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A escrita, a lei e a lei escrita1

Atenienses do período clássico veneravam tanto seu legislador ancestral2, Sólon, que suas
leis ainda formavam a base do direito ateniense na democracia radical. Mesmo após a revisão do
código legal em fins do século V, os atenienses ainda se referiam às suas leis como “as leis de Sólon”,
mesclando confusamente as antigas e as novas leis nesta descrição. Ainda assim, relatam-nos, tais
leis eram defeituosas. Alguns críticos são mencionados na Constituição dos atenienses de
Aristóteles3: as leis de Sólon, afirmavam, padeciam da falta de clareza, o que criava disputas e,
“alguns acreditavam que isto foi feito deliberadamente para tornar o demos senhor (kyrios) dos
julgamentos”.4 Este exemplo traz à tona vários dos temas deste capítulo: o papel dos primeiros
legisladores e leis atenienses, como Sólon; a já percebida e atual importância da escritura das leis;
os problemas que surgiam mesmo quando as leis eram gravadas por escrito; e a íntima conexão
entre leis escritas e os órgãos que as aplicavam.

Ao menos alguns destes críticos eram oligarcas: a Constituição dos atenienses


posteriormente diz-nos que a oligarquia dos 30, em sua ansiedade por retirar todo o poder do povo,
retirou “do Areópago as leis de Efialtes e de Arquéstrato relativas aos aeropagitas5; revogaram ainda
as leis de Sólon que eram controversas (diamphisbeteseis) e retiraram aos juízes a soberania na
interpretação da lei”6. Uma destas leis que se mostravam abertas a tal persecução maligna, diziam,
era a lei acerca da herança e da vontade do testador. Ela dava ao testador plenos poderes para
determinar o conteúdo do seu testamento “exceto quando estiver louco, senil ou sob influência de
uma mulher”. Tal disposição propiciava uma excelente desculpa para o questionamento dos
testamentos e, portanto, oportunidades para os sicofantas – ou ao menos assim afirmavam os
Trinta7 e, portanto, aboliram tal exceção. Aristóteles toma o lado de Sólon, na medida em que o
antigo legislador tivera de definir suas leis em termos gerais – mas podemos claramente ver aqui
que a natureza e o escopo das leis escritas poderia ser o ponto central da discussão entre oligarcas
e democratas. Os democratas estavam contentes em deixar ao júri o espaço para interpretação em
casos individuais, enquanto os oligarcas eram adamantes no endurecimento e eliminação das
ambiguidades. Isso enfatiza a proximidade existente entre a força da lei e seu contexto institucional
– não há qualquer sentido em haver leis democráticas se não houverem juízes democráticos para

1
THOMAS, Rosalind. Writing, Law and Written Law. In. COHEN, D.; GAGARIN, M. The Cambridge companion
to ancient greek law. New York: Cambridge University Press, 2005. Texto traduzido por João Paulo M. Araújo,
para uso restrito dos alunos da disciplina História do Direito, ministrada no curso de Direito da Universidade
Federal de Juiz de Fora – campus avançado de Governador Valadares. É vedado o uso não acadêmico e/ou
relacionado a fins comerciais de qualquer espécie.
2
NT.: Lawgiver no original. O termo refere-se ao grego antigo nomotheta, ou seja, aquele que institui as leis.
Não se deve confundir com o conceito moderno de legislador. No mundo grego, tais figuras aparecem sempre
em contextos de fundação de uma nova ordem: eles dão leis quando antes haviam apenas costumes ou leis
não escritas.
3
ARISTÓTELES. Constituição dos atenienses, 9.2
4
Cf. PLUTARCO. Sólon, 18.
5
Ocupantes do Areópago, o antigo e mais importante tribunal ateniense.
6
ARISTÓTELES. Op. Cit., 35.2
7
Os “Trinta” refere-se à ditadura oligárquica que se impôs em Atenas após as desordens instauradas com a
morte de Péricles e a derrota na Guerra do Peloponeso.
aplicá-las – bem como a necessidade que leis escritas têm de serem complementadas pela
interpretação, pois elas mesmas não podem abarcar todos os casos, conforme Aristóteles o define
na Política8. Tal cenário ilustra ainda um outro tema – que a escritura das leis foi provavelmente
efetuada em uma variedade de formas por diferentes cidades-estado e pelos mais variados motivos:
tais leis escritas não possuíram idênticas implicações em todos os lugares, dependendo fortemente
dos contextos políticos específicos.

Os gregos do período clássico identificavam a polis grega ao domínio da lei9 e olhavam de


forma desaprovadora às comunidades – reais ou imaginárias – que não as possuíam. Já na última
metade do século V, as leis escritas eram cada vez mais identificadas como um fator necessário no
provimento de uma justiça para todos. As elevadas palavras de Teseu, identificado como o Rei
ateniense de inclinações democráticas nas Suplicantes de Eurípedes, anunciavam: “Quando as leis
são escritas, tanto o pobre como o rico possuem igual justiça”10. Elas evocavam a concepção, comum
na Grécia do período clássico, de que leis escritas eram necessárias para a promoção geral da justiça,
para que elas transcendessem os interesses de um ou outro grupo social e para serem aplicadas de
forma imparcial. Elas igualmente conduzem à identificação da polis grega com a ideia de domínio
da lei. Contudo, vem sendo cada vez mais reconhecido que a instituição de leis escritas na sociedade
arcaica não era necessariamente equivalente à emergência de uma maior justiça ou igualdade,
quem o dirá de democracia.11 Além disso, nem sempre o ideal e a prática se ajustavam
perfeitamente, e os significados da lei escrita na sociedade grega, bem como no desenvolvimento
da cidade-estado é de uma complexidade fascinante. O que as pessoas pensavam que estavam
fazendo ao criar leis escritas pode muito bem não ter sido corroborado na prática e pode-se
suspeitar que tais leis possam, em alguns casos, ter tido consequências imprevisíveis.

As evidências das primeiras leis escritas apontam para meados do século VII, e elas
aumentam precisamente durante o período em que as cidades-estado gregas desenvolviam
sistemas políticos mais formalizados no processo de criação do maquinário “estatal”. O papel da lei
escrita pode ser visto neste amplo processo de desenvolvimento, tanto mais porque muitas destas
leis impunham limites aos magistrados da cidade nas poleis que regularmente se viam diante de
instabilidades e conflitos civis. Nossa mais firme evidência do direito grego no período arcaico e no
início do período clássico ainda são as inscrições onde as leis eram gravadas: de tal forma, sabemos
bem mais acerca destas leis inscritas em pedra (em oposição àquelas inscritas em bronze ou
madeira) e que sobreviveram até os nossos dias.

Um elemento adicional consiste no fato de que o puro texto destas leis não revela
facilmente as complexidades que muito provavelmente tenham existido – digamos, em uma disputa
legal sobre herança ou ocupação de uma magistratura -, muito menos os dramas políticos e sociais

8
ARISTÓTELES. Política, 1282b2.
9
NT: o termo utilizado pela autora é rule of law que, em português, quando denota organização político-
jurídica, é traduzido por Estado de Direito. Achamos, contudo, que a tradução imediata corre o risco de impor
consequências anacrônicas ao período estudado, razão pela qual preferimos a tradução literal por “domínio
da lei” – que, ademais, se apresenta muito mais próxima quando se considera as fontes do período. Cf.
TUCÍDIDES (REFERENCIA!); ARISTOTELES
10
EURÍPEDES. As suplicantes., 430-4. Ver também o fragmento de Górgias (DK 82 11a30): “leis escritas são os
guardiões da justiça”.
11
Ver Gagarin (1986), Cp. 6; Thomas (1995); Eder (1986); Hölkeskamp (1992).
que podem ter trazido ainda mais pressões às tentativas de se fazer aplicar a nova lei. Tradições
gregas posteriores atribuem inúmeras leis e extensivas reformas aos primeiros legisladores gregos
e, porquanto as tradições parecem ter origem em uma cultural oral, tais legisladores constituem
personagens incertos e nebulosos. A exceção consiste em Sólon de Atenas, do qual restam os seus
próprios poemas, bem como registros posteriores de suas leis e uma tradição ulterior, se bem que
idealizada para fins de propaganda.12

