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“Sempre que uma pessoa se sente deprimida, amedrontada,

ou acha que a situação não anda bem, imediatamente


começa a polir a mesa ou a limpar o jardim procurando
distrair-se. Ela não quer lidar com o problema subjacente
e, por isso, busca algum tipo de prazer momentâneo. Tem
pavor do espaço, de qualquer canto vazio.”
Chögyam Trungpa Rinpoche
Por Judy Lief  |  Tradução:  Sandra Silva.
A distração, é algo muito além do número de vezes
ao dia que você vai verificar o seu telefone. De
acordo com a professora budista Judy Lief, a
distração é o próprio fundamento do ego, a forma
como nos protegemos tanto contra a dor da vida
como do espaço aberto pela mente desperta. Pode-
se até dizer que abrir mão de todas as distrações é
o caminho para a iluminação.
As distrações estão em todo o lugar, o tempo todo. Em
pequenas telas, telas medianas, telas gigantescas. Tal como
na caverna de Platão, cada um de nós cria a nossa própria
pequena caverna e vive num mundo de imagens cintilantes
desprovidas de substância real. Nós, literalmente, nos
desligamos do nosso mundo atual, com toda a sua robustez
e crueza, e nos encaixamos em tudo o que está acontecendo
num mundo virtual de som, imagens e vídeos que
transportamos nos nossos bolsos.
Nós nos distraímos tão facilmente, reclamamos para nós
mesmos. Mas o que realmente está por trás de toda esta
distração? É fácil pensar que os contínuos estímulos
externos são o problema, mas o que nos rodeia s ão apenas
fenômenos, nada mais. Os objetos do nosso mundo estão
apenas lá, inocentemente, sendo apenas o que são. Ruídos
são apenas ruídos, visões são apenas visões, objetos são
apenas objetos, smartphones são apenas smartphones,
computadores são apenas computadores, pensamentos são
apenas pensamentos.
É por isso que os ensinamentos budistas falam mais em
termos de divagações da mente do que de distrações.
Quando pensamos em termos de distrações, olhamos para o
exterior e culpamos as condições externas para a nossa
inquietação. Quando pensamos em termos de divagações da
mente, olhamos para dentro na procura da fonte do nosso
problema. Assumimos a responsabilidade.
 
Mente de macaco
O fato é que as distrações jamais desaparecerão. Você pode
até fugir para uma pequena caverna e ficar lá sozinho, mas
as distrações irão segui-lo onde quer que vá. Você não pode
se livrar das distrações, mas através da prática da
meditação, você pode mudar a forma como reage a elas. É
como a história de Ulisses e as Sereias, que seduziam
marinheiros para fora da sua rota diretamente para o recife,
para as suas mortes. Para sobreviver, Ulisses amarrou-se ele
próprio ao mastro e apelou à sua tripulação para que
tapasse os seus ouvidos.
Tal como as Sereias, as distrações puxam-nos para fora da
nossa rota. A palavra “distração” significa ser
puxado, ser afastado. Quando você está distraído, é
como se algo fora de você tivesse capturado a sua
atenção. Distração é também referida como
desultória, da raiz latina que significa “pular de um
lado para o outro”. Então, um outro aspeto da
distração é ser desmiolada, mentalmente saltitante.
O Budismo chama isso de “mente de macaco”. Em
resposta, tal como Ulisses, podemos nos agarrar ao mastro
da disciplina através da meditação da atenção plena.
A meditação da atenção plena, também conhecida como a
permanência serena, ajuda-nos a desenvolver uma mente
mais calma e estável. Isso nos dá mais foco e concentração e
é uma maneira eficaz de superar a distração comum. No
entanto, em termos de caminho espiritual, esta pragmática
aplicação da prática da meditação é apenas um começo.
É importante perceber que no buddha-dharma, o propósito
de trabalhar com a distração ou divagação da mente não é
apenas para que fique mais focado no que você está fazendo.
Apesar disso ser extremamente útil, é apenas o primeiro
passo. Obter um melhor controle sobre a sua mente para
que você não esteja tão exposto á distração é apenas uma
medida paliativa.
Basicamente, temos a tendência para gostar de práticas
espirituais que não sejam muito ameaçadoras, práticas que
confirmam o que estamos fazendo e nos ajudam a fazer
melhor. Em vez de olhar para o nosso ser fundamental,
preferimos ver a meditação como um exercício de
autoaperfeiçoamento, como ir a academia e malhar.
Podemos, então, gozar da satisfação de nos tornamos
mental e fisicamente mais aptos. Isso é ótimo, mas não
chega a tocar nas profundezas do que a distração realmente
é.
Quando as distrações chegam podemos lidar com elas, mas
temos de olhar mais profundamente. O que realmente
alimenta a nossa distração? O que está por trás dessa
inquietação? Embarcar no caminho do dharma exige que
desenvolvamos a coragem de olhar para além da nossa
distração, para o que reside por de trás dela. Isso requer
que questionemos o que realmente é a distração, do que
estamos nos distraindo e porquê. Neste caminho,
precisamos descascar, camada por camada, todos os níveis
de distração até que alcancemos uma espécie de hipocentro.
 

