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direccdo de Jean-Pierre Rioux Jean-Francois Sirinelli PARA UMA HISTORIA CULTURAL 1998 EDITORIAL ESTAMPA DO LIMOUSIN AS CULTURAS SENSiVEIS Alain Corbin A impossivel «histéria total» e a tentacio da antropologia Em 1962, a seguir a uma estada de vinte e sete meses na Argélia que me havia dispensado dos programas da agregac4o e me permitiu reflectir em liberdade, tive de escolher um assunto para tese. Eu pensava numa histéria dos gestos, projecto que pertencia entéo ao absurdo. O campo da hist6ria contempordnea estava dominado, em Franga, pela autoridade de Ernest Labrousse, historiador prestigiado e defensor de um projecto entusiasmante: o de deduzir o cultural da andlise das técnicas, das estruturas econémicas e do jogo da conjun- tura. Herdeiro ao mesmo tempo de Frangois Simiand e dos fundadores das Annales, este ap6éstolo da histéria quantitativa e de uma histéria ainda nao baptizada de serial, preconizava a assombrosa, ou antes, comovente ambi¢4o de uma hist6ria total. Animado de um optimismo indestrutivel, Ernest Labrousse enraizava nos jovens investigadores a crenga na possivel detecgéo de um sistema simples de causalidade, operada na salvaguarda da objectividade. Convidava o historiador a situar-se num ponto nodal de onde poderia desenvolver-se um esque- ma elucidativo que explicasse a totalidade. Como outrora um suserano ou, depois, um ministro do Interior, Emest Labrousse distribuia os feudos e as prefeituras. No quadro desta departamentalizacao da hist6ria de Franga, ja criticada por Jacques Rougerie, recebi por encargo o Limousin, e Bertrand Gille foi encar- regado pelo mestre de dirigir a minha investigagao. Esta vasta regiao, depois apreciada pelos historiadores americanos em virtude da sua aparéncia de conservat6rio, revelou-se uma terra angustiante. Com 97 efeito, as estatisticas elaboradas no século XIX cedo se Tevelaray, desprovidas de valor; faltavam aos Limusinos do inicio do século yy, © papel e o saber para ser possivel desenhar de uma maneira Cientific, os ritmos da conjuntura. Nesta regidio de pesca, caga, colheitas, & policultura de viveres, de criagao familiar do porco e de aves, nest, terra de trigo e de castanha, de uma popula¢ao obsidiada pela proy; sio, a permuta e a troca de servigos, a detec¢ao do movimento do, pregos e sobretudo da produgdo e dos rendimentos transformavay em pesadelo. Levantava-se um dilema: limitar-se a uma investigaci, artificial e mediocre ou descobrir outra coisa. Dai o resvalar para um hist6ria cultural que nao ouso qualificar de antropologia histérica A estrutura da familia, o comportamento biolégico, 0 processo de alfz. betizagao modulado segundo a pratica da migragao temporaria, 0 sis tema de crengas, a rede das tensGes e solidariedades no seio da com. nidade de aldeia e de lugarejo e a identidade politica prenderam-ne alternadamente a atengdo. Longo trabalho, dos anos 1960 (1962-1972, interrompido dois anos por um inquérito oral que me permitiu com. preender melhor 0 objecto da minha investiga¢4o, publicada em 1975 sob 0 titulo Archaisme et Modernité en Limousin au XIX* siécle! No Verado de 1988, voltei a esta terra; maneira de transgredir um dos mais evidentes tabus da disciplina: © que consiste em pér en causa a sua propria investigagao. Surgem vdrias lacunas no trabalho passado: um estudo mais subtil das relagGes de autoridade no interior da familia e da comunidade dos lugarejos € 0 que se impée de futuro a todo o investigador desejoso de descobrir as redes de solidariedat, a configuragao dos antagonismos e as modalidades do exercicio do poder no seio da sociedade rural. A hist6ria dos comportamentos politicos nio € unicamente a da difusao das ideologias; nao result apenas dessa propagacAo ou, antes, da pesquisa de que Maurice Agulhor esbogou o processo em La République au