O que permanece claro, no entanto, é o fato de que durante o período clássico as leis
escritas eram amplamente consideradas como se, em si mesmas, fossem capazes de conduzir à
equidade, à justiça e à igualdade – não apenas à democracia -, e que o gradual desenvolvimento da
lei escrita no final do período arcaico toca não apenas no papel da escritura (enquanto operação)
mas, igualmente, em alguns dos principais desdobramentos do período arcaico. Aqui, Sólon
apresenta-se como a figura simbólica – ele mesmo tendo apresentado suas reformas, representadas
na sua poesia como salvadoras da polis então em meio à guerra civil, criando “boa ordem”, ou
eunomia; impedindo cada facção de se apoderar da vitória injustamente e – parte importante disto
– tendo “escrito leis tanto para o rico quanto para o pobre, garantindo reta justiça a ambos”13
Focaremos, aqui, no caráter e no significado das leis escritas na Grécia arcaica, na relação entre tais
leis e as primeiras formas de regras e manutenção da ordem e, finalmente, nos ideais construídos
ao redor da ideia de leis escritas na Atenas do período clássico.

A escrita apareceu na Grécia no início do século VIII e foi rapidamente utilizada para o envio
de mensagens privadas, selos e consagrações. Não é senão em meados ou fins do século VII que
temos a primeira evidência concreta de seu uso oficial para inscrição pública das leis. A mais antiga
lei escrita já encontrada é a de Dreros, em Creta (aprox. 650 a.c.), um lugar com suficiente
autoconsciência cívica para já ter, na época, construído uma ágora. As cidades cretenses
permanecem como grandes criadoras de leis inscritas em pedra durante todo o século VI e até o
século V, culminando no Código de Gortina. O fato de que pelo menos 11 cidades cretenses tenham
nos deixado leis gravadas em pedra oriundas do período arcaico, faz aumentar significativamente o
peso das evidências para a experiência de Creta. Isto não pode ser considerado mero acidente no
descobrimento das evidências: Creta era evidentemente entusiasta da inscrição em pedra das suas
leis, desde os primeiros tempos. As fontes literárias criam tradições acerca dos primeiros
legisladores que podem ter pertencido ao século VII como, por exemplo, Carondas de Catana,
Zaleuco de Locri, Filolau de Corinto, legislador de Tebas, Licurgo de Esparta, e outros – embora haja
algumas bem conhecidas dificuldades na aceitação da validade de tais tradições. Mais certa é a
figura, surgida em fins do século VII, de Drácon de Atenas, cuja lei de homicídio foi reestabelecida
por volta do século V; e Sólon, do início do século VI. Assim, neste período a lei escrita torna-se algo
familiar. Evidências epigráficas de leis tornam-se mais comuns na segunda metade do mesmo
século.

Assim, cabe perguntar: por que tais comunidades recorrem a leis escritas? São elas
meramente o refúgio (ou as armas) de certos grupos dentro de tais comunidades? Até que ponto

12
Ver Szegedy-Maszak (1978); e, no que se refere à ideia do “grande legislador” como, essencialmente, um
construto do século IV, Hölkeskamp (1999) com Robinson (2003).
13
Fragmento 36W, retirado da Constituição dos ateninenses, 12.4.
estas novas leis replicam ou “codificam” práticas antigas – ou produzem novas, e radicais, regras? E
quanto à aparente produção em larga escala de leis atribuídas aos legisladores?

As tradições acerca dos primeiros legisladores não são apenas, e comumente, não
confiáveis como existe um certo contraste entre a tradição literária acerca dos legisladores e as
inscrições, elas mesmas. Nossas evidências apontam para grandes números de leis gravadas em
pedra oriundas de Creta, algumas poucas em bronze, advindas de Olímpia/Eléia e da Argólida,
especialmente de Argos, mas nenhuma – ou apenas os mais escassos fragmentos – provindos de
Tebas, Catana, Esparta, Atenas e Locri – todas cidades famosas por seus legisladores. A tradição
espartana afirma que seu legislador, Licurgo de Esparta, efetivamente havia proibido a lei escrita14.
Em relação aos demais, tem havido alguns fragmentos do Leontino (Monte San Mauro) e de Éfeso,
duas cidades que possuíam suas próprias tradições de legisladores. As extensas leis de Sólon foram
escritas em axones e kyrbeis15, e não sobreviveram. A Atenas arcaica não nos legou qualquer
inscrição em pedra das leis daquele período. Isso deixa-nos com a alternativa de considerar a
possibilidade (a não ser que desacreditemos as tradições ao redor de tais legisladores como um
todo) de que algumas cidades possuíram corpos de leis escritas em outro material, além da pedra,
ou mesmo que não tiveram quaisquer leis escritas. A tradição literária registra que as leis de Caronda
eram algumas vezes cantadas ou entoadas, particularmente após os hinos sagrados, “de tal forma
que os ouvintes devessem ficar impregnados delas”. Nem todos os estudiosos mostraram-se
dispostos a aceitar isso de forma tão literal, mas tal elemento levanta a possibilidade de que alguns
destes primeiros legisladores nem sempre promulgaram ou preservaram suas leis da forma que,
posteriormente, tornou-se um padrão, qual seja: em um local público e ou em algum tipo de
material mais duradouro.

Para entender o porquê das comunidades terem cada vez mais recorrido a leis escritas,
devemos considerar os autores e as formas destas primeiras leis. Muitas das primeiras legislações
existentes mostram uma obsessiva preocupação com o estabelecimento de penalidades, em
especificar os magistrados encarregados de lidar com infrações menores bem como de estabelecer
limites a tais oficiais. Por exemplo, recentemente foi divulgado uma lei encontrada no sítio
arqueológico de Tirinto. Tal lei, possivelmente uma lei sagrada datada do final do século VII ou
mesmo início do século VI é ainda bastante obscura, mas já se pode inferir cláusulas dispondo sobre
multas, outras acerca do papel dos magistrados distribuindo e aplicando penalidades, bem como
algumas sobre a “comunidade” ou o povo. Argos já possuía leis escritas em bronze e rocha, pelo
menos desde 575-550, entre as quais uma lei penal, gravada em uma placa de bronze, trazendo a
lista dos crimes graves contra a cidade, os quais acarretavam as penas de maldição, morte e exílio;
ela inicia com a penalidade cominada para quem desfigurasse a própria placa. Um exemplo
particularmente bom de uma série de sanções e de uma lista hierarquizada de magistrados é vista
em uma lei de Eléia (Olímpia), inscrita em uma plaqueta de bronze, que estabelece uma lista
meticulosa de sanções e multas: seu principal autor é Patrias, secretário dos eleatas, e um dos
artigos parece declarar que ele e sua família possuíam imunidade em caso de acusação pela lei –
uma tentativa de diminuir a responsabilidade coletiva e proteger Patrias. Tal ênfase nas penalidades

14
PLUTARCO. Vida de Licurgo, 13.1-3
15
NT: pequenas tábuas de madeira em um suporte na forma de um cilindro triangular.
e nos magistrados significa que é frequentemente difícil – especialmente no caso dos textos mais
fragmentários – determinar qual era o delito básico.

