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eee aie Sete te : Joel Rufino dos Santos Joel Rufino dos Santos ) O que é RACISMO O que é RACISMO mp | Abril Cultural Editora Brasiliense 1984 ee (Carieaturas: Emilio Damiani Revisia: Nelson Nicolai ‘Jose E. Andrade ©Copyright 1980 by Joe! Rufino dos Santos ©Copyright desta edipso, Abr S.A. Cultural, Sto Paulo, 1984, Publicado sob licenga da Eaitora Brasiense S.A., So Paulo, Geese Introdugao Oqueé 0 Racismo . ‘Quem so 08 melhores dangarinos do mundo? © paraiso dos racistas Na pracinha, domingo de manha O dia em que os europeus comecaram a ter insénie . . Esses pobres felds egfpcios, de costelas & mostra ““Bom-di, segundo 0 Servigo de Meteorolo Para que serve a cor des pessoas? A ciilizag pertnce aos brancon, Até quando? Snags Em conclusao Joel Rufino dos Santos Existe racismo no Brasil No Maracané, domingo & tarde . Brasileiro pilhado em flagrante de racismo roage... Neguinho sem-vergonha quer ser Sérgio Chapelin quando crescer Racismo de brasileiro, zelosamente guardado, aparece em momento de competi¢ao “Ora, & apenas um negro”. cs “Nocé no vence na vida? £ culpa sua, voce ‘tem complexo de cor”. Broncos sempre esperar que os outros cumpram o seu dever . Negros no créem em “democracia racial”. Dio troco a brancos Principais modelidades do racismo brasileiro. - ‘Onde os pretos so maioria... . Discriminado porque tinha bunda epinads- "'Também ja fui crioulo, doutor” Machado de Assis X Lima Barreto. Mao Branca X mos negras . “Quem cospe nos outros 6 judeus. E j ispones ‘Ago dé no cour” Quatrocentos e oitenta anos de estupro . Os indios saiam da frente para o Brasil passar. 40 40 42 45 4B 51 4 57 INTRODUCAO Sob efeito da opiniéo ptiblica, um juiz havia decretado integragdo racial nas escoles do Estado. ‘A pequena'Judith ia enfim sentarse num benco de madeira pera aprender 2s-coisas que faziamo orgulho dos adultos. Sua mie ouvira no noticiério matinal ‘que 0 mundo inteiro prestava atencdo nos Estados Unidos, no Texas, naquela modesta escola de Dalles, nna sua pequena Judith, mas foi com serenidade que the preparou a lancheira e os cadernos, Um irm5o ‘acompanhou Judith até perto. Nao foi comum seu primeiro dia de aula, Nenhurna crianga branca comparecera, de forma que a profes- sora, em saber onde por as mos, ensinou tude soz nha para ela — e, na verdade, para centenas de solda- dos que do lado de fora garantiam sua integridade. ‘Ao comer a merende, Judith continuavas6. Meio-dia, | | | Joel Rufino dos Santos 0 que ¢ Racismo ‘quando guardou seus pertences para voltar a case, jé go se sentia nada contente. As dues fileiras de sol- dados faziam um corredor para ela passar. Por detras eles apareceram, entdo, centenas de carinhes bran- cas — xingando, vaiando, cuspindo. Havia adultos, ‘também, mas Judith no quis olhar ninguém. Seus ppassos eram firmes, até onde uma garota de 7 anos pode andar assim. O coro @ perseguiu até & praca, ‘em frente a escola. A pequena Judith sentou-se, entéo, num banco de pedra e abaixou 0 rosto. Um homem branco veio na ‘ua direggo — 0s soldados, por um instante, chegaram a pensar numa agressSo. Ele pos a mo no seuombro, de leve, e segredou: “Judith, nao deixe eles verem que voc estd chorando”. Fatos reais, como este, pontilharam a crdnica dos Estados Unidos na década de 1960, parecendo con- firmar que ali 6, por defini¢go, a pétria do racismo. Nenhum pafs do mundo, entretanto, desconhece, ou desconheceu, uma forma qualquer de racismo. Até mesmo o Brasil, cujos governantes sempre se orgu- tharam de sermos uma “democracia racial”, tem dado provas de que o fendmeno universal. Este pequeno livro que vocé vai ler, procura responder 8 pergunta: 0 