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Direitos de edigdo da obra em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela Eprrora Nova Fronreika PARricirAcots S.A. ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de da- dos ou processo similar, em: qualquer forma ou meio, seja eletronico, de fotocépia, gravacao etc.. sem a permissio do detentor do copirraite. Editora Nova Fronteira Participagdes S.A. Rua Candelaria, 60 — 7° andar — Centro — 20091-020 Rio de Janeiro — Rj — Brasil Tel.: (21) 3882-8200 — Fax: (21) 3882-8212/8313 Imagem de capa: Leon Tolst6i ao trabalho. Oleo sobre tela de Nikolay Gay, 1884, Galeria Tretyakov, Moscou. ‘As imagens deste livro encontram-se em dominio piiblico foram retiradas do banco Wikimedia Commons, com exceco das imagens nas seguintes paginas: _p.66: Wikiart / p.77: Lexicon van Boekverluchters / p.87: V&A Search and Collections / p.90: Zeno.org / p.163: myweb.rollins.edu CIP-Brasil. Catalogacao na publicagao Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ i, Leon, 1828-1910. O que éarte? / Leon Tolstéi; traducdo Bete Torii; apresentago Marcelo Backes. - 4. ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019, vil, (Clissicos de ouro) ‘Tradugao de: What is art? ISBN 978-85-209-4430-1 1. Arte- Histéria. L. Torii, Bere. Il Backes, Marcelo. TIL. Titulo. IV. Série, 19-56893 CDD 709 CDU 7(09) PreFACIO “E impossivel viver deste modo — impossivel, impossivel, impossivel.” Essa irada e ao mesmo tempo angustiada observacao é retirada de um artigo escrito por Tolst6i em 1882 (denominado “Por ocasiao do censo de Moscou”). Longe de ser uma frase de efeito deslocada do contexto em que foi formulada, resume o sentimento e 0 estado de espirito que dominaram o escritor, ensaista e pregador em boa parte de sua vida, que transparecem em muitas de suas obras, e poderia servir de subti- tulo a este ensaio O que é arte?. Terminado em 1898, 0 livro apresenta opinides de Tolstéi sobre a arte de seu tempo, as condi¢des econémicas, sociais e culturais que a geraram e suas consideracdes sobre como ela deveria ser. Uma leitura desatenta de um leitor dos nossos dias corre 0 risco de mostrar a obra como fruto de um mau fim de semana de um carola religioso, provinciano e ranzinza que, em nome de uma arte pretensa- mente popular, pura e que deve servir ao bem, joga no lixo como inttil € nociva a maior parte da produgao cultural e artistica do Ocidente. Dentro desse ponto de vista, o conhecimento desta obra poderia ser levado a efeito com a devida condescendén cronismos de todos os campos e naipes. Infelizmente, nao é tao facil assim, e O que é arte? insiste em nao se encaixar na categoria de curiosidade pitoresca e descartavel. A obra demorou 15 anos para ser concluida. Insere-se numa série de livros e tratados polémicos na qual 0 autor, com uma honestida- de intelectual consigo mesmo da qual podemos discordar, mas que nunca devemos descartar, expde ideias e pensamentos, angtistias ¢ iras na tentativa de influenciar (e, portanto, transformar) a socie- dade na qual vivia e de reafirmar, de forma radical, as conclusées a que dedicamos aos ana- O que é ante? que tinha chegado. Os sentimentos que o levaram a escrever este e outros livros também nutriram, de forma mais complexa e ambigua, suas obras artisticas mais sombrias. Datam do mesmo periodo A morte de Ivan Ilitch, Sonata a Kreutzer, Mestre e servidor e outras. So- mente na ultima de suas novelas, a serena e perfeita Hadji Murat, podemos vé-lo reconciliado com a tranquilidade do Caucaso que co- nhecera quando jovem. As polémicas campanhas de Tolst6i nas décadas de 1880 e 1890 o tornaram mundialmente famoso e lhe trouxeram hordas de discipulos e visitantes nos Ultimos anos de vida. Era, ao