Tais leis não se prestavam, no todo, ao estabelecimento de instituições políticas (muitas, de


fato, parecem se preocupar bem mais com aspectos procedimentais – fato para o qual iremos em
breve retornar). Contudo, ainda assim, a tradição literária atribui a vários legisladores a reforma ou
a transformação das estruturas políticas e sociais de suas cidades – e nós precisamos considerar
isto, particularmente no caso de Sólon de Atenas e, provavelmente, no de Esparta. A famosa lei de
Quios, do início do século VI, pode se encaixar nesta categoria: em um dos lados da pedra (verso), a
lei trata da possibilidade de recursos ao “conselho do povo”, e aparenta delimitar o horário do seus
encontros e algumas de suas atribuições; enquanto no lado frontal ela parece proteger a
propriedade do Santuário de Héstia, mas também menciona os decretos populares (rhetras), os
demarcas e o basileus.16 Estas leis, que versavam sobre conteúdos e aspectos constitucionais, são
relativamente raras dentro do conjunto de evidências epigráficas que dispomos. No entanto, a
primeira Lei de Dreros é outra bem conhecida lei constitucional que declara, em sua primeira
disposição, que a polis decidira que seu mais alto magistrado, o Kosmos não poderia exercer o
mesmo cargo uma segunda vez antes de findos dez anos – para então proceder à listagem das
punições e sanções aplicáveis em caso de descumprimento. É impressionante que a mais antiga lei
escrita em pedra existente diga respeito às limitações do mandato oficial de seu principal
magistrado. Em termos formais, é uma mistura de elementos substantivos com elementos
procedimentais, estabelecendo primeiro aquilo que é tido como proibido. Isso permite considerar
que a lei escrita pode muito bem ter sido buscada em tempos de instabilidades política e social e
representava, em alguns locais (como em Dreros), uma tentativa de limitar ou regular o poder da
elite politicamente ativa, talvez mesmo por seus pares.

O ímpeto em direção à escritura das leis não foi, provavelmente, constante ou uniforme em
locais tão amplamente variados – mas a própria forma escrita foi certamente tida como significativa.
No que se refere às leis de Sólon, nós temos como testemunho suas próprias palavras, e sua
expressão “eu escrevi leis (thesmoi) tanto para os ricos como para os pobres”17 encaixa-se bem com
a ênfase constante, em seus poemas, na ideia de justiça social e nas demandas irrazoáveis dos dois
lados do conflito: em Sólon, uma versão escrita das leis se imporia igualmente a todas as classes;
elas seriam iguais para todos. Apenas isto é suficiente para mostrar que a ideia da lei escrita como
um imperativo de igualdade não é uma concepção anacrônica quando suposta para o período
arcaico. Ainda que outras leis impositivas não tivessem sido escritas, não precisamos concordar com
a sugestão de Whitley de que a escritura das leis não conferiria nenhum status especial a estas em
contraste com as leis não escritas, cuja transmissão se dava majoritariamente pela oralidade.18 Pode
ter sido um resultado não previsto o fato de que as leis escritas não se distinguissem, em
importância, das leis não escritas, mas é difícil ver, neste caso, o motivo pelo qual as cidades iriam
considerar escrever suas leis se elas não tivessem a pretensão de se diferenciar minimamente das

16
NT.: O demarca [grego: demarchós – demos (povo) + arkhein (governar)] era o chefe ou magistrado do povo
de um determinado demos (unidade de subdivisão da cidade, onde residia o povo). O basileus era uma das
principais magistraturas da cidade: na época arcaica, correspondia ao rei (e esta é uma de suas traduções).
Com o tempo e a abertura cívica da cidade, o basileus assumiu funções meramente religiosas.
17
SÓLON. Poemas, 36W
18
WHITLEY, 1997, p. 640.
disposições legais anteriores. De outra forma, como explicar a ênfase, presente em tantas das leis
arcaicas, em manter “o que está escrito” e não desfigurar “a escrita”? O clamor poético de Sólon
apenas reforça a noção de que a lei escrita possuía certa significância.

Um outro objetivo possível pode ter sido manter a estabilidade. Em Atenas, a forma escrita
das leis de Sólon pode ter visado conferir estabilidade. Em tempos revolucionários, havia pouco
sentido no acordo quanto a reformas e outras medidas semelhantes se ele pudesse ser esquecido
ou “deturpado” pelos adversários. Daí a importância dos axones e kyrbeis, publicamente dispostos
à vista de todos. Havia, certamente, o medo de que as leis, uma vez acordadas, fossem ignoradas
ou revogadas pelos próprios magistrados ou outros membros da elite dominante que deveriam,
supostamente, estar limitados por elas: as leis escritas, tornadas públicas, eram amplamente visíveis
e acessíveis e, ainda que poucos cidadãos fossem capazes de lê-las, havia possivelmente aqueles
que possuíam tal capacidade, bem como outros que podiam apontar às inscrições públicas como
um lembrete da existência da lei. Isso explica a existência, muitas vezes constatada, de penas
pesadas destinadas àqueles acusados de adulterar as inscrições. Recentemente divulgadas, as
Maldições Teanas trazem uma imprecação reservada aos magistrados que não leem o disposto
“com o melhor de sua memória e capacidade” (uma referência ao fato de que elas eram por eles
recitadas de memória?). Qualquer um que deteriorasse o suporte de pedra no qual se inscreviam
as leis também era provavelmente amaldiçoado e, em outra das Maldições Teanas, havia
certamente a extrema penalidade destinada àquele que quebrasse o monólito ou destruísse suas
letras. Tudo isso implica certamente demonstra uma ansiedade dirigida à estabilidade e a
preservação da lei pública inscrita na pedra.

Aqui, voltamos nossa atenção à Creta. O paradoxo da extensa legislação levada a cabo pelas
cidades cretenses é que, ao lado de uma bem estabelecida tradição de inscrição de leis em pedra,
há pouquíssima evidência de outras formas de escrita – de modo que estas inscrições parecem ser
as únicas manifestações de alfabetização na ilha. A virtual ausência de qualquer fonte de escrita
informal, tais como as encontradas em Atenas, sugere fortemente que os cidadãos ordinários não
tinham meios de ler suas leis. Talvez, contudo, longe de ser um paradoxo, tal fato se mostra como
um incômodo lembrete de que o modelo explicativo que associa a escritura das leis a um certo
progresso social não se sustenta bem. Creta não consegue prover um modelo explicativo acerca da
forma pela qual a lei escrita pode promover a igualdade, ou mesmo levar à democracia – há mesmo
um leve tom apologético na moderna discussão acerca das leis cretenses. Mas não podemos
simplesmente descartar o conjunto das evidências de Creta como um mero acidente de descoberta
– a despeito de recentes descobertas em outros lugares, Creta ainda é, de longe, a cidade que mais
nos legou registros de leis escritas. Tais leis podem ter sido uma forma de intimidação dirigidas a
impressionar a população mediante a autoridade da lei. Esta explicação, contudo, parece um tanto
insatisfatória, como a recente sugestão de que o Código de Gortina significava, acima de tudo, um
texto imponente, “antes um monumento que um texto”, representando “na forma simbólica aquilo
que a comunidade como um todo significava”19. O “Código” é notável pelo seu imenso
detalhamento e complexidade de suas leis, abrangendo situações possíveis (e alguns improváveis)
em áreas da vida , tais como sucessões, adoção e situação das herdeiras. Emendas foram elaboradas
e há indicações de tentativas de sistematização – elementos que apontam para algo além de uma
grandiosa declaração simbólica. Além disso, o “Código” é apenas o maior dentro de um gigantesco

19
WHITLEY, 1994, p.660
número de inscrições legais encontradas em Gortina – claramente uma parte de uma tradição
assentada na fixação de regras legais em pedra.

A muralha permeada de inscrições que, em Gortina, fixava o “Código”, enfatiza a autoridade


das leis, a grandiosidade do “Código” e o poder de seus criadores. Mas, podemos perguntar, isso é
tudo? Se Creta é tão diferente do restante da Grécia, qual o motivo preciso de tal diferença e, ainda,
qual é o contexto que lhe permitiu ser tão diferente? Existem alguns indícios a apontar que o papel
do escriba, na Grécia arcaica, era bastante extenso, como mostram os decretos do Spensithios20: os
escribas seriam, assim, um tipo de oficial público cujo poder deveria ser controlado, da mesma
forma que os mnemones e juízes que aparecem de forma proeminente no Código de Gortina. Se os
escribas possuíam poder, então as ulteriores leis escritas poderiam ter se mostrado úteis no
controle de suas ações.