que 6 0 racismo?", primeiro no mun- do ocidental, de que fazemos parte; depois no Brasil. Naturalmente, nos achamos em melhor posi¢go para ver o racismo aqui do que Ié fora, mas, até mesmo para compreender o nosso, precisamos de um termo de comperacio. Para muita gente, 0 racismo — que basicamente 6 uma agressio contra 0s outros — s6 se combete com ‘outra agrossdo. Esté bem: quem foi discriminado tem © direito, ¢ até o dever, de reagir. (A propria teoria dos Direitos Humanos, tdo em voge hoje, queles que séo vitimas de ume opressio d di liquidar com ela.) O racismo, entretanto, néo é s6 uma atitude — come, por exemplo, ados que valaram, cuspiram e xingaram a pequena Judith que s6 queria estudar. O racismo 6, também, uma teorie, defendida fem livros @ salas de aules com argumentos e teses "eientiticas”. Para brigar contra ele seré preciso, antes, desmontar esses argumentos ¢ teses. O que é Racismo n a O QUE EO RACISMO Quem sfo os melhores dancarinos do mundo? Se um estudante francés quisesse saber 0 que é ra cismo, possivelmente abriria seu Petit Larousse um diciondrio de prestigio universal: “Racismo. s.m. Sis- ‘tema que afirma a superioridade racial de um grupo sobre outros, pregando, em particular, o confinamen- ‘to dos inferiores numa parte do pais (segregaco ra- cial) (...)". Como toda definicgo, esta 6 como uma goma de mascar: pode aumenter, diminuir ou ficar do mesmo tamanho, conforme o seu gosto. Estamos no primeiro caso, naturalmente. © que quer dizer © Larousse com sistema? Certamente um conjunto de idéias e praticas, pessoais e coletivas, de pequeno e longo alcance. Um exemplo de id pessoal: ““Néo gosto de drabes porque sdo traicoeiros””. Um exemplo de pratica coletiva de longo aleance: ha 4480 anos a sociedade brasileira recusa aos seus fndios 2 posse da terra (embora eles jé morassem aqui mi- thares de anos antes de o Brasil ser “descoberto"). 0 racismo 8 um sistema que afirma a, superior: dade de urn grupo racial sobre outros . *. O que & tum grupo racial? A pergunta parece tola: ninguém confunde um preto com um braneo, um indio com tum japonés e, se for um bom observador, néo con- fundiré, também, um judeu com um italian. Nenhurn ddesses grupos de pessoasé, porém, uma raga. Pretos & brancos so apenas conjuntos de individuos que tém 8808 cores — nada mais. (Um sujeito preto pode, por exemplo, estar biologicamente mais préximo de um branco do que de outro sujeito preto.) Indios e ju deus ndo"séo racas, s80 povos (grupos de pessoas de racas cistintas que vive juntas num mesmo territé- rio). Quanto a japoneses¢ italianos, sio nacionalida- es, assim como 0 s0 brasileiros, angolanos, dina marqueses, etc. J se v8 que hé poucas palavres to confusas quan: to raca. Masnao foi por acaso que @ baralharamn tanto que jé nada quer dizer. Governos e ideologias conser- vvadores usarem e abusaram dela, através da Historia, para se defencerem © propagandearem seus propési- 10s erealizacBes. Nes Olimpladas de 1936, por exer plo, um jovem e ousado governante alernao axigiu que seus atletas derrotassem os representantes de “races, inferiores” para provar a “inconteste superioridade a raga ariana’". Venceu-os um crioulo norte-ameri: 2 Joel Rufino dos Santos O que é Racismo 1B cano, Jesse Owens — 0 que também ngo provou nada, exoeto que er melhor corredor. (Em tempo: 0 governante racista chamave-se Adolf Hitler.) Em 1936, mesmo no mundo cientifico, muita gente acreditava em “racas puras. Sabe-se hoje que regas puras nunca existiram: um grupo humano que tivesse se mantido puro, sem se misturar com outro, do sofreria mutagdes e, dentro de algum tempo, desapareceria, Além disso, em absolutamente nenhum lugar do nosso