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PRIMEIRA ESCRITA

2017 | Páginas 42-49

NARRAÇÃO E DISSIMULAÇÃO DO DISCURSO HOMOERÓTICO EM "PÍLADES E


ORESTES", DE MACHADO DE ASSIS, E "AQUELES DOIS", DE CAIO FERNANDO
ABREU
Rodrigo Ramos
Universidade Federal do Amazonas
Adriana Aguiar
Universidade Federal do Amazonas

RESUMO ABSTRACT
O presente artigo traz para o cerne da sua The present article brings to the heart of its
problemática a forma como o homoerotismo problematic the way in which masculine
masculino aparece nos contos Pílades e homoeroticism is proposed in the short stories
Orestes (1994), de Machado de Assis, e em Pílades e Orestes (1994), by Machado de Assis,
Aqueles dois (2016), de Caio Fernando Abreu. and in Aqueles dois (2016) by Caio Fernando
Pretende-se analisar como a temática Abreu. It is intended to analyze how the
homoerótica é desenvolvida nas narrativas em homoerotic theme is developed within the
tela, concentrando-se, principalmente, nos narratives, concentrating mainly on the
narradores, e buscando contrastar as narrators, and seeking to contrast the
particularidades de cada um. Valemo-nos das particularities of each one. We are going to use
diretrizes teóricas de Georges Bataille, em O the theoretical guidelines of Georges Bataille, in
Erotismo (1987), e de Mario César Lugarinho The Eroticism (1987), and Mario César
(2001) e Judith Butler (2000), em seus estudos Lugarinho (2001) and Judith Butler (2000), in
sobre a Teoria Queer, na tentativa de their studies on Queer Theory, so that one may
compreender o desencadeamento do understand the triggering of homoeroticism in
homoerotismo em dois pontos cruciais que two crucial points that are beyond the events
estão para além dos acontecimentos narrados narrated in the short stories: the incessant
nos contos: a busca incessante das search of the characters for the unreachable
personagens pela inalcançável continuidade e o continuity and the debate on the nature of the
debate sobre a natureza das questões sociais social issues of gender. Finally, we noted that
de gênero. Por fim, percebemos que as homoerotic relations are insinuated in the two
relações homoeróticas são insinuadas nas duas narratives, but not revealed. The narrative
narrativas, mas não reveladas. Os jogos games and the ability of these two writers of
narrativos e a habilidade desses dois escritores Brazilian literature transfer to the reader the
da literatura brasileira transferem ao leitor a responsibility for interpreting the homoerotic
responsabilidade da interpretação do tema theme in the short stories. However, it is
homoerótico nos contos. Todavia, só podemos possible to affirm that the expectancy is
afirmar que essa expectativa se revela porque revealed because there is, in narrative
há, no discurso narrativo, algo que oferece ao discourse, something that offers the reader this
leitor essa possibilidade. possibility.
Palavras-chave: Erotismo. Teoria Queer. Keywords: Eroticism. Queer Theory.
Homoerotismo. Homoeroticism.

