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do pesquisad
O processo de registro
Círio de Nazaré co
Patrimônio Cultural Brasile

324
ista
dor: Do ponto de vista
do pesquisador:
o do O processo de registro do
Círio de Nazaré como
omo Patrimônio Cultural Brasileiro
eiro
MÁRCIO COUTO HENRIQUE
universidade federal do pará, Brasil

325
Henrique, M. C.

DO PONTO DE VISTA DO PESQUISADOR: O PROCESSO


DE REGISTRO DO CÍRIO DE NAZARÉ COMO PATRIMÔNIO
CULTURAL BRASILEIRO
Resumo
O artigo apresenta reflexões críticas acerca do processo de registro do
Círio de Nazaré, de Belém do Pará, como patrimônio cultural imaterial
brasileiro, junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal, em 2004. Trata-se de releitura dos procedimentos adotados pelos
pesquisadores responsáveis pela elaboração do inventário e do dossiê
que fundamentaram o referido registro. Reflete-se sobre os desdobra-
mentos deste ato sobre os diferentes sujeitos que compõem o Círio de
Nazaré, discutindo-se a necessidade de divulgar os resultados da pes-
quisa entre os grupos sociais envolvidos, de forma a contribuir para a
preservação e promoção do bem cultural Círio de Nazaré.
Palavras-chave: Círio de Nazaré, inventário cultural, patrimônio cultural
imaterial.

FROM THE RESEARCHER'S POINT OF VIEW: THE PROCESS


OF REGISTRATION OF CÍRIO DE NAZARÉ AS BRAZILIAN
CULTURAL PATRIMONY
Abstract
This article presents critical reflections concerning the process of regis-
tration of the Círio de Nazaré in Belém of Pará (Brazil) as an element of
the immaterial brazilian cultural patrimony, in accordance to the Institute
of the Historical and National Artistic Patrimony, in 2004. It is a (re)read-
ing of the procedures adopted by the team of responsible research by
the elaboration of the inventory and the dossier that based the referred
registration. The article thinks about the unfoldings of this action on
the different subjects that compose Círio de Nazaré and discusses about
publishing the results of the research among the involved social groups.
Keywords: Círio de Nazaré, cultural inventory, immaterial cultural patrimony.

DESDE EL PUNTO DE VISTA DEL INVESTIGADOR: EL PROCESO DE


REGISTRO DEL CÍRIO DE NAZARÉ COMO PATRIMONIO CULTURAL
BRASILEÑO
Resumen
El artículo presenta reflexiones críticas sobre el proceso de registro del
Círio de Nazaré, en Belém do Pará, como patrimonio cultural inmate-
rial de Brasil por el Instituto de Patrimonio Histórico y Artístico Na-
cional en 2004. Se trata de revisar los procedimientos adoptados por

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Do ponto de vista do pesquisador

los investigadores responsables por la preparación del inventario y la


documentación que justifique tal registro. Reflexiona sobre las conse-
cuencias de este acto sobre los distintos temas que componen el Círio de
Nazaré, hablando de la necesidad de difundir los resultados de la inves-
tigación entre los grupos sociales involucrados con el fin de contribuir a
la preservación y la promoción del Círio de Nazaré.
Palabras-clave: Círio de Nazaré, inventario cultural, patrimonio cultural
inmaterial.

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Henrique, M. C.

FEIRA, RELIGIÃO E PATRIMÔNIO Belém, Diretoria da Festividade de Nos-


CULTURAL sa Senhora de Nazaré, Obras Sociais da
Paróquia de Nazaré e Sindicato dos Ar-
Desde setembro de 1793, as ruas da cidade
rumadores do Estado do Pará. Com a
de Belém do Pará são tomadas por devotos
conclusão do processo, em outubro de
por ocasião do Círio de Nossa Senhora de
2004, esta grandiosa expressão da reli-
Nazaré. Inicialmente, o Círio foi realizado
giosidade do povo paraense tornou-se
por iniciativa do então Presidente da Provín-
a primeira celebração a ter seu registro
cia do Pará, Francisco de Sousa Coutinho
aprovado e patrocinado pelo Estado,
que, num misto de devoção e preocupação
inaugurando o Livro de Registro de
com a dinamização da economia local, de-
Celebrações do IPHAN. Desde então,
terminou o estabelecimento de uma feira
muito se tem discutido acerca da per-
de produtos regionais, seguida de novena,
tinência do reconhecimento oficial de
missa cantada e procissão, no mesmo perío-
uma celebração religiosa católica, como
do em que era grande a movimentação de
o Círio de Nazaré, na condição de bem
devotos à pequena ermida da santa. Nascia
de cultura imaterial componente do
assim o Círio de Nazaré de Belém do Pará
patrimônio cultural brasileiro (Maués &
(IPHAN 2006).
Lima 2005; Lima 2005).
Marcado por intensa participação popu-
Tendo participado de todas as etapas
lar, atualmente o Círio de Nazaré reúne
do processo que resultou no registro
milhares de romeiros oriundos das mais
do Círio de Nazaré como patrimônio
distantes paragens da Amazônia. Todo
cultural imaterial brasileiro, tanto na
segundo domingo de outubro (data
condição de pesquisador, quanto na de
fixada em 1901), milhares de paraenses
co-autor do texto do dossiê (IPHAN
e também devotos de outras regiões do
2006), apresentarei neste artigo algu-
Brasil invadem a “cidade das manguei-
mas reflexões do ponto de vista dos
ras”,1 transformando suas principais
pesquisadores que formaram a equipe
ruas em vertentes humanas de uma das
de pesquisa, considerando as dificul-
maiores manifestações religiosas do país.
dades e soluções encontradas ao longo
Em lento cortejo, os devotos conduzem
do trabalho.3 Ao textualizar uma ex-
a imagem da santa pelas estreitas ruas do
periência específica de pesquisa, preten-
centro de Belém, entre os quase cinco
do exercitar a ideia de Roberto Cardoso
quilômetros que separam a Catedral da
de Oliveira (1996:29) de que o ato de es-
Basílica de Nazaré.
crever é “um ato igualmente cognitivo”.
Motivados pela amplitude alcançada por
esta celebração religiosa, quatro entidades
de Belém solicitaram ao Instituto do IDENTIFICAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO
Patrimônio Histórico e Artístico Nacio- DE BENS CULTURAIS
nal (IPHAN), em dezembro de 2001, o Como parte dos procedimentos ne-
registro do Círio de Nazaré de Belém do cessários para o referido registro, o
Pará, como patrimônio cultural imaterial IPHAN constituiu equipe de pesquisa
brasileiro.2 Foram elas: Arquidiocese de