village; igualmente decis- vas revelam-se a andlise das lutas de poder que se desenrolam 1 quadro da localidade e a dos processos de inscrigdo das clivagen nacionais no jogo destas rivalidades. A percepcao desta maneira reinterpretar os grandes debates e de os vergar ao servico de aposta especificas implica um conhecimento s6lido das relagGes interpessoais ! Paris, Riviére, 1975, 2 vol. 98 dos sistemas de normas, dos mecanismos do rumor e dos outros canais pelos quais se transmite a informagao. No decorrer do meu trabalho, o imagind4rio do espago e a elabo- ragéo da imagem regional nao haviam sido suficientemente conside- rados. O Limousin, desde a alvorada dos Tempos Modernos, foi vi- tima de uma imagem negra, fabricada pelas elites parisienses. Os habitantes da regiao revelaram-se incapazes de elaborar uma contra- -imagem capaz de a valorizar. Mais grave: a imagem depreciativa, recebida do exterior, profundamente interiorizada, contribuiu para forjar a identidade regional e, finalmente, para modelar as atitudes politicas. O socialismo que triunfa no Limousin no final do século XIX participa desta consciéncia identitéria nascida da depreciagao. Antes dele, o cesarismo democratico permitira exibir a identidade politica de um campesinato vermelho, quase un4nime no seu apego ao imperador. Em suma, ha um tergo de século era dificil conduzir o estudo sistematico das representagdes do espago, do territério, da sociedade e da politica, de que se apercebe claramente constituir de futuro um precedente indispensavel. Para uma histéria do paroxismo e do horror A liberdade conferida pelo acabamento da tese permitiu-me, desde 1973, dedicar-me ao estudo de alguns processos importantes que me pareciam merecer investigagao. Evoco-os aqui, a granel, para evitar a falaciosa construgao a posteriori que esconde a nogao de itinerario e para evitar também a esclerose que a atengao voltada para a sua prépria histéria nao pode deixar de causar. A lenta desagregagao das formas rituais do massacre e do suplicio, a ascensao da intolerancia ao espectéculo do sofrimento desenham o primeiro destes processos, facilmente assinalado entre 0 século XVI e o fim do século XVIII, enquanto o humanitarismo se afirma e se aprofundam as exigéncias da alma sensivel. De Emmanuel Le Roy Ladurie a Pieter Spierenburg e Denis Crouzet, numerosos sao os his- toriadores desta lenta evolugdo das sensibilidades. Entre 1770 e 1850, da-se uma verdadeira oscilagao. A rapida evolugado dos graus de to- lerancia 4 dor e ao seu espectaéculo autoriza a nova vulnerabilidade ao 99 sentimento de horror, a revolta do ser confrontado com 0 que exis de abjecto no homem. A repugnancia, a repulsa em relacao A crys, dade estimulam a inovag4o. A guilhotina, pela sua instantaneidade, modifica radicalmente 0s processos de suplicio. Novas figuras do monstro, do «canibal», qo. minam o imagin4rio a seguir aos massacres da Revolucao. Bronislay, Baczko soube analisar, num livro magnifico, Comment sortir de |g Terreur. Thermidor et la Révolution, essa renovagao da teratologia, Em 1832, a marca a ferro em brasa é abolida em Franga. No ano seguinte, a guilhotina deixa a praga de Gréve pela barreira Saint. -Jacques. Em 1848, a exposi¢ao é suprimida. Entretanto, a dissecagio foi regulamentada, os combates de animais proibidos na capital, e as matangas expulsas da cidade. A dissociagaéo espacial operada entre 9 abate e o comércio a retalho pde fim ao espectaculo pi&blico do derra- mamento de sangue; inocenta o matadouro. A literatura de horror que triunfa no romantismo negro contribui para exorcizar a crueldade, para operar uma desrealizagao da violéncia. Conservam-se apenas 0 gosto pelo espectaculo macabro e a contemplagao do cadaver da morgue. Mas a evolucao nao se dé ao mesmo ritmo no seio do corpo social. O desnivel dos comportamentos acusa a distancia cultural, acentua