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Rodrigo Ramos é graduando em Licenciatura anula-se até seu próprio fim. A morte
Plena em Letras - Língua e Literatura Portuguesa. emblemática de Quintanilha dá um suposto fim
E-mail: rodrigofeliperamos@gmail.com às suspeitas do leitor sobre o homoerotismo
entre os amigos Quintanilha e Gonçalves, pois a
Adriana Aguiar é professora assistente de narrativa volta-se para a questão do futuro da
Literatura da UFAM. herança de Quintanilha e deixa a relação
E-mail: adrianaguiarodrigues@gmail.com homoerótica implícita. Esse jogo dissimulado,
reforçado muitas vezes pelo narrador, que diz
sem dizer diretamente, camufla e,
INTRODUÇÃO consequentemente, mostra a posição
Um dos fatores que não se pode secundária do tema homoerótico no conto.
desvincular dos contos Pílades e Orestes Sendo o homoerotismo disfarçado em
(1994) e Aqueles dois (2016) para a Pílades e Orestes, conto do início do século XX,
compreensão de suas particularidades esperar-se-ia que quase um século mais tarde
narrativas e discursivas é o contexto em que a temática homoerótica ganhasse espaço e
foram publicados, pois as narrativas estão vencesse o silenciamento. Mas a expectativa de
profundamente relacionadas às problemáticas que o passar de quase um século traria alguma
sociais sobre a homossexualidade. Machado de evolução às questões do queer na sociedade
Assis, com seu narrador supostamente não podem ser confirmadas se observado como
imparcial, em um conto publicado no livro a problemática homoerótica é tratada no conto
Relíquias de Casa Velha (1906) na primeira de Caio Fernando Abreu. Em Aqueles dois
década do século XX – período esse em que a (ABREU, 2016), novamente se encontra uma
homossexualidade era entendida ainda como relação homoerótica dissimulada, apesar de
patológica, revela um discurso dissimulado em mais perceptível. O envolvimento persistente
Pílades e Orestes. A narrativa é conduzida de entre Raul e Saul enfrenta a esmagadora
modo que o homoerotismo é disfarçado como intolerância do âmbito corporativo. Assim como
subtema. Em Caio Fernando Abreu, há um em Pílades e Orestes, sustenta-se em Aqueles
narrador imparcial, porém também dissimulado, dois uma suposta amizade entre as
que desenvolve na narrativa de Aqueles dois um personagens principais. Mas é a dissimulação
homoerotismo mais percebível, mas também do discurso homoerótico que eminentemente
não afirmado diretamente. Aqueles dois veio a relaciona ambas as narrativas e, mais ainda,
público em 1985, com a publicação de permite que se faça uma reflexão sobre a
Morangos Mofados durante o regime militar finalidade de ocultar as possíveis relações
brasileiro, período de grande repressão e homoeróticas nos contos.
censura à liberdade sexual. Os sujeitos não heteronormativos são
Machado de Assis, seja em seus contos ou habitualmente marginalizados em todos os
romances, brinca com os preconceitos e contextos, sobretudo no âmbito social, e, por
dogmas dos leitores e assim o faz em Pílades e conseguinte, na literatura. Não é sem propósito
Orestes. Não se pode afirmar a existência da que a violência e a repressão são temas
relação factual entre Quintanilha e Gonçalves, implícitos tanto em Pílades e Orestes quanto em
mas vestígios são deixados ao leitor, que pode Aqueles dois. Pensando nessa problemática,
admitir, ou não, o envolvimento homoerótico verificou-se a necessidade de um estudo
entre as personagens. A trama constitui-se comparativo entre os dois contos, que leva em
partindo da fragilidade e da falta de autonomia consideração, fundamentalmente, o tema
de Quintanilha, que, no decorrer da narrativa,

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homoerótico e sua representação em ambas as respeito aos processos puramente humanos de


narrativas. superação de frustrações intrínsecas à própria
Para realizar a análise proposta, partimos existência, o propósito de nos valermos do
de um pensamento filosófico, embasado por erotismo como conceito para o
Bataille (1987), que nos auxiliará na percepção desenvolvimento da análise dos contos, neste
do jogo erótico nas entrelinhas dos contos. artigo, dá-se pela convicção de que o escritor,
Baseada nas evidências eróticas percebidas, enquanto subjetividade criadora, concebe
será proposta uma reflexão sobre as questões reflexos de realidades específicas, e essas
de gênero e a quebra socialmente traumática do realidades narradas podem também repercutir
modelo heteronormativo enraizado na as complexidades das instâncias eróticas na
sociedade do século XX. Para tanto, faz-se literatura. Como o erotismo não depende das
necessário que lancemos mão de uma teoria características biológicas ou de gênero dos
que toma como objeto de reflexão a indivíduos envolvidos em uma relação, pode-se
constituição da identidade e o posicionamento analisar o homoerotismo masculino
social do homossexual, a Teoria Queer, sendo representado nas narrativas evidenciando o
abordada neste artigo pelos estudos de Judith jogo erótico encoberto pelo narrador e
Butler (2000) e Mario Cesar Lugarinho (2001). silenciado nas palavras das personagens.
Mesmo que os contos Pílades e Orestes e
Aqueles dois possam levar-nos a inúmeras
1 O EROTISMO E O QUEER interpretações quanto aos seus possíveis
Georges Bataille (1987) engendra, com sua sentidos, se restringíssemos o estudo aqui
filosofia sobre o erotismo, a reflexão sobre a proposto a apenas perceber o homoerotismo,
busca (inalcançável) pela continuidade perdida por meio da filosofia de Bataille (1987), não
e pela superação da insuportável solidão do ser. poderíamos alcançar o debate sobre a questão
O incômodo do exílio da individualidade destina- social do queer, representada nos dois contos.
nos à criação de paixões e nos leva à nostalgia Além disso, sabe-se que o erotismo, mesmo
da continuidade perdida. Para Bataille (1987), o sendo um fenômeno comum a todos os seres
erotismo não possui relação direta com as humanos, quando decorre de relações
relações sexuais, é mais que isso, revela a homossexuais, pode causar, como se percebe
busca psicológica pela continuidade por meio nos contos, estranheza e/ou repulsa a quem
das transgressões. O filósofo define o processo observa. Pensando nessa questão, propõe-se
de aceite da descontinuidade inerente ao ser: uma complementaridade teórica: para além da
identificação de evidências homoeróticas, serão
Somos seres descontínuos, indivíduos que pensadas as condições do queer nos contos, de
morrem isoladamente numa aventura
acordo com a perspectiva da Teoria Queer.
ininteligível, mas temos a nostalgia da
continuidade perdida. Não aceitamos muito A Teoria Queer desvincula-se do binarismo
bem a ideia que nos relaciona a uma da teoria dos gêneros e cria autonomia,
dualidade de acaso, à individualidade reconstruindo a visão sobre a orientação sexual,
perecível que somos. Ao mesmo tempo que identidade sexual e sexualidade biológica. A
temos o desejo angustiado da duração desse Teoria pretende demonstrar o lugar do queer na
perecimento, temos a obsessão de uma sociedade, considerando as diversas
continuidade primeira que nos une variabilidades sociais, étnicas, nacionais etc.,
geralmente ao ser (BATAILLE, 1987, p. 12).
sem tentar promover uma polarização
Tendo consciência de que a categoria de globalizante do discurso (LUGARINHO, 2001).
erotismo pensada por Bataille (1987) diz Os papéis instituídos socialmente limitam a