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Do ponto de vista do pesquisador

cujo objetivo era a realização de inven- de estudo dos Questionários de Identifi-


tário que identificasse e sistematizasse o cação e Ficha de Identificação dos bens
maior número possível de informações culturais, de acordo com a metodologia
sobre o bem cultural Círio de Nazaré. do INRC, com a orientação sobre como
Outro passo seria a elaboração de um dossiê proceder eticamente com os entrevista-
que, com base nas informações levantadas dos, os pontos a serem observados nas
no inventário, descrevesse de forma por- entrevistas, a utilização de gravadores e
menorizada os resultados da pesquisa. máquina fotográfica e a técnica da en-
trevista focal, em que vários devotos
A metodologia utilizada foi a do Inven-
seriam reunidos para tratar do mesmo
tário Nacional de Referências Culturais
tema, sob a coordenação do pesquisa-
(INRC), desenvolvida pelo IPHAN
dor. Depois disso, realizou-se nos dias
(2000) para a identificação e documenta-
28 e 29 de Agosto de 2002 a aplicação
ção de bens culturais, sejam eles de na-
de questionários pilotos visando detectar
tureza material ou imaterial. Com base
possíveis dificuldades no momento das
no INRC, procurou-se apreender os
entrevistas, as quais foram avaliadas no
sentidos, significados, transformações e
dia 30 do mesmo mês. A aplicação dos
atualizações do Círio de Nazaré do ponto
questionários correspondeu à segunda
de vista daqueles que o produzem, con-
etapa do levantamento preliminar.
siderados intérpretes legítimos da cultura
local e parceiros indispensáveis na sua Após o relato das experiências deste pri-
preservação. A equipe de pesquisa foi meiro contato procedeu-se a divisão, en-
constituída de maneira multidisciplinar, tre os pesquisadores, dos bens culturais
sendo formada por um consultor na área associados à celebração do Círio de Nazaré,
de Antropologia, um supervisor (teólo- inicialmente em número de 66, sendo
go), quatro pesquisadores de nível supe- que para cada bem havia número espe-
rior nas áreas de História, Ciências Sociais cífico de pessoas a serem entrevistadas.
e Filosofia e duas assistentes. Logo a equipe se deu conta de que diante
de tantos bens culturais a serem inventari-
Ao longo do primeiro semestre de 2002
ados, não haveria condições de realizar
os pesquisadores realizaram o levan-
número muito grande de entrevistas. A
tamento preliminar, que consistiu na
solução adotada foi identificar e contac-
identificação e sistematização de todas
tar pessoas que se enquadrassem dentro
as informações encontradas nas bibliote-
das exigências do inventário, enquanto
cas e arquivos dos municípios de Belém
“informantes exemplares”. Essa dificul-
e Ananindeua sobre quaisquer aspectos
dade de se definir quantas e quais pessoas
ligados ao Círio de Nazaré. Esta foi a pri-
entrevistar é bastante comum em trabalhos
meira etapa de execução do inventário.
de campo em que se faz necessário o
Na segunda etapa do inventário do Círio uso de metodologias de base qualitativa.
de Nazaré, no período de 15 a 23 de No caso da pesquisa do Círio de Nazaré,
Agosto de 2002, iniciou-se treinamento utilizamos esta categoria para identificar
para aplicação dos Questionários de pessoas que possuíssem representativi-
Identificação. Esse treinamento constou

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Henrique, M. C.

dade significativa diante de determinado manifestavam receios de que, com o


bem cultural, o que nem sempre seguia os “tombamento”, não seria mais pos-
mesmos critérios. Escolher determinado sível modificar nada no Círio ou que a
membro da Diretoria da Festa de Nazaré todo instante fosse necessário solicitar a
era mais simples do que escolher um entre opinião/autorização do IPHAN. Nesses
milhares de possíveis promesseiros ou al- momentos, tínhamos que explicar que,
guém para falar do Almoço do Círio, por com relação ao patrimônio cultural ima-
exemplo. Por vezes, os nomes de “infor- terial, não se falava em “tombamento”,
mantes exemplares” apareciam ao longo mas sim em “registro” do bem, seguin-
de determinadas entrevistas, ocasião em do critérios bastante distintos dos que
que seguíamos as indicações de nossos eram ou são utilizados para o chamado
entrevistados. Outras vezes, fazíamos uso patrimônio de “pedra e cal”.
do fato de sermos pesquisadores locais,
Pode-se citar, ainda, o fato de que a visita dos
acionando nossa própria rede de relações
pesquisadores a determinadas instituições era
na cidade de Belém.
precedida de ofício do então Superintenden-
Evidentemente, esse tipo de reflexão te Regional da 2ª SR/IPHAN, explicando
não aparece no dossiê final do IPHAN as linhas gerais do trabalho de pesquisa
sobre o Círio de Nazaré, mas considero e solicitando os nomes de duas pessoas
importante discutir tais questões para a serem entrevistadas por pesquisadores
deixar evidente que os dados com os cujos nomes eram indicados no mesmo
quais trabalhamos na pesquisa qualita- ofício. Não é minha intenção indicar que
tiva, além de serem construídos pelos exista algo errado nesse procedimento,
próprios pesquisadores, constituem muito necessário nessas ocasiões. Que-
“processo complicado pela ação de ro apenas destacar que a recepção do
múltiplas subjetividades e constrangi- ofício timbrado com a logomarca do
mentos políticos que estão acima do IPHAN, assinado pelo Superintendente
controle do escritor” (Clifford 1998:21). regional, a informação de que o Círio de
No caso da pesquisa sobre o Círio, o Nazaré estava em vias de registro como
fato de ser financiada por um órgão patrimônio cultural imaterial brasileiro,
federal nos colocava limites de tempo, a informação de que seriam conferidos
de estrutura de trabalho, de abordagem créditos às parcerias e apoios recebidos,
teórica, ao mesmo tempo em que influ- todos esses dados exercem certa pressão
enciava a recepção que tínhamos dos sobre os destinatários, capaz de influen-
devotos. Não que houvesse cerceamen- ciar, inclusive, na escolha dos nomes
to, pois o espaço da instituição IPHAN indicados para as entrevistas. Por outro
sempre foi aberto para as discussões e a lado, assim como o ofício e o crachá de
orientação geral da política de inventários identificação de “pertencimento” a uma
culturais promovidos pela instituição instituição federal interfere na subjetivi-
possui caráter nitidamente antropológico. dade do pesquisador, pode ter o mesmo
efeito sobre os entrevistados.4 Todas es-
Como exemplo das múltiplas subje-
sas questões que, de uma forma ou de
tividades em ação, alguns entrevistados

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Do ponto de vista do pesquisador

outra, estão presentes em qualquer pes- utilizados por Iglesias para sensibilizar
quisa qualitativa, compõem o quadro de os empresários locais. Contrariando a
uma “estratégia específica de autoridade versão da Diretoria da Festa, do início
etnográfica” (Clifford 1998:21), que ao fim o projeto faz referências ao Círio
certamente influenciará no desenrolar de Nazaré. No item “Apresentação”
das entrevistas e, por extensão, na quali- consta que
dade dos dados construídos. “A festa das ‘Filhas da Chiquita’ que
No campo dos constrangimentos, cito acontece todos os anos em outu-
aquele que foi, a meu ver, o maior de bro, na véspera do Círio, no dia da
todos, motivo de calorosas discussões trasladação, em frente ao teatro da
paz, já é tradicional no meio cultural
com os membros da Diretoria da Festa:
da cidade. Ela é esperada por todos
a manifesta vontade dos diretores no como forma de celebrar, comemorar
sentido de excluir do inventário e do dos- a passagem da procissão de Nossa
siê final a Festa da Chiquita, vista por eles Senhora de Nazaré, e da conscien-
como prática profana, ofensiva, sem re- tização de que não vale a pena viver
lação alguma com o Círio de Nazaré. A preconceitos.” (Iglesias 2002:3)
Festa da Chiquita é realizada desde 1978,
O projeto anunciava, ainda, que na Festa
organizada por grupos homossexuais de
da Chiquita haveria a “coroação da rainha
Belém que atribuem ao evento caráter
do círio” e que todos estariam “irmana-
de contestação ao preconceito, de busca
dos num único objetivo, que é con-
de espaço e reconhecimento social. Tem
fraterniza (sic), sem preconceitos, com
início na noite do sábado que precede a
todos os seguimentos da sociedade:
procissão principal do Círio de Nazaré e
Políticos, Religiosos, Culturais, Sexuais,
acontece num dos lugares por onde passam
etc, já que o Círio de Nossa Senhora de
as procissões da Trasladação (procissão que
Nazaré é a nossa maior festa, o natal
faz o trajeto do Círio no sentido contrário,
dos paraenses” (Iglesias 2002:3). O item
no sábado anterior) e do Círio, em frente
“Objetivos” dizia que o objetivo geral da
ao chamado Bar do Parque, na Praça da
festa era “Comemora (sic) a grande festa
República (IPHAN 2006).
religiosa dos paraenses, o Círio de Nossa
A pesquisa do IPHAN coincidiu com Senhora de Nazaré” (Iglesias 2002:3).
uma data bastante significativa para os
Note-se a habilidade de Elói Iglesias em
organizadores da Festa da Chiquita: os 24
utilizar o discurso de confraternização,
anos de realização da festa. Meses antes
celebração e irmandade associado ao
do Círio de 2002, o “cantor, composi-
Círio de Nazaré a fim de sensibilizar a
tor e performer” Elói Iglesias, principal
classe empresarial para apoiar a comemo-
organizador do evento, circulava pela
ração do baile de 24 anos das “Filhas da
cidade de Belém com ofício em que
Chiquita”. Ao mesmo tempo, ele insere
solicitava apoio empresarial à comemora-
no projeto a preocupação dos organiza-
ção. Anexo ao ofício havia uma espécie de
dores com o combate ao preconceito
projeto intitulado “As Filhas da Chiquita
sexual. De todo modo, tanto o projeto
– o Baile, 24 anos” com os argumentos
de comemoração dos 24 anos da festa