O conteúdo específico das leis também era uma preocupação. Há muitas disposições no
“Código” acerca dos comportamentos e poderes dos magistrados envolvidos na administração da
justiça, bem como prescrições para atuarem “por escrito”. Por exemplo, as instruções
procedimentais destinadas ao juiz e ao mnemon21 quando diante de situações particularmente
complexas22; o dever do juiz de julgar conforme “está escrito” sobre o que quer que esteja
especificado “naquilo que está escrito”; e o estabelecimento de que as disposições são válidas a
partir do momento em que são escritas. Isso implica que o “Código” estabelecia suas extensas leis
acerca de sucessões, propriedade e status das herdeiras em parte como forma de controle e
garantia de estabilidade do tratamento dado aos juízes acerca daquelas matérias, bem como para
cobrir os problemas que subsequentemente surgissem – algo que parecia particularmente provável
quando já havia uma tradição enraizada de leis escritas.

É interessante notar que, a despeito do detalhamento das leis escritas, os mnemones


possuíam um elevado grau de autoridade no Código, na medida em que estavam particularmente
ligados ao juiz e compartilhavam com ele a prerrogativa de se tornarem testemunhas do resultado
de casos anteriores – de forma que ambos os magistrados possuíam conhecimento dotado de
autoridade. Presumivelmente porque detinham a capacidade de leitura, ainda que à diferença da
massa da população, a versão escrita das leis poderia ser dirigida em parte a possibilitar o controle
mútuo por parte destes magistrados. Aristóteles assinala, acerca dos magistrados cretenses do
Século IV: “o poder arbitrário de agir a partir de suas próprias convicções, prescindindo da lei escrita,
é perigoso”23. Mas tal constatação pode demonstrar mais uma falha em fazer cumprir as leis do que
uma falha nas leis elas mesmas, no fato de que elas fossem desprovidas de qualquer força.

Embora a proeminência das leis escritas em Creta fosse certamente uma exceção, é válido
considerar se o papel da lei escrita naquela cidade pode ser considerado como típico ou indicativo
do lugar mesmo da lei em outras comunidades arcaicas – um conjunto de leis acolhido não por
órgãos igualitários ou proto-democráticos, mas aplicado e administrado por um poderoso grupo de

20
NT.: Importante cargo da cidade, encarregado de proceder as inscrições dentro da comunidade.
21
NT.: Mnemon (pl. mnemones) era o oficial encarregado da administração dos arquivos públicos (Paros); em
alguns casos, atuavam como “oficiais cartorários”. Cf. ARNAOUTOGLOU. Ancient greek Laws: a
sourcebook.,1998, p. 152.
22
CÓDIGO DE GORTINA, IX, 24-40
23
ARISTÓTELES, Política, 1272a36-39.
magistrados e acompanhado pelos mnemones e sua (inerentemente instável) “memória”. A julgar
pela tradição literária, as leis cretenses eram admiradas e foram copiadas pelo restante da Grécia.
É significativo que, neste particular, as inscrições e a tradição literária se reforcem mutualmente:
escritores gregos posteriores, incluindo Heródoto, Platão e Aristóteles estavam convencidos da
importância da tradição legal cretense. De modo notório, as tradições remontavam a Minos a
origem dos legisladores míticos de Creta. Mas já em Heródoto recordamos que o espartano Licurgo
vai buscar a inspiração de suas leis em Creta24, o que é expresso de forma ainda mais elaborada nas
Leis de Platão e na Política de Aristóteles. A presença da lei escrita naquelas poleis não democráticas
(seja em essência ou em intenção) talvez tenha sido muito mais comum na Grécia do que,
aparentemente, o foi o modelo ateniense (e solônico).

O ato da escrita parecia, naquela época, oferecer permanência, estabilidade e segurança


para as leis. Isso levanta-nos mais questões acerca do que era efetivamente escrito em uma lei
arcaica e o que era feito com a inscrição, uma vez realizada. Antes, contudo, é preciso suspender
tais questões e considerar mais atentamente o que acontecia nestas comunidades antes de
começarem a escrever suas leis.

O impacto das primeiras leis escritas deve ter sido afetado, ao menos parcialmente, pelos
antigos costumes, sistemas de manutenção da ordem e resolução de disputas e, mesmo, pelos
magistrados e estruturas políticas previamente existentes. Isso levanta a questão acerca da
possibilidade de se afirmar a preexistência de leis orais ou não-escritas – um conjunto de regras
razoavelmente rígidas que pudessem receber a denominação de lei ou regra vinculante. É
frequentemente sustentado, particularmente entre juristas modernos, que as leis, por definição,
precisam ser escritas – de outra forma, lhes faltaria a definição, autonomia, especificidade e (talvez)
a precisão que transforma uma simples pretensão jurídica em uma lei ou em Direito.25 É certamente
difícil pensar em uma lei em sentido restrito26 que não seja escrita, e é igualmente tentador admitir
que, uma vez escrita uma regra, ela ganha uma certa independência e um status especial que
possivelmente a eleve acima das outras regras vinculantes.

Contudo, considerar o Direito da Grécia arcaica como o conjunto das leis escritas implica
em aceitar que delinear o processo que leva à sua criação é traçar a invenção do próprio direito -
correndo-se o risco de simplificar bastante a imagem que se pretende montar. Torna-se, com isso,
ainda mais difícil de entender os motivos pelos quais apenas certos tipos de leis foram efetivamente
escritas em detrimento de outras – pois é possível encontrar regras/parâmetros de ação bastante
rígidos que não foram reduzidos à escrita. Também deixa inquestionada a pergunta de porque os

24
HERÓDOTO, Histórias, I,65.4
25
NT.: No original, lê-se “that makes a law a statute or a law”. A tradução encontra dificuldades pela natureza
dos termos utilizados. Law, na tradução anglo-saxã, diz respeito a nossa ideia de direito objetivo subjetivo –
uma pretensão jurídica que não encontra respaldo em uma objetividade, mas frequentemente retira sua
validade de uma ordem costumeira de juridicidade. Optamos por traduzir por “simples pretensão jurídica”,
na medida em que a ideia de subjetividade é estranha à contextos históricos pré-modernos. Por seu turno,
“statute” tem a mesma significação que a nossa ideia de “lei”. Dado o contexto da frase, entendemos que a
autora faz a contraposição entre uma pretensão jurídica de matiz subjetiva e elementos jurídicos “objetivos”.
Um outro sentido de “law”, contudo, diz respeito a um coletivo singular: “o” Direito em oposição “aos
direitos”. Daí a oposição entre simples pretensão jurídica, lei e Direito (gravado com maiúscula). Salvo quando
por força do contexto, contudo, a tradução de “law”, ao longo do artigo, fez-se por meio do termo “lei”.
26
NT.: statute law.
termos gregos utilizados para nomear regras ou regulamentos, que nós gostaríamos de denominar
“leis”, são frequentemente bastante indeterminados.

