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A metalinguagem das roupas

Gilson Monteiro∗

Índice de si próprio, refletida no que se poderia cha-


mar de seu objeto de desejo.
1 Introdução 1 No caso da roupa, essa simbologia é maior
2 O código que une e divide 2 na sociedade moderna, muito embora, as
3 Da cabeça aos pés 5 mudanças sejam rápidas e a representativi-
4 A voz moderna das roupas 6 dade de uma roupa, como moda, não dure
5 Conclusão 9 mais que uma estação. No entanto, essas
6 Bibliografia 10 mudanças, de certa forma, se alimentam de
idéias anteriores, o que na Literatura, por
1 Introdução exemplo, se chama de intertextualidade. No
caso da moda, essa realimentação é pura me-
A simbologia das roupas varia de cultura talinguagem.
para cultura. Para o homem moderno, en- De uma forma geral, a roupa sempre re-
tão, representa uma espécie de espelho de si presentou algo de mitológico e uma marca da
mesmo. Quando o consumidor decide com- separação da sociedade em castas e classes.
prar uma roupa, ele não está apenas com- A roupa, tanto modernamente quanto antiga-
prando alguns pedaços de panos bem costu- mente, serve para distinguir a classe social
rados. Ele está comprando sua própria alma, a qual o indivíduo pertence. Carrega todo o
para se refletir no outro. Está comprando significado do papel que o indivíduo repre-
também toda a representação imagética de senta dentro da sociedade. Modernamente,
grupo que a vestimenta representa. não representa tanto uma classe social, mas,
Esse processo de reflexo de si mesmo nos é uma forma de distinguir o grupo ao qual o
objetos comprados não se refere apenas às indivíduo pertence.
peças de vestuário. "Vender um produto, À primeira vista, a representação dos pa-
antes de mais nada, é trabalhar para que o péis é simbolizada exatamente pelo modo de
possível comprador crie imagens interiores se vestir, muito embora não haja nenhuma
à simples menção do nome do produto". O garantia de que o uso de uma roupa conside-
consumidor, então, no processo de compra, rada da "moda"possa assegurar que a perso-
estaria comprando uma imagem que ele faz nalidade de quem a usa está de acordo com o

Professor da Universidade do Amazonas, Douto- papel que a pessoa representa ao usar deter-
rando da Escola de Comunicações e Artes da Univer- minada roupa. A roupa "elegante"está sem-
sidade de São Paulo (ECA-USP). pre associada às classes sociais mais abasta-
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das, mais educadas e mais finas, ao passo que Determinadas peças do vestuário, tinham
a roupa mais simples representa um cidadão significados bem diversos dos atuais. Mas, o
da mesma forma: mais simples, menos edu- que pretendo mostrar é que, na essência, os
cado, com menos dinheiro. significados sofrem variações mas mantêm
Este trabalho pretende mostrar que, com um núcleo praticamente imutável, que, po-
algumas variações simbólicas, as roupas re- deríamos dizer, é o passado que volta. Modi-
presentam, através dos tempos, exatamente ficado, mas volta, contrariando as previsões
uma opção ideológica, a divisão de classes, e de Karl Marx de que a história só se repete
a opção social, de grupo, mostrada destaca- como tragédia. No caso do vestuário, nos pa-
damente através do objeto de ostentação de rece que a tragédia não acontece, ao contrá-
quem as usa. rio, retroalimenta.
Para sacramentar essa divisão e o caráter
dessa simbologia, a propaganda seria um ob-
2 O código que une e divide
jeto criador desse desejo de diferenciação,
próprio do ser humano. Logo, a compra de A roupa sempre representou um traço da in-
uma roupa não é apenas uma decisão soli- dividualidade. É uma forma de a pessoa de-
tária do consumidor. Carrega enorme sim- monstrar que é única, que pode se diferir das
bologia e representa nitidamente mais uma outras em função do que usa. Através dos
comunicação, mais um sinal de quem as usa tempos, o traje carregou essa representação
dentro desse processo global de comunica- de classe, de casta social: É como se a pessoa
ção dos seres humanos. dissesse: eu pertenço à determinada classe, à
Ao entrar em uma butique, em uma loja determinada casta, ao ostentar uma roupa.
de roupas, o consumidor não busca apenas Mesmo dentro dessas castas, a roupa sem-
proteger o corpo. Não quer apenas um ob- pre teve uma caráter de marcar uma distin-
jeto útil. Quer a diferenciação que essa roupa ção, ou seja, é capaz de marcar a criação de
pode dar e a mensagem que pode transmitir subgrupos dentro de um grupo. Representa
através dela. "O traje manifesta o pertencer também o desapego entre o mundo real e o
a uma sociedade caracterizada: clero, exér- mundo imaginado pela pessoas: "A vesti-
cito, marinha, magistratura etc. Tirá-lo é, de menta dos monges budistas não evoca ape-
certa forma, renegar essa relação"(Chevalier, nas o desapego ao mundo, o pó e os trapos
Gheerbrant, 1991). recolhidos ao acaso nos caminhos. A in-
A sociedade moderna vive uma verdadeira vestidura do patriarca zen se faz através da
corrida contra o relógio: a corrida da atu- transmissão da túnica, a kasaya."( Chevalier,
alização, da moda. No entanto, essa cor- Gheerbrant, 1991).
rida não retirou da roupa, do vestuário, seu A roupa era, em verdade, era um objeto
significado de marcar, de forma clara, uma de sacralização e tinha significados diver-
divisão em grupos e de se realimentar dos sos, dependendo de cada cultura: "As ves-
significados do passado, no que poderíamos timentas sacerdotais hebraicas lembravam
chamar de retroalimentação metalingüística, as correspondências macro-microcósmicas,
ou seja, uma forma de recuperar o tempo e e sua franjas a chuva da graça. Com maior
reinterpretá-lo. freqüência, faz-se uso de um traje hierático, e