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natureza individual de cada um e se mostram A vida que viviam os dous era a mais unida
por meio da performatividade desempenhada deste mundo. Quintanilha acordava, pensava
por todos os integrantes das sociedades. no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam
juntos, faziam alguma visita, passeavam ou
acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves
2 NARRADORES DISSIMULADOS E tinha algum trabalho que fazer à noite,
Quintanilha ia ajudá-lo como obrigação
EVIDÊNCIAS DO HOMOEROTISMO
(ASSIS, 1994, p. 45).
Tão importante quanto identificar as
evidências marcadas nos contos é perceber a Além da questão que nos incita a suspeitar
singularidade de cada um no que concerne às da natureza da relação dos dois, percebe-se
características narrativas. Em Pílades e Orestes novamente a passividade de Quintanilha em
(ASSIS, 1994), apesar de o narrador tecer relação a Gonçalves, já que o primeiro ajudava
muitos comentários, as personagens o segundo “como obrigação”. E com o decorrer
frequentemente têm espaço de fala, o que não da narrativa acaba-se por entender que a
é tão comum em Aqueles dois (ABREU, 2016). passividade e subalternidade de Quintanilha
No conto de Caio Fernando Abreu, a maior parte moldam-no para ser o personagem que mais
da narrativa é enunciada pelo narrador põe em xeque os padrões de
onisciente, a ponto de, em alguns momentos, a heteronormatividade das relações entre
sua narração confundir-se com as falas das homens. É dele que emerge a paixão e a
próprias personagens. dedicação para com o outro. Logo em seguida,
Em Pílades e Orestes, o ponto de partida no mesmo parágrafo, o narrador traz-nos a
que possibilita o início do aspecto homoerótico informação de que “às vezes, na Rua do
é a condição de Quintanilha. A insegurança do Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves
personagem e a sua carência de felicidade são lembrava-se de uns autos que deixara no
reveladas desde o início do conto. O narrador escritório” (ASSIS, 1994, p. 45). Mesmo com
machadiano, com sua singular perspicácia, tece essa indicação cínica sobre o desinteresse de
um comentário enigmático logo no início do Gonçalves pelas moças, no decorrer da
conto sobre o estado espiritual de Quintanilha: narrativa, tudo indica que Gonçalves estaria
“não se pode dizer que Quintanilha fosse mais interessado no dinheiro de Quintanilha, e
inteiramente feliz, como vais ver” (ASSIS, 1994, apenas Quintanilha estaria envolvido pelo amigo
p. 44). A narrativa desenvolve-se a partir desse de alguma forma.
argumento, pois é através da insegurança e Até aqui, puderam-se verificar traços do
dependência de Quintanilha por Gonçalves que homoerotismo reforçado pelo discurso do
o conto começa a ganhar seu caráter ambíguo narrador ambíguo. Mas há ainda, além das
e abre precedentes para a percepção de uma indicações do narrador, na interação entre os
relação homoerótica. dois personagens, o erotismo. Um caso em que
O narrador machadiano não se prende a se vê marcado o processo erótico é a reação de
descrições narrativas quando se refere aos Quintanilha depois de não ter conseguido
amigos Quintanilha e Gonçalves. Ele exibe as agradar o amigo com o quadro dos dois que
sombras de suas intenções em seus mandou fazer: “vexado e aborrecido, olhava
comentários, corroborando para a imaginação para a tela, até que sacou de um canivete e
de uma relação entre os dois amigos, que vai rasgou-a de alto a baixo. Como se não bastasse
para além de uma simples amizade, como se vê esse gesto de vingança, devolveu a pintura ao
no trecho: artista [...]” (ASSIS, 1994, p. 46). Quintanilha
transfere sua fúria de Gonçalves para a tela e,