planeta, um grupo assim conseguiria viver isolado dos outros. O que charamos raga — negra, branca, amarela, caucasiana, etc. — & apenas um elenco de caracterfsticas anatémicas: a cor da pele, 2 contextura do cabelo, a altura média dos individuos, ete. Se pudéssemos despir as pessoas dessa anatomia, verfamos por dentro um outro elenco de caracteristicas — as caracterfsticas gené- ticas, Pois bem: esse elenco decaracteristicas internas pouco tem a ver com as exteriores. Os cientistas chamam a esses conjuntos internos de “races invi siveis”. A raca preta, por exemplo, estd formada de indmeras “ragas invisiveis". Como espécie humana sempre se misturou, concluise que uma “raca invisivel” de pele preta pode ser igual a uma “raca invisfvel" de pele brance, ou amarela, ou vermetha, etc. Traduzindo num exemplo concreto a teoria das “ragas invisiveis". Um turista, maravilhado diante das Esoolas de Samba, poderia dizer: “Os negros sio (0s melhores dangarinos do. mundo”. Esté bem, os turistas tém o direito de dizer 0 que quiserem, mas cientificamente @ frase 6 um equivoco. O correto seria dizer: “H8 grupos de negros que sao 0s melhores dangarinos do mundo”. Quem jé viu, boquiaberto, numa tela de cinema, o branquissimo Charles Chaplin fazer do corpo 0 que queria, 20 som de uma banda da roca, néo pode achar que “bréncos no do para danca”. Chaplin possivelmente pertencia a uma "raga invisivel!” to dangarina quanto a de muitos negros do Rio de Janeiro. O racismo assenta, assim, numa falsidade cientffica, © que torna facil a qualquer colegial bem informado Gesmonté-lo. Recéntemente, nos Estados Unidos, foram apresentadas “provas” das diferencas genéticas entre as racas negra e branca. Os cientistas que a6 apresentaram continuam, portanto, trebalhando com © velho e duvidoso conceito de raca: individuos com ‘© mesmo desenho externo. Coerentemente, 0 que dizem os jornais que se interessaram pelo fato, esses cientistas pertencem & direita politica, sempre obstinada em explicar diferencas sociais por fatores iolégicos. Supondo que consigam provar que os negros so inferiores aos brancos — em inteligéncia, capacidade de iniciativa, de concentracéo, etc. estaria aos anti-racistas um argumento decisiv muito bem, hé, em alguns aspectas, ra¢as inferiores e racas superiores, mas todo grupo humano merece, pelo fato de ser humano, o mesmo tratamento. Se de provar nesses assuntos racials, além .de de espécie humana: qualquer grupo “4 Joel Rufino dos Santos 0 que é Rectsmo normais ¢ saudaveis. coabitarem. : Diz 0 Larousse que o racismo preg, em particular, _A propria palavra afrikaaner encobre uma men- ‘© confinamento dos “‘crupos inferiores” dentro dé tira: no so africanos os brancos que controlam o ‘um pais (segregapao racial). Isto sugere, para comecar, pals, reservando-se para si tudo o que a civilizago ‘que hé diversas formas de racismo, sendo 2 segrega- @80 apenas a mais ostensiva. A segregacio, por sua ver, apresenta diverses modelidadese, ao penser nos pases em que ola existe, logo nos ocorrem duas: a /e ga! lexpressa em leis), coro na Africa do Sul, em que (0 negros estdo expressamente proibides de resiir e/ou freqdentar determinados bairros; ea extralegel, como na Bolivia, em que indios echolos (mesticos de {ndio com branco} séo impedidos de morar e/ou per- manecer em cortos locais, embora no se encontre qualquer proibigge escrita nesse sentido. paraiso dos racistas Um turista despreocupado pode trazer da Africa do Sul a mais sorridente des lembrancas. Afinal, os afriksaners tém um dos. mais altos padres de vida do mundo, estradas repletas de Mercedes Benz ranjas sofisticadamente mecanizadas. Pode, também, voltar aterrorizedo pelo mals