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Henrique, M. C.

quanto os discursos feitos no palco em problemas que acompanham qualquer


frente ao Teatro da Paz são carregados pesquisa qualitativa, envolvendo a de-
de referências ao Círio ou a Virgem limitação do universo de pesquisa, a
de Nazaré, o que contraria a versão dos definição de critérios para a seleção
membros da Diretoria da Festa. Estas dos sujeitos a serem entrevistados,
múltiplas subjetividades e constrangi- elaboração de roteiros de entrevistas
mentos políticos estavam acima do nosso e sua realização, organização e análise
controle enquanto pesquisadores, mas de dados qualitativos (Duarte 2002,
não poderíamos ser indiferentes a elas. Henrique 2009).5 Além disso, a leitura
desses inventários culturais não pode
A grandiosidade da celebração que então
prescindir da leitura da maneira como
pesquisávamos, tanto cronológica quanto
eles foram constituídos, das condições
em termos de quantidade de bens cul-
de sua produção, considerando todos
turais a ela associados, foi sempre um
os imponderáveis que, de uma forma
desafio. Na verdade, o desafio maior era,
ou de outra, exerceram influência sobre
mesmo conscientes de que “entendida de
o texto final.
modo literal, a observação-participante é
uma fórmula paradoxal e enganosa”, ten- Uma das questões fundamentais na ob-
tar reformulá-la “em termos hermenêuti- tenção dos dados era a necessidade de
cos, como uma dialética entre experiência estranhamento dos bens culturais por
e interpretação” (Clifford 1998:34). Ha- parte dos pesquisadores, na medida em
via, de fato, uma constante “negociação que grande parte do preenchimento das
construtiva envolvendo pelo menos dois Fichas de Identificação dependia da ob-
e muitas vezes mais, sujeitos conscientes servação do pesquisador. Em se tratan-
e politicamente significativos” (Clifford do de fenômeno tão familiar a todos os
1998:43). O texto final do dossiê que membros da equipe, era grande o risco
fundamentou o registro do Círio de de transpor para as fichas suas próprias
Nazaré como patrimônio cultural imate- impressões do Círio de Nazaré, ao invés de
rial brasileiro está marcado por estas tensões. reproduzir as impressões dos entrevistados.6
Evidentemente, é preciso considerar
Talvez o leitor mais atento consiga iden-
que o registro das informações obtidas
tificar os momentos em que o dossiê
no trabalho de campo sofreu influência
textualiza a relação entre o pesquisador
da bagagem cultural que cada pesquisa-
e seu “informante” que, mesmo quan-
dor carregava consigo. Cada um dos
do “exemplar”, é passivo, resultado de
pesquisadores era interlocutor em po-
uma relação não dialógica. Em outros
tencial, carregando consigo experiên-
momentos, a narrativa pode revelar a
cias anteriores, além de misturar em sua
relação entre pesquisador e interlocu-
memória fatos e feitos vivenciados em
tor, expressão de verdadeiro “encon-
Círios de si e Círios dos outros. No en-
tro etnográfico” (Cardoso de Oliveira
tanto, estavam ali na condição de pes-
1996:20). Nada disso retira os méritos
quisadores, dos quais seria exigido olhar
da pesquisa ou do dossiê final do IPHAN.
distanciado sobre prática “religiosa”
Quero apenas chamar atenção para

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Do ponto de vista do pesquisador

secular que, a partir daquele momento, Para os próprios pesquisadores esta in-
deveriam enxergar como um “bem cul- flexão, que exigia novo olhar sobre o
tural” de natureza imaterial. Círio de Nazaré, não era natural. Eis que
o IPHAN, com base no avanço teórico da
Segundo o Decreto 3.551, de 4 de agosto
discussão sobre a noção de patrimônio,
de 2000, no Livro de Registro das
chamava atenção para o necessário alarga-
Celebrações “serão inscritos rituais e
mento da compreensão dos significados
festas que marcam a vivência coletiva do
daquela prática que, tradicionalmente, era
trabalho, da religiosidade, do entreteni-
definida como “religiosa”, mas que agora
mento e de outras práticas da vida social”
e, principalmente para os fins do dossiê,
(BRASIL 2000).7 Conforme observou
precisava ser pensada como “prática cul-
Carlos Sandroni, o Decreto 3.551
tural” de natureza imaterial, portadora de
“não contém uma definição explícita múltiplos sentidos, inclusive o religioso.
do patrimônio imaterial. Mas tem Seria necessário, portanto, desnaturalizar
uma definição implícita estabelecida
o Círio de Nazaré, ampliando a percep-
por dois meios: quatro listas de tipos
de bens passíveis de inclusão, orga-
ção de seus significados e deixando de
nizadas segundo os diferentes livros vê-lo apenas como representativo da cul-
de registro; e a definição, como crité- tura e religiosidade paraense. Era funda-
rio geral de inclusão, da ‘continuidade mental, a partir da evidente continuidade
histórica do bem e sua relevância na- histórica deste bem cultural, evidenciar
cional para a memória, a identidade e em que medida ele era relevante para a
a formação da sociedade brasileira’.” memória nacional e expressava os múltiplos
(Sandroni 2010:374) processos que configuraram a constituição
É verdade que, de longa data, a dimen- da identidade nacional brasileira.
são cultural do Círio de Nazaré tem sido Conforme observou Roberto Cardoso
percebida, principalmente por ocasião de Oliveira (1996), nossa maneira de
de conflitos entre os devotos e a Dire- ver a realidade influencia previamente
toria da Festa. Em “O Carnaval devoto” o modo como dirigimos nosso olhar
(1980), por exemplo, o antropólogo Isidoro para o objeto de nossa pesquisa. Algo
Alves chamou atenção para o que ele semelhante ocorre quanto ao “ouvir”,
identificava como “dois discursos sobre pois a teoria social que adquirimos du-
a Festa de Nazaré, um tratando-a como rante a formação acadêmica também
uma festa religiosa no sentido estrito e pré-estrutura nosso olhar. Não se pre-
portanto sob o comando da autoridade tende aqui exigir retrospectivamente
religiosa ou a quem ela delegar poderes dos pesquisadores nenhum tipo de neu-
(a Diretoria da Festa) e, outro, como tralidade, mas apenas chamar atenção
uma festa popular, proporcionadora para a necessidade de problematizar a
de manifestações mais livres e espon- relação entre as informações obtidas
tâneas (...)” (Alves 1980:15). Veja-se ou registradas e o mundo particular
que os aspectos culturais do Círio eram, de cada pesquisador. Nesse sentido,
então, identificados ao “popular”, em além de todos os integrantes da equipe
oposição ao discurso religioso.