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de fato, faz com a pintura o que tem vontade de O clímax do conto ocorre em uma cena tão
fazer com Gonçalves. poética quanto erótica. Após a bebedeira da
Bataille (1987) estabelece três formas de noite do dia 31, Saul passa a noite na quitinete
erotismo: o erotismo dos corpos, o erotismo de Raul. A sensibilidade com que o narrador
dos corações e o erotismo sagrado. O ato de trata o episódio é surpreendente se notado o
violência como reação de Quintanilha, contra a jogo de imagens que utiliza para descrever a
pintura, revela o furor do erotismo dos cena:
corações. Sobre a origem da exaltação violenta Deitaram ambos nus, um na cama atrás do
de Quintanilha pode-se considerar, se há um guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite
princípio de paixão, que: inteira, um podia ver a brasa acesa do cigarro
do outro, furando o escuro feito um demônio
[...] Se o amante não pode possuir o ser
de olhos incendiados. Pela manhã Saul foi
amado, algumas vezes pensa em matá-lo:
embora sem se despedir, para que Raul não
muitas vezes ele preferiria matar a perdê-lo
percebesse suas fundas olheiras (ABREU,
[...]. O que está em jogo nessa fúria é o
2016, p. 147).
sentimento de uma continuidade possível
percebida no ser amado [...] (BATAILLE, O erotismo revela-se sobre o nudismo dos
1987, p. 15). corpos. Os corpos não se tocam, mas ensaiam
Quintanilha mostra-se sempre disposto a a concretização dos desejos contidos. As
servir Gonçalves, mas se decepciona quando personagens veem a brasa não somente dos
percebe que o amigo recusa sua tentativa de cigarros acesos, mas do próprio desejo, da
maior aproximação. A tela representaria uma busca pela continuidade. Para Bataille (1987, p.
fusão momentânea, a imagem seria a realização 14), “a nudez se opõe ao estado fechado, isto
visual da união aparentemente desejada por é, ao estado de existência descontínua. É um
Quintanilha. estado de comunicação que revela a busca de
uma continuidade possível do ser para além do
Em Aqueles dois, Raul e Saul são dois voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem
rapazes que passam a trabalhar juntos e para a continuidade [...]”. Há nas brasas dos
tornam-se amigos. E mais uma vez encontra-se cigarros o fulgor do desejo, o anseio de
o discurso homoerótico dissimulado pelo continuidade, nesse caso uma busca
narrador, mas agora em Caio Fernando Abreu. demoníaca em sentido emblemático, pois
Por meio de comentários, o narrador conduz existe/resiste o estigma que persegue e recai
dubiamente a narrativa, explorando a sobre as personagens homossexuais e as
sensibilidade do leitor para as questões impede de consumar seus desejos.
subentendidas. Pode-se verificar esse jogo de
desfaçatez no comentário feito pelo narrador O fato já citado de o narrador onisciente de
após a descrição física de Raul e Saul: “como se Aqueles dois algumas vezes poder ter suas falas
houvesse, entre aqueles dois, uma estranha e confundidas com as das próprias personagens,
secreta harmonia” (ABREU, 2016, p. 142). como quando usa “à nossa amizade” como se
Observando-se estruturalmente que a harmonia se incluísse em meio à realidade narrada. Após
aludida pelo narrador possui certo grau de isso, volta a narrar em terceira pessoa: “foi na
estranheza, pela escolha do artigo indefinido noite de 31, aberto o champanhe na quitinete de
“uma” e do adjetivo “estranha”, e um mistério Raul, que Saul ergueu e brindou à nossa
apresentado pelo adjetivo “secreta”, percebe-se amizade que nunca vai terminar. Beberam até
que o vínculo entre as personagens transpassa quase cair” (ABREU, 2016, p. 147) – o que
os limites de uma amizade comum. indica uma diferença entre o narrador
machadiano e o narrador de Aqueles dois.