absurdo dos regimes racistas que jé se concebeu: 0 apartheid. Este &capaz, por exemplo, de mandar para a cadeia uma patroa banca porque deixou dormir no quarto dos fundos 2 sua empregada preta—eisto pele simples raz5o de ‘que a leis do apartheid profbem a negros e brancos 2 0 dinheiro oferecem de bom, 0s cinemas, as praias, 0s hospiteis, as escoles ¢ até’as simples casas. Afri: canos 380 2 maioria esmagadora de negros (4/5 da populacéo total) que lé viviem quando chegaram ‘05 primeiros portugueses para contornar © Cabo da Boa Esperanca (hoje Cidade do Cabo); cento e ccinglienta anos depois, comegaram a chegar 08 pri meiros holandeses, antepassados dos atuais senhores. Van van Riebeeck, um cofonialista que saiu corrido do Brasil em 1652, batizou os pretos, que vieram recebé-lo emistosamente, dentro do melhor figurino raciste, de “swart atinkende Hondon”, cachorros negros fedorentos.) © apartheid é recordista mundial de condenacio, ‘amaldicoado pelas mais importantes organizacbes democréticas do planeta — 0 Conselho Nacional Africano, a Anistia Internacional, a ONU, etc. 1978 foi declarado pela ONU 0 Ano Internecional contra © Apartheid, sendo intimeros 0s pafses que se con- ‘essam meros parceiros comerciais do regime de Pre- t6ria, isolando seu embaixador do corpo diplomético como se ele portasse incurével doenca contagiosa. Eis uma pequene amostra do regime raciste do ‘apartheid, em vigor desde 1948: © Mesmo que resida legelmente numa cidade, sno possui Odireitode ter consigo Joel Rufino dos Santos mulher, fithos, sobrinhos ou netos por perfodo superior a 72 horas. © Sempre que julgar oportuno, o presidente do Estado pode declarer uma érea propriedade do grupo branco, mesmo que até entéo ela tenha sido ocupada por ngo-brancos. ‘© Qualquer africano maior de 16 anos é obrigado a carregar um ‘“‘livro de referéncia™. Se for pego sem ele, serd punido com multa e priséo de um més. ‘© Um operério africano que se ausente do traba- tho por 24 horas, além de ser demitido, seré punido com multa e priséo de trés meses. ‘@ Se um trabalhador branco morre em acidente de trabalho, seus descendentes tém direito @ indenizaedo e, ainda, a pensdo mensal baseade fem seu salério. Os descendentes de um africano ‘que morra por acidente de trabalho nao tém direito a penséo mensal, somente a uma indeni- zacdo fixada pelo comissério do trabalho. ‘© Um africano que dirija uma classe de leitura & escrita em sua propria casa, mesmo gratuita, pode ser multado e preso durante seis meses. ‘@ Aquele que, durante uma reunifo, incitar um ‘auditério negro a ago de protestos contra a6 leis do apartheid seré multado e aprisionado por cinco anos. ‘© Nenhum africano pode ser membro de um jGri formado para um processo penal, mesmo que o acusado seja um africano. O que é Racismo “no-brancos "Na Africa do Sul escadasseparadas para brancos 18 Joel Rufino dos Santos Na pracinha, domingo de manh Todos os paises que foram, algum dia, colonias de metrépoles brancas — China, Nigérie, Brasil, S80 Domingos . . . — conhecem, invariavelmente, 0 racismo. © passado colonial pesa-Ihes na cabega e no coraggo como 0 pecado original de que fala a Biblia. Isto quer dizer que outro tipo de pais — a Russie, Inglaterra, Grécia, etc. — que nunce foram colénias de ninguém, desconhecem o racismo? Nao, absolu- tamente. O' racismo 6 fendmeno universal. Seria, ento, um irremediével componente da natureze humana? Alguns cientistas acham que sim; alegam que 0 homem esta sempre defendendo seu espago contra 2 invaso de outros, 0s quais, freqlentemente, pertencem a outras racas. Embora possamos discor dar no essencial, 6 uma opinigo séria, com sua indis- cuttvel dose de verdade. Observemos