mesmo tempo, uma expressao da vontade de influenciar outras pessoas e ser um “mestre espiritual” e uma couraca para disfarcar sua angustia interior. A primeira experiéncia intensa dessa angustia Ihe veio de forma estranha e subita, certa noite em 1869. Ele tinha entdo 41 anos, era autor famoso (ja havia concluido Guerra e paz), feliz no casamento, pai ja de uma pequena familia, estava a caminho de Penza para comprar terras. Em 4 de setembro de 1869 ele escreveu a sua esposa: Anteontem eu passei a noite em Arzamas, e uma coisa extraordi- naria aconteceu. As duas da manha me chegou uma estranha ansie- dade, um medo, um terror como jamais experimentei. Contar-lhe-ei os detalhes mais tarde, mas nunca conheci sensagées to dolorosas, e queira Deus livrar todas as demais pessoas delas. Eu me levantei rapidamente e dei ordens para arrearem os cavalos. Enquanto faziam isso, dormi e acordei novamente me sentindo muito bem. Ontem es- ses sentimentos voltaram quando estavamos na estrada, mas muito atenuados; eu estava preparado e resisti a eles, ainda mais porque nao eram tao fortes. Hoje sinto-me bastante bem e alegre, tanto quanto é possivel longe de voce. No curso desta viagem, senti pela primeira vez quanto vocé é pré- xima de mim, vocé e as criancas. Posso ficar sozinho desde que esteja constantemente ocupado, como em Moscou, mas, se nao tiver o que fazer, sinto claramente que nao posso ficar sozinho. Em 1884, Tolstoi comegou a escrever um relato ligeiramente fic- cional dessa noite de sabito e inexplicavel terror, ao qual deu o titulo Diério de um louco. A hist6ria ficou inacabada, mas a experiéncia obvia- Leow Tousrér mente continuava a assombré-lo. “Um abismo se abrira a sua frente, 0 qual ameagava traga-lo”, escreveu o filésofo Leon Shestoy, “ele viu 0 triunfo da morte sobre a terra, viu-se como um cadaver vivo”. Essa era a “loucura” por tras de toda a sua argumentacio. Os leitores dos tiltimos escritos filoséficos e polémicos de Tolstéi, e de O que é arte? em particular, encontrarao neles muitas das caracte- tisticas de seu herdi semiautobiografico Konstantin Levin, do roman- ce Anna Karenina, terminado em 1877. A natureza absoluta e revelada co bem, a identificacao do bem com Deus, a unidade e a unanimidade ca humanidade no servico do bem — que Tolstéi veio a chamar de “verdadeiro cristianismo” — sao alguns dos pontos cruciais que unem personagem e autor. Em seus trabalhos artisticos, Tolstéi revela mais do que as conclusées: revela o que jaz por trés da luta para chegar a essas conclusées e se ater a elas — aqui, aquele inexplicavel terror, aquele senso de nulidade, a obsessdo com a morte que ele partilhava com seu herdi. Ele também mostra, talvez néo de todo inadvertida- mente, a situac¢do humana do seu “pensador”, a figura do dono de terras como um filésofo “feito em casa”, o tipo de explicador local que encontramos mais tarde nos panfletos do préprio Tolstéi. E com essa argumenta¢ao constante e a substituicao de uma crenca por outra, ele aponta para a instabilidade dessas conversées. Tolstéi se converteu momentaneamente, junto com seu herdi, e voltou-se para a comunidade da Igreja Ortodoxa. Tornou-se um cris- tao praticante. Em julho de 1877, logo depois de terminar Anna Kare- nina, fez a primeira de suas quatro visitas ao monastério de Optino, famoso na €poca por seus anciaos (startsy) e por sua traducao e publi- ca¢ao das grandes obras da espiritualidade ortodoxa oriental. (Gégol visitara Optino na década de 1850 e, em 1878, Dostoiévski fez uma peregrinacao até l4 com 0 jovem poeta e fildsofo Vladimir Soloviev.) Tolstéi se encontrou com o anciado Amvrosy, hoje santo Ambrésio, e ficou profundamente impressionado Por sua sabedoria e forga espi- ritual. Continuou a