Amiúde, as referências às leis dizem respeito tão somente ao seu modo de preservação. Leis
primitivas constantemente mencionam a si mesmas como “as escrituras”: por exemplo, o Código
de Gortina se refere repetidamente a si mesmo como “a escritura” (to grafos). Uma lei do fim do
século VI de Olímpia, ao dispor acerca de comportamentos inapropriados nos templos, acrescenta
a terrível admoestação: “se alguém julgar contrariamente ao que está escrito, seu julgamento será
nulo” – obviamente uma referência à própria lei mas, igualmente, uma interessante sugestão de
que se temia que algum magistrado pudesse vir a ignorá-la completamente. A sentença então
declara que “a rhetra deve ter a palavra final na decisão”. Rhetra, aqui, parece referir-se a um
decreto único do povo sobre como lidar com algum transgressor. Em outro momento, contudo,
rhetra é utilizado em um sentido que denota mais a ideia de lei, isto é, uma regra vinculante
destinada a possíveis e previsíveis casos futuros, do que uma decisão circunstancial – a própria
palavra, rhetra, por sua etimologia, está ligada a um pronunciamento oral. Independentemente
desta interessante mistura entre o escrito e o oral na manutenção da ordem comunitária, pode-se
também conjecturar se a referência à lei como “o que está escrito” de fato implica, em primeiro
lugar, que o único ou principal elemento escrito disponível é esta lei e, em segundo lugar, que não
haja ainda a separação conceitual entre leis escritas e não escritas. O ato de escrevê-las pode muito
bem ter sido um passo importante em direção a conceptualização da lei como lei escrita, mesmo se
o passo final deste processo ainda não tenha sido tomado.

O termo frequentemente utilizado para lei (escrita), fora do Peloponeso, é thesmos, que
denota algo especificamente destinado a valer para o futuro, oficialmente consagrado e, portanto,
colocado à parte das regras tradicionais e costumeiras. Outro termo, nomos, é notoriamente
utilizado, significando costume, regra vinculante, e o direito – tanto escrito como não escrito. Em
meados do século V, nomos pode se referir à lei escrita (eg., em Eritréia e Halicarnasso) e, após um
período de instabilidade em Atenas, foi eventualmente solidificado como significando lei escrita
pela Constituição estabelecida após 403, que bania o uso de “leis não escritas”27. De tal forma,
nomos foi adquirindo um sentido cada vez mais específico e preciso, provavelmente em resposta às
manipulações políticas e aos problemas já então percebidos acerca do “Direito/Nomos”, que os
sofistas discutiam no final do século V.

Hípias, por exemplo, questionava até que ponto a justiça pode ser entendida como
obediência à lei, na medida em que esta pode ser alterada, enquanto leis não escritas, como àquelas
que prescrevem o dever de cuidado em relação aos pais, têm origem divina e são observadas em
todos os lugares.28 Os espartanos eram reconhecidos pela sua rígida obediência às leis (nomoi), e
Heródoto sublinhava ser esta a sua maior qualidade29 - tais leis, no entanto, devem ter sido orais.30
Heródoto também descreve vários costumes, específicos e obrigatórios encontrados em outros

27
Andócides (I.85-87) dá-nos o texto do decreto. O provável motivo é o de que leis não escritas fossem
inescrupulosamente manipuladas pela oligarquia.
28
XENOFONTE, Memorabilia, 4.4-13
29
HERÓDOTO, Histórias, VII, 104.4. O termo utilizado é nomos.
30
A notável exceção era a Grande Rhetra, registrada em Plutarco, que de alguma forma foi escrita: parece
bastante provável que a proibição à escrita das leis seja produto de um desenvolvimento posterior, uma vez
que, no século VII, Esparta, assim como outras cidades, também experimentava leis escritas.
locais do mundo – aos quais se podia igualmente denominar costume ou lei. Em ambos os casos, o
termo utilizado era nomos. Ele elogia o nomos de Amasis, rei do Egito, que obriga a cada ano que
todos demonstrem ao governador que ganham a vida de forma honesta – e, em caso de
descumprimento, condena-os à morte.31 O historiador acrescenta que tal lei fora tomada de
empréstimo por Sólon, possivelmente para se tornar o nomos argias/a lei contra a preguiça que (se
genuína) fora certamente escrita. Contudo, a questão não é clara acerca do nomos de Amasis – e
talvez pouco importasse sua escritura, enquanto a pressão política e os costumes fossem aptos a
garantir sua observação.

Escritores gregos mencionam explicitamente leis não escritas. Fontes posteriores inclusive
falam sobre “entoar o cântico das leis”, o que mostra que os gregos da antiguidade tardia não
pareciam se perturbar com a ideia de que suas leis adquirissem raízes por meio de entoações –
ainda que tais testemunhos não sejam uma fonte confiável para o período (arcaico) a que se
referem. O termo “lei não escrita” aparece primeiramente no final do século V: a primeira referência
que nos foi legada ocorre na Antígona de Sófocles, (agrapta nomia)32, de cerca de 442, e depois em
Aristófanes, nos Arcanânios (532), de 425, e na Oração Fúnebre de Péricles33. Embora tenhamos de
admitir que se tratasse de um conceito perigosamente incerto, sua aparição parece igualmente
indicar um desenvolvimento na natureza do direito grego, provavelmente uma suposição crescente
de que a maior parte das leis era escrita – bem como, talvez, a emergência de um crescente debate
sobre a natureza do direito escrito na Atenas do final do século V.

Em todo o caso, as observações atenienses acerca da escritura da lei como uma medida em
direção à uma maior justiça parece fortemente indicar a prévia existência de algum conceito de
regras vinculantes sobre as quais os julgamentos eram proferidos. Em Eurípedes, como já
observado, Teseu declara que existe igual justiça para todos “quando as leis são escritas”. O
contexto de tal asserção é: “ninguém é mais inimigo de um Estado que um tirano. Pois não existem
leis da comunidade e domina apenas aquele que possui a lei sob seu arbítrio.”34 A implicação óbvia

31
HERÓDOTO, histórias, II, 177.2
32
NT.: Antígona, filha de Édipo, é acusada de desrespeitar as leis de Creonte, tirano da cidade, que proibia a
realização das libações fúnebres a um dos seus irmãos, morto ao tentar invadir a cidade.
“CREONTE – E agora tu diz-me, sem demora, em poucas palavras: sabias que fora proclamado um édito que
proibia tal ação?
ANTÍGONA – Sabia. Como não havia de sabê-lo? Era público.
CREONTE – E ousaste, então, tripudiar sobre estas leis?
ANTÍGONA – É que essas não foi Zeus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita com os deuses infernais,
estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que teus éditos não tinham tal poder, que um mortal
pudesse sobrelevar os preceitos, não escritos, mas imortais dos deuses. Porque esses não são de agora, nem
de ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram. Por causa das tuas leis, não queria eu ser
castigada perante os deuses, por ter temido a decisão de um homem.” SÓFOCLES, Antígona, 445-459.
33
NT.: Trata-se da oração anual aos mortos na Guerra do Peloponeso, após o primeiro ano do conflito.
“Enquanto na vida privada convivemos com tolerância, sem nos sentirmos ofendidos, na vida pública não
desrespeitamos as leis mais por medo, porque obedecemos sempre a quem tem o poder e também às leis,
sobretudo as que foram promulgadas para ajudar aqueles que são vítimas de injustiça e também as que,
embora não sendo escritas, trazem desonra que é por todos reconhecida.” In. TUCÍDIDES, História da Guerra
do Peloponeso, II, 37.
34
NT. EURÍPEDES, Suplicantes, 429-430. Também o fragmento 36W de Sólon:
“Leis, tanto para o vilão como para o nobre,
que para cada um recta justiça ajustavam,
é que era possível a um simples tirano ter o controle das leis antes delas estarem escritas mas que,
uma vez operada a escritura, elas estariam mais acessíveis, sob o domínio público e, portanto, aptas
a garantir justiça para a comunidade.