um grupo de inocentes criancas brincando numa pracinha domingo de manha. Em pouces minutos voos teré assistido a diversas brigas, por causa da bola colorida, que se ache, agora, em poder daquele menininho loiro. E como se ele tivesse demercado um circuloa sua volta, o seu espaco, onde Ihe & mais facil defender a sua bola, € fécil ver que ele © defende contra qualquer um, preto, branco, ama relo, pele-vermelha. ‘Se esse menino precisar explicar sua inseguranca (os que chegarem perto vo me tomar a bola”) ¢ O que ¢ Racismo justificar @ sua agresséo ("‘dou um soco em quem ‘entar me tomar a bola”), possivelmente notaré que 1 outros s80 pretos, amarelos, brancos, pelesverme- las — isto 6, possuem algo que os diferencia dele. "Os outros querem me tomer a bola porgue s80 cor.” Neste momento apareceu o racismo, uma idéia negativa a respeito do outro, nescida de uma dupla necessidade: se defender e justificar a agressio. ‘Com o tempo e a experiéncia, ele poderia supor que “todas 2s criangas de cor so tomadores de bola". Isto the tornaria a defesa e agresséo muito mois seguras. Seu racismo amadureceu, atingindo, neste ponto, o plano dos estereétipas; visdo simpli- ficada e conveniente de um grupo qualquer. (Por exemplo: “Os judeus s80 gananciosos”, “os russos so sempre imperialistas”, etc.) Se a inseguranca desta hipotética crianga fosse ‘num crescendo (ela tivesse, por exemplo, de disputar ‘uma vage na escola priméria com um dos “'tormado- res de bola”), poderia assumir a seguinte opinio: “As ctiancas de cor, que s£0 tomadores de bola, nBo devem entrar na mesma escola que eu”. Seu racismo evoluiu para o segregacionismo. Se, enfim, uma bela meanhd esta crianga acordasse com a idéia de que “os tomadores de bola ngo tém mesmo jelto e alguém precisa acabar com eles”, fez jusa uma carteirinha de racista genocida (que pede ou participa do exterminio dde uma raga). Esta pardbola talvez sugira que as pessoas chegam a0 racismo sozinhas. No é verdade. As idéias vr 19 Joel Rufino dos Santos da sociedede para dentro das cabeges, através das palevras, dos exemplos, da imitagéo, das crenges Teligiosas, de uma infinidade de grandes e pequeninos canais, "Vood esté preto de sujeira!” Quem ouve jsto desde os primeiros meses de vida, dificiimente, mais tarde, faré uma idéia positiva dos negros, Nossa parébola pressupde, também, que 0 sentimento de propriedade naspa com 25 pessoas, 0 que, provavel- frente, ndo é certo. A idéia de que es minhas coisas devam ser protegidas dos outros 6 relativamente nove na histérie da humanidede. O dia em que os europeus comegaram a ter insdnie Esta pardbola da crianga que comega defendendo sues coisas e acaba racista serve, também, como ‘alegoria do que aconteceu & nossa civilizagdo ociden ‘al. Nossos avés brigaram muito tempo por espaco até que os diferentes grupos se ajeitassem no seu. Muitos eles continuaram, porém, inseguros ¢ agressivos, uma vez que tinham muitos bens a defender — ‘assim, acabaram descobrindo que 0s outros eram diferentes de si. Os gregos, ponto de partida de civi lizagéo que temos hoje, por exemplo, notaram que 0 vizinhos néo tinham pensamento articulado ~ & isto acontecia, certamente, “porque no falavam 0 O que é Racisma rego, ‘nica lingua capaz de express idéiese senti- mentos profundos”. Bérbaras so todos aqueles que nfo falar rego: esta é uma des formas mais antiges de “racismo"” que se conhece. (Uma curiose sobrevi véncia deste preconcsito: barbarismo 6, ainda hoje, © vicio de linguagem que consiste em empreger palavras inexistentes ou deformacas.) Para os romanos — que passaram @ maior parte o sua vide conquistendo outros povos —, bérbaros eram todos os que no tinham