a estranheza dos comportamentos do Outro. As clivagens sociais acom- panham a tomada de consciéncia de uma diferenga radical, de natu- reza antropolégica. A percepgaio do mundo da miséria encontra-se ordenada pelo sentimento de estranheza monstruosa de uma base social, nao completamente desligada, julga-se, dos lagos que a prendiam a animalidade e em que os seres que a compéem sé dificilmente podem aceder ao estatuto de pessoa. A acentuagao e a mutagao da figura do monstro obsidiam os dois primeiros tergos do século. Foi 4 percepcao deste desvio que me apliquei, entre 1988 e 1990, através do estudo do crime de «canibais», cometido a 16 de Agosto de 1870, no campo da feira de Hautefaye, pequena aldeia da Dordogne. Nesse dia, trezentos a oitocentos camponeses, reunidos por ocasiao de uma feira, longe das autoridades, supliciaram durante duas horas e depois queimaram vivo (?) um jovem nobre acusado de ter gritado: «Viva a Reptblica!». Além da estranheza aparente dos sistemas de Tepresentag6es sociais e politicas em fungao dos quais se desenvolve 100 acrueldade, convinha analisar a recepcdo do crime, isto €, o sentimento de horror que se apoderou de todo 0 corpo social, perante comporta- mentos que parecem vindos do fundo dos tempos. Em 1870, contrari- amente ao que se produziu em 1792, o massacre diurno, realizado num espaco descoberto, j4 nao entra na gama das manifestagGes toleraveis do politico. A percep¢ao de uma distancia cultural, brutalmente reve- lada pelo excesso de crueldade, permite além disso a sociedade abrangida acalmar a angtstia pela execrago dos monstros. Parece-me dificil compreender 0 século XIX sem estudar mais adiante esta rapida deriva que confina com um passado longinquo de horriveis comportamentos de crueldade, ha pouco geradores de ale- gia. O estudo dos tiltimos sobressaltos da ferocidade colectiva auto- riza a percepgao da mutacdo das sensibilidades. Conviria, parece-me, acompanhar sistematicamente esta hist6ria do excesso, do paroxismo, do horror e da teratologia, feita da percep¢do de uma distancia cul- tural. Tal hist6ria nado pode ser desligada da do imaginério social. Osistema das emogées experimentadas e a sensibilidade decretada entram no desenho da figura de si e da do outro. A afinagao da sensibilidade no seio das elites rejeita o outro, repetimos, na esfera da barbarie, relega-o para as franjas da animalidade, isola-o na proximi- dade da morte. O livrinho que recentemente intitulei (1982) Le Miasme et la Jonquille? nao tinha por finalidade estudar a hist6ria dos perfu- mes, mas a maneira como a utilizagdo do olfacto entra nos processos de elaboragao do imagindrio social. O «mau cheiro do pobre» nao constitui sendo um dos aspectos desse refinamento da delicadeza; e € assim com todos os processos de disting¢fo que entram na compo- sigdo das imagens de si, como o trabalho das aparéncias subtilmente tragado por Philippe Perrot. Do mesmo modo, o que em 1978 me levou a escrever Les Filles de noce? nao era tanto 0 projecto de fazer o quadro da prostituigao no século XIX, mas o de discernir a mutagao das formas do desejo da prostituta. A sexualidade masculina que cria a prostituigdo devia, com esse propdésito, ser estudada nas suas frustragdes, na sua inobservancia. ? Paris, Aubier, 1982, e Champs-Flammarion, 1986. 3 Paris, Aubier, 1978, e Champs-Flammarion, 1982. 