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observou-se que em países muçulmanos esse roupas, mas na mente de quem as compra.
hieratismo estendia-se ao traje civil. O traje No fundo, para essas pessoas a roupa é uma
hierático é, por excelência, o da peregrina- representação do próprio ser humano.
ção, muitas vezes uma roupa branca, no Islã, "A roupa - própria do homem, já que ne-
no Irã xiita, no Japão, budista ou xintoísta. nhum outro animal a usa - é um dos pri-
O peregrino devia trocar a sua roupa habi- meiros indícios de uma consciência da nu-
tual por uma roupa especial que o sacrali- dez, de uma consciência de si mesmo, da
zasse."(Chevalier, Gheerbrant, 1991). consciência moral. É também reveladora de
Em outras culturas, a roupa era símbolo certos aspectos da personalidade, em espe-
de nobreza, graça e harmonia e demons- cial do seu caráter influenciável (modas) e
trava a retidão de espírito de quem as usava: do seu desejo de influenciar. O uniforme,
"O Li-ki dá a maior importância ao simbo- ou uma peça determinada do vestuário (ca-
lismo da roupa, que condiciona o porte no- pacete, boné, gravata etc.) indica a associa-
bre e as virtudes daquele que a veste: é feita ção a um grupo, atribuição de uma missão,
de doze faixas, como o ano de doze meses um mérito..."(Chevalier, Gheerbrant, 1991).
(harmonia); as mangas são redondas (graça Roland Barthes, no livro O Sistema da
de movimento); a costura dorsal é reta (re- Moda, diz que a ideologia da moda trata-se
tidão); a bainha, horizontal (paz do cora- de uma significação recebida mas não lida:
ção)"(Chevalier, Gheerbrant, 1991). "Ao invés de ser decifrada claramente pela
A roupa, para o homem moderno, no leitora de Moda ela se impões através de
fundo, representa esse mesmo manto da sal- sua nebulosidade, de sua imprecisão maciça.
vação. É uma forma de o homem demons- Este significado é constituído por uma visão
trar que pertence a determinada classe social a um tempo eufórica e sincrética do mundo,
ou grupo. Demonstra, através das roupas, na própria medida em que tolera a coexistên-
o quanto é bem sucedido, o quando soube cia de contrários"( Mallac, Eberdach, 1977).
e pôde se destacar dos demais. A roupa Nosso objeto de análise está justamente
é símbolo de status e diferenciação social dentro do que Barthes, em seu clássico livro
e da diferenciação dentro do próprio grupo. sobre Moda, chamou de Sistemas dos con-
Através dos tempos, seus significados muda- juntos B, ou seja, os enunciados com sig-
ram mas o requinte social que representa está nificados implícitos. Esses significados im-
cada vez mais presente e serve como apelo plícitos são explorados exatamente pela pu-
de vendas. blicidade de moda para levar o consumidor
Os profissionais de marketing exploram a tomar sua decisão de compra, pois, nes-
exatamente essa simbologia da vestimenta, ses sistemas dos conjuntos B encontram-se
que representa não-apenas um atributo exte- os significados de ascensão de classe social
rior ao ser humano. Ao contrário, a roupa e a representatividade de castas que as rou-
é uma expressão da realidade social e fun- pas carregam ao longo dos séculos.
damental de cada ser humano. Por isso, os Mesmo porque, a questão da utilidade da
apelos de venda são dirigidos, em sua mai- roupa foi deixada de lado há anos. "... no
oria, às pessoas que buscam esse valor per- nosso vestuário, o que serve realmente para
cebido, que não existe intrinsecamente nas cobrir ( para proteger do calor ou do frio