  ”Neste mundo, samsárico, ou confuso, a maioria de vocês


cresceu fisicamente, mas psicológicamente são ainda muito
jovens. Se a sua mente é tão adolescente que você não tem
controle sobre ela, as coisas que você é ensinado são
desperdiçadas, porque você não as escutou —não porque
você é estúpido mas sim porque você está distraído.   A
disciplina da meditação é a melhor maneira para você
trabalhar com a sua mente, para que a sua mente e seu
corpo possam ser devidamente coordenados. “-   Chögyam
Trungpa
 

Mente de Entretenimento
De acordo com a psicologia budista, a distração é
classificada, juntamente com coisas tal como preguiça e
falta de atenção, como um dos vinte fatores
desestabilizadores da mente. Em sânscrito, esse fator é
chamado vikshepa. Ela surge quando o fluxo natural das
perceções sensoriais se mistura e contamina-se com as
nossas emoções. Em outras palavras, a distração é
alimentada pelos suspeitos de costume: apego, rejeição e
negação. Então distração não é apenas um tique mental. É
altamente emocional.
Embora vikshepa seja muitas vezes traduzido como
“distração” ou “vagueio mental”, refere-se mais
especificamente à mente vagueante sendo atraída para
objetos que causam a perda da sua capacidade de se manter
exclusivamente focada na virtude. Portanto, este termo
aponta para um tipo específico de distração – distração por
não manter sua atenção no que é importante, o que é
genuíno e virtuoso.
Aprender a puxar a nossa mente quando está vagueando é
uma abordagem reativa: nós estamos aprendendo a como
responder às distrações. Mas à medida que mais facilmente
respondemos às distrações externas, descobrimos uma
ainda mais gigantesca montanha de distração interna.
Começamos a perceber que não é apenas uma questão de
reação a algo fora de nós – nós próprios estamos
continuamente criando distrações. Nós achamos que
precisamos de distrações, pelo que continuamente as
cozinhamos e alimentamos. Elas são as nossas
companheiras, os nossos animais de estimação.
Chögyam Trungpa Rinpoche chamou à nossa contínua
distração interna de “fofocas do subconsciente”, uma
espécie de contínuo zumbido de fragmentos e opiniões do
pensamento. Com isso, ele falou sobre o que ele chamou de
“mente de entretenimento.” Esta mente de entretenimento
precisa ser alimentada constantemente. Se não tiver
distrações imediatas, ela vai fabricar novas distrações na
hora. Por isso, estamos empenhados num projeto contínuo
de distração, mantendo as distrações e entretenimentos
fluindo sem interrupção. Há um ar de desespero acerca
desses rios de distração que criamos.
A nossa esperança é que se mantivermos a distração
fluindo, não teremos de olhar para quem somos, não
teremos que sentir o que sentimos, não teremos que ver o
que vemos. Mas o caminho espiritual é um dos removedores
destas cortinas de fumaça para aceitação dos fatos. É um
processo de desmascaramento. É muito assustador perceber
como somos tão dependentes em todo este esquema, e ainda
mais assustador quando percebemos que este contínuo
projeto de distração pode entrar em colapso a qualquer
momento.
A distração é alimentada pela nossa luta constante para nos
garantirmos em relação aos outros e ao ambiente. Esse
projeto, por sua vez é alimentado pelo nosso medo de deixar
ir e pela nossa falta de confiança em nós mesmos. É como se
estivéssemos em guarda o tempo todo, com medo de perder
a oportunidade de atacar e continuamente atentos a
potenciais ameaças ou ataques. Com base nessas emoções,
nossa mente é puxada para lá e para cá. Para lidar com este
nível de distração, precisamos não só domar a mente
vagueante, mas também diminuir o seu fornecimento de
combustível: o vai e vem de emoções.
 