101 4 A propagaciao da aparéncia da sedugao, ao mesmo tempo que a ascensdo da ansiedade biolégica e a sua focalizagéo no perigo vené- reo, contribuiu para desenhar a fisionomia da prostitui¢ao «fim de século» e para determinar a condig&éo da mulher venal. A confusao das leituras da paisagem Enquanto cede o limiar do intoler4vel, se modifica a configuragio do horror, um outro importante processo conduz a evolug4o das sen- sibilidades e a das representagdes: estou a falar do prolongamento infinito da duragaéo geolégica. Esta revolugao sem precedente modi- ficou radicalmente os sistemas de percepgdo e de apreciaco da na- tureza e, a0 mesmo tempo, as maneiras de ser do individuo no con- junto que o rodeia. Sabe-se tudo isso, sem nunca se reflectir suficien- temente na vastidao das consequéncias desta mutag4o. Ao mesmo tempo que as representagGes entrelagadas do tempo e do espago, s4o as modalidades do bem-estar e as figuras do desejo que ent&o se modificam. A titulo de exemplo, as maneiras de perceber e apreciar a 4gua, a sua transparéncia e o seu contacto, ou ainda a busca de ar puro, a vis4o e 0 gosto do pitoresco transformam-se de acordo com essa renovacao. Ora, também neste dominio a histéria é feita de sedimentagao de sistemas de representagdes. A simultaneidade de comportamentos desnivelados desqualifica uma generalizagao apressada. Duas pessoas sentadas num rochedo, frente ao oceano e mergulhadas uma e outra na sua contempla¢gao, podiam, cerca de 1800, fazer leituras radical- mente diferentes da paisagem que se desdobrava sob os seus olhos. Para uma, os rochedos costeiros figuravam os restos imutdveis do dilavio; para a outra, o resultado da usura do tempo, o sinal da infinita sucessao dos ciclos geolégicos. Foi o que me fez tomar consciéncia do trabalho necessario a redaccao do Territoire du vide (1984-1988)‘. Conviria analisar mais adiante como se amalgamam e interferem os miltiplos sistemas de representagdes do ambiente e da sociedade. A histéria cultural é feita destes entrelagados. 4 Paris, Aubier, 1988, e Champs-Flammarion, 1990. 102 Desde meados do século XVIII que a paisagem entra na construgao das entidades locais, regionais, nacionais, de que se tornou um atributo essencial; a este respeito basta pensar na fabricagao da imagem da Suiga. Ora a nogio de paisagem é miltipla. Por isso a sua histéria surge confusa. Aqueles que primeiramente se interessaram por ela— na maior parte ge6grafos — comegaram pelo que se impde com maior evidéncia e 0 que a primeira vista parece mais s6lido; isto 6, 0 que compete a morfologia e 4 ecologia. A histéria das paisagens foi em primeiro lugar a da maneira como se construiram e como evoluiram, segundo a tect6nica, as formas do relevo, a evolug¢do dos meios naturais, da flora, da fauna; segundo os sistemas de produgio e de troca. Elaborou-se uma hist6ria ecolégica estreitamente associada 4 dos modos de interveng¢ao do homem, variaveis ao infinito consoante a diversidade das culturas. A fascinagao recentemente exercida pela fotografia aérea traduzia 0 triunfalismo de uma ciéncia Avida de objectividade. Depois as interrogagdes complicaram-se. A hist6ria da paisagem privilegiou durante muito tempo a vista; ora existe uma paisagem sonora e uma paisagem olfactiva, ela prépria evocadora de sabores. Imp6s-se a pouco e pouco a no¢do de uma paisagem vista em primeiro lugar como uma leitura sujeita 4 evolugdo dos desejos, das modalida- des de atengio e de escuta, da mecAnica do olhar e, ao mesmo tempo, as formas da desatengao, da desenvoltura e da cegueira. As grelhas de leitura da paisagem que variam ao infinito e se dispdem confusamente tém cada uma a sua histéria. O desejo de saber, por exemplo, 0 do sdbio ge6logo, em busca dos arquivos da terra, suscitou paisagens marcadas pela estratigrafia. No decorrer dos séculos, o estratigrafo, o cart6grafo e 0 economista alimentaram pro- jectos de dominio ou de intervengdo que determinaram outras leituras. Ha as que, indiferentes a tais finalidades, provém do deleite, as que resultam de sistemas de apreciagao, também eles sujeitos a influéncia dos cédigos estéticos, 4 busca do belo, do sublime ou do pitoresco. Foi 0 que determinou os prazeres do campo, ordenou a emogao sus- citada pela imensidade do mar, do deserto ou da floresta, 0 que leva a elaborar todas as tacticas que vao da caga 4 paisagem pitoresca e que nos esforgamos por encerrar num quadro ou numa fotografia. Em suma, 0 que correntemente se chama paisagem é indissocidvel da sua representacao «artealizada». 