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e para ocultar a nudez que a opinião pú- É um emaranhado de signos que busca em
blica considera vergonhosa) não supera os si mesmo o objeto da comunicação. Daí, ao
cinqüenta por cento"(Eco, 1989). mesmo tempo que se caracteriza como uma
O próprio Eco completa: "a distinção en- das funções da linguagem, a metalinguagem,
tre dizer que e servir para é mínima", muito por isso mesmo, serve como meio implícito
embora, para a maioria dos consumidores de de marcar, claramente uma divisão de clas-
roupas, o dizer que é muito mais importante ses.
na tomada de decisão de compra do que o O que é uma língua? Um sistema de có-
servir para."Porém, essa distinção mínima digos. Os sinais de trânsito? Nada mais
de que nos fala Umberto Eco serve também, são do que outro sistema de códigos. E a
para, no decorrer dos anos, as roupas se reali- roupa? Ora, o vestuário, como diz Umberto
mentarem de seus significados e serem clas- Eco, bem depois de Roland Barthes, é claro,
sificadas como nítido exemplo de metalin- "fala". "Mensagens de perfil metalingüístico
guagem. operam, portanto, com o código e o presen-
A mitra, por exemplo, não é um tipo de tificam na mensagem"(Chalub, 1987).
chapéu que serve apenas para proteger da No decorrer da história a moda se com-
chuva. É a síntese da afirmação: "sou um porta, através das roupas, como um código
bispo". "A funcionalidade física adquire um "recheado"de operações metalingüísticas, ou
valor comunicativo a tal ponto que se torna seja, a moda opera com o código. E este,
acima de tudo um sinal", nos diz Umberto se renova através dos tempos exatamente por
Eco. E complementa: esse processo de metalinguagem, que busca
"Basta o exemplo da pele envergada pelo na roupa a renovação do seu círculo his-
nosso homem primitivo por razões especial- tórico, sempre buscando elementos em si
mente funcionais. Tinha frio e cobria-se, não mesma para a renovação.
há dúvida. Mas também, não há dúvida que Daí, minha tese de que essa retroalimenta-
no espaço de poucos dias depois da inven- ção metalingüística não serve apenas como
ção do primeiro trajo de peles, se terá criado forma de renovação da moda, mas também,
a distinção entre os bons caçadores, muni- e, principalmente, como forma de manter um
dos das suas peles, conquistadas pelo preço status quo, marcadamente através das rou-
de um dura luta, e outros, os inaptos, os sem- pas. Assim, também, o elemento que reali-
peles. E não é preciso muita imaginação para menta o processo comunicacional marca, de
imaginar a circunstância social em que os ca- forma definitiva uma divisão de classes, ou
çadores terão envergado as peles, já não para seja, o consumo da roupa, no fundo, é um
proteger-se do frio, mas para afirmar que per- ato carregado de ideologia mas, ao mesmo
tenciam à classe dominante",(Eco, 1989). tempo, de história.
"Talvez mais do que outros materiais, rou- O jornal Folha de S. Paulo, por exemplo,
pas são consumidas como funções benéficas, publicou, no caderno de economia do dia 23
mas também como significados simbólicos de junho, denominado "Dinheiro", matéria
de gosto, estilo de vida e identidade"(Cox, cujo título era: "Políticos se vestem como
Dittmar, 1995). O que Cox e Dittmar não 15 anos de atraso". Assinada pela jornalista
afirmam claramente é que a roupa comunica. Suzana Barelli, a matéria procurava mostrar