comparecer aos servicos religiosos por mais um ano, mais ou menos. De repente, em uma anotacao no diario, datada de 30 de outubro de 1879, lemos: “Somente os perseguidos estao na verdade, os paulicianos, donatistas, bogomilos e outros como eles. E completamente, pois sofreram violéncia.” Portanto, ele se colocava ao lado dos hereges, purificadores ou adversérios da I igreja (praticamente 19 O que é ante? a mesma lista de seitas é repetida com aprovacdo, vinte anos mais tar- de, em O que é arte?). Havia coisas demais nos dogmas, nos mistérios ena autoridade da Igreja que sua razao e sua consciéncia nao podiam aceitar. Mais tarde, nesse mesmo ano, pouco antes de receber a comu- nhao, ele virou as costas e saiu da igreja para nunca mais voltar. Tolstdi se referiu a essa rejeicao como sendo o momento de sua con- versio ao “verdadeiro cristianismo”. Em sua obra Minha confissdo, escri- ta em dezembro de 1879, mas deixada inacabada — e publicada somen- te em 191] —, descreveu seu estado espiritual em termos angustiados e deu razées para seu subito rompimento com a Igreja. Em mar¢o do ano seguinte, ele escreveu uma Critica da teologia dogmatica, o primeiro de seus ataques a suposta perversao da verdade crista pela Igreja. Comegou entao a trabalhar em uma Combinagiio e tradugao dos quatro Evangelhos, sua versao pessoal do Novo Testamento, purgada das refe- réncias a divindade de Cristo, a milagres, ao sobrenatural, a redengao, imortalidade — todas as coisas que ele considerava adicées irracio- nais e perniciosas ao ensinamento de Cristo. Essa obra 0 ocupou es- poradicamente por varios anos. Voltando a Optino no vero de 1881, ele apresentou suas novas visdes ao anciao Amvrosy, denunciando a Igteja e discutindo certos pontos dos Evangelhos, ¢ dessa vez saiu desapontado com a “fé cega” do anciao. Na época, ele estava esbogan- do uma explanagao completa do “verdadeiro cristianismo”, que foi publicada em 1844 com 0 titulo O que é minha fé?. E estava comecando a atrair discipulos. O castigador da Igreja logo se tornou também castigador do Estado e da sociedade. Isso resultou de seu retorno a pureza do Evangelho, mas também de sua mudanga, em 1882, de sua propriedade rural em Yasnaya Polyana para Moscou, onde se estabeleceu com relutancia, com sua familia, para propiciar a educagao dos filhos e acesso a vida social. La, pela primeira vez, ele se conscientizou dos horrores da po- breza urbana. Encontrou os sem-teto em abrigos de caridade, durante seu trabalho para 0 censo de Moscou, e sentiu que era “impossivel, imposstvel, impossivel” que os ricos vivessem da forma como viviam, em face de tal miséria e desesperanga. Ele deu dinheiro a algumas pessoas, mas logo verificou que caridade pessoal nao era suficiente. Usou a oportunidade para atacar com violéncia a sociedade e sua pré- pria classe, em seu artigo sobre o censo de Moscou e em sua versio Leow Toustér ampliada, O que, entéo, deve ser feito?, que foi publicada em 1886. Esse trabalho foi seguido por Igrejae Estado (1891) e, depois, pela expresso mais completa de sua mensagem ao tempo social e espiritual: O Reino de Deus esté dentro de vocé (1894). Essencialmente, a doutrina de Tolstéi ¢ uma forma de anarquismo cristo, baseada no principio do amor fraterno eem certos preceitos do Sermao da Montanha: nao ser colérico; nao cometer adultério; nao fa- zer juramentos; nao oferecer resisténcia ao mal; amar os inimigos (ver Mateus, 5:21-43). Com esse extrato dos Evangelhos, ele combinava a visao geral de um liberal do século XIX e, especificamente, a visio da historia como processo de evolucao moral das massas e declinio dos governos. O bem, acreditava ele, conduziria afinal a humanidade a uma sociedade agraria, igualitaria, livre de