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DAS MUTAÇÕES NA CULTURA CONTEMPORÂNEA A UMA CRISE DE

LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE NO SOCIAL

Bruno de Andrade Reis Mestrando no curso de Pós-graduação sobre Estudo de


Linguagens da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. E-mail: reisandradebruno@gmail.com

Resumo: Partindo da incidência de uma mutação cultural em curso na contemporaneidade,


o presente trabalho objetivou analisar o declínio da autoridade no social em sua relação
com o avanço das tecnociências, e do projeto moderno analisado por Canclini (1998),
período em que o autor aborda o conceito de hibridação cultural. Nessa empreitada, as
contribuições de Walter Benjamin sobre a autenticidade/inautenticidade da linguagem,
foram de fundamental importância para uma ampliação da presente investigação, que
buscou refletir enquanto um efeito desse processo, a instalação de uma “crise” de
legitimidade na cultura, que recairia, também, na dimensão subjetiva e, portanto, no
território dos sujeitos, no tocante, àqueles que teriam à atribuição de representar figuras de
autoridade no social. Não obstante, se fez necessário, inicialmente, recorrer aos conceitos
de multiculturalismo/interculturalíssimo como uma introdução para o exame do fenômeno,
valorizando uma perspectiva mais sociológica e, por conseguinte, cultural, para, em
seguida, receber tratamento adequado no território do estruturalismo lacaniano, onde o
conceito de identidade pôde ser articulado com o processo de subjetivação em sua relação
com a identificação na teoria psicanalítica. Por fim, o estudo propõe à incidência de uma
atopia que acometeria o sujeito contemporâneo, desamparado, a deriva, mobilizada por uma
mixórdia no campo da linguagem. Nesse cenário, as discussões entorno das identidades
ganham novo colorido ao testemunhar a liquidez entre as fronteiras daquilo que poderíamos
compreender a partir de uma acepção mais nacionalista, para uma percepção de mundo,
cosmopolita, globalizado, nômade e que permitiria a eclosão de novas formas de
subjetivação e clínicas.

Palavras-chave: Mutação cultural, Identidade, Subjetividade.

Se retirarmos a autoridade da vida política e pública, isso pode querer


dizer que doravante a responsabilidade pelos rumos do mundo é pedida a
cada um. Mas isso pode também querer dizer que estamos negando,
conscientemente ou não, as exigências do mundo e a sua necessidade de
ordem; estamos rejeitando qualquer responsabilidade pelo mundo: tanto
de dar ordens, como de obedecê-las. (Arent, H.[La crise de la cultur.
Paris: Folio-Gallimard, 1972] apud Lebrun, 2008, p.45)

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Assistimos, no início do terceiro milênio, a emergência de um “progresso” em nossa
contemporaneidade, o qual aponta para o declínio de uma sociedade que tinha nos preceitos
da religião e na lei instaurada pelo Nome-do-Pai1 as bases de sua organização, enquanto
uma outra, orientada pelo discurso das tecnociências, vem se impondo pela promessa de
que agora é possível a livre expressão de todos os desejos, com a consequente garantia de
sua realização.

Bauman (1998, p.10), na obra O mal-estar da pós-modernidade, ao discorrer sobre


o mal-estar na cultura, em sua evolução histórica, avalia:

A antiga norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era antes. Só que
os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-
modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por
um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de
uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na
busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade
provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma
segurança individual pequena demais.

Por sua vez, Charles Melman (2003, p.36), ao falar sobre a inscrição desse
“progresso” que estaria operando na cultura, hoje, convida-nos a uma constatação:
“Estamos lidando com uma mutação que nos faz passar de uma economia organizada pelo
recalque2 a uma economia organizada pela exibição do gozo 3”, atestando também, a
deslegitimação do modelo que organizava a forma de economia psíquica solidária com o
mundo das velhas normas, dos velhos padrões culturais, das antigas tradições.
No mundo ocidental, o advento dos tempos modernos ganha contornos mais
expressivos, sobretudo, após a eclosão da revolução francesa no século XVIII, período
onde os ideais antigos da tradição, da verticalização hierárquica consolidada nas figuras dos
monarcas, aristocratas e da igreja católica, entram em colapso ao destronar os preceitos da
monarquia absolutista em nome dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade
materializada na “voz das ruas”.

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Neste cenário de levante impulsionado pelas revoluções, a legitimidade da
autoridade no social antes suportada numa exterioridade transcendental, por uma
heterotopia, marca fundamental nas culturas patriarcais, parece ter ruído dando lugar a uma
horizontalidade em que a dessimetria, antes legitimada simbolicamente nas figuras de
Deus, do Rei, do Professor, do Pai, encontrar-se-ia na contemporaneidade sem
funcionalidade no tecido social, ou pelo menos, funcionando de outra forma, sendo
necessário ser procurada em seu trajeto singular, na tensão inerente à trama social.

Jean-Pierre Lebrun adverte-nos:

A denominada crise de autoridade não provém da falta de autoridade, a


autoridade está aí, ela está estabelecida. O respeito aos procedimentos e às
instituições está mais forte do que nunca, em todas as áreas da sociedade.
[...] Creio que essa chamada crise de autoridade é principalmente o mal-
estar dos dirigentes, que devem submeter seus atos à crítica da opinião, à
argumentação racional e contraditória no espaço público. É evidente que,
nessas novas condições, o poder é mais difícil de se exercer, na família, na
empresa, na escola ou na vida política. Afirmo que é um progresso (2009,
p.109).

Nessa configuração, tratar-se-ia, em última instância, de uma “desidratação” da


legitimidade em sua dimensão simbólica, o que não pode ser confundido com algum tipo de
autoritarismo mobilizado pela imposição da violência, muito menos pelo exercício de
persuasão inerente ao território das oratórias. Aliás, um bom exemplo contemporâneo que
parece ilustrar bem a falência de legitimidade no campo jurídico reside na realidade
brasileira, onde se observa uma espécie de judicialização na conjuntura política do país e,
em alguns casos, o seu inverso, tornando porosas as fronteiras entre os poderes do
executivo, legislativo e judiciário. No esteio do espírito democrático, as relações de poder
parecem mostrar a sua face mais fundamental, o pervertimento das tensões por onde as
instâncias da igualdade e das diferenças vão se enamorar em sua “sede” mais egoísta. Não
obstante, longe de aprofundarmos as especificidades do discurso democrático, parece-nos
mais funcional tratarmos a extensão deste conceito enquanto um elemento constitutivo do
projeto moderno.

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Partindo dessa premissa, Néstor Garcia Canclini em seu trabalho Das utopias ao
mercado define bem o período moderno partindo da inscrição de quatro projetos:
emancipador, expansionista, renovador e democratizador. Segundo o autor,

Por projeto emancipador entendemos a secularização dos campos


culturais, a produção autoexpressiva e autorregulada das práticas
simbólicas, seu desenvolvimento em mercados autônomos. [...]
Denominâmos projeto expansionista a tendência da modernidade que
procura estender o conhecimento e a posse da natureza, a produção, a
circulação e o consumo dos bens. [...] O projeto renovador abrange dois
aspectos, com frequência complementares: de um lado, a busca de um
aperfeiçoamento e inovação incessantes, próprios de uma relação com a
natureza e com a sociedade liberada de toda prescrição sagrada sobre
como deve ser o mundo; de outro, a necessidade de reformular várias
vezes os signos de distinção que o consumo massificado desgasta. [...] Por
fim, teríamos o projeto democratizador como um movimento da
modernidade que confia na educação e na difusão da arte e dos saberes
especializados para chegar a uma evolução racional e moral (1998, p.32).

A racionalização da vida social, da cultura empreendidos por governos liberais,


socialistas e associações independentes, através da popularização e promoção das
descobertas científicas, a expansão do capitalismo motivada preferencialmente pelo
desenvolvimento tecnológico e industrial, além do individualismo crescente, sobretudo, nas
grandes cidades, parecem, fundamentalmente, refletir à semiologia por onde vai se edificar
a cultura pós-moderna. Caberia a esta altura refletirmos sobre os efeitos ulteriores que vem
se impondo na dimensão da linguagem, suas implicações subjetivas para a constituição de
identidades e modos de subjetivação no contexto sociocultural.

Néstor Garcia Canclini, a esse respeito sugere fazer um exame sobre os processos
de hibridação na cultura, entendendo este conceito, hibridação, como:

Processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que


existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,
objetos e práticas. [...] e conclui que os estudos sobre narrativas
identitárias com enfoques teóricos que levam em conta os processos de
hibridação (Hannerz; Hall) mostram que não é possível falar das
identidades como se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem

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afirmá-las como essência de uma etnia ou de uma nação. A história dos
movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de
elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos em
um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloquência (2015, p.23).

Se, por um lado, à emergência de um contexto multicultural - em que adjetivos como:


diversidade, heterogeneidade, impõem a confrontação entre às diferenças, – por outro, a
interculturalidade como um efeito inevitável desse tensionamento, implica à convivência, o
exercício constante de negociação dos conflitos inerentes aos discursos hegemônicos e marginais,
entre a soberania das instituições políticas do Estado-nação a outras instituições mobilizadas por
forças sócias.
Na contemporaneidade, a tradição e o novo, o clássico e o moderno irão conviver
mutuamente deflagrando transformações profundas que, inevitavelmente, vão se expressar
por meio da linguagem oral, escrita, das artes em geral. É nesse sentido, que podemos
constatar, por exemplo, na literatura do século XII, o surgimento do romance como um
gênero literário, por exemplo, o Dom Quixote que data de 1605, ou no século XX a
consolidação do movimento vanguardista europeu provocando uma ruptura no campo das
artes, nos modelos pré-estabelecidos pela tradição.

Nos trabalhos de Walter Benjamin, encontramos vestígios dessa mutação cultural


quando o autor denuncia um declínio da experiência na linguagem, evocando a
transfiguração de uma erfahrung (experiência autêntica) – responsável por comunicar
coletivamente as experiências acumuladas na cultura à outra erlebnis (experiência
inautêntica) – onde se valoriza o isolamento do indivíduo.

Diz-nos ele:
Qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não
mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do
mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses
valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é
subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de
honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa
pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade.
Surge assim uma nova barbárie (1985, p. 115).

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O abalo operado por essa convulsão social implicada por uma profusão de
referências incidiria não apenas no apagamento relativo às fronteiras simbólicas, que
serviram de clivagem para separar os lugares do público e do privado no social, mas
também recairia sobre a transmissão intergeracional dos valores cultivados na cultura.

A despeito disso, Benjamin nos lembra de que a narração tornar-se-ia uma atividade
em via de extinção, posto que, em última instância, a experiência coletiva de contar e ouvir
histórias também se encontraria em declínio na modernidade. Para este autor,
O “período épico da verdade” cultivava-se a sabedoria e, por isso, a
narração apresentava uma função de aconselhamento porque não era um
simples relato, mas se consubstanciava como uma proposta de
continuidade de uma história que não cessava: “a arte de narrar tende para
o fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria está agonizando”
(1980, p. 59).

Observa-se, nessa conjuntura, uma “ruptura” na forma como o saber articulado


como uma verdade épica, legitimada na sabedoria encarnada pela figura do narrador - seja
através da experiência adquirida pelas viagens em terras estrangeiras, ou pelo seu
sedentarismo frente às vivencias em terra nativa - tinha por função organizar e transmitir o
conhecimento dos mais velhos para as gerações seguintes. A pobreza de experiência da
qual a humanidade padece na contemporaneidade, parece apontar para a emergência de
outras formas de convergências coletivas, permitidas pelo avanço tecnológico, como, por
exemplo, nos casos dos ambientes virtuais.

Hoje, parece-nos, antes, que o saber tecnocientífico ocuparia um lugar proeminente


de autoridade na cultura contemporânea, quando, por exemplo, observamos seus avanços
em diversas áreas do conhecimento, e, por conseguinte, suas transformações no contexto
social. O projeto capitalista, a globalização e o neoliberalismo, por exemplo, só foram
possíveis através das transformações implicadas pelo o avanço das ciências.

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Para tanto, até mesmo a ciência encontrar-se-ia numa condição conflitiva, quando
avaliamos os seus progressos na contemporaneidade. A despeito disso, Boaventura de
Sousa Santos, em seu trabalho Um discurso sobre as ciências, de 1987, apresenta-nos a
“crise” que recai sobre o paradigma dominante da ciência moderna, evocando justamente o
resultado interativo de uma pluralidade de condições que incidem desde as insuficiências
estruturais do paradigma científico - motivado pela expansão da produção de
conhecimento; passando pelo domínio da microfísica em que a mecânica quântica
relativizou o rigor das leis de Newton, demonstrando, a partir de Heisenberg e Bohr que
“não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele” ( 2004, p.55); até a
constatação no teorema da incompletude, sobre a possibilidade de formular proposições
indecidíveis, por exemplo, através das investigações de Godel - onde o rigor da matemática
carece, ele próprio, de fundamento, ou ainda, as investigações do físico-químico Prigogine,
que nos apresenta a instabilidade que repousa em sua teoria das estruturas dissipativas.

As insuficiências inerentes às descobertas científicas instalam uma necessidade


constante de legitimidade em torno de novos achados, toda via os seus efeitos no social
podem ser evidenciados com muita frequência ligados a tendências políticas e
mercadológicas do modelo consumista atual.

Em nossa contemporaneidade, portanto, conceitos como mutação, barbárie, crise,


mixórdia parecem constituir os traços fundamentais da “identidade contemporânea”. Resta
saber quais os efeitos estariam implicados subjetivamente, quando poderíamos pensar que,
hoje, o sujeito estaria deixando de ser orientado pela figura de um Deus-pai para se
transformar em filho da ciência.

Stuart Hall, em seu trabalho A identidade cultural na pós-modernidade, propõe uma


reflexão em torno da concepção de três tipos de sujeito historicamente constituídos:

Do iluminismo baseado numa concepção da pessoa humana, como um


indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da
razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior,

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que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia, e com ele se
desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo –
contínuo ou idêntico a ele – ao longo da existência do indivíduo. [...] Já o
sujeito sociológico, refletia a crescente complexidade do mundo moderno
e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e
autossuficiente, mas era formado na relação com outras pessoas
“importantes para ele”. Que mediavam para o sujeito os valores, sentidos
e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava. [...] Finalmente,
no sujeito pós-moderno, o próprio processo de identificação, através do
qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-
moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial
ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam
(Hall, 1987, p.10).

Nesta perspectiva, o tratamento dado ao conceito de identidade privilegia sua


acepção mais cultural, sociológica, não se propondo o exame das relações estruturais com o
processo de subjetivação do sujeito. Recorrendo à teoria lacaniana, o conceito de identidade
poderá ser trabalhado em sua relação com o sujeito, a partir da dinâmica das identificações
articuladas como matriz simbólica em sua relação com a instalação da metáfora paterna do
Nome-do-Pai. Nesse território, podemos falar em causação do sujeito, isto é, o momento
em que a criança ascende ao simbólico, e, por conseguinte, à condição de falante.

Com efeito, na teoria lacaniana, a identificação se constitui primordialmente no


registro do imaginário, precisamente no estádio do espelho, experiência que se organiza em
torno de três tempos fundamentais, no qual a criança progressivamente vai estruturando a
sua imagem corporal. Lacan em seu trabalho Le stade du miroir comme formateur de la
fonction du Je, de 1936 nos diz: “O estádio do espelho é um drama cujo alcance interno se
precipita da insuficiência para a antecipação e que, para o sujeito, tomado no equívoco da
identificação espacial, urde os fantasmas que se sucedem de uma imagem esfacelada do
corpo para uma forma que chamaremos ortopédica de sua totalidade” (Dor, 1989, p.97).

Ao final dessa experiência, a criança não apenas será capaz de discernir a imagem
humana de si com a do seu semelhante, mas também diferenciar uma imagem real de uma

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virtual, refletida inversamente no espelho. A construção da imagem corporal é, não
obstante o primeiro processo de identificação operado pela criança em seu desenvolvimento
para constituir-se sujeito de linguagem.

Em seguida, articulam-se três momentos do Édipo, em que respectivamente a


criança vai estar identificada inicialmente com o desejo da mãe, depois essa identificação é
abalada pela intrusão do pai, isto é, pela descoberta do pai como lei, para finalmente ocorrer
a simbolização dessa lei, momento em que a metáfora paterna do Nome-do-pai instala-se,
permitindo posteriormente as identificações que vão constituir o sujeito nas relações com
seus semelhantes, e, por conseguinte, pelos efeitos linguageiros da cultura.

Segundo Joel Dor, em seu trabalho Introdução à leitura de Lacan de 1989,

Ao sair da fase identificatória do estádio do espelho, a criança, em quem


já se esboça um sujeito, nem por isso deixa de estar numa relação de
indistinção quase fusional com a mãe. Esta relação fusional é suscitada
pela posição particular que a criança mantém junto à mãe, buscando
identificar-se com o quê supõe ser o objeto do seu desejo. Esta
identificação, pela qual o desejo da criança se faz desejo do desejo da
mãe, é amplamente facilitada, e até induzida, pela relação de imediação da
criança com a mãe, a começar pelos primeiros cuidados e a satisfação das
necessidades. Em outras palavras, a proximidade dessas trocas coloca a
criança em situação de se fazer objeto do que é suposto faltar à mãe. Este
objeto suscetível de preencher a falta do outro é, exatamente, o falo
(p.80).

É, portanto, na dialética em que a criança inicialmente é confrontada em “ser ou


não ser” o falo da mãe e, posteriormente, em “ter” o falo, após a ocorrência da operação da
castração4 mobilizada pela a entrada do terceiro (o Pai), onde vai se desenrolar toda a
dinâmica do complexo de Édipo. Nesse contexto, os três elementos criança-mãe-pai
precisam ser ativos frente à dialética do desejo implicada na relação como o falo. Dito de
outro modo é necessário, que o pai como detentor do falo entre como um intruso na relação
fusional (mãe-criança), desejante desta mãe como uma mulher; por sua vez, a mãe consinta

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a entrada desse pai desejando-o como um homem e, por fim, que a criança consinta em não
ser o falo da mãe, tendo que procurá-lo junto ao pai.

Dito de outro modo,

Somente no terceiro tempo do Édipo é que a dialética do ter convoca,


assim, inevitavelmente, o jogo das identificações. Segundo o sexo, a
criança se inscreverá diferentemente na lógica identificatória mobilizada
pelo jogo fálico. O menino que renuncia ser o falo materno, engaja-se na
dialética do ter, identificando-se com o pai que supostamente tem o falo.
A menina pode igualmente subtrair-se à posição de objeto de desejo da
mãe e deparar-se com a dialética do ter sob a forma do não ter. Ela
encontra, assim, uma identificação possível na mãe; pois como ela, “ela
sabe onde está, ela sabe onde deve ir buscá-lo, do lado do pai, junto
aquele que o tem (Dor, 1989, p.85).

Para este trabalho, interessa observar, a relação fundamental do processo de


identificação da criança na experiência do complexo de Édipo, o que vai possibilitar ao
final da sua experiência, o acesso da criança ao simbólico, através da consolidação da
subjetivação da metáfora paterna, isto é, da instalação do significante do Nome-do-pai
como traço de injunção, capaz de organizar a realidade psíquica do sujeito.

Finalmente, Vimos no decorrer deste trabalho, a incursão de uma mutação na


cultura contemporânea em que à autoridade no social instaurada pelo Nome-do-pai se
encontraria em declínio. A dimensão simbólica da metáfora paterna responsável por
assegurar a heterotopia que dava um “lugar” de consistência as figuras de autoridade, nos
dias atuais estaria claudicante, obrigando estes últimos a procurar nas tensões inerente as
relações sociais sua legitimidade.

Partindo desse contexto, a questão que nos interpela reside no fato de


interrogarmos sobre as implicações que estariam voltadas para o sujeito quando na
contemporaneidade esse significante Nome-do-pai, o grande Outro, estaria como vimos,
numa condição de declínio, ou funcionando de outra forma no contexto sociocultural.

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Se, na modernidade, a subjetividade não mais recebe em nome de um Deus-pai a
mensagem que outrora oferecia uma consistência, o horizonte pelo qual o sujeito enlaçava a
sua identidade através de uma referência transcendental, exterior, de um ponto fixo no
contexto social, hoje, segundo Charles Melman, esse sujeito, encontraria suas resposta no
consenso social, na mensagem sustentada pela ‘opinião’, que sempre tem bom senso,
porque justamente , ela é organizada pelo gozo e, propõe, que “uma das grandes
consequências clínicas desse dispositivo é que o sujeito com o qual lidamos tornou-se
atópico: não consegue mais encontrar seu lugar, sua própria voz, é um sujeito que parece
sem consistência, sem projeto fixo, sem votos que lhe seriam pessoais” (2002, p.153).
Na literatura, encontramos um bom exemplo dessa condição de não pertencimento,
de um não lugar, descrita nas experiências migratórias - seja das zonas rurais para as
grandes capitais, ou em outros países - o estranhamento frequentemente suscitado pelo
estrangeiro, pela percepção cosmopolita, intercultural do mundo, acaba por dividir o sujeito
entre a memória de um passado que não representa o presente e, por conseguinte, de um
presente sem passado e, as vezes, sem futuro nos casos em que se perdem os horizontes,
isto é, o desejo.
Essa condição de deriva, de atopia, vem sendo constatada, no contexto da clínica.
Nesse sentido, as depressões, por exemplo, se vinculariam com frequência,
fundamentalmente ao fato do sujeito experimentar a percepção de que não tem valor frente
ao Outro. Isto é, se, o ideal compartilhado e valorizado no social é algo do qual o sujeito
participa, este sente-se inserido e às “coisas” caminham bem, entretanto, se por algum
motivo essa relação com o ideal é deslocada e o sentimento de falta, de inadequação se
presentifica, pode-se deprimir.
Outro exemplo, que ilustra bem essa ambivalência entre o ter e o ser reside nas
toxicomanias, quando testemunhamos a relação que o sujeito estabelece com o objeto
tóxico. Por um lado, faz o possível e o impossível para possuir a substância e, por outro
assegura um lugar de enunciação frente ao Outro, ao se declarar um dependente químico,
um toxicômano, que com frequência rompe com as relações sociais (família, trabalho e
etc.), para viver em torno de um objeto capaz de consumi-lo, as vezes até a morte. Suely
Rolnik em seu trabalho sobre subjetividade em tempos de globalização, de 1997, propõe

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que estamos diante de uma intoxicação de identidade, resta sabermos em que medida isso
se transforma em “veneno” ou em remédio.
Por fim, a espetacularização na cena do mundo, a emergência de uma cultura das
celebridades, através da exposição da intimidade em reality show, na web, e nos meios de
comunicação em geral, tem orientado o caminho ideal para a entrada e participação no
mundo das representações. A esse respeito, Charles Melman, propõe que:

À medida que a ciência provoca a forclusão do Nome-do-Pai,


compreende-se que esses sujeitos forcluídos, em sofrimento, possam
encontrar uma argumentação histórica qualquer que os faça reivindicar o
reconhecimento de uma pertença comunitária que até aqui teria sido
negligenciada, quer dizer, o comutarismo é uma das manifestações dessas
histerias coletivas. (2003, p.104).

NOTAS

Lacan, em seu seminário cinco, conceitua: Trata-se do que chamo de Nome-do-Pai, isto é o pai simbólico.
Esse é um termo que subsiste no nível do significante, que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. É o
significante que dá esteio a lei, que promulga a lei. Esse é o Outro no Outro [...] Para que haja alguma coisa
que faz com que a lei seja fundada no pai, é preciso haver o assassinato do pai. As duas coisas estão
estreitamente ligadas – o pai como aquele que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai. O pai
morto é o Nome-do-Pai, que se constrói aí sobre o conteúdo. (LACAN, 1958, p.152)
2
Para Freud o termo designa o processo que visa manter no inconsciente todas as idéias e representações
ligadas às pulsões e cuja realização, produtora de prazer afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do
individuo, transformando-se em fonte de desprazer (ROUDINESCO, 1998, p.647).
3
O termo Gozo tornou-se um conceito na obra de Jacques Lacan inicialmente ligado ao prazer sexual, o
conceito de gozo implica a idéia de uma transgressão da lei, desafio, submissão ou escárnio. (ROUDINESCO,
1998, p.299).
4
Lacan distingue a castração da frustração e da privação, situando-as, respectivamente, no tocante ao agente e
ao objeto, no contexto das instâncias de sua tópica do real, do imaginário e do simbólico. A castração opõe-se
à privação do ponto de vista do agente: ele é o “pai real”, inatingível e impensável, no sentido em que
podemos dizer de um ser que nunca sabemos “com quem estamos lidando realmente”, no que concerne à
castração; e é o “pai imaginário”, um pai assustador com o qual, ao contrário, lidamos o tempo todo, na vida
cotidiana e nos textos de Freud, no que concerne a privação (ROUDINESCO, 1998, P.106).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

12
BAUMAN, ZYGMUNT O mal-estar da pós-modernidade. /Zygmunt Bauman; tradução
Mauro Gama, Cláudia Martnelli Gama; revisão técnica Luís Carlos Fridman. – Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

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cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.

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Paulo, 2015.

DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem.


Porto Alegre: Artmed, 1989.

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LEBRUN, JEAN PIERRE. Clínica da instituição: o que a psicanálise contribui para a


vida coletiva. Porto Alegre: CMC editora, 2009.

_______. Violência, paixão e discursos: o avesso dos silêncios/Caroline Salvati... [et


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Mandel. Porto Alegre: CMC, 2008.

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MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2003.

_______. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC
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ROLNIK, SUELY. Cultura e subjetividade: saberes nômades. São Paulo: Papirus, 1997.

ROUDINESCO, E. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.

FROM MUTATIONS IN CONTEMPORARY CULTURE TO A CRISIS OF


LEGITIMACY OF SOCIAL AUTHORITY

Abstract: Starting from the impact of a cultural mutation that is currently taking place in the
contemporary world, the present work aimed to analyze the decline of authority in the
social in its relation with the advance of technosciences, and of the modern project

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analyzed by Canclini (1998), period in which the author addresses the concept of cultural
hybridization. In this work, Walter Benjamin's contributions on the authenticity /
inauthenticity of language were of fundamental importance for an extension of the present
investigation, which sought to reflect as an effect of this process, the installation of a
"crisis" of legitimacy in culture, which would fall , also, in the subjective dimension and,
therefore, in the territory of the subjects, with respect to those who would have the
attribution of representing figures of authority in the social. Nevertheless, it was necessary
initially to use the concepts of multiculturalism / interculturalism as an introduction to the
study of the phenomenon, valuing a more sociological and therefore cultural perspective,
and then to receive adequate treatment in the territory of Lacanian structuralism , where the
concept of identity could be articulated with the process of subjectivation in its relation to
identification in psychoanalytic theory. Finally, the study proposes to the incidence of an
atopy that would affect the contemporary, helpless subject, the drift, mobilized by a
mishmash in the field of language. In this scenario, the discussions around identities gain a
new color by witnessing the liquidity between the borders of what we could understand
from a more nationalist, a cosmopolitan, globalized, nomadic world perception and that
would allow the emergence of new forms of subjectivation and clinics.
.

Keywords: Cultural mutation, Identity, Subjectivity.

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