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essa dicotomia entre o homem moderno e proteção: nem a de um lugar material, nem
seu modo de vestir, analisando a prática dos a de um grupo, nem a de um amor. dar até a
políticos brasileiros. própria camisa, ao contrário, significa gene-
Isso comprova que além de marcar época, rosidade sem limites. É o gesto de quem par-
"a roupa, enquanto sistema de sinal, com- tilha sua intimidade"(Chevalier, Gheerbrant,
põe uma mensagem, uma vez que, no suporte 1991).
do corpo do usuário, há um recorte da sele- A camisa em si já traz sua representação,
ção do código (mesmo quando não selecio- mas o material do qual é feita também serve
nado para combinar, a displicência informa para mostrar a qual classe social ou o grupo
a displicência...). Essa linguagem, portanto, ao qual pertence quem a usa: "O próprio ma-
comunica, mas sobretudo informa, enquanto terial de que é feita a camisa, em contato com
moda, a história da roupa. (Chalub, 1987). o corpo, matiza seu simbolismo: cânhamo
Umberto Eco reafirma esse caráter ideo- rude, a de camponês ou asceta; linho fino,
lógico da linguagem do vestuário, quando a das pessoas da sociedade; seda preciosa, a
nos diz: "Porque a linguagem do vestuário, dos ricos; e a camisa bordada que se usa nas
tal como a linguagem verbal, não serve ape- cerimônias etc. cada uma delas assinala um
nas para transmitir certos significados, me- personagem"(Chevalier, Gheerbrant, 1991).
diante certas formas significativas. Serve Da camisa, passamos para o cinto, que, de
também para identificar posições ideológi- acordo com a Bíblia Sagrada, é a primeira
cas, segundo os significados transmitidos e das peças do vestuário. Observações etno-
as formas significativas que foram escolhi- gráficas confirmam a versão bíblica. Isso
das para transmitir"(Eco, 1989). significa que o cinto é o mais antigo dos ele-
mentos do traje do homem moderno. Antigo,
ou não, traz uma ambivalência simbológica
3 Da cabeça aos pés
representada por dois verbos: o religar e o
Os significados e as formas de transmiti-los, ligar.
de que nos fala Umberto Eco, ficam marca- O primeiro significa atar, ligar bem. Com
dos até mesmo em algumas peças do vestuá- isso, o cinto tranqüiliza, dá força e poder. Ao
rio e confirmam a tese de que os significados mesmo tempo, o cinto liga. E, ao ligar, que
chegam até nós como variações do que sig- significa atar, prender, o cinto representa a
nificavam em era idas. Algumas peças do submissão, a dependência. É uma espécie
vestuário carregam uma simbologia própria. de restrição da liberdade. "...Ele se torna um
A camisa, por exemplo, tem significados di- emblema visível, muitas vezes glorificante,
versos, mas, no fundo, um núcleo comum. que proclama a força e os poderes dos quais
Tê-la ou não representa um estado de espí- seu portador está investido: tais como, por
rito, de acordo com a situação enfrentada, e exemplo, as faixas dos judocas na diferentes
isso não mudou muito nos dias atuais: "Estar cores, os cinturões dos soldados, aos quais
desprovido de camisa é sinal não apenas do estão penduradas as armas, a faixa do pre-
mais extremo despojamento material, como sidente da câmara municipal (França), e os
também de uma completa solidão moral, e inúmeros cintos votivos, iniciáticos ou usa-
de ser relegado pela sociedade; já não existe dos nas ocasiões solenes, mencionados nas