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Enquanto o narrador machadiano dá-nos personagens são dispostas, Quintanilha e


pistas sobre o homoerotismo ao passo que Gonçalves, Raul e Saul: todos sofrem, em
muda o foco problemático em uma tentativa de intensidades diferentes, o peso da cobrança
desfocar o leitor desatento da temática social de uma performatividade
estigmatizada da homossexualidade, o narrador heteronormativa. Em Pílades e Orestes (ASSIS,
de Aqueles dois posiciona-se, em muitos 1994), o julgamento social e a percepção da
momentos, a favor de Raul e Saul. Ao final do relação entre os dois rapazes mostram-se por
conto, o narrador de Caio Fernando Abreu meio da impressão de dois personagens
promove uma catarse, garantindo a infelicidade trazidos pelo narrador: “uma senhora chamava-
daqueles que articularam o complô para a lhes os ‘casadinhos de fresco’, e um letrado,
demissão dos amigos da repartição, como Pílades e Orestes” (ASSIS, 1994, p. 46).
argumenta Júnior (2006, p. 47) sobre o fim Consideramos essa passagem fundamental
dado por Caio Fernando Abreu: “a infelicidade, para o entendimento da natureza da relação dos
pois segundo o ficcionista, é a condição protagonistas do conto. Principalmente porque
inevitável daqueles que optam por atitudes de a expressão “casadinhos de fresco”, à época,
discriminação”. era utilizada para se referir a recém-casados.
Portanto, nisso se demonstra, em nossa
percepção, o sinal mais contundente de um
3 REFLEXÃO SOBRE OS PAPÉIS SOCIAIS homoerotismo no conto.
Assumindo que os papéis de gênero são A proximidade entre Quintanilha e
criações sociais preestabelecidas, pode-se Gonçalves é percebida e classificada pelos que
verificar que essas instâncias reguladoras, os observam e, ao se afastarem do que seria
identificadas sob a perspectiva de Judith Butler uma proximidade aceitável entre dois homens,
(2000), repercutem também nas narrativas passam a ser alvo de denominações. O caminho
analisadas anteriormente. Os quatro trilhado pelo narrador não nos permite perceber
personagens são alvos de gozação e escárnio aspectos de repressão promovidos pelas
por se afastarem do ideal regulador do gênero denominações. O ideal regulador, que
masculino, por se distanciarem das determina o comportamento ideal dos amigos,
expectativas heteronormativas que regulam o age por meio das denominações. As analogias
comportamento e estabelecem padrões feitas sobre os dois amigos, além de
simbólicos na sociedade. Os dois contos tratam enfatizarem a questão homoerótica, revelam a
de relações homoeróticas masculinas, que, sutileza da criação de um estereótipo.
mesmo não ditas, podem ser percebidas. Em Aqueles dois (ABREU, 2016), as
O sexo é uma das normas pelas quais o analogias feitas por personagens secundários
“alguém” torna-se viável, é aquilo que qualifica mostram mais do que uma pista da existência
um corpo, desde o seu nascimento, para a vida do homoerotismo. As atitudes de Raul e Saul
no interior do domínio da inteligibilidade cultural são observadas pelos outros funcionários da
(BUTLER, 2000). Ao nascermos, segundo esse repartição. A proximidade dos dois e a recusa
raciocínio, estamos involuntariamente aos olhares femininos logo causa estranheza a
condicionados a uma viabilidade que dependerá todos os colegas de trabalho. Raul e Saul
do próprio destino biológico. O sexo não só nos passam a ser perseguidos e coibidos por seus
define fisicamente, mas também designa, comportamentos, que fogem aos papéis de
culturalmente, papéis sociais aos indivíduos. gênero tradicionais. As cartas anônimas que
Encontra-se, entre as narrativas, certa denunciavam a relação homossexual entre os
semelhança sobre as condições às quais as dois definiam-lhes como “desavergonhada