103 elaine meee Mas a paisagem é também indissocidvel das praticas que determi- nam a sua apreensao. A sua hist6ria est4 sujeita 4 das modalidades do passeio, do circuito, da excursdo, da viagem, da explora¢4o e de todas as formas de percurso do espago. Acompanha a da cultura somitica; os prazeres do corpo na montanha ou na praia, as formas de aventura submarina, as emocées do deslizar no gelo contribuem para a ordenar, O historiador deve pois aplicar-se a discernir a sucesso e 0 ema- ranhado deste conjunto de dados objectivos, de desejos, de maneiras de intervengao, de modos de deleite, de cédigos de apreciagao, de tacticas de salvaguarda, de arranjo e de criagao que constituem a paisagem. O poder de evocag&o das sonoridades desaparecidas De 1984 a 1994, nao parei de reflectir nas hist6rias emaranhadas das representagGes e das praticas do espago e, ultimamente, na do espaco sonoro®. Curiosamente, esta hist6ria foi, com efeito, quase totalmente negligenciada. Convém destacar a relativa desenvoltura a propésito do que animava o meio em redor — pois 0 ruido acompanha © movimento — e 0 esquecimento do poder de evocag4o das sonori- dades desaparecidas, tao destacado recentemente pelos roméanticos, em especial por Chateaubriand e por Michelet. Este inquérito nao se baseia apenas na convic¢do da historicidade da gama dos ruidos e dos sons; nem pode resumir-se 4 simplicidade do inventario sonoro. Im- plica conhecer o equilibrio estabelecido entre os sentidos — na ocor- réncia, a importancia dada as percepgdes do ouvido —, as modalidades da atengado, a qualidade da escuta, os patamares de tolerancia em relagdo ao volume e 4 frequéncia das mensagens, assim como os sistemas de apreciagao da sonoridade. Em suma, pressupde que se considerem hAbitos perceptivos que desenhem uma cultura sensivel, modulada consoante as dependéncias sociais. A hist6ria dos espagos e das paisagens sonoras contribui muito para a das emog6es, a das representagdes do meio e a dos usos quo- 3 Em Les Cloches de la terre. Paysage sonore et culture sensible dans les campagnes au XIX* siécle, Paris, Albin Michel, 1994, 104 tidianos. Mas o seu interesse nao se limita a isso. A hist6ria social tende a tornar-se a dos processos de construgao das identidades, in- dividuais ou colectivas, e a das maneiras como se desenham as repre- sentagdes € se organizam as relag6es sociais. Ora, a hist6ria das pai- sagens sonoras, isto é, das maneiras como estas se constituem, se tornam a arranjar e se desfazem, pode felizmente contribuir para tais projectos. O mesmo acontece com tudo o que diz respeito a histéria da atengfio prestada as sonoridades e ao sentido que se Ihes atribui. Para levar a bom termo um tal designio, convém interrogar-se em primeiro lugar sobre a natureza, os ritmos, as qualidades e os signi- ficados do siléncio no seio do espago e da sociedade considerados. Este constitui, com efeito, o pano de fundo em que se destacam os ruidos e os sons que torna mais ou menos perceptiveis, segundo a sua propria intensidade. Limitar-nos-emos aqui ao exemplo da sociedade rural do século XIX. Neste meio, como noutros, impde-se a influéncia dos «dadores de tempos sonoros», cuja historia € insepar4vel da dos ritmos biolégicos. Sabe-se que estes no dependem estritamente de um relégio interno e central, como durante muito tempo se julgou. Estao sujeitos a fac- tores externos, na primeira fila dos quais se impdem os sincronizadores sonoros. Entre estes, os rufdos da natureza — 0 do galo, os dos p4s- saros... —, a propria qualidade do siléncio associam-se a uma série de sinais sociais. Os sinos, é evidente, mas também os ruidos de vizi- nhanga, de que se mostrou a influéncia