Estados, composta de vegetarianos abstémios e nao fumantes que se vestiriam como cam- Pponeses e praticariam a castidade antes e depois do casamento. Es- se seria o Reino de Deus na Terra. A figura que Tolst6i compés para si mesmo, ou de si mesmo, tem as caracteristicas tradicionais do sectério — as alegacdes de pureza e verdade em sua doutrina, que vém de uma relacao direta com Deus negacao de toda autoridade além de Deus e de toda responsabilidade perante outro que nao Deus; a rejeicao de todas as formas de ritual, sacramento, simbolismo, media¢ao; a condenagao do luxo, da desi- gualdade e de outras ofensas sociais; a chamada a uma vida simples e de abstencGes; a ideia maniqueista de que a carne e a matéria em geral sio mas. Entretanto, e de forma que nao chega a surpreender, possui também alguns tragos dos niilistas russos da década de 1860. Ha nele o moralismo e o racionalismo pesado dos niilistas, seu modo desafiador, seu estilo de prosa deliberadamente cru e enfatico. Seu tratamento polémico da questao da arte, em particular, tem muito em comum com a critica niilista. Didatismo e despoetiza¢ao, por exemplo, também reinam livres em O que é arte?, que é outro “desafio langado a todos os homens instrui- dos”. E aqui Tolstéi vai mais longe do que os niilistas tinham ousado ir. Ele nega mais. Condena nao apenas Pushkin, mas Shakespeare, Dante, Goethe, Rafael, Michelangelo, Bach, Beethoven — e os seus préprios romances. O que 6 ante? Como exemplo de boa arte, cita uma histéria anénima sobre uma galinha, o canto dos camponeses de sua propriedade, acompanhado pelas batidas dos alfanjes, as mais sentimentais pinturas de género, maganetas de porta, bonecas chinesas. Ha provocacao deliberada nis- so tudo, mas também ha um tipo de impoténcia légica, como se ele fosse forcado a ir para onde seus deménios o levavam. O principio basico de Tolstdi, colocado em italico na quinta parte de O que é arte?, reflete seu pensamento polémico sobre o assunto: A arte é a atividade humana que consiste em um homem comu- nicar conscientemente a outros, por certos sinais exteriores, os sen- timentos que vivenciou, ¢ os outros serem contaminados por esses sentimentos e também os experimentar. A contaminacio é 0 critério de Tolst6i para a arte, qualquer que seja a importancia dos sentimentos que ela comunica. A boa arte, ent&o, é a que comunica aos outros a vivéncia pelo artista dos senti- mentos do bem, de forma que eles sejam contaminados pelo mesmo sentimento. Na sétima parte do livro, Tolstéi define o bem em contra- posi¢ao ao belo: O bem é 0 eterno, o objetivo mais alto de nossa vida. Nao importa como 0 entendamos, nossa vida nao é senao um esforco em direcao ao bem — ou seja, em diregao a Deus. O bem é, de fato, um conceito fundamental que metafisicamente constitui a esséncia da nossa consciéncia, um conceito indefinivel pela razao. © bem é aquilo que ninguém pode definir, mas que define tudo o mais. Mas o belo, sc nao quisermos nos satisfazer com palavras, mas, sim, falar do que entendemos — o belo nao é mais do que aquilo que nos é agradavel. -. Quanto mais nos damos a beleza, mais distantes estamos do bem. Eu sei que a resposta costumeira a isso ¢ que existe uma beleza mo- ral e espiritual, mas tal alegacao é somente um jogo de palavras, poi dizendo beleza espiritual ou moral nao queremos dizer senao o bem. “~ Leon Totst61 Em contraposicao aos icones e simbolos, a razao de Tolstéi rejei- tava, acima de tudo, a estrutura mistica da realidade encarnada no que ele chamava “cristianismo da Igreja”. Ele recusava a possibilidade dos sacramentos, que sao simbolos no sentido mais real. E na arte, também, ele reservava seu maior desdém para os simbolistas, os poe- tas franceses dessa escola e seus