Isso serve para nos recordar que existe um perigo iminente nas leis não escritas –
malabarismos ao aplicá-las, omissão de leis estranhas, uma perigosa abertura aos caprichos
decorrentes da polarização social e política em um sistema político tradicional. Entretanto, por si
mesmas, as leis escritas não atingem, necessariamente, um tratamento justo, equânime e
consistente para todos, de forma indistinta. Ela depende muito dos juízes e do sistema judiciário
que irá administrá-la e, se os textos legais forem cuidadosamente analisados, inevitavelmente
surgirão problemas de interpretação e de lacunas nas disposições da lei – isso se o sistema judicial
permitir tais discussões. Leis escritas certamente podem ser deliberadamente parciais – como bem
o demonstra o regime do Apartheid na África do Sul. As cidades da Grécia Arcaica parecem ter sido
conscientes de que o problema poderia residir nos próprios magistrados, de onde decorrem as
cláusulas – presentes em tantas leis do período arcaico – que visavam controlar suas atividades e
força-los a obedecer a nova lei.

Emerge disso o fato de que havia alguma espécie de regras vinculantes antes das leis
escritas, quer chamemo-las leis não escritas, nomoi, ou leis orais e, portanto, uma relação dinâmica
e cambiante entre elas. Ressalta igualmente a percepção de sua importância, na medida em que as
circunstâncias políticas e sociais se alteravam ao longo dos séculos. No entanto, embora algumas
cidades, no período arcaico, tentassem impor penalidades aos julgamentos arbitrários e impedir a
desordem política instituindo leis escritas, alguns escritores do final do século V e do século IV
retomam a ideia de que as leis não escritas eram intrinsecamente mais justas e mais fundamentais:
não apenas Hípias, já mencionado acima, mas também Aristóteles discorria, em fins do século IV,
acerca da maior justeza das leis costumeiras (não escritas)35. Neste caso, contudo, podemos estar
diante de um estágio posterior de inquietação com as leis escritas – agora já tornadas normais,
numerosas, claramente modificáveis e potencialmente motivadas por grupos particulares, um
resultado da perda de inocência referente à imutabilidade da lei.

Em alguns casos, as primeiras leis escritas pressupõem o que não está escrito. Muitas destas
disposições legais dizem respeito a procedimentos, e não a condutas materiais; ou seja, elas
estabelecem detalhes acerca de como proceder em caso de delito, ao invés de determinar o que
poderíamos chamar de “mandamentos” ou estabelecer proibições. A lei de homicídio de Drácon,
por exemplo, copiada no final do século V do “primeiro axon”, como ela mesmo afirma, parece
iniciar já no meio do caminho: “mesmo se alguém comete homicídio culposamente...” e passa
diretamente aos procedimentos de acusação. A ênfase é colocada no responsável em levar o

escrevi. Mas se outro, que não eu, o aguilhão tomasse,


alguém que fosse malvado e ambicioso,
não haveria contido o povo; pois, se eu desejasse
o que aos meus opositores então agradava
e ainda o que, contra eles, outros meditavam,
de muitos homens ficaria viúva esta cidade.” LEÃO. Sólon: ética e política, p.452
35
NT.: “Procurar a justiça é procurar o justo meio – e a lei é, sem dúvida alguma, o justo meio. As leis fundadas
nos costumes têm supremacia e referem-se a questões ainda mais importantes do que as leis escritas”.
ARISTÓTELES, Política, 1287b.
homicida a julgamento, ao invés de declarar os malefícios do ato de matar. Ela presume que o
homicídio, mesmo aquele cometido sem intenção, precisa ser punido, mas não o declara
explicitamente. Em outras palavras, ela parece pressupor uma certa tradição em lidar com tais
situações, e a lei (escrita) ou descreve o atual procedimento ou, o que é mais provável, estabelece
um novo, válido a partir de então. Outras disposições legais concentram-se em listar as penalidades,
mas não em dispor acerca das condutas substantivas (ou seja, o crime). Até mesmo a Lei de Dreros
é bastante sucinta e deixa muito por explicar. A antiga lei espartana, a Grande Rhetra, não explica
seus principais dispositivos e, de forma bastante confusa, contém verbos formados simplesmente
pelos nomes que eles governam (de tal forma, “obendo o obe” – mas o que é um obe?).

Que muito do conteúdo das leis seja presumido traz interessantes implicações à função da
escrita. Em primeiro lugar, o fato de que, nesta fase relativamente precoce da criação de regras
escritas de caráter vinculante, não era sempre reconhecido o quanto se deveria escrever. Isso
poderia criar problemas posteriores, quando o seu significado, outrora tão óbvio, fosse esquecido.
Segundo, isso implica na existência de um amplo conjunto de pressuposições e costumes
tradicionais que estavam por detrás de tais leis e que não se mostravam como necessários à escrita.
Havia instituições e magistraturas que não necessitavam estarem previstos nas leis – do kosmos em
Creta à boule em Quios – a não ser que elas houvessem sido abolidas em algum outro lugar (em
uma época de acelerado desenvolvimento político, isto também poderia ser um problema). As
funções e os deveres de tais oficiais, tais como eram concebidos então, constitui-se em um grande
desconhecido para o historiador contemporâneo, uma vez que deve ter havido alguma
continuidade entre os magistrados que resolviam disputas ou administravam a cidade antes da
escritura da lei, e seus poderes, tradicionais ou arbitrários, iriam frequentemente dar continuidade
ou poderiam distorcer as provisões das novas leis escritas. Dito de outra forma, havia um conjunto
preexistente de tradições e costumes sobre os quais as novas leis iriam incidir. Pode-se ver um
exemplo claro disso na legislação funerária posterior, que sugere a todo tempo a existência de
costumes e hábitos que precisam ser limitados ou mesmo eliminados. Por exemplo, quando a lei,
do final do século V, que regulava os ritos funerários de Ceos afirma “que o morto deve ser levado
coberto e em silêncio à tumba” isto sugere que o costume atual afirmava precisamente o contrário.
Para cada uma destas antigas leis, pode havido vários costumes correntes que estavam sendo
eliminados pelas suas lacônicas, e frequentemente enigmáticas, disposições.

Isto levanta a probabilidade de que, para a maior parte das comunidades, as leis que seriam
escritas eram particularmente especiais: não se tratavam daquelas provisões sobre as quais haveria
um consenso; mas, pelo contrário, das regras que constantemente causavam problemas, como
talvez fosse o caso daquelas que dispunham o status das herdeiras – listado detalhadamente no
Código de Gortina. Ou, pode-se apenas especular, tratava-se daquelas leis, frágeis do ponto de vista
político que, onde aristocratas rivais revezavam-se para tomar o poder ou distorcer as altas
magistraturas para servir a seus propósitos particulares, seus próprios pares se juntaram na
tentativa de dar uma resolução definitiva ao caso. Talvez seja isto o que está por trás da Lei de
Dreros (ML2), que buscava limitar o acesso à mais alta magistratura àqueles que já haviam ocupado
o mesmo cargo.

É possível imaginar o consenso sobre algumas destas leis em um contexto puramente oral?
E, se sim, o que o texto escrito de fato acrescenta? É possível, claro, imaginar um consenso oral na
assembleia da Dreros do século VII (ou em algum grupo menor), estipulando que ninguém deveria
se tornar kosmos por duas vezes no espaço de uma década. A maldição gravada em Teos, no século
V, a qual, em essência, possuía a força de uma lei, pode muito bem ter tido forma puramente oral:
“Àquele que produzir medicamentos venenosos contra os teanos, seja contra um grupo ou contra
um indivíduo isolado, deve morrer, juntamente com sua família”. Após listar outras ações execráveis
– que vão da tentativa de impedir a importação de grãos até a conspiração – a inscrição termina:
“Quem quer que retire a estela na qual esta maldição está inscrita e lhe destrua, ou adultere suas
letras, tornando-as invisíveis, deve morrer, juntamente com sua família” (ML 30, lado A, linhas 1-5;
lado B, 35-41). Tais disposições poderiam ter tido força enquanto pronunciamento orais – maldições
orais são, por si mesmo, poderosas.