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Henrique, M. C.

serem da Amazônia, sete eram de for- diato nos colocar inteiramente de fora”
mação católica, com diferentes graus de (1980:19). Os Círios de si e dos outros
envolvimento e participação em ativi- acompanhavam o antropólogo e toda
dades da Igreja Católica. O consultor a sua equipe, importunamente fazendo-os
era antropólogo com vasta pesquisa e lembrar que eles não estavam “chegando a
publicações acadêmicas sobre catoli- Belém” como exigia a atitude antropológica.
cismo popular e inserção nos movi-
Deve-se ressaltar, entretanto, que a
mentos católicos desde a juventude.
questão do estranhamento, bem como
Entre os demais integrantes, 3 eram ex-
a valorização das narrativas dos entrevista-
seminaristas: o supervisor, que chegou
dos, eram temas frequentes nas reuniões
a concluir o curso de Teologia e 2 dos
da equipe de pesquisa. Por outro lado,
pesquisadores com o curso incompleto
este exercício de estranhamento ou de
de Filosofia nos tempos de formação
distanciamento constitui desafio
no seminário católico. Um terceiro pes-
constante, mas possível de ser alcan-
quisador realizou pesquisa de monogra-
çado, em todas as pesquisas em que se
fia de conclusão do curso de Ciências
faz necessário transformar o “familiar”
Sociais discutindo o tema da Renovação
em “exótico”, como tão bem tem
Carismática Católica. Apenas um dos
demonstrado a Antropologia (Velho
pesquisadores era ligado a uma igreja
1978). Isso tudo implica em dizer que é
protestante, de confissão presbiteriana.
preciso considerar que o texto do dos-
Não se está sugerindo que a equipe de siê, apesar de embasado nas informa-
pesquisa deveria ser necessariamente ções obtidas diretamente dos devotos,
multi-confessional para garantir a quali- de membros da Diretoria da Festa ou
dade do trabalho. Mas certamente que do clero católico, está marcado também
pesquisadores cuja experiência com o pela subjetividade dos pesquisadores e,
Círio de Nazaré fosse mais distanciada principalmente, dos autores do texto
poderiam apontar para outras questões, final do dossiê enviado à Brasília para
diminuindo o risco de se criar uma leitura fundamentar o pedido de registro, que
“católica” de um ritual “católico”. Isidoro conferiram às diversas pesquisas e en-
Alves atentou para este risco ao afirmar trevistas caráter de conjunto, eviden-
em “O carnaval devoto”, cuja pesquisa de ciado no próprio dossiê.
campo fora feita entre 1974 e 1976, que
Ligado a isso está o fato de que todos
“procuramos nos situar na posição do
os entrevistados eram católicos. Certa-
etnógrafo que, chegando a Belém, passa
mente teria sido interessante entrevis-
a observar uma grande festa vivida pela
tar pessoas ligadas a outras religiões ou
população local” (1980:19). Mas, consci-
mesmo pessoas não ligadas a nenhuma
ente dessa dificuldade, admitiu que “não
religião, a fim de perceber como elas se
deixou de ser um esforço muito grande,
relacionam com o Círio de Nazaré. O
pois na realidade, como residente na ci-
que os não-católicos ou não-religiosos
dade e participante em anos anteriores da
fazem durante o Círio? Como eles rea-
Festa de Nazaré, não poderíamos de ime-
gem ao verem os espaços da cidade de

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Do ponto de vista do pesquisador

Belém todos tomados pela multidão Note-se que a relação de não-católicos


católica? Será que eles também vão com o Círio de Nazaré apareceu por
para as ruas apreciar a devoção do seu ocasião de entrevista que, a rigor, re-
“outro” ou recolhem-se em suas igre- uniria devotos católicos que se con-
jas em atitude de reforço de sua identi- gratulavam no Almoço do Círio. Mais do
dade não-católica? Quais os espaços de que isto, o registro da referida relação
negociação? Infelizmente, àquela altura poderia ter sido feito de maneira plane-
a equipe de pesquisa não colocou a si jada, dirigindo-se o teor da entrevista
própria estas questões. para a apreensão dos significados que
os diferentes eventos que compõem o
Na entrevista focal feita sobre o bem
Círio têm para os não-católicos. Afinal,
cultural Almoço do Círio, uma das prin-
eles fazem parte do mesmo território
cipais tradições do Círio de Nazaré,
que legitimou o Círio de Nazaré como
surgiu algo curioso quanto à participa-
patrimônio cultural nacional e deveriam
ção de não-católicos no evento. Finda
se sentir, de alguma forma, partícipes
a procissão principal do Círio, com a
disso, seja para acrescentar, negar ou
chegada da imagem da Santa à Basílica
contestar algo. A presença não-plane-
de Nazaré, as famílias dos devotos se
jada do jovem evangélico na entrevista
reúnem nos lares para confraternizar e
sobre o Almoço do Círio revela que “o
saborear os pratos típicos da cozinha
silêncio da oficina etnográfica foi que-
regional paraense, principalmente o
brado – por insistentes vozes hetero-
pato no tucupi e a maniçoba. Na família
glotas e pelo ruído da escrita de outras
entrevistada em entrevista focal sobre o
penas” (Clifford 1998: 22).
referido almoço
“... um rapaz oriundo de uma famí- A presença de não-católicos no Círio
lia evangélica, seguidora da igreja de Nazaré havia sido percebida por
Assembléia de Deus, justificava sua Isidoro Alves na pesquisa de campo
participação no Almoço do Círio que resultou em seu “O carnaval de-
da seguinte forma: ‘eu participo de voto” (1980). Diz ele que, no conjunto
uma religião evangélica, eu não pos- das entrevistas, “constatamos também
so festejar por causa da minha mãe a participação de pessoas não-católicas
que ela é da crença evangélica, ela ou que se definiam como ‘atéias’ e al-
não aceita essas coisas do Círio na
gumas que, embora se definindo como
minha casa, mas só que eu participo,
católicas, trajavam roupas de filho-de-
vou na casa dos amigos, como, bebo,
festejo junto com eles’. Perguntado santo ou típicas de um culto umbandis-
se ele se identificava como evangé- ta” (1980:51). Na Romaria Rodoviária de
lico respondeu: ‘não é bem por aí. 2002, celebração religiosa em forma de
Nesse ponto eu não sou nem evan- procissão, da qual participam veículos
gélico, nem católico, entende? Mas o motorizados e bicicletas, era possível
almoço do Círio é só uma festa para ver ao longo do percurso entre Belém
mim, como outra qualquer. Acho e Ananindeua pessoas cujas vestes in-
que é uma festa muito bonita.”8 dicavam serem participantes de cultos

Amazônica 3 (2): 324-346, 2011 335


Henrique, M. C.