no dormir, no comer e na actividade sexual, e o ambiente sonoro do dia determinam os ritmos biolégicos. Estes sincronizadores sociais variam segundo os dias da semana. Nos campos do século XIX, o siléncio das actividades e 0 quase-mono- pélio das sonoridades pr6éprias da igreja garantem a autonomia da paisagem dominical. Esta disponibilidade auditiva contribui para explicar a influéncia do canto de igreja nos ouvidos campesinos. As antifonas, o prefacio e os canticos impregnam a meméria dos audi- tores e sugerem muitas 4rias profanas. Por isso, o chantre € uma personagem respeitada, exactamente como o sineiro. E também o calendario sonoro do ano; mostramo-lo a propésito dos sinos. Poder- -se-ia, nesta perspectiva, evocar a especificidade dos ruidos do Car- 105 naval e, mais ainda, os do periodo que vai da Quinta ao Sébado Santos. Em muitos lugares, a anarquia sonora das matracas eé a liber. tagdo dos sinais individuais substituem, durante esses dias, a centralidade autoritéria dos sinos. Sobre este pano de fundo, e segundo os ritmos sonoros da colectivi- dade, desenvolvem-se os ruidos e os sons da actividade quotidiana, Estes, repetimos, ensinam muito quanto aos processos de construgao das identidades, humanas e animais. O ruido dos passos, 0 dos taman- cos e, com maior raz4o, o das vozes, bastam para designar os indi- viduos. O ruido das proprias coisas € recebido como um signo identitario que marca as memérias. A intensidade sonora de todas estas mensagens, que as normas da civilidade ainda nao vém amor- tecer, como acontece no seio do espacgo de vida da burguesia, facilita aqui a leitura e a influéncia dos sinais. As chamadas e ordens ao animal, os nomes que se Ihe dao, as onomatopeias e o piar das aves, cujo uso tem a sua hist6ria, contribuem poderosamente para a riqueza da paisagem sonora dos campos franceses até meados do século XIX. Participam, também, dos processos identitarios. Os gestos sonoros informam igualmente sobre as maneiras de viver 0 espago. Os ruidos do quotidiano designam e balizam o territério do agricultor ou do artesao, como os da familia ou da comunidade na aldeia. Significam a posse dos elementos da terra. Acontece que hoje eles entram deliberadamente na gama dos sinais destinados a identi- ficar a regiao. Os numerosos trabalhos consagrados ao charivari destacaram a maneira como esta pratica visa significar a influéncia tempordria do grupo juvenil na comunidade de que tem por missdo assegurar 0 respeito do sistema de normas; mas a algazarra conseguida com ca- garolas, caldeiros e campainhas é também um elemento essencial da paisagem sonora das sociedades rurais. Como o sino, 0 tambor e a corneta, visa proclamar a autoridade e destacar 0 dominio exercido sobre um territ6rio. Acontece também frequentemente com os ruidos e a algazarra que sancionam as condutas de embriaguez. Quer se trate da roda da carroga, do carro, do carrinho-de-mao ou do moinho, do postigo, da porta ou da fechadura, do martelo, do machado ou do mago, do sino ou do cAntaro, a paisagem sonora é 106 entéo essencialmente constituida por objectos méveis. Resulta, em larga medida, de todas as prAticas de itinerancia. A maior parte dos ruidos indica ao auditor que movimentos ou deslocagées se esto a dar, os quais ele precisa continuamente de interpretar. A riqueza da paisagem sonora resulta da escuta atenta, que visa a constante deci- frago dos gestos e das condutas sonoras do outro. O uso dos sentidos e figuras da cidade Este exemplo tende a recordar que a histéria cultural engloba a partir daqui uma rica antropologia sensorial em que 0 campo mais trabalhado é constituido pela cidade sensivel. Detenhamo-nos alguns momentos neste assunto. A apreciacao sensorial da cidade nao poderia, como se sabe, redu- zir-se a uma arquitectura de pedra, isto é, a uma natureza morta. Ultrapassa em muito essa