mestres, Baudelaire e Verlaine, E ver- dade que os simbolos nao podem ser criados de Propésito; eles sio muito poucos e sao dadivas, nao criagdes humanas. Ha, portanto, algo congenitamente absurdo em ser um “simbolista”. Mas quem foi mais consciente desse absurdo do que Baudelaire? Quem, mais do que ele, compreendia o papel ambiguo que o artista desempenhava na vida moderna? Os simbolistas estavam cientes da separacao dos “temas”, da dissolug4o do simbolo e de que essa dissolugao nao alterava a es- trutura mistica da realidade, mas causava uma “pseudometamorfose” €m nossa percepgao dela. Baudelaire retrata 0 poeta como um pecador que, em suas criacGes negativas, mantém aberto o espaco do simbolo e quase reinventa sua unicidade perdida. Mas somente “na arte”, é claro. Tolstéi, por sua vez, via o artista como um moldador da propria vida, como um “professor dos homens” e um “lider” no movimento a frente da humanidade, em direcao do bem. Para ele, as Categorias “poeta” e “pecador” eram mutuamente excludentes. Ele queria puri- ficar a arte de todos os sentimentos nao bons, de todos os mistérios falsos e escravizantes, de tudo que € ambiguo, irracional, contradi- torio. Ele queria que a arte progredisse rumo a qué? Mais cantoria e Pancadas dos alfanjes? Mais histdrias sobre galinhas? A intensidade do ataque e a pobreza do resultado sugerem que Tolst6i tinha outros motivos para sua polémica, além do interesse na questio que lhe ser- ve de titulo, Dante, que Tolstéi rejeita por ser falso e desatualizado, também se Mostrou como um pecador, um homem perdido numa floresta escura; sua visao lhe veio nessa escuridao. Tolst6i nao se permite tal franqueza, Como escreveu Leon Shestov, ele “nao fala com seus discipulos fora da escola”; partilha com eles apenas “conclusdes” e esconde deles o trabalho angustiado e doloroso da alma, que considera exclusivamente “assunto do mestre”. O neopagao Nietzsche é um dos alvos de Tolstéi em O que é arte?. E, no entanto, Shestov esta certo quando diz que a frase de Tolstéi, “Deus é o bem”, nao é diferente da frase de Nietzsche, Pon O que’ ante? “Deus esta morto”. O céu de Tolstéi é vazio. Ere ‘a isso que ele escondia atrés do “brilhante edificio de suas pregacées”. E 0 abismo da noite em Arzamas, e esta dentro do proprio profeta. Se ele conseguiu oculta-lo de sel ‘Us seguidores, nunca conseguiu oculta-lo dos proprios olhos. Cansado de homenagens, avido de solidao, abandonou a familia e seus discipulos. O ultimo ato na vida desse homem dilacerado, o inimigo declara- do da Igreja que, em 1901, tinha final- mente conseguido a excomunhio, foi uma iiltima viagem ao monastério de Optino. Na noite de 27 de outubro de 1910, com 82 anos, ele saiu em bus- ca de “isolamento e ncio”. Assim explicou no bilhete que deixou para sua esposa. O que mais ele poderia estar buscando, nao sabemos. Morreu no caminho, na estacdo de Astapov, Tolstéi em vestes camponesas (1901), Ilya Repin (1844-1930). Obra em exposi¢ao, no State Russian Museum. Capftuto XIX As pessoas falam da arte do futuro referindo-se a algo novo, especial- mente refinado, que supostamente se desenvolvera a partir da arte de uma sé classe da sociedade, que hoje é considerada a arte mais eleva- da. Mas essa arte do futuro nao pode ser e nao serd. A arte exclusiva das classes superiores do mundo cristao chegou a um beco sem sada, Nao ha como ir mais longe na rota que ela seguiu. Essa arte, que se separou um dia da sua principal exigéncia (a de ser orientada pela consciéncia religiosa), tornando-se cada vez mais exclusiva €, portan- to, cada vez mais pervertida, nao chegou a nada. A arte do futuro nao sera uma continuagio da de hoje, mas emergira sobre novos princi- pios, completamente diferentes, sem nada em comum com aqueles pelos quais se orienta a atual arte moderna da alta classe. A arte do futuro — isto é, aquela parte que sera escolhida da arte em geral espalhada pela humanidade — consistira ndo na transmissio de sentimentos acessiveis somente a alguns contemplados das classes ricas, como acontece agora, mas sera aquela que realiza a mais alta consciéncia religiosadas pessoas do nosso tempo. Somenteessas serio consideradas obras de arte que transmitem sentimentos que atraem as pessoas em dire¢ao a unio fraterna, ou sentimentos que sejam capazes de unir a todos. Apenas essa arte ser escolhida, permitida, aprovada e disseminada. Mas a que transmite sentimentos oriun- dos de doutrinas religiosas obsoletas, ultrapassadas — arte da Igre ja, arte patristica, sensual, arte que transmite sentimentos de medo supersticioso, orgulho, vaidade e admiracao de herbis, que excita a sensualidade ou o amor exclusivo da propria na¢ao —, sera conside- rada ruim e prejudicial, e sera condenada e desprezada pela opiniao publica. Todo o resto da arte, que transmite sentimentos acessiveis somente a alguns, sera considerado desimportante e nao sera nem condenado nem aprovado. E, no geral, nao ser4 uma classe restrita © Que £ ante? que apreciara a arte, mas todo o povo; de tal forma que, para uma obra Set reconhecida como boa e ser aprovada e jisseminada, ela tera que Satisfazer as exigéncias nao de alguns eleitos que vivem em condigdes idénticas e, frequentemente, antinaturais, mas de todo o povo, toda a grande massa que vive da condi¢ao natural de seu trabalho. E 0s artistas que produzem arte nio sero mais, como hoje, so- mente alguns das classes privilegiadas, ou proximos a elas, escolhidos de uma Pequena porcao da populacéo, mas todos os representantes talentosos do povo que mostrem uma capacidade para a atividade ar- tistica e uma inclinacdo paraela. A atividade artistica ser entao acessivel a todos. Ela se tornara compreensivel a cada pessoa simples Porque, primeiro, a arte do fu- turo nao exigira aquela técnica complexa que desfigura as obras de Nossa época e requer grande esforco e tempo para ser assimilada, mas, a0 contrario, exigird clareza, simplicidade e brevidade — condic6es adquiridas pela educagao do gosto e nao por exercicios mecanicos. Em segundo lugar, a atividade artistica se tornara acessivel a todos Porque, em vez de as escolas profissionais existentes, frequentadas Por poucos, se ocuparem com a educa¢ao artistica, sera nas escolas Plblicas primérias que todos estudardo miisica e pintura (canto e de- Senho), juntamente com leitura e escrita, de forma que cada um, ao adquirir os primeiros principios da pintura e da musica, possa, caso sinta uma inclinagao por uma dessas artes, aperfeicoar-se nela; e, em terceiro lugar, Porque todas as forcas hoje gastas em arte falsa serao empregadas em difundir a verdadeira arte por todo 0 povo. Supoe-se que, a menos que haja escolas especiais, a técnica da arte se enfraquecera. Ela sem duvida se enfraquecera se entendemos por técnica essas complicacées que sao vistas hoje como méritos. Mas se entendermos por técnica a clareza, beleza, simplicidade e economia, ela, além de se fortalecer, como mostra toda a arte popular, vai se aper- feicoar cem vezes mais, mesmo que nao haja escolas profissionais, mesmo que os principios do desenho e da musica nao sejam ensina- dos nas escolas piiblicas, Ela se aperfeicoaré porque todos os génios hoje escondidos entre o Povo participarao da arte e, sem necessitar de complicado treinamento técnico, como agora, e tendo exemplos de verdadeira arte diante deles, seguirao pelos caminhos da arte genuina. Leow Toisro: Les Halles (1889), Léon Augustin Lhermitte (1844-1925). Mesmo hoje, o verdadeiro artista no aprende na escola, mas na vida, pelos exemplos dos grandes mestres. E quando as pessoas mais talen- tosas do povo forem participantes da arte e houver mais desses exem- plos, estes forem mais e mais acessiveis, o treinamento de escola, do qual os futuros artistas estarao privados, sera cem vezes compensado pelo treinamento que se vai obter dos numerosos exemplos de boa arte difundidos na sociedade. Essa seré uma diferenga entre a arte do futuro e a do presente. Outra diferenga: a arte do futuro nao sera produzida por artistas pro- fissionais que sio remunerados e que nao se ocupam com nada mais além disso. A arte do futuro sera produzida por todos, que se ocupa- rao dela quando sentirem necessidade dessa atividade. Pensa-se, na nossa sociedade, que um artista se empenhara mais se estiver materialmente seguro. Essa opiniao prova mais uma vez e plenamente, se ainda ha necessidade de prova-lo, que o que é consi- derado arte entre nés nao é arte, mas meramente um simulacro dela. Est certo que a diviso do trabalho é muito vantajosa para a produgao de botas ou de pao, que um sapateiro ou um padeiro que nao precise fazer o jantar ou cortar lenha para si mesmo fard mais botas ou pao 205 Oquet arte? do que se ele tiver que providenciar seu proprio jantar e lenha para o fogo. Porém, a arte ndo é um oficio, ¢a transmissao de um sentimento experimentado pelo artista. E um sentimento s6 pode nascer em um homem se este vive a vida multifacetada que é natural e adequada para 98 seres humanos. E eis 0 motivo por que dar aos artistas seguranca uanto a suas necessidades materiais é a condic4o mais prejudicial Para a produtividade artistica: porque ela o libera da condi¢ao que é Propria a todos os homens, a de lutar com a natureza para sustentar Sua vida e a de outras pessoas, e, portant, o priva da oportunidade e da possibilidade de experimentar sentimentos importantes préprios dos seres humanos. Nenhuma situagao é mais prejudicial para a pro- dutividade artistica do que ade total seguranca e luxo — situacao na qual geralmente vivem os artistas em nossa sociedade. O artista do futuro viveré tal como qualquer ser humano, ganhan- do seu sustento em algum tipo de trabalho. Ele lutara para dar o fru- to daquela suprema forca espiritual que passa através dele ao maior numero possivel de pessoas, porque essa transmissao é sua alegriae Sua recompensa. O artista do futuro, cuja felicidade consistira na mais ampla disseminacao de suas obras, nem mesmo entender4 como é Possivel fazer seu trabalho em troca de determinado pagamento. Até que os vendilhées sejam expulsos, o templo da arte nao sera um templo.' A arte do futuro os expulsara. Assim, o contetido da arte do futuro, como imagino, sera completa- mente diferente do de hoje. Nao consistira na expressdo de sentimen- tos exclusivos — vaidade, tédio, saciedade e sensualidade em todas as formas possiveis, acessiveis ¢ interessantes apenas para aqueles que Se liberaram do trabalho proprio dos seres humanos —, mas, sim, na €xpressao de sentimentos experimentados por um homem comum, Sentimentos os quais vém da consciéncia religiosa da época — acess{- veis a todos sem excegao. Para as pessoas do nosso circulo, que nao conhecem os senti- Mentos que deverao compor o contetido da arte do futuro, parece ue esse contetido é muito pobre em comparacao com as sutilezas da arte exclusiva com a qual estao ocupadas hoje. “O que pode ser expressado de novo na esfera dos sentimentos cristaos de amor ao Proximo? Os sentimentos acessiveis a todos sao tao insignificantes e monétonos”, pensam eles. E, no entanto, em nossa época, os unicos 206 Leon Tousrér sentimentos que podem realmente ser novos sao os religiosos cris- tios ou aqueles que sao acessiveis a todos. Os sentimentos