afro-brasileiros, muitas vezes com as ções diretas. Na revisão das informa-


mãos estendidas em direção à imagem ções levantadas sobre os bens culturais
de Nossa Senhora de Nazaré, em forma o trabalho foi feito no sentido de elimi-
de prece. O relato dessas pessoas pode- nar repetições, identificar carência de
ria ter enriquecido ainda mais o inven- informações e conferir ao texto relativa
tário e o próprio dossiê, ampliando a uniformidade narrativa. O trabalho de
compreensão do aspecto polissêmico campo propriamente dito teve início no
do Círio de Nazaré, intimamente asso- dia 1º de setembro, sendo que o último
ciado às peculiaridades do catolicismo pesquisador concluiu suas entrevistas na
popular brasileiro.9 primeira quinzena de dezembro de 2002.
Os problemas enfrentados com rela- No geral, os entrevistados manifesta-
ção à infra-estrutura da pesquisa tam- ram-se dispostos a contribuir com a
bém influenciaram a obtenção dos da- pesquisa. A dificuldade maior foi junto
dos. Destaque-se que estes problemas à prefeitura municipal de Ananindeua,
não foram causados por má vontade em função da falta de sistematização
da superintendência do IPHAN em e da desatualização das informações
Belém, mas por conjuntura que atingiu fornecidas. Por outro lado, ficou claro
a instituição em todo o Brasil. Em ar- que os questionários do INRC deveri-
tigo posterior ao registro do Círio como am ser utilizados apenas como roteiro,
patrimônio cultural brasileiro, Dorotéa pois muitas perguntas não cabiam no
Lima afirmou que “[d]o ponto de vista contexto do Círio de Nazaré, tendo
prático, sobretudo, causam preocupação que ser reelaboradas de forma a adap-
a estrutura e o quadro técnico insufici- tá-las à realidade dos entrevistados ou
entes do IPHAN, bem como os parcos simplesmente deixarem de ser feitas.
recursos destinados à cultura...” (Lima Em se tratando de um modelo de in-
2005:31). Em função disso, dificuldades ventário nacional de bens culturais,
com a linha telefônica do órgão, ne- essa situação pode ser considerada
cessária para o contato com os entrevis- plenamente normal e facilmente con-
tados, número insuficiente de máquinas tornada pelos pesquisadores, sem que
fotográficas e gravadores exigiram dos isso implique em perda da qualidade
pesquisadores certo malabarismo para das informações obtidas.
desenvolver a pesquisa e certamente al-
guns bens culturais apresentaram dife-
renças com relação à qualidade do regis- PATRIMÔNIO PARA QUEM? A
tro, principalmente fotográfico. PROMOÇÃO DO BEM CULTURAL
Ao término das entrevistas, os pes- De acordo com Dorotéa Lima, que co-
quisadores deram início ao preenchi- ordenou o inventário e a instrução do
mento das Fichas de Identificação, últi- processo de registro do Círio como
ma etapa do levantamento preliminar, patrimônio cultural brasileiro
confrontando as informações obtidas “esse extenso trabalho de pesquisa
na bibliografia, entrevistas e observa- só atingirá plenamente seus objeti-

336 Amazônica 3 (2): 324-346, 2011


Do ponto de vista do pesquisador

vos se seus resultados forem reverti- que o inventário do Círio compreende,


dos em benefício dos grupos sociais além do texto do Dossiê, 784 itens de
envolvidos e resultarem na preser- bibliografia (incluindo publicações, tra-
vação e promoção do bem. Para balhos acadêmicos e periódicos); 848
tanto, o conhecimento produzido
registros audiovisuais (incluindo vídeos,
deve ser difundido e disponibilizado
através de exposições, publicações,
gravações sonoras, imagens fotográficas,
multimídia etc.” (Lima 2005: 68)
mapas, caricaturas, anúncios publicitários,
cartazes e programas da festa); descrição
Até o presente momento, pode-se dizer de 45 bens culturais associados às fes-
que este objetivo ainda não foi plena- tividades nazarenas, dentre os quais se
mente alcançado, pois além do Dos- encontram 14 celebrações, 5 edifica-
siê, cuja circulação permanece restrita ções, 15 formas de expressão, 6 lugares
aos âmbitos do IPHAN, não houve a e 5 modos de fazer. Para qualquer um
devida divulgação do conhecimento le- dos bens culturais ligados ao Círio de
vantado sobre o Círio de Nazaré, prin- Nazaré, muito ainda há que ser feito em
cipalmente no rico banco de dados que termos de pesquisa.
foi constituído. De 2004 para cá, tenho
ministrado palestras em escolas e igrejas Por outro lado, a falta de informações ou
da capital paraense à época do Círio, nas de esclarecimento com relação ao regis-
quais constato a completa ignorância da tro do Círio de Nazaré na categoria de
população local a respeito do processo patrimônio cultural imaterial brasileiro
que resultou no título de patrimônio tem levado a constantes equívocos de in-
cultural imaterial brasileiro conferido a terpretação ou a maneiras específicas de
esta que é considerada uma das maiores apropriação do registro. A partir de 2002,
cerimônias religiosas do país. Não que o por exemplo, tem sido comum ouvir-se
Círio precise ser “ensinado” às pessoas, na Festa da Chiquita expressões do tipo
pois ele é vivido, experimentado todos “agora bicha virou patrimônio histórico”
os anos e não apresenta riscos de extin- ou “as bichas foram tombadas”.
ção. Mas o conhecimento da maneira Em matéria intitulada Mundo Gay, referente
como essa celebração tem sido viven- à programação da edição 2006 do Festival
ciada e modificada ao longo do tempo, Internacional de Cinema do Rio de Janei-
de sua historicidade, seria fundamental ro, o jornalista Tino Monetti (2006) di-
para a compreensão da continuidade vulgava de forma ambígua, ao comentar
histórica da mesma. E isso, somente a o documentário As Filhas da Chiquita, de
pesquisa histórica pode revelar. Priscilla Brasil, que “em 2004, o IPHAN
O acesso ao conteúdo do banco de da- incluiu a Festa da Chiquita no processo de
dos seria de extrema importância para tombamento do Círio como patrimônio
pesquisadores interessados em qual- imaterial da humanidade, dando início a
quer temática ligada ao Círio de Nazaré, uma grande polêmica: afinal, a festa da
contribuindo para a preservação e pro- Chiquita faz parte do Círio?”
moção deste bem cultural. Imagine-se a Também entre os integrantes do Ar-
satisfação de um pesquisador ao saber rastão do Boi Pavulagem é possível perceber

Amazônica 3 (2): 324-346, 2011 337


Henrique, M. C.