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aberração” (ABREU, 2016, p. 147). Mesmo sabendo que os motivos da


Considerando que as cartas enviadas ao chefe escolha dos escritores por uma narração
da repartição pelos funcionários culminaram na dissimulada possam originar-se em
demissão de ambos, percebe-se que a cisão consequência de estigmas sociais que mantêm
com os padrões de comportamento a marginalização do queer em ambos os
socialmente criados resulta, muitas vezes, na momentos históricos de publicação – Pílades e
intolerância e na opressão. Orestes em 1906 e Aqueles dois em 1985, tem-
A morte de Quintanilha define o desfecho se, aqui, a consciência de que, para o jogo
da narrativa e revela a impossibilidade de erótico ser concebido, é necessário que se
realização do envolvimento efetivo entre as realize em meio ao subentendido, pois o
personagens. A união negada por meio da erotismo dá-se essencialmente pelo desejo e
morte demonstra a complexidade e o estigma não por sua concretização. E é nessa atmosfera
criados sobre a orientação sexual que foge aos misteriosa e cheia de não ditos que as lacunas
ideais heteronormativos. Se Machado optou por nas narrativas são deixadas, dando ao leitor a
dar esse fim ao conto, não o fez sem propósito. liberdade de preenchê-las e interpretá-las.
Por meio da suposta negação do
homoerotismo, a leitura do conto faz-nos
REFERÊNCIAS
pensar sobre as motivações da desfaçatez do
narrador e refletir sobre os fatores sociais que ABREU, Caio Fernando. Aqueles dois. In:
subjugam e recriminam o queer. Em Aqueles ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados.
dois (ABREU, 2016), apesar de Raul e Saul Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 139-148,
serem demitidos, o narrador não os deixa 2016.
desamparados e trata de conferir a infelicidade
ASSIS, Machado de. Pílades e Orestes. In:
aos acusadores anônimos da repartição. No
Relíquias de Casa Velha. Disponível em:
conto de Caio Fernando Abreu, o peso da
http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/
intolerância é evidente, o reconhecimento da
contos/macn007.pdf. Acesso em: 25 jun. 2017.
fuga dos modelos socialmente aceitáveis
rapidamente desencadeia a demissão arbitrária. BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de
Se não se pode afirmar, deve-se ao menos Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM,
admitir que o envolvimento homoerótico das 1987.
personagens em ambas as narrativas é BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os
insinuado, mesmo sendo mascarado por jogos limites discursivos do “sexo”. In: LOURO,
narrativos. A dissimulação do discurso Guacira Lopes (Org.). O corpo educado:
homoerótico ocorre em níveis diferentes. pedagogias da sexualidade. Trad. por Tomaz
Enquanto em Pílades e Orestes (ASSIS, 1994) Tadeu da Silva. 2a ed. Belo Horizonte:
as indicações são sutis e irônicas, em Aqueles Autêntica, 2000.
dois (ABREU, 2016), o tema homoerótico é
mais nítido. O fato é que os papéis sociais JÚNIOR, Luiz. Caio Fernando Abreu: narrativa
incidem na limitação da expressão individual, e homoerotismo. 2006. 262 p. Dissertação
motivam a violência e firmam a repressão sobre (Mestrado) – Instituto de Biociências, Letras e
a subjetividade do homossexual e de qualquer Ciências Exatas da Universidade Estadual
outra forma de expressão que fuja aos ideais Paulista. São José do Rio Preto: UNESP. 2006.
reguladores exigidos pela sociedade. LUGARINHO, Mario César. Como traduzir a
teoria queer para a Língua Portuguesa. Revista

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Gênero, Niterói, v. 1, n. 2, p. 36-46, 2001.


Disponível em:
http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revis
tagenero/article/view/362. Acesso em: 25 jun.
2017.

Como citar este artigo (ABNT NBR 60230)


RAMOS, R; AGUIAR, A. Narração e
dissimulação do discurso homoerótico em
“Pílades e Oreste ", de Machado de Assis, e
"Aqueles dois", de Caio Fernando Abreu.
Revista Primeira Escrita, Aquidauana/MS, n.4,
p. 42-49, 2017.

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