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tradições e ritos de todos os povos". "O 4 A voz moderna das roupas


cinto protege contra os maus espíritos, da
É certo que algumas peças de roupas per-
mesma maneira que os cinturões de proteção
deram seu significado primitivo com o pas-
ao redor das cidades as protegem dos inimi-
sar do tempo. Mas, é verdade também que,
gos".(Chevalier, Gheerbrant, 1991).
em sua maioria, trazem a essência de servir
Em algumas culturas antigas, as jovens
como uma distinção de classe e uma forma
costumavam exibir os cintos de castidade,
de poder, até mesmo quando observadas iso-
com orgulho, até que os noivos os desatas-
ladamente em seus significados, como o fi-
sem. Era a simbologia da virgindade, vista
zemos anteriormente.
com outros olhos que não os da cultura mo-
"A publicidade dada às escolhas e a res-
derna. Era uma forma de demonstrar a sub-
pectiva corrida conformista à imitação es-
missão da mulher ao homem com o qual es-
vaziam muitas vezes as escolhas de vestuá-
tava se casando.
rio do seu significado primitivo"(Eco, 1989).
No fundo, os vistosos cintos usados pelos
Essa ameaça de esvaziamento também preo-
jovens modernos procuram, de certa forma,
cupa Carlyle: "a roupa nos deu a individu-
marcar a mesma representação de força, po-
alidade, as distinções, os requintes sociais;
der e tranqüilidade, demonstrados no sentido
mas ameaça transformar-se em meros ma-
do verbo religar. O cinto seria uma forma de
nequins"(Carlyle in Chevalier, Gheerbrant,
religá-lo e ligá-lo ao grupo social que perte-
1991).
cem.
No entanto, o que tanto Eco quanto
Já o sapato é símbolo de afirmação social,
Carlyle sintetizam em suas afirmações são
de autoridade. "Um antigo costume russo
pontos que saltam aos olhos a partir do sur-
exigia que no banquete de bodas o guarda-
gimento da indústria da moda, o que nos faz
napo da noiva fosse dobrado em forma de
lembrar Ciro Marcondes Filho: "Notícia é
cisne e o do noivo em forma de sapato. Na
a informação transformada em mercadoria
Igreja, a noiva tenta ser a primeira a pisar so-
com todos os seus apelos estéticos, emoci-
bre o tapete de cetim cor-de-rosa sobre o qual
onais e sensacionais; para isso a informa-
se realizava o juramento na cerimônia orto-
ção sofre um tratamento que a adapta às nor-
doxa, a fim de dominar seu esposo; na noite
mas mercadológicas de generalização, pa-
de núpcias, ela devia descalçar o marido -
dronização, simplificação e negação do sub-
uma das botas do noivo continha um reben-
jetivismo"(Marcondes Filho, 1989). Esse
que e a outra, dinheiro."(Chevalier, Gheer-
mesmo fenômeno de generalização, padro-
brant, 1991).
nização, simplificação parece ter sido incor-
O calçado, representa, modernamente, a
porado pela indústria da moda. No entanto,
liberdade. É o signo de um homem que si
essa negação do subjetivismo não existe. In-
basta por si mesmo. Que é responsável pe-
capaz de esvaziar os elementos persuasivos
los seus atos. Simbolizaria a emancipação
de venda caracterizados pelo próprio código,
masculina. A independência, o poder e o
a roupa, que serve como distinção, a indús-
dinheiro. O homem que consegue comprar
tria da moda, ao contrário, explora essa sub-
seus sapatos é um homem que não depende
jetividade latente das roupas para vendê-las.
mais dos pais e da família.

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Entretanto, a preocupação de Carlyle de rem vistas como objeto de desejo, de per-