a reivindicação do título de patrimônio Na verdade, para efeito do registro, optou-se


histórico. O Arrastão do Boi Pavulagem é por identificar e delimitar os elementos con-
um cortejo de cultura popular pelas ruas siderados essenciais dessa manifestação
de Belém, em torno da brincadeira do cultural, sendo adotados dois critérios
boi-bumbá, principal elemento cênico como referência: em primeiro lugar,
da atividade e de outras manifestações a inserção de elementos diversos que
folclóricas do estado do Pará. Acontece acompanham o Círio desde as suas ori-
na véspera do Círio de Nazaré e foi in- gens; em segundo lugar, a participação
troduzido na programação cultural do de outros elementos que, inseridos mais
evento em 1999 (IPHAN 2006). Em recentemente, foram incorporados à
entrevista ao Jornal Liberal 2ª edição, de tradição de tal forma que é impossível
uma rede de televisão de Belém, aos 3 conceber o Círio de Nazaré sem eles.
de outubro de 2006, o músico Júnior Assim, os elementos sobre os quais
Soares afirmou que o arrastão também recaiu o título de patrimônio cultural
é “...tombado como Patrimônio...”. brasileiro no Círio de Nazaré foram a
Procissão Principal do Círio,11 as Imagens
Em outro exemplo, diante da falta de pa-
Original e Peregrina de Nossa Senhora de
trocínio para a realização do Auto do Círio
Nazaré,12 a Trasladação,13 a Berlinda,14 a
em 2006, era comum ouvir-se entre as
Corda,15 o Recírio,16 o Arraial,17 o Almoço
queixas dos brincantes o fato de que essa
do Círio, as Alegorias e os Brinquedos de
manifestação é tão importante que foi in-
Miriti.18 Por essa razão, entende-se que
cluída pelo IPHAN no processo de regis-
tanto a Festa da Chiquita, realizada pela
tro do Círio de Nazaré como patrimônio
primeira vez em 1978, quanto o Ar-
histórico nacional. O Auto do Círio é es-
rastão do Boi Pavulagem, realizado de 1999
petáculo teatral realizado desde 1993, na
para cá, foram incluídos na categoria de
noite da sexta-feira que antecede a
bens associados ao Círio e não como
procissão principal do Círio. Desde seu
elementos essenciais. O mesmo ocor-
início pensado como ação extensionista
reu com a Romaria Fluvial,19 realizada
da Universidade Federal do Pará, per-
pela primeira vez em 1986 e com o Auto
corre as ruas do Bairro da Cidade Velha,
do Círio (criado em 1993), manifestações
com artistas fantasiados desenvolvendo
que futuramente poderão vir a ser con-
performances teatrais (IPHAN 2006).
sideradas essenciais no Círio de Nazaré,
De todo modo, no sítio eletrônico do
conforme nova pesquisa prevista pela
Auto do Círio o lugar dessa prática cultural
metodologia do IPHAN para dez anos
no registro do Círio de Nazaré como
após o registro.
patrimônio cultural imaterial brasileiro
aparece de forma bastante esclarecida: Nota-se que há, no fundo, uma dispu-
“sua manutenção ao longo dos doze anos ta pela identificação de determinadas
se deu através da aceitação da sociedade práticas como sendo “tradicionais”, o
que conferiu ao projeto o reconheci- que justificaria sua classificação como
mento como bem imaterial associado do patrimônio cultural. Como se o conceito
Círio de Nazaré – IPHAN/MINC”.10 de “tradicional” legitimasse a reivindica-

338 Amazônica 3 (2): 324-346, 2011


Do ponto de vista do pesquisador

ção de autenticidade, antiguidade, perten- tencionalmente seletiva de um passado


cimento e continuidade histórica. Dessa modelador e de um presente pré-modela-
forma, a “tradição” da Romaria Fluvial é do, que se torna poderosamente opera-
referida no discurso de grande parte dos tiva no processo de definição e identi-
devotos como bastante antiga, quando, ficação social e cultural. (1979:118). O
na verdade, é bastante recente (1986) e, discurso da “tradição”, nesse sentido,
por que não dizer, “inventada”. De cer- constitui “uma versão do passado”, que
ta forma, pode-se dizer que o Círio de nos oferece um “senso de continuidade
Nazaré é constituído por conjunto de predisposta” (1979:119).20
“tradições inventadas”, no sentido uti-
Se uma das preocupações do IPHAN
lizado por Hobsbawn (2002): conjunto
diz respeito ao acompanhamento do
de práticas, reguladas por regras aceitas,
processo de apropriação e deturpação
sendo essas práticas de natureza ritual
desse patrimônio pela indústria cultural,
ou simbólica, visando inculcar certos
precisamos também reconhecer que o
valores e normas de comportamento
processo de espetacularização do Círio
através da repetição, o que implica auto-
tem ocorrido, em alguns casos, mesmo
maticamente, uma continuidade em re-
antes de seu registro como patrimônio
lação ao passado. Ocorre que esta con-
cultural brasileiro. Com relação à Festa da
tinuidade não se dá de forma estanque,
Chiquita, por exemplo, lembre-se da ten-
na medida em que os bens agregados ao
tativa de aproximação e/ou apropriação
Círio de Nazaré acompanham o dinamismo
por parte do poder público municipal
característico de qualquer prática cultural.
entre 1996 e 2004, chegando-se ao pon-
Assim, num movimento sempre tenso,
to do prefeito da época subir ao palco
todos os anos novas práticas vão sendo
para receber um dos prêmios da festa.
agregadas ao Círio de Nazaré, ao passo
Em 2006, diante da recusa de apoio por
que outras vão ficando pelo caminho,
parte de outro prefeito, via-se na Festa
guardadas nos recantos da memória
da Chiquita cartaz com os dizeres “Re-
dos devotos. Uma das perguntas recor-
alização cultural do Governo do Estado
rentes na imprensa local, às vésperas do
do Pará”, através da Fundação Cultural
Círio, versa sobre “o que há de novo no
do Pará. A proximidade da festa com o
Círio desse ano?”.
poder público, se por um lado garante
Segundo Raymond Williams, a recurso financeiro necessário para sua
“tradição” “não é “a sobrevivência do organização, pode implicar em limi-
passado”, mas sim a expressão mais evi- tação da autonomia dessa prática cul-
dente das pressões e limites dominantes tural, tradicionalmente marcada pela
e hegemônicos. É sempre mais do que irreverência e crítica social.
um segmento inerte historicizado. Na
Com relação à espetacularização (Garcia
verdade, é o meio prático de incorpo-
Canclini 2003) poderíamos citar ainda a
ração mais poderoso. Por isso, diz o
própria criação da Romaria Fluvial, em
autor, é necessário pensar em termos
1986, por iniciativa da Companhia de
de “tradição seletiva”: uma versão in-
Turismo do Estado do Pará (PARA-

Amazônica 3 (2): 324-346, 2011 339


Henrique, M. C.

TUR), estando, portanto, diretamente e religiosa. De certa forma, pode-se


ligada a interesses da indústria cultural pensar que essa ênfase nos números faz
ou do turismo. Muitas vezes o Círio é parte da ofensiva católica no sentido de
apresentado ou veiculado na grande firmar espaço mo mercado religioso lo-
mídia a partir do exotismo associado cal, diante da pressão de outras denomi-
aos homens da Amazônia, em que as nações religiosas.
imagens das múltiplas embarcações na
Assim como Choay (2001) fez com
procissão fluvial, devotos carregando
relação ao “monumento histórico”,
“ex-votos” não menos exóticos à ca-
não seria demais inserir em todo esse
beça, o empurra-empurra na corda,
processo uma reflexão sobre os “efei-
tornam-se atrativos para incrementar
tos perversos” do enriquecimento do
determinados setores da economia lo-
patrimônio cultural imaterial Círio de
cal via turismo religioso.
Nazaré, a partir da invenção/inserção
Por outro lado, não é de hoje que se constante de novos tesouros a serem
nota a ênfase com que se divulgam os valorizados e explorados pela indústria
números referentes à participação no cultural. Fundamentalmente, torna-
Círio, muitas vezes sem reflexão quali- se necessário refletir sobre os efeitos
tativa dos dados. Nos últimos anos, secundários da “embalagem” que se dá
congelou-se a cifra de dois milhões de ao patrimônio Círio de Nazaré em vista
participantes no Círio de Nazaré e di- de seu consumo cultural, com riscos de
vulga-se com orgulho a ideia de que se exclusão das populações locais tradicio-
trata da maior manifestação religiosa do nalmente ligadas a esta prática cultural,
país. Em 2011, falou-se em 2,3 milhões de por razões bastante diferentes daquelas
devotos. Em 2006, o manto da imagem que movem o setor imobiliário ou co-
de Nossa Senhora de Nazaré foi apre- mercial, por exemplo.
sentado como o mais caro de todos os
tempos. Por fim, pode-se citar a própria
iniciativa da Diretoria da Festa (respon- CONSIDERAÇÕES FINAIS
sável pela organização do conjunto de Constata-se, assim, a necessidade de
eventos que compõe a chamada Festa discutir os desdobramentos do registro
de Nazaré) no sentido de criar o pa- do Círio de Nossa Senhora de Naz-
trocínio empresarial do Círio, em ter- aré na categoria de patrimônio cul-
mos oficiais. Ambiguamente, ao mesmo tural imaterial brasileiro. Passados sete
tempo em que se preocupa em conter o anos do registro, importa saber qual a
que considera “excessos” ou “desvios” compreensão que os devotos têm dos
nas práticas religiosas dos católicos significados do título. Os adeptos das
paraenses, a Igreja insere o Círio de práticas consideradas associadas ao
Nazaré numa lógica de mercado, em Círio têm conhecimento disso quando
que a subordinação aos números con- afirmam que tal manifestação tornou-se
duz cada vez mais a um processo de patrimônio cultural brasileiro? Se tem,
espetacularização desta prática cultural por que o fazem? Os devotos concor-