materialidade. Os seus ruidos, os seus odores e@ 0 seu movimento constituem a identidade da cidade, tanto quanto © seu desenho e as suas perspectivas. A espacialidade urbana nado existe em si mesma. Cria-se na interacgao daqueles que habitam a cidade, a percorrem ou visitam e Ihe conferem uma multiplicidade de sentidos. Resulta de um fluxo incessante, de um emaranhado de lei- turas simultaneas que constituem outras tantas paisagens. E continua- mente apreendida através do filtro de mitologias, de rituais preexistentes, eles préprios arrastados num deslizar incessante. A cidade assim sugerida por fluxos de sensagdes, de ruidos, de cheiros, apercebida nos seus movimentos e€ nos seus ritmos, resulta também do sentimento de que excede os limites da apreensio perceptiva, a qual s6 pode ser parcial, momentanea e determinada por praticas de espaco especificas. Dai, a dificuldade de fazer a histéria da cidade, pois cada um dos que a vivem realiza com essa cena quotidiana uma montagem que lhe é prépria, consoante os seus ha- bitos perceptivos, a sua cultura sensivel, a gama das suas ansiedades e dos seus cuidados, a sua mais ou menos estreita submissao as nostalgias e a fascinagdo do imaginério. 107 Como, portanto, manejar as fontes que, 4 primeira vista, melhor informam sobre o que liga o uso dos sentidos as figuras da cidade? Que tratamento reservar aos cédigos estéticos, as tradi¢Ges retéricas, aos sistemas de representagdes que contribuem para determinar a apreciagao, isto €é, a apreensdo perceptiva e emocional do espago urbano? Privilegié-los sera talvez correr 0 risco de fazer essencial- mente a histéria das retéricas da modernidade urbana, de esticar ao infinito a cadeia que une Edgar Poe, Baudelaire, Marx, Walter Ben- jamin 4 «cidade sensivel» de Pierre Sansot, ignorando a extensdo social e até a prépria consisténcia de tais leituras, uma vez que estas correspondem em primeiro lugar a um projecto literaério que provém da fic¢Ao ou da criagao poética. O mesmo acontece, com mais forte raz4o, com o tratamento das grandes obras-primas da literatura roma- nesca do século XX, evocadoras da vida moderna; quer se trate da Dublin de Joyce, da Paris e da Londres de Céline, da Berlim de Déblin, da Nova Iorque de Dos Passos ou da Buenos Aires de Robert Arlt. No entanto, desde que foram publicados, estes textos nao deixaram de ensinar a perceber a vida moderna, a analisar e a efectuar as montagens que acabo de evocar. Sem diivida — e esse € um outro problema desde ha muito levantado por Timothy J. Clark — que ante- ciparam o devir da cidade e incitaram os arquitectos e bem assim os administradores a conceberem e construirem cidades j4 esbogadas no imagin4rio. Mas nao est4 no nosso prop6sito entrar aqui no intermi- navel debate sobre a anterioridade das formas colectivas do desejo e a autonomia das légicas econémicas. O historiador nao pode porém agir de outro modo que nao seja utilizar os vestigios sujeitos eles préprios A montagem realizada por quem os construiu; o que impGe, em primeiro lugar, a reconstitui¢ao dos processos em fungdo dos quais essa montagem foi realizada; isto, a fim de melhor discernir, pela detec¢ao da l6gica dessa construgao, © que provém do cliché, do eixo ou da simples manutengao de uma tradi¢o retorica; compreender o imperceptivel e 0 indizivel no seio do que constitui um quadro fixo, quando a apreensdo perceptiva da cidade, feita num emaranhado de tempos sociais, é toda ela mobilidade. 