que a roupa se transformasse em mero mane- versão, e nunca como profissionais de moda.
quim não deixa de ser plausível. Moderna- Talvez daí também venha o significado de
mente, então, o manequim está muito mais efemeridade dos desfiles de modas.
presente nas campanhas publicitárias. Po- Em nenhum dos casos, porém, a roupa
rém, com isso, a roupa não perdeu seu signi- perdeu o significado de identificação do ho-
ficado. Ao contrário, ganhou mais um: o da mem com sua realidade, com o grupo ao qual
perversão, o do erro, ligados ao significado pertence. A roupa representa, inclusive, pelo
do próprio manequim. estilo, uma época, uma fase da história, ao
O manequim simboliza a identificação do mesmo tempo que representa o homem em
homem com uma matéria perecível, com busca de si mesmo através da identificação,
uma sociedade, com uma pessoa, com um assumida pela roupa.
desejo pervertido, com um erro. "É assimilar "Por exemplo, uma mulher que valoriza a
um ser à sua imagem". Ora, modernamente, qualidade e a utilidade da roupa é provavel-
esses elementos são explorados ao máximo mente menos fácil de perceber quando esco-
quando se quer vender uma roupa. Logo, os lhe novas peças do que um homem que vê
significados através dos tempos permanece- nelas um importante acessório para melho-
ram, enquanto a roupa vai incorporando no- rar continuamente seu prestígio social entre
vas significações. seus pares"(Cox , Dittmar, 1995).
"Na ocasião dos desfiles das grandes casas A evidência dessa busca do homem de me-
de costura, as espectadoras se vêem e se pro- lhorar seu prestígio junto aos outros homens
jetam nos vestidos animados por manequins, também foi ressaltada pelo jornal Folha de
naturalmente escolhidos pela beleza de suas S. Paulo, no dia 16 de junho de 1996, no-
formas. Esses manequins são destinados a vamente no caderno "Dinheiro". Em uma
desaparecer dos vestidos que usam, como matéria cujo título era "Armários denunciam
imagens admiráveis, mas efêmeras, que a re- vaidade masculina", a jornalista Suzana Ba-
alidade das compradoras substituirá. O mito relli revela o cuidado que os homens têm
da identificação funciona, nessas horas, pela com a imagem.
graça do manequim, somada à arte do costu- A psicanalista Eugênia Turenko explica:
reiro"(Chevalier, Gheerbrant, 1991). "A roupa é uma linguagem. É uma forma
César, em De Bello Gallico contava que de falar. Faz parte da pulsão Escópica, ou
Laodamia havia modelado um manequim de seja, da necessidade consciente de olhar e
cera à semelhança de seu defunto marido e ser olhado. Por outro lado, o olhar é o es-
que ela tinha o costume de o abraçar secreta- pelho. Reflete você em alguém. Por isso, a
mente. Mas seu pai descobriu e jogou o ma- roupa faz parte do imaginário das pessoas. É
nequim no fogo. Laodamia o acompanhou e o modo de vestir que caracteriza determinada
foi queimada viva. profissão e determinada pessoa."
A partir dessa lenda de César, o manequim A jornalista Nicole Pibeaut, na revista In-
assumiu esse caráter de erro, de perversão, terview, edição 190 de novembro de 1995,
de desejo. Talvez aí esteja a explicação para nas páginas 46 e 47, apresenta desenhos e ca-
o fato de, modernamente, as manequins se- racterísticas dessas mensagens que as roupas