340 Amazônica 3 (2): 324-346, 2011


Do ponto de vista do pesquisador

dam com a escolha dos elementos con- salvaguarda do patrimônio cultural ima-
siderados essenciais no Círio de Nazaré? terial”, da UNESCO, afirma que
Independentemente daquilo que o “este patrimônio cultural imaterial,
poder público registra oficialmente que se transmite de geração em gera-
como patrimônio, os grupos populares ção, é constantemente recriado pelas
constroem suas próprias interpretações. comunidades e grupos em função
de seu ambiente, de sua interação
Assim, apresentar determinada práti-
com a natureza e de sua história,
ca cultural como patrimônio cultural gerando um sentimento de identi-
brasileiro pode ser forma de conferir- dade e continuidade e contribuindo
lhe maior prestígio, pouco importando assim para promover o respeito à
se no registro oficial tal manifestação diversidade cultural e à criatividade
consta como essencial ou associada. humana” (UNESCO 2003).
Estas inquietantes vozes do “outro”
A “adequação” de determinadas práti-
parecem indicar uma possibilidade de
cas culturais aos esquemas classificatóri-
preenchimento das “lacunas” que San-
os das agências governamentais nacio-
droni apontou nas pesquisas sobre cul-
nais ou internacionais é uma construção
tura imaterial, reunindo dois pontos de
que envolve múltiplos sujeitos e o que
vista antagônicos:
consta nos dossiês finais nem sempre
“Um, que poderíamos chamar de dá conta de toda a complexidade e
‘demasiado ingênuo’, supõe que riqueza da prática cultural registrada. O
o patrimônio imaterial já existe, dossiê serve para evidenciar a represen-
plenamente criado por grupos lo- tatividade de determinada prática cul-
cais, antes da chegada de quaisquer
tural com relação à identidade nacional/
agentes de políticas públicas ou pes-
quisadores, e posterior inclusão em cultural brasileira. Evidentemente, nem
listas, inventários e proclamações sempre se dá o mesmo espaço a todas
nacionais e internacionais. O outro, as vozes, o que tem a ver com os crité-
que seria talvez ‘demasiado sagaz’, rios das agências governamentais, com
afirma que o patrimônio imaterial as escolhas dos pesquisadores e também
foi imposto, como uma armadilha com as disputas entre os próprios sujei-
da governamentalidade, a comuni- tos ligados ao bem cultural em questão.
dades que nunca teriam conhecido Afinal, essas disputas fazem parte do
semelhante quimera: um passado campo da cultura. Conforme assinalou
vivo, íntimo e reverenciado.” (San-
Thompson, as lutas de classes – termo
droni 2010:386)
hoje fora de moda – também estão per-
A noção de patrimônio cultural imaterial meadas por conflitos de valores, sendo
é histórica, expressa percepções de um que a experiência de classe também
tempo e lugar determinado acerca do pode ser percebida na cultura, pelo em-
que pode ser considerado patrimônio, bate entre padrões morais ou convicções
do que merece ser preservado, por ter religiosas. Isto porque os valores de um
profundas ligações com a identidade determinado grupo não surgem ou não
nacional. A própria “Convenção para a se constroem independentemente do

Amazônica 3 (2): 324-346, 2011 341


Henrique, M. C.

processo histórico. Daí porque Thompson patrimônio cultural de um país ainda


afirma que “toda contradição é um con- precisa de maior veiculação diante da
flito de valor, tanto quanto de interesse população brasileira, católica ou não. A
(...), que toda luta de classes é ao mes- questão não é supervalorizar a dimen-
mo tempo, uma luta acerca de valores” são cultural, em detrimento da religiosa,
(Thompson 1981:189-190). O texto de mas mostrar o quanto essas duas di-
um inventário cultural será tanto mais mensões caminham juntas e enrique-
rico quanto mais próximo estiver da cem a experiência do Círio de Nazaré.
heteroglossia (Bakhtin 1983).
Todas estas questões, partindo do exem-
Esta noção é fundamental na discussão plo do Círio de Nazaré, permitem dis-
do patrimônio local, dada a necessidade cutir a noção de patrimônio enquanto
de se pensar a categoria patrimônio não campo de tensões que expressa diferen-
como algo homogêneo e atemporal, tes concepções acerca do que deve ser
mas como resultado de embates entre elevado à categoria de patrimônio cul-
diferentes concepções do mundo, mar- tural. Mesmo com os limites aqui dis-
cado pela mudança ao longo do tempo cutidos, presentes em qualquer pesquisa
(Fonseca 2003). Por outro lado, é fun- qualitativa, o IPHAN procurou con-
damental discutir com devotos, no caso siderar esse campo de tensões na elabo-
do Círio de Naazaré, e demais interes- ração do Dossiê Círio de Nazaré, inclu-
sados na questão a importância de se sive inserindo entre os bens associados
participar dos debates sobre a definição a Festa da Chiquita, amplamente criti-
do que é patrimônio em sua cidade, haja cada pela Diretoria da Festa como algo
vista que muitas vezes este título pode supostamente sem relação com o Círio.
implicar em alterações na maneira das Da mesma forma, na elaboração das Fi-
pessoas se relacionarem com o bem cul- chas de Identificação dos Bens, não dis-
tural, seja material ou imaterial. ponibilizadas no dossiê final, procurou-
se fazer o registro das diferentes versões
Falta ainda trabalhar a divulgação do
que os devotos ou pesquisadores apre-
Círio de Nazaré não apenas no seu as-
sentavam sobre o mesmo bem cultural.
pecto religioso, mas fundamentalmente
Todo esse material está disponível no
como patrimônio cultural. Afinal, o
IPHAN e pode ser consultado.
Círio não foi registrado por ser cerimô-
nia religiosa ou católica. Assim se en- Acima de tudo, procurou-se devolver
frentaria, por exemplo, atitudes como aos devotos uma sistematização dos da-
as de determinados alunos que se recu- dos pesquisados que garantisse a identi-
sam a ouvir palestra sobre o Círio argu- ficação do aspecto polissêmico do Círio
mentando que se trata de manifestação de Nazaré: uma experiência religiosa e
católica. Por outro lado, se o aspecto re- cultural de múltiplas cores, credos, in-
ligioso dessa prática é bastante evidente teresses, expressão de fé e marca sig-
aos devotos, tendo em vista sua realiza- nificativa da identidade dos paraenses.
ção desde 1793, a própria noção de que Ao mesmo tempo, na medida em que
algo imaterial pode ser registrado como reúne elementos das culturas negra,