Direito, conjunto de leis que regulam a vide coletiva. Bérbaros eram tanto 608 brancos macedénios, primos dos gregos, quanta os nébios, de pele negrissima. Durante 2 Idade Média (do século V 20 XV), 05 europeus consideravam inferiores os néo-cristdos — drabes, meometanos; africanos, inclusive egipcios judeus de qualquer parte do globo; e asiaticos, in Clusive chineses. Os europeus 36 haviem mudado de Opinio a respeito dos germanos, frencos e eslevos, 08 bérbaros de antes: 6 que tinham se convertido & 16 de Cristo Foi, porém, no limiar da época moderna, a partir dos anos 1400, que 0 racismo dos povos europeus amadureceu, pasando a se basear na caracteristica ‘mais notével dos outros: a cor,da pele. Por qué? A partir desta época, os pafses da Europa ocider tal tornaram-se senhores de tras continentes: Asia, Africa e América. Seus antepassados haviam acusado os bérbaros de crugis e desumanos; pois em matéria 24 Joel Rufino dos Santos de barbérie deixariam, agora, érabes e germanos na condiedo de anjos celestiats. Hernan Cortés, olhando: ‘a distancia, pela primeira vez, a capital dos astecas, ‘teve um sobressalto: era muito mais bela e limpa que Madri, Mandou destrui-la. ‘As circunstdncias forcaram os europeus 2 organizer gigantescas exploracdes de acticar, tebaco, algoddo e mingrios nos trés continentes. (O engenho colonial brasileiro é um exemplo.) Nelas, forgado ainda pelas circunsténcias, instalou 0 trabalho escravo. Como se explica que esta forma de trabalho, desaparecida desde o século V, ressuscitasse agora? Essas gigantescas exploracdes eram um empreen- dimento capitalista e, como tal, buscavam 0 maximo de lucro. Seus organizadores eram banqueiros ¢ co: ‘merciantes estabelecidos em Lisboa, Londres e Ams- terd, 0s mesmos que bancavam 0 trafico nogreiro havia mais de cinqdenta anos. Que méo-de-obra en- vvieriam para as suas exploragdes? Sé podia ser 2 escrava. Da Asia tiravam especiarias; da América, agiicar, fumo, algodéo, metais preciosos; da Africa, uma mercadoria muito especial: gente. ‘A. partir desta época 0s europeus comecaram @ ter insonia, $6 voltariam a dormir quando resolves- sem dois problemas: 19) Como defender tamanha Fiqueza? 29) Como justificar-se por tanto sofrimento jo a tanta gente? 'Se voc duvida que o scfrimento dos outros povos nas méos dos europeus tenha sido, de fato, tZ0 gran- de, eis aqui: os bandeirantes brasileiros eliminaram, aa 0 que é Racismo em cingiienta anos, 1 , da Africa, foram negociadas para a América, em trezentos anos de escravido, mais de 20 milhdes de pessoas. © historiador portugués Oliveira Martins deixou- nos uma vivida descricio deste rendoso negocio: “Havia 14, no selo do_navio balougado’pelo mar, lutas ferozes, uivos de célera e desespero. Os que a sorte favorecia nese ondear de carne viva e negra, aferravarse & luz e olhavam a estreita nesga do céu. Na obscuridade do antro, os infelizes, promiscua- mente arrumados a monte, ou cafam inénimes num torpor letal, ou mordiam-se, desesperados e cheios de fairies, Estrangulavernse: a um saiam-lhe do ven- tre as entranhas, a outro quebravam-se-Ihe os mem- bros nos choques dessas obscuras batalhas. (. . .) ‘Quando 0 navio chegava 20 porto de destino — uma praia deserta e afastada — 0 carregamento desembar- cava; @ & luz clara do sol dos trépicos aparecia uma coluna de esqueletos cheios de pistulas, com 0 ven- tre protuberante, as rotulas chagadas, a pele rasgada, comidos de bichos, com 0 ar parvo e esgazeado dos jiotas. Muitos ndo se tinham em pé; tropecavam, sm, e eram levados aos ombros como fardos « © capitio, voltando a bordo, a limpar 0 porgo, achava 08 restos, a quebra da carga que trouxera: havia por vezes cinqlenta e mais caddveres sobre ‘quatrocentos escravosi” (Citado por José Capela Escravatura: a empresa de saque — O Abolicionismo (1810 p91.) 