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transmitem. Caracteriza tipos como cafetão, aquela pele passou a marcar a distinção de
brega chique, esportivo, destroy, chouchou e classe entre os caçadores: os melhores pos-
non. suíam e vestiam as melhores peças.
"O tipo, a qualidade e estilo da roupa que "Roupas fornecem um estímulo, uma in-
uma pessoa veste está intimamente ligado à sinuação visual para a cultura de classe do
classe social da pessoa"(Engel, Blackwell, usuário. Ela serve como um símbolo de
Miniard, 1995). Isto comprova que a tomada diferenciação social porque dá ao usuário
de decisão de compra de uma roupa, ainda alta visibilidade"(Engel, Blackwell, Mini-
que modernamente, traz as mesas influências ard, 1995). E essa questão da alta visibi-
de classe das épocas posteriores. O consu- lidade das roupas é estimulada e trabalhada
midor moderno busca, como o consumidor em sociedade desde cedo, fazendo com que
antigo, não-apenas proteção. Ele quer, atra- o adulto nem perceba que, ao comprar uma
vés das roupas, marcar uma diferenciação de roupa, está praticando um ato altamente ide-
classe ou de grupo, algo que, poderíamos di- ológico, intrínseco à sua formação: "embora
zer, é intrínseco às roupas, ao vestuário, seja vestir tenda para um mercado consumista
ele moderno ou antigo. desde o nascimento, diferenças de classes so-
"Os significados sociais e psicológicos e ciais nas atividades de compra de roupas e
as funções das roupas necessitam focali- de uso dessas roupas no relacionamento com
zar as diferenças de ambos os sexos. Ho- seus pares aparecem claramente na adoles-
mens e mulheres relacionam diferentemente cência"(Cox, Dittmar, 1995).
o material de suas possessões"(Cox, Dittmar, O depoimento com o qual uma estudante
1995). Mas, no caso das roupas, é evidente de 14 anos de uma escola de subúrbio ame-
que a distinção social é o traço mais impor- ricana descreve as outras estudantes, ci-
tante. "Aceitamos a proposição de que con- tado por Engel, Blackwell, e Miniard no li-
sumir bens funciona como um símbolo de vro Consumer Behavior, marca bem o que
identidade; isto é, o significado psicossocial chamo de "a voz moderna da roupas"e a pre-
que esses bens têm para os indivíduos parece sença de todos esses elementos ideológicos
refletir suas maiores regras ou categorias so- da divisão de classes que a roupa traz desde
ciais"(Cox, Dittmar, 1995). os tempos mais remotos:
"A tomada de decisão para o consumidor "Existem três tipos de crianças em nossa
é influenciada pela classe social do indiví- escola. As crianças ricas vestem jeans Guess
duo especialmente na determinação das ne- ou roupas da The Limited. Elas têm pais que
cessidades e critérios de apreciação"(Engel, dão cartão de crédito e os usam para con-
Blackwell, Miniard, 1995). É evidente que seguirem o que quiserem. Elas têm que ir
há sempre maior ênfase nas mensagens sub- ao banheiro depois do almoço para refazer a
jetivas e no simbolismo de classe das roupas maquiagem. Elas têm sete relógios Swatch,
do que na funcionalidade. Como Umberto um para cada dia da semana. O cabelo de-
Eco bem frisou, há muito, o homem não usa las é ondulado ou enrolado em uma onda.
as roupas apenas para se proteger. É longe o Em casa elas têm cama d’água. As crian-
tempo em que o caçador usava a pele apenas ças das classes mais baixas não se vestem
para proteger-se do frio. Em pouco tempo, tão bem. Elas não se penduram ano redor de

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grupos mais frios. Elas fazem muitas brinca- ceptível às mudanças, e essas podem aconte-
deiras. Elas podem ter estilos do The Limi- cer de estação para estação, as roupas falam
ted mas você sabe que as roupas foram com- e o estudo dessa fala não deve se restringir
pradas em lojas de departamento. A classe aos analistas de vestuário.
mais baixa desta escola tem mais dinheiro do "E pelo contrário o problema deveria inte-
que as crianças das escolas públicas mas não ressar quem quer que decida viver em socie-
se vestem bem nem agem direito. As crian- dade, ouvindo-a falar por todas as formas de
ças de classe média têm dinheiro e se vestem que ela é capaz. Porque a sociedade, seja de
melhor. Não são realmente frias nem falam que forma se constituir, ao constituir-se, fala.
sobre si mesma como muitas crianças das Fala porque se constitui e constitui-se porque
classes inferiores"(Engel, Blackwell, Mini- começa a falar. Quem não sabe ouvi-la falar
ard, 1995). onde quer que ela fale, ainda que sem usar
palavras, passa por essa sociedade às cegas:
não a conhece, portanto, não pode modificá-
5 Conclusão
la."(Eco, 1989).
Muito embora Umberto Eco afirme que a pu- Não é do nosso interesse, a partir desse
blicidade dada às escolhas e a respectiva cor- trabalho, tentar modificar a sociedade a par-
rida conformista à imitação esvaziam muitas tir do conhecimento histórico da significativa
vezes as escolhas de vestuário do seu sig- divisão de classes que a roupa representa.
nificado primitivo, fica-nos claro que esse Desde que a produção de roupas deixou de
significado pode ser esvaziado em parte do ser artesanal e passou a figurar como mais
seu conteúdo. Na essência, a da divisão um produto industrial, evidencia-se a neces-
clara de classes que a roupa representa, não sidade de ser trabalhada como outro produto
houve modificações substanciais no decor- qualquer. Como produto, então, é natural
rer do tempo. Ao contrário, houve sim, um que todos os seus símbolos sejam explorados
forte aumento na essência dessa representa- à exaustão, com a perspectiva de venda.
ção, talvez até estimulado também pela pu- O indivíduo, enquanto consumidor,
blicidade. comporta-se exatamente em busca dessa
O depoimento da estudante americana so- diferenciação do grupo manifestada através
bre sua colegas deixa claro que essa divi- da roupa. A compra de uma determinada
são de classes é estimulada a partir da infân- peça do vestuário não é um ato tão simples
cia. E, como diz Cox e Dittmar, o estímulo quanto possa parecer. Envolve uma série de
consumista para a compra de roupas aparece decisões, aparentemente individuais, mas
na infância mas fica caracterizado com mais que se relacionam inteiramente com o grupo
clareza na adolescência. ao qual o indivíduo pertence. E essa divisão
O importante é percebemos que a simples em grupos levada ao extremo nada mais
compra de uma peça de vestuário, que à pri- é do que a velha divisão da sociedade em
meira vista nos parece algo inocente e sem classes, cuja mensagem é bem determinada
nenhuma carga ideológica, é um ato mais pela "fala"das roupas, bem representada no
complexo e cheio de significações. Existe depoimento da estudante americana de uma
um código do vestuário. Embora seja sus- escola particular. Esse ato ideológico da