“A causa de todos estes sofrimentos é a nossa insegurança


fundamental. Estamos sempre pensando se nós existimos
ou não. Nosso ego, ou melhor, o nosso apego à idéia de si
mesmo, é completamente insegura sobre sua própria
existência. Nosso ego pode parecer forte, mas na verdade é
muito instável. Claro, nós não fazemos tais perguntas
conscientemente, mas sempre temos um sentimento
subconsciente de insegurança sobre se nós existimos.
Tentamos usar coisas como amigos, dinheiro, posição e
poder, e todas as coisas diárias que fazemos, como assistir
televisão ou ir às compras, para de alguma forma, provar
e confirmar a nossa existência. Tente sentar-se sozinho em
uma casa e não fazer absolutamente nada. Mais cedo ou
mais tarde, suas mãos vão chegar para o controle remoto
ou o jornal. Precisamos estar ocupados. Precisamos ser
ocupados. Se não estão ocupados, nos sentimos inseguros.
Mas há algo muito estranho em tudo isso. O ego
constantemente procura por distração, e em seguida a
própria distração torna-se um problema. Em vez de nos
ajudar a sentir seguros, ela realmente aumenta nossa
insegurança. Ficamos obcecados com a distração e isso se
desenvolve em mais um hábito. Assim que se torna um
hábito, é difícil se livrar. Portanto, a fim de se livrar deste
hábito novo, temos de adotar mais um hábito. Esta é a
forma como as coisas tem acontecido conosco
continuamente…vez após vez.”
Dzongsar Khyentse Rinpoche
Mente de Sabedoria
Trabalhar com distrações é um projeto de longo prazo.
Podemos até começar com uma ideia romântica de embarcar
na jornada espiritual. Mas à medida que avançamos com a
prática, o romantismo se desvanece e ficamos com um
processo gradual de exaustão. Descobrimos que temos cada
vez menos espaço de manobra. É um choque perceber que
não podemos apenas tomar nosso bom e velho Eu e
melhorá-lo, mas que temos de recomeçar do zero. É como
uma grande liquidação de produtos. Todas as nossas
distrações e diversões – tudo tem que ir.
À medida que nosso edifício da distração começa a
desmoronar, somos confrontados com decepção e dor. Os
nossos sonhos e ilusões começam a se evaporar. Onde quer
que vamos, nós somos jogados de volta em nós mesmos. Não
há como escapar. Não importa o que esteja acontecendo,
nós nos acostumamos a ser capazes de fabricar cenários
alternativos, de modo que nunca poderiamos ser parados.
Nós não tinhamos que nos comprometer totalmente com
nada; havia sempre uma saída. Mas agora estamos presos.
Somos confrontados com a nossa própria dor e decepção.
Sem ninguém para nos fazer companhia -nem sequer com a
nossa própria companhia- nós somos confrontados com a
nossa solidão absoluta. Não há nada a fazer e nada para se
agarrar. Estamos sozinhos, solitários, é desolador. Tudo em
que acreditamos acaba por ser uma farsa, uma construção
mental. Batemos num muro.
Mas quando chegamos ao ponto em que não mais podemos
encobrir o que temos feito ou forçar a nossa experiência a
dobrar-se à nossa vontade, algo acontece. Começamos a
relaxar. Embora a princípio a ideia de abandonar
totalmente a nossa cortina de fumaça de distrações seja
ameaçadora, até mesmo aterrorizante, se mantermos essa
prática, mesmo que por alguns momentos, a fumaça começa
a clarear e podemos então começar a ver de uma forma
completamente nova.
Místicos cristãos dizem que você precisa passar por uma
“noite escura da alma” antes de entrar na presença de Deus.
