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E Riobaldo diz da nossa pressa em classificar as pessoas

E Riobaldo, ainda bem no início do livro, já começa a dizer o que ainda dirá
muitas vezes: que as pessoas não são facilmente classificáveis, que nem
tudo é tão claro assim, que a vida é fluida e muda muito. E começa com
dois casos exemplares, duas parábolas que nos deixam a pensar.

"Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito
bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei
desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens.”

Primeiro, Riobaldo diz de um homem chamado Aleixo, que era “o homem


de maiores ruindades calmas que já se viu”. Que um dia ele matou um
velhinho que esmolava sem motivo algum, achou graça naquilo. Mas que
depois seus filhos, que eram seus maiores amores, adoeceram de
sarampo e ao fim restaram todos cegos, três meninos e uma menina. E
que depois disso o Aleixo mudou completo, “suando para ser bom e
caridoso em todas suas horas da noite e do dia”.

Em seguida Riobaldo contra outro caso, agora fala de Pedro Pindó e sua
mulher, pessoas sempre boas. E eles têm um filho, chamado Valtei, de 10
anos, menino ruim, que judia de animais, cortou uma mulher bêbada
adormecida, que dizia gostar de matar, entre outras ruindades. O pai e a
mãe tentam corrigir passam a bater no menino, o deixam sem comer, o
amarram na árvore no frio, e outras coisas mais. Tentam tanto corrigir que
acabam deixando aflitos os vizinhos de arraial. O menino emagreceu e
tosse o tempo todo. E os pais vão meio que pegando gosto de bater nele,
marcam hora para as sovas e chamam os vizinhos pra ver. E que agora o
menino sofria “igual que se fosse um menino bonzinho...”

Quando eu devia ter uns 11 anos, conversando com um amigo e sua mãe,
eu disse que as pessoas todas eram boas e eram más, e que por isso
mesmo sempre tinha algo de positivo que a gente podia ver em alguém. A
mãe de meu amigo me respondeu, de modo bem ríspido, que pensar
assim era falta de caráter, que temos que saber definir as pessoas, definir
quem elas de fato são. Eu fiquei bem chateado e preocupado na época,
pensando que não tinha caráter, apesar de não entender muito bem o
que seria isso.
Riobaldo ajuda neste ponto, ao dizer da dificuldade de se classificar assim
uma pessoa. Não que não existam pessoas bem ruins e bem boas, mas diz
sim que é difícil definir onde essas coisas começam ou terminam, que é
difícil definir sem sombras nas fronteiras o que é ser bom ou ser mal. Os
trechos acima apontam essa direção. Assim como quando ele diz, mais
adiante, que as pessoas afinam e desafinam e voltará a dizer, mais tarde,
em várias passagens, mais ou menos a mesma mensagem: 

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que


as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas
que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o
que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o
diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro –
dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus
vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o
milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia,
num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só
caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei. – “Amanhã eu tiro...”
– falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah,
então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído,
quase por metade, por aquela agüinha escura, toda quieta. Deixei, para
mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí:
da faquinha só se achava o cabo... O cabo – por não ser de frio metal, mas
de chifre de galheiro. Aí está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu
sabe, o que sabe me entende...”
João Guimarães Rosa in Grande Sertão: Veredas, pg 23.

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