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compra de uma peça do vestuário, no fundo, cisão de compra de uma peça de vestuário e
é um ato ilusório, como o é a mobilidade de a longevidade do seu significado de divisão
classes. de classes e grupos.
"Na base da moda, portanto, está um im- Em matéria intitulada "Alegre retorno",
pulso ambivalente: o desejo individual de publicada na revista Veja, edição 1.445, no
diferenciar-se e a procura de um adequa- dia 22 de maio de 1996, a jornalista Gló-
mento às normas do grupo social a que se ria Kalil mostra como o chamado vestido-
quer pertencer; o indivíduo procura respei- camisa, explosão de consumo de 1968, es-
tar as regras do grupo e de não provocar uma tava de volta igual ao que era quando surgiu,
reação negativa que pode fazer com que ele no início dos anos 50. Uma comprovação
seja posto à margem. Já se faz notar que de que, na indústria da moda, a roupa se ali-
quanto a integração no grupo é levada a cabo menta desse eterno recomeço.
duma maneira que se pode dizer total, as
normas do grupo são de tal forma assimila-
6 Bibliografia
das que dão a ilusão da liberdade plena de
opção, dão a ilusão de fazer a sua própria Arkin, Anat. (1995) Tailoring clothes to suit
moda."(Lomazzi, 1989). the image. in People Management, 24
Esse desejo individual de diferenciar-se do august.
qual nos fala Lomazzi certamente foi "men-
sageiro"que trouxe a marca das roupas como Barelli, Suzana. (1996a) Armários denun-
significado claro de divisão de classes e gru- ciam vaidade masculina, in Folha de S.
pos. E essa ambivalência, também apontada Paulo, São Paulo: Folha da Manhã, 16
por Lomazzi, que dá ao indivíduo a ilusão de de junho.
que pode fazer sua própria moda talvez seja o Barelli, Suzana. (1996b) Políticos se vestem
que tentam exprimir os jovens "rebeldes sem com 15 anos de atraso, in Folha de S.
causa". Paulo, São Paulo: Folha da Manhã, 23
O que tem que ficar bem claro é que na lin- de junho.
guagem do vestuário, o código roupa se re-
nova exatamente nesse processo de retroali- Bentley J., Trevor. (1995) Uniformity ver-
mentação de significados do próprio código. sus diversity. in People Management,
Portanto, por mais variações que possam 24 august.
ocorrer, essa marca ideológica da roupa é
que garantiu a permanência da metalingüís- Chalub, Samira. (1987) Funções da Lingua-
tica de seus significados através do tempo. E gem. São Paulo: Ática.
esse processo de retroalimentação, que tam-
Chevalier, Jean, Gheerbrant, Alain. (1991)
bém é ideológico, demarca, com clareza, a
Dicionário de Símbolos - Mitos, so-
opção do consumidor por essa ambivalência
nhos, costumes, gestos, formas, figuras,
entre o desejo individual de diferenciar-se e
cores, números. 5. ed. Rio de Janeiro:
a procura da adequação às regras do grupo.
José Olympio.
Esses dois elementos, no fundo, marcam a
metalinguagem das roupas, o processo de de-

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A metalinguagem das roupas 11

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