Mas elas estão escritas, e isto se deve, talvez, à esperança de que sua escritura pudesse
conferir autoridade e peso extras, bem como permanência, uma vez que uma maldição escrita é
ainda melhor que uma simplesmente falada. A lei de Dreros fora gravada na parede do templo, com
uma invocação aos deuses no início e aos magistrados (os damioi) que seriam suas “testemunhas
juramentadas”, ao final. Parece, assim, uma tentativa de vincular ainda mais aqueles que estão
diretamente implicados pela nova lei, de forma mais firme que um simples juramento (não escrito)
faria. Sua presença na parede do templo indica que não apenas estava fixada em um local público
como também que a autoridade divina poderia ser chamada para dar suporte à execução da lei.
Outras leis mais antigas mencionam explicitamente algum deus como seu protetor ou garantidor.
Uma antiga lei da Lócrida (de cerca de 525-500 a.c.) declara ser, ela mesma, “sagrada aos olhos de
Apolo píteo e dos demais deuses que com ele habitam” e busca, ou melhor, decreta “que o deus
seja bondoso com aquele que a observa”. Zeus e Apolo são chamados como garantidores de um
tratado entre os cidadãos de Síbaris e os serdaios36 (cerca de 550-525 a.c.), juntamente com “outros
deuses e a cidade de Poseidônia”, e a placa de bronze, sobre a qual inscreveu-se o tratado, foi
simbolicamente erigida no santuário pan-helênico de Olímpia, onde os outros deuses gregos
pudessem vê-la.

A forma da escrita em monumentos é, pois, apenas um dentre vários meios pelos quais
estas primeiras comunidades tentaram dotar suas leis de injuntividade. Pode-se sugerir que a lei
escrita não apenas cristalizava e tornava permanente uma decisão possivelmente contenciosa – ou,
ao menos, não aceita de forma pacífica – mas, igualmente, habilitava a cidade a dispor dela em um
espaço público proeminente e reivindicar a proteção do deus. As Maldições Teanas contêm todas
estas características. Ao longo das imprecações, elas claramente invocam a ajuda divina na
manutenção e observação da lei, apresentam-se por escrito, em caráter definitivo, o que aumenta
a força da maldição, e mencionam – na forma de ameaça – o pronunciamento da imprecação no
festival da Antestéria, ao mesmo tempo em que ameaçam de aniquilamento a qualquer um que
desfigure a escrita presente na estela de madeira. As maldições datam do início do século V: mesmo
período em que Atenas formava sua democracia radical. O que nos recorda o fato de que nem todas
as cidades-estados eram tão desenvolvidas, no plano político-jurídico, como Atenas.

Muitas destas antigas leis foram criadas em períodos de rápidas mudanças políticas e sociais
ou em tempos de revolução. É precisamente durante os períodos que não têm como marcas a
plácida estabilidade e a complacência política que se pode antever o frágil status destes novos
acordos e leis. Nas cidades arcaicas, legisladores eram convocados em tempos de grave agitação

36
NT.: Serdaioi, um povo desconhecido.
civil – Sólon em Atenas, Demonax em Cirene37 - e é justa a suposição de que, também se tratando
de decretos individuais, poderia ter havido sérias preocupações acerca da possibilidade de se
manterem tais leis. É mais provável, pois, que as comunidades em situação mais tensa tentassem
conferir às novas leis o máximo de autoridade possível. Mesmo na hipótese de que estas leis
significassem, efetivamente, um compromisso assumido pela elite dominante – como certamente
era o caso em Dreros, bem como na maior parte das cidades arcaicas – na tentativa de estabelecer
limites às ambições dos seus pares, ainda assim é possível concluir pela existência de pressões
semelhantes. Para muitas cidades, esta nova ideia representada pela lei escrita pode inclusive ter
significado o primeiro uso oficial da escrita na polis primitiva, e não causa surpresa descobrir que
estes primeiros grupamentos visam demonstrar a excepcionalidade das novas leis de todas as
formas possíveis, na busca por dotá-la de uma autoridade que, de outra forma, ela não poderia
possuir: sua preservação por meio da escrita, particularmente em pedra (ou bronze); sua
preservação em um local sagrado; a invocação aos deuses contida no início; e o estabelecimento de
juramentos e invocações a um deus garantidor ao final. Eram leis radicalmente inovadoras que
necessitavam este tipo de proteção, ao invés das regras e costumes tradicionais de uma
comunidade.

Antes do direito escrito havia “regras escritas” ou normas e costumes, e mesmo quando
algumas leis foram escritas algumas permaneceram orais. Certamente, a ideia de “regras gerais não
escritas” (como a lei que dispunha acerca do dever de honrar os genitores) que pudessem conter
qualquer força vinculatória antes da paulatina edição de leis escritas é um tanto vaga. Contudo, sem
evidências precisas acerca destas antigas “leis” é possível apenas especular. Pode-se presumir que,
antes da lei homicídio de Dracon, havia regras aceitas sobre responsabilidade e recompensa, bem
como penalidades ao assassino (provavelmente exílio) e ações garantidas aos parentes do falecido.
É possível que ela ainda contivesse bastante ambiguidades ou não fosse suficientemente clara
acerca do homicídio acidental – o tema do texto que nos foi legado – o que levou à clarificação e
maior detalhamento do procedimento mediante a escrita. Tradições e costumes podem também
ter começado a se mostrar intoleráveis no campo das prerrogativas de poder dos magistrados: em
um sistema político emergente, isto pode ter sido, em princípio, apenas vagamente compreendido;
com o tempo, contudo, estas prerrogativas se mostraram perigosamente amplas - daí as tentativas
de limitar as magistraturas mediante as leis escritas.

Não é recomendável abandonar o conceito de leis orais ou não escritas, uma vez que é difícil
fazê-lo de forma definitiva sem uma ideia acerca de regras vinculantes que precedessem à escrita.
É difícil encontrar uma outra forma de denominar o conjunto de costumes, normas e procedimentos
que evidentemente estão na base da descrição das cenas do escudo de Aquiles na Ilíada.38 Lá
podemos ver um conjunto de juízes ou anciões, um árbitro, o povo, e uma disputa acerca do preço
de sangue de um homicídio, mas nenhuma lei escrita. É possível presumir a existência de um
consenso básico na comunidade sobre os as penas relativas ao homicídio e os procedimentos
utilizados quando de disputas. Este deve ter sido precisamente o problema quanto à lei escrita: de
que ela frequentemente ficaria dependente da memória social e dos magistrados ou anciões a quem
caberia a responsabilidade de resolver os conflitos. Se surgem disputas mesmo quando há extensa

37
HERÓDOTO, histórias, IV. 161-2
38
HOMERO, Ilíada, 497-508.
legislação escrita, é legítimo presumir que elas ocorriam em igual ou mesmo maior quantidade
quando apenas as leis não escritas estavam em vigor.

Em seguida, pode-se constatar a existência de leis isoladas, que não eram parte de algum
corpo legislativo extenso, em várias partes da Grécia: trata-se, ao que parece, de decretos avulsos
– e sua própria fraseologia, ao referirem-se a “o que está escrito”, apenas o confirma. O que levanta
a questão: o que a cidade fez acerca do restante de sua vida pública ou religiosa? Isto porque muitas
das leis antigas, frequentemente denominadas “leis sagradas”, referem-se a aspectos da atividade
religiosa e vários fragmentos antigos fazem menção a juramentos. O direito escrito primitivo estava
bastante atado às sanções religiosas e, de fato, muitas das antigas leis da polis primitiva podiam ter
dito respeito aos deuses. Isto condiz com o que se sugeriu anteriormente acerca da prévia existência
de leis não escritas, na medida em que muito frequentemente elas fossem vistas como mantidas e
protegidas pelos deuses – como as “leis não escritas dos deuses” de Antígona. A esta imagem, pode-
se acrescentar o fato de que um grande número de legisladores, em suas cidades, criou amplos
corpos legislativos, os quais provavelmente eram escritos, mas oralmente divulgados.

Muita desta atividade legislativa é parte do desenvolvimento da cidade como um corpo


autoconsciente e politicamente autônomo que poderia efetivamente criar novas regras para a
comunidade. É certo que muitas destas comunidades arcaicas eram governadas por uma elite
privilegiada, ou aristocracia, e termos como “e fora decidido pela polis” (como se vê em Dreros)
podem não indicar um processo amplamente popular de tomada de decisões. Ao invés do resultado
de um vasto movimento popular, muitas das regras arcaicas podem bem ter sido uma tentativa de
tais elites para se assegurarem do bom comportamento entre seus pares.

Entretanto, (ainda assim) a criação de uma inscrição pública declarando-se como uma
decisão coletiva da polis (Dreros), ou a Rhetra dos Eleáticos, ou ainda que “aos habitantes de Lictos
é bom” proibir a aceitação de estrangeiros na cidade – tudo isto deve ser significativo de algum nível
de consciência acerca da possibilidade da comunidade promulgar novas leis. Talvez os baixos índices
de alfabetização importassem pouco, na medida em que alguém poderia lê-las, e protestar caso
fossem ignoradas, não é necessário considerá-las como meramente ou exclusivamente simbólicas.
Estas leis primitivas são uma primeira e significativa manifestação da polis como uma comunidade
autoconsciente e politicamente autônoma. A insistente ênfase de se ater à literalidade, em várias
destas leis, parece indicar uma real esperança de que as regras escritas iriam, de alguma forma,
consertar as coisas. De forma similar, Sólon deveria deixar Atenas por 10 anos, enquanto os
atenienses viveriam com suas leis sem poderem, no entanto, alterá-las. Se, quando de sua criação,
as leis escritas foram consideradas – corretamente ou não – como feitas para durar
indefinidamente, tal se constitui em um passo decisivo na cristalização da autonomia política da
cidade.

O status das leis escritas e não escritas entra em debate em Atenas, no final do século V, e
a própria cidade se comprometera a utilizar apenas dispositivos escritos nos tribunais a partir do
ano de 403. O que pode ser lido como uma tentativa de pôr ordem nas coisas após a derrota e a
oligarquia. É interessante que, entre tantas mudanças políticas, a cidade agarrou-se à lei escrita
como uma espécie de talismã para a boa ordem. De forma semelhante, a revisão das leis atenienses,
iniciada em 410, arrastou-se por seis anos e resultou em um código de leis gravado nas muralhas da
Stoa basileios39, e num dissídio judicial contra Nicômaco, acusado de ter “apagado algumas leis e
escrito outras”40 Muito deste processo ainda não está plenamente compreendido. Mas a revisão
das leis foi, primeiramente, um empreendimento que visava trazer ordem aos decretos e leis
atenienses que haviam permitido a coexistência de regras contraditórias – mais um exemplo de uma
tentativa de estabilizar a cidade, após revoltas políticas, por meio da organização das leis, símbolo
e baluarte da ordem. Em segundo lugar, a tentativa de codificação (se é disto que se tratava) ou foi
abandonada ou teve pouco efeito, pois não há qualquer indício na tradição, após 399, às
supostamente novas muralhas carregadas de inscrições legislativas. Isto pode ter ocorrido porque
as revisões legislativas colocaram os atenienses diante de uma situação que eles não gostavam de
enfrentar: o fato de que as leis podem mudar e que suas muito reverenciadas “leis ancestrais”
poderiam não mais ser válidas.

O que nos faz retornar, mais uma vez, à profunda reverência pelas “leis” e, em particular,
pelas leis escritas. Aristoteles faz diversas observações acerca das questões sobre se tais leis escritas
devem ser modificadas, sobre os perigos do desvanecimento do respeito a tais leis quando são
desnecessariamente modificadas e acerca da importância da epiekeia, da justiça ou, como é
frequentemente traduzida, da “equidade” ao lado da lei escrita41, uma vez que “as leis fundadas nos
costumes têm supremacia e referem-se a questões ainda mais importantes do que as leis escritas”.42
O que nos leva a concluir que a discussão sobre as leis escritas adentra o século IV. As leis escritas
eram melhores que as não escritas? Poderia um homem sábio ser mais sábio que as leis?43 Quão
precisas elas devem ser? E quando um juiz ou corpo de jurados deve considerar questões não
abrangidas pela lei? O grau pelo qual as cortes atenienses se utilizavam da epieikeia, em contraste
com a lei escrita, tem sido bastante debatido. Parece certo que considerações extralegais, vale dizer,
não estritamente abrangidas por leis diretamente relevantes ao caso, possuíam alguma influência
nos tribunais de Atenas. Entretanto, a força do apelo retórico à lei é tanta que os jurados atenienses
nunca são abertamente convidados a desconsiderar completamente os nomoi (quer dizer, os nomoi
escritos) – todos os jurados estão lá para fazer valer e apoiar os nomoi. Os atenienses continuaram
a chamar suas leis de “Leis de Sólon”, a despeito dos posteriores acréscimos e revisões; e apelos aos
desígnios do legislador ancestral possuíam ainda grande força retórica no século IV, o que
evidentemente revela uma considerável inquietação em renunciar às leis ancestrais, bem como uma
profunda nostalgia pela autoridade singular do seu grande legislador, Sólon.

39
NT.: Uma Stoa (ou estoá) consiste em um pórtico ou corredor aberto, destinado ao público, e ficavam ao
redor de mercados e outros prédios importantes. A Stoa Basileios, ou estoa do arconte basileu, era o quartel
general do basileu e do Conselho do Areópago – o principal tribunal ateniense. Foi o local onde Sócrates foi
acusado de impiedade (ἀσέβεια, ou asebeia)
40
LYSIAS, Five Speeches, (against Nichomacus), 30. NT.: Este Nicômaco fora um oficial da cidade, encarregado
de transcrever as leis aprovadas após o turbulento período que se seguiu à deposição do Conselho dos 400,
em 411. No texto legado por Lísias, um famoso logógrafo da época, sabemos que Nicômaco foi acusado de
ter forjado leis para beneficiar os oligarcas bem como de ampliar os procedimentos sacrificiais dos
julgamentos, o que resultou em dispêndio para a cidade. Por suas ações, foi condenado à morte “para servir
de exemplo aos demais magistrados que, muito embora eloquentes, são corruptos”.
41
Ver, especialmente, ARISTÓTELES, Ética a nicômaco, 1137b
42
ARISTÓTELES, Política, 1287b
43
Um argumento útil à monarquia, como Aristóteles deixa transparecer. Cf. ARISTÓTELES, Política, 1286a10.
Demóstenes cita como exemplo, de admiração e de advertência, o direito dos lócridas: uma
antiga lei lócrida – atribuída, em outro lugar (Políbio), a Zeleuco – dispunha que qualquer um que
quisesse propor novas leis deveria fazê-lo com uma corda amarrada ao redor do pescoço. Nenhuma
surpresa, portanto, com o fato de que os lócridas não tivessem criado senão uma única lei nos
últimos duzentos anos. 44

O exemplo ilustra tanto a força como a fraqueza da lei escrita na Grécia: ela proporcionava
estabilidade, permanência e importância, até mesmo sanção divina ao comando e, contudo, pela
mesma razão, inibia qualquer mudança, mesmo quando havia premente necessidade para tanto.
Muito da ambivalência dos gregos acerca da lei escrita, em relação àquelas não escritas, pode ter
surgido em virtude das primeiras frequentemente prometerem muito mais do que aquilo que
realmente podiam, na prática, oferecer.

Traduzido por João Paulo M. Araújo


Gov. Valadares, junho de 2016

44
DEMOSTHENES, Against Timocrates, 24.139. NT.: Aquele que tivesse sua proposta aprovada pela
assembleia, sobreviveria. Aos demais, restaria o enforcamento.

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