1875). Porto, Edigées Apontamento, 1974, 23 Joel Rufino dos Santos 0 que € Racismo 2s Esses pobres felis egipcios, de costelas a mostra A polvore ~ inventada por um chinés — ajudou os europeus a resolverem o primeiro problema: nenhurs povo de cor conhecia armes de fogo. Para restituir thes 0 sono, porém, foi preciso algo mais sofisticado que um bacamarte de dois cenos: uma concepsao Facista que os isentasse de culpa por tantosofrimen fo causado cos outros. Os europeus comeraram @ preger que 08 povos de cor, que habitavem os trés Eontinentes, eram assim mesmo: incapazes e servis. mE nos nfo os estamos maltratando, mas cvilizando”. ‘Ouero exempiificar com Ginés de Sepdlveda, inte- lectual colonialista espanhol que, no século XVI, comparou os {ndios a macacos e porcos: mOs espanhéis tém todo o direito de exercer seu dominio sobre estes bérbaros do Novo Mundo eilhas adjacentes, os quais em prudéncia, inteligénciae tods fespécie de virtudes © sentimentos humanos séo to inferiores 20s espenhdis quanto as criengas com relagzo 208 adultos, as mulheres com relaco 20s ho- mens, pessoas cruéis e desumanas com relacdo_a pessoas mansas, pessoas desequilibradas com relacdo 2 pessoas equilibradas; e, enfim, estou prestes @ admitir que com relado 30s espanhéis esto na posicdo de macacos em relacgo a homens. (...) S30 tomo porcos: esto sempre olhando pare © cho, ‘como se nunca tivessem visto 0 o&u.’ Dal, Ginés de Sepilveda extrafa uma conclusé “Tudo isto no prove que eles sf0 esoravos de natureza? (. . .) Esses homenzinhos téo barbaros, ‘Zo incultos, to desumanos . . .” (Citado por Alejandro Lipschutz. El Problema racjal_en le conquiste de América y el mestizeje, Santiago do Chile, Ed. Austral, 1963. p. 72-3.) A partir deste momento, como se v8, 0 recismo deixou de ser puramente cultural ("No gosto dele porque ele no fala grego” ou “No gosto desta gen- te porque néo & crista"). Passou a ser também bioldgico: “Nao gosto dele porque ele é preto”” ou “NBo topo esta gente porque ela esté mais perto dos animais que de nés, humanos”. Como os Indios norte-americanos tivessem @ mesma cor que os europeus, inventou-se, pare rebaixé-los a “povo de cor”, @ “pele vermelha’; enquanto os teélogos, Bf- bia debaixo do brago, tretavam de explicer que a paravra indian no passeva de corruptela de judeus. Néo, néo ere pecedo enché-los de bordoadas. Por volta de 1860, o sistema cepitalista dew um vvigoroso passo adiante, na Europa ocidental e Esta- dos Unidos. © navio @ vapor, a energia elétrica e logo depois, 0 automével e 0 avido fizeram empali- decer os maravilhosos inventos de antes; nesceram © capital financeiro e os grandes conglomeredos de empresas, enquanto as nacbes mais ricas iniciavarn 2 exportagio de capitais para as nacées mais pobres. Um escuro felé egipcio, de costeles & mostra, jamais, teria conta num banco, mas os banqueiros de Lon- Joel Rufino dos Santos ddres, ou Bruxelas, é que decidiam, agora, 2 sua vida. Corts explicar tanta sujeigSo © miséria? Os intelectusis europeus — dignos sucessores daquele Ginés de SepGlveda, que comparava as eens @ simios @ porcos — comegaram a ensinar Que “nos trépicos a pobreza é inevitdvel: aqui o ho- hem $6 tem energia para pensar em sexo e baixezes. Sendo, slém disso, habitades por gente de cor, seu futuro é triste.” Nao admira que os europeus acreditassem em tanta baboseira, Imesmo porque, semelhente @ tanta porearia qué se dé s criangas, ela vinha embruthads bm eolotido papel cientifico — cada época, cada Classe social, cada grande poténcia faz a ciéncia que the