para encorajar e no nosso trabalho pela ro, caso se libertem do mundo tríplice, vão
autonomia e liberdade dos nossos amados. fugir ao meu controlo. Segundo, caso de
Tal como Daishonin declara, “a natureza tornem Budas, os seus pais e irmãos irão
deste demónio é a de se regozijar com também sair do mundo de saha. Como
aqueles que criam o karma dos três maus posso impedir que isto aconteça? (WND-1,
caminho e sofrer com aqueles que formam 1094). “Quando uma pessoa comum dos
o karma dos três bons caminhos” (WND-1, Últimos Dias está pronta para atingir a Bu-
42). Aqueles que prosperam através do dicidade… este demónio fica verdadeira-
dominarem podem facilmente mostrar pena mente surpreendido. Pensa para consigo,
pelos que sofrem, embora interiormente se “Isto é uma vergonha. Se permitir que esta
deliciem com isso. Isto porque a infelicida- pessoa se mantenha no meu domínio, ela
de dos outros dá aos que controlam outra
não só se libertará dos sofrimentos do nas- fortalecermos a nossa confiança na Budici- 26
cimento e da morte, como irá também con- dade que existe no interior das nossas vi-
duzir outros à iluminação. Além disso, ela das, é então uma prática essencial para a
irá tomar conta do meu reino e transformá- arte de amar.
lo numa terra pura. O que devo fazer?” (Publicado originalmente no World Tribu-
(WND-1, 894). ne, 7 de Dezembro, 2001)
Para amarmos verdadeiramente, temos http://www.sokaspirit.org/study/new-light/11.
de nos libertar da escuridão fundamen- -what-love-is-not)
tal interior
O rei demónio não quer que ninguém atinja
a Budicidade e se torne livre, já que isso
seria uma recordação penosa da sua pró-
pria impotência e dependência. O paradoxo
deste rei demónio, que “reside do topo do
mundo do desejo e domina o mundo trípli-
ce” (WND-1, 508) é que ele é controlado
pelo seu próprio desejo de controlar. O rei
demónio é um governante que não se con-
segue governar a si próprio. Quanto mais
controlo tem, mais dele precisa. É perpetu-
amente motivado pela sua fraqueza e inse-
gurança interiores, nunca estando satisfei-
to. É prisioneiro da prisão que cria para si
próprio. Apesar de se dizer que “usa livre-
mente dos outros”, nunca é livre na reali-
dade mais profunda da sua vida. O rei de-
mónio é por isso incapaz de amar. Diz-se
que o rei demónio habita no sexto e mais
elevado céu do mundo do desejo, mas o
seu “amor”, se assim pode de todo ser
chamado, resulta apenas numa profunda
insatisfação e sofrimento subjacentes ao
seu prazer celestial. Tal como William Blake
sabia, este “Amor [egoísta] somente a si
quer contentar, / Atar alguém ao próprio
gozo eterno;/ Sorri quando o outro perde o
bem-estar, /E, a despeito do Céu, ergue um
Inferno." (“The Clod & the Pebble,” ed. Da-
vid V. Erdman). Para amarmos verdadei-
ramente, temos de ser livres. Por isso, para
sermos livres, temos de descobrir o nosso
valor inato. No mesmo soneto acima referi-
do, Shakespeare também escreveu, “Não
admita eu impedimentos ao casamento de
mentes verdadeiras”. Um dos principais
impedimentos à nossa capacidade de amar
é uma ilusão acerca da verdade da nossa
vida interior – a Budicidade. Tal ilusão con-
duz à impotência e à dependência. O míti-
co rei demónio é simbólico desta ilusão,
como Daishonin nos diz, “A escuridão fun-
damental manifesta-se na forma do rei de-
mónio do sexto céu”(WND-1, 1113). Ilumi-
nar esta “escuridão fundamental” interior ao

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