108 A histéria da cidade sensivel encontra-se assim, mais que outras, assediada pelo anacronismo. Deste modo, o investigador de hoje corre o sério risco de interpretar 0 espago sonoro da rua de acordo com as modalidades de uma escuta contemporanea sujeita a formas de recolha cuja imposi¢ao constitui um facto histérico recente. Resta a hist6ria das representagdes e dos usos do tempo a que mais especialmente me dediquei no decorrer dos dois Ultimos anos. Trata- -se de um imenso territério mal descoberto. Consagraram-se trabalhos brilhantes a hist6ria da medida e da conquista do tempo; muito poucos 4 dos seus usos e 4 mutagado de ordem antropolégica — sem equivalente desde o Neolitico... — que os transformou. A quebra da duragao do trabalho, a aceleragdo das cadéncias e das velocidades, a imposi¢ao progressiva de uma leitura linear do tempo e, portanto, o recuar das sequéncias de vida policronas, as modificagdes do ritmo nictemeral e das modalidades de aparecimento das estagGes, as novas exigéncias de exactidao, o aumento da intolerancia ao atraso e da impaciéncia, bem como de outros dados, modificaram radicalmente a estrutura temporal das sociedades, as formas de dominio ou de dependéncia e a propria textura da existéncia. Haverd objecto mais decisivo de histéria cultural? Verificamos hoje uma incerteza na denominagao dos campos no seio da disciplina historica. E disso prova a flexibilidade das nogdes de mentalidades, de representagGes, de antropologia hist6rica. O mesmo acontece com a histéria cultural. Neste campo, qualquer tentativa de definigaéo s6 pode ser artificial. As hist6rias culturais actualmente elaboradas sao miltiplas: a dos objectos culturais, a das instituigdes culturais, dos agentes que as animam, dos sistemas que lhes regula- mentam o funcionamento, a das prAticas culturais e dos conjuntos de normas que as ordenam, a das ideias, dos saberes e da sua distribui- cdo... e mal se percebe como especialistas que tém exactamente por finalidade analisar as insténcias e os mecanismos de legitimagao poderiam, eles préprios, decretar hoje as divisdes desse saber e pro- ceder as exclusdes. A delimitagao inicial, o enriquecimento e a satis- fagdo da curiosidade dao-se no desenrolar da busca conduzida por cada investigador. Assim concebida em relagao com a individualidade da diligéncia, wma histéria cultural poderia ser alimentada pela deter- 109 minagao da existéncia e da evolugao de hierarquias sensoriais, de sistemas de percepgdo, de apreciagao e de emogGes; da anlise dos patamares de tolerancia, do estudo das modalidades do bem-estar, das maneiras de sentir a dor e também de se preservar dela. Expliquei-me mais demoradamente sobre isto em Le Temps, le Désir et I'Horreur’, Estas investigagdes, que provém do que Lucien Febvre recente- mente baptizava de hist6ria das sensibilidades, deviam ser apoiadas por estudos sdlidos saidos da histéria do imagin4rio social. A percep- ¢a0 dos desvios, da distancia, dos desniveis geradores de figuras de desejo, de angistia e de horror que fragmentam as sociedades é in- dispensdvel neste dominio. E possivel reler as tensdes, os antagonismos, os conflitos e as solidariedades 4 luz desta histéria cultural, concebida ao mesmo tem- po como a das representagdes do eu e do outro e como a das sensi- bilidades, indissociavelmente ligadas. Num tal projecto, as denomina- goes tradicionais dos elementos do campo da investigag4o histérica sao levadas a fundir-se como num crisol. Mas os exemplos aqui propostos admitem todas as outras maneiras de agir. O essencial, neste campo, é conservar a disponibilidade, evitar a crispag&o e a reproducdo estrita. Que os jovens historiadores compreendam a men- sagem do engenheiro Gérard. Levado a dirigir um olhar ao seu itine- rario intelectual, este her6i de Balzac sofre, com efeito, por ver «subor- dinar as capacidades activas a antigas capacidades extintas que, jul- gando agirem melhor, alteram ou desnaturam em geral as concep¢ées que Ihes sdo sujeitas, talvez com o Gnico fim de nao ver pér a sua existéncia em questdo»”. © Paris, Aubier, 1991. 7 Honoré de Balzac, Le Curé de village, edigio comentada por Gérard Gengembre, Paris, Pocket, 1994, pp. 201-202. 110

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