interessa fazer. Curioso, mas também explicével, é que nos paises brutalmente explorados por eles também se acredi tasse nisso. O complexo de superioridade geogréfico racial dos europeus era o nosso complexo de inferio- ridade, como as duas feces de uma mesma moeda. ‘Os mais famosos criadores desta ciéncie colonia- lista foram Friedrich Ratzel (1844 - 1904) que, fembore morto em 1904, ainda tem sequidores; € 0 conde de Gobineau (1816 - 1882), um troce-tintas, (que passou 8 vida tentando demonstrar que Deus Ado fora decente ao criar as rages, trando qualidades, ide umas para dar as outras. Dos pensadores bresilei- os © que melhor expressou esta “ideologia do colo pialismo" foi, sem davida, Oliveira Viens. | SD ‘Nos quairos de Debret, a vio pltoresce do tno bras, no inicio do Século XIX. : Joel Rufino dos Santos 0 que é Racismo 2» “Bom-die, segundo o Servigo de Meteorologia”’ Oliveira Viana morreu ao comegarem os anos cin- qlenta. Que possufsse um método para analisar a sociedade brasileira, no pesado e no presente, ndo era de admirar. No seu tempo nasceu 2 sociologia brasileira, saindo de moda as interpretagdes mora- mente impressionistas. Pelo menos zrés autores, hoje famosos, j& haviam esbocado sinteses da formecdo brasileira: Gilberto Freyre, Nélson Werneck Socré & Sérgio Buarque de Holanda, sem falar nos estudos parcializados de Caio Prado Jénior. que adimira naquele mulato fluminense, de pena facil, 6 0 rigor com que obedeceu ao seu método, a disciplina, _@ coeréncia por que pautou tudo 0 que esereveu. E escreveu multo: Populardes meridionais do Brasil (2 volumes), EvolugSo do povo brasileiro, 0 ocaso do impéria, InstituigSes politicas brasifeiras (2 volumes), Raga @ assimilagao, etc., etc. Isto para 6 falar nos t/tulos mais importantes. Admira, também, a fama de que desfrutaram os seus trabalhos. Num pais, como 0 nosso, em que se comenta mais o autor do que se Ié a obra, ele deve zer sido um dos pensedores meis lidos, um dos que, efetivamente, mais influenciaram a geragdio que hoje beira os 40 anos. Na primeira metade dos anos cin- Genta os jovens citavam-no quase tanto quanto se cita hoje Caio Prado, por exemplo. Em 1980, pou: | uissimos sabem sequer de sua existéncia. Oliveira Viana foi para 0 sétéo do pensamento brasileiro, Por que admirévamos tanto, ha 30 anos, um autor hoje esquecido? Em primeiro lugar porque. Oliveira Viana levava seu pensamento ao melhor aljaiate. Tal exigéncia foi posta, de uns 20 anos a esta parte, em termos diferentes dos do passado. Escrever bem, agora — e este é um sinel positivo dos nossos dies — 6 excrover claro, é ter o que dizer e dizé-lo concise: mente. Oliveira Viana era elegante, maneiroso. ‘Comparado com os ensafstas de atualmente, ele era tum esteta e estes ins meros atiradores de pedracas. Em segundo luger, Oliveire Viana era dado 2 citapées. Amava tanto este habito que, dizem, cum- primentava assim: “Bom-dia, segundo o Servico de Meteorologia”. Ora, num tempo como equele, em ouco — tanto quanto hoje — os citadores impressionavam, pondo panca de sabichées. Outra circunsténcla, ligada a esta, também Ihe dava incon- teste autoridade intelectual: citar em inglés ealemao. Naquele tempo poucos liam 0 inclés, rarfssimos alemdo. A maioria lia em francés — néo somente os ‘autores franceses, mas os de outra origem vertidos para o francés. Nos tempos antigos pesava até mesmo a infémie sobre as traductes: se treduzfamos, era por burr E, porém, no método que copiou dos racistes europeus, que se encontra a explicagéo pare o pres- tigio deste repetidor brilhante: a sociedade brasileira necessitava de alguém que Ihe expressasse, com

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