É como a analogia da luz no fim do túnel. Sem noite escura,
não há união com Deus; sem túnel, não há luz. Trungpa
Rinpoche também falou sobre a importância deste estágio
de desenvolvimento. Ele ensinou que quando os alunos se
tornaram completamente frustrados – quando sua prática
os leva até a ponto de ficar sem esperança e pensam em
abandonar todo o caminho – este é precisamente o ponto
onde a verdadeira jornada do despertar começa. É nessa
altura que os ensinamentos começam a tomar posse, não
como uma ornamentação do ego, nem como um adorno, mas
como uma energia transformadora profundamente
enraizada que se impregna até aos nossos ossos.
Assim como na mística cristã, nós também precisamos
abandonar o nosso mundo familiar, deixar tudo para trás e
ir para o deserto. Neste caso, o deserto é a nossa própria
mente. Esta mente deserta é o que resta quando o nosso
projeto de distração contínua se desmorona.
Podemos aprender muito observando como oscilamos entre
distração ou diversão e tédio. O tédio tem uma vantagem.
Sentimos nossa terra desaparecer; lutamos para encontrar
uma forma de nos proteger. Há muito espaço; precisamos
preenchê-lo. Não há nada acontecendo, precisamos fazer
alguma coisa. É tudo muito tranquilo; algo deve estar
errado.
Prestar atenção a esses tipos de respostas ao tédio é
extremamente valioso. É uma ótima prática. E quando você
sentir que, com toda a certeza, deve fazer algo mais, fique
com o tédio um pouco mais! Permita-se sentir
completamente entediado. Desta forma, você pode ser capaz
de obter uma visão do que Trungpa Rinpoche chamou de
“tédio legal”, uma experiência refrescante e livre de apego,
fingimento, e luta. No “tédio legal”, você pode finalmente
soltar o fardo de tentar ser alguém. Você pode romper com
o projeto do “eu.”
Indo mais longe, temos de abordar um nível ainda mais
fundamental da distração. De acordo com os ensinamentos
do Vajrayana, o que, fundamentalmente estamos nos
distraindo de, é do despertar. Estamos, habitualmente, nos
distraindo do desafio de enfrentar a nossa própria
sabedoria. Estamo-nos distraindo da intensidade do
momento presente, da urgência dos ensinamentos, e da
nossa própria autenticidade. Assim que temos, ainda que
um pequeno vislumbre desse potencial, entramos em pânico
e lutamos para dele fugir. Podemos lidar com uma relação
distante para com o dharma, que é inspiradora e de certa
forma manuseável. Mas quando essa distância confortável
entra em colapso e enfrentamos a intensidade total dos
ensinamentos, paramos de fabricar distrações na hora. Para
a maioria de nós, este nível de distração é mais ou menos
contínuo.
Através do caminho budista, trabalhamos com distrações
em muitos níveis de profundidade. Na verdade, as
distrações e o caminho praticamente andam de mãos dadas.
Você pode até considerar distrações como os seus melhores
professores.
Como bons professores, as distrações nos sacodem.
Elas reduzem abruptamente as nossas pretensões. É
chocante ver como sem elas somos uma imensidão
de tempo. Em qualquer nível, as distrações podem
ser irritantes, frustrantes e surgem querendo, ou
não. Mas, como bons professores, também nos
estimulam a avançar. No momento exato em que
uma distração aparece, surge também a
oportunidade de penetrar no que está por trás dela.
E o que está por trás dessas distrações sem fim é o
espaço ilimitado da mente desperta.

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