342 Amazônica 3 (2): 324-346, 2011


Do ponto de vista do pesquisador

portuguesa e indígena, evidenciados processo de tombamento e registro de Serra


nas comidas típicas que compõem o do Navio, no Amapá, como patrimônio cul-
Almoço do Círio, nos artesanatos, na tural brasileiro, concluído pelo IPHAN em
forma de pagar as promessas, na imbri- 2010. A Vila Serra do Navio foi projetada
pelo arquiteto brasileiro Oswaldo Bratke
cação sagrado-profano, entre outros, o
para abrigar os trabalhadores da Indústria
Círio de Nazaré de Belém do Pará apre- e Comércio de Minério (ICOMI). Conferir
senta elementos essenciais na formação Henrique et al. (2010).
da identidade brasileira, o que justifica
seu reconhecimento como patrimônio
4
Em 2002, acompanhei a Romaria
Rodoviária na carroceria de um carro da
cultural do país. Cabe agora divulgar e
Polícia Federal, graças a um crachá que os-
devolver à sociedade toda a riqueza da tentava em caixa alta: “IMPRENSA”. Difi-
pesquisa realizada pelo IPHAN. cilmente teria tido essa experiência sem que
estivesse amparado pelo fato de ser “pes-
quisador do IPHAN”. Por outro lado, o
AGRADECIMENTOS mesmo crachá de identificação do IPHAN
Versão inicial deste artigo foi apresentada na que facilitava o acesso dos pesquisadores
mesa redonda “Círio de Nazaré”, no Instituto em Belém, dificultava o acesso em Serra do
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Navio, no Amapá: eis que muitos dos mo-
2ª Regional, em Belém, outubro de 2005. radores se recusavam a nos dar entrevistas e
manifestavam-se visivelmente irritados com
nossa presença, pelo fato de ocuparem as
casas de forma ilegal e pensarem que nós
NOTAS estávamos ali para retirá-los de “suas” casas.
1
As mangueiras que arborizam Belém 5
O artigo de Carlos Sandroni (2010), que
começaram a ser introduzidas na cidade
foi coordenador da candidatura do samba
por volta de 1779, a partir de sementes tra-
de roda do Recôncavo (BA) à III Proclama-
zidas da Índia. A aclimatação dessa planta
ção de Obras-Primas do Patrimônio Imate-
só ocorreu entre 1798 e 1800, com o con-
rial da Humanidade, instituída pela Unesco,
trabando de sementes da Guiana Francesa.
mostra muitas dessas tensões vivenciadas
À época do governo de Antonio Lemos
pelo pesquisador.
(1898-1911), no boom da economia da bor-
racha, aprimorou-se o projeto de arboriza- 6
No texto “Ritual do Corpo entre os Naci-
ção, motivando anos mais tarde a definição rema”, Horace Minner (1956) realiza interes-
de Belém como “a cidade das mangueiras”. sante estranhamento da sociedade norte-
Em dois dos principais trajetos atuais da americana, indicando exercício semelhante
procissão do Círio de Nazaré (avenidas Presi- ao que a equipe de pesquisadores do IPHAN
dente Vargas e Nazaré), percorrem-se verda- precisava fazer. Conferir ainda Velho 1978 e
deiros túneis de mangueiras, fundamentais DaMatta 1981.
para amenizar o calor ao longo do trajeto. 7
O Registro de Bens Culturais de Natureza
Conferir Sarges (2002), Airoza (2008). Imaterial que constituem patrimônio cultural
2
Para uma discussão mais geral sobre a brasileiro é feito nos seguintes livros, de
noção de patrimônio cultural imaterial no acordo com sua especificidade: 1º. Livro de
Brasil, conferir Castro e Fonseca (2008). Registro dos Saberes, 2. Livro de Registro
das Celebrações, 3º. Livro de Registro das
3
Também participei como pesquisador no

Amazônica 3 (2): 324-346, 2011 343


Henrique, M. C.

Formas de Expressão e 4º. Livro de Regis- dades do Santuário de Nazaré. A partir do sé-
tro dos Lugares. culo XIX, o arraial foi alvo de intensa cam-
panha de “moralização” por parte da Igreja,
8
Conferir Ficha de Identificação do Al-
preocupado com os “excessos” profanos
moço do Círio, IPHAN, 2004.
dos devotos em tal espaço. Atualmente, é
9
Com relação ao aspecto polissêmico do um espaço cercado por muros e grades, sob
catolicismo na Amazônia, conferir Maués o controle da Diretoria da Festa de Nazaré.
1995 e Figueiredo 2008. 18
Alegorias são os carros que acompanham
10
Conferir o tópico “História”, no endereço a procissão do Círio e remetem aos mila-
eletrônico http://autodocirio.ufpa.br/, gres de Nossa Senhora de Nazaré, além de
acesso em 15 de janeiro de 2011. outros aspectos da devoção. Os Brinquedos
de miriti são feitos do caule da palmeira miriti
11
A Procissão Principal do Círio, realizada
e reproduzem miniaturas da fauna e flora da
todo segundo domingo de outubro, cor-
Amazônia, além de elementos do imaginário
responde ao traslado da imagem de Nossa
da região.
Senhora de Nazaré da Catedral da Sé, no
bairro da Cidade Velha, até a Praça San- 19
Procissão fluvial em que a imagem de
tuário, no bairro de Nazaré. Nossa Senhora de Nazaré é transportada
em navio da Marinha pela baía do Guajará,
12
A chamada Imagem Original é a que, se-
recebendo homenagens ao longo do trajeto.
gundo a tradição, teria sido “achada” pelo
caboclo Plácido, em 1700. Por razões de se- 20
Com relação a esta discussão sobre
gurança, esta imagem permanece guardada “tradição”, agradeço a Cleodir Moraes pelo
no Santuário de Nazaré. A Imagem Peregrina produtivo diálogo.
é a que é conduzida pelos devotos no Círio.
Possui feições mais próximas da fisionomia
dos devotos da região amazônica e foi con- REFERÊNCIAS
feccionada no final da década de 1960.
Airosa, L. O. V. 2008. Cidade das Mangueiras: acli-
13
A Trasladação é realizada à noite, no matação da mangueira e arborização dos logradouros
sábado que antecede a procissão principal belenenses (1616-1911). Dissertação de Mestrado.
do Círio. A imagem da santa é conduzida Programa de Pós-Graduação em História, Uni-
do Colégio Gentil até a Catedral da Sé, per- versidade Federal do Pará, Belém.
fazendo o percurso do Círio ao contrário.
Alves, I. 1980. O carnaval devoto: um estudo sobre
14
Espécie de andor onde é transportada a a festa de Nazaré, em Belém. Petrópolis: Vozes.
imagem de Nossa Senhora de Nazaré.
Bakhtin, M. M. 1983. Dialogic imagination.
15
Atualmente com cerca de 450 metros, a Austin: University of Texas Press.
Corda é atada à Berlinda e simboliza a ligação
dos promesseiros com Nossa Senhora de BRASIL, Governo. Decreto nº 3551, de 4 de
Nazaré. agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Cul-
turais de Natureza Imaterial que constituem
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Recebido em 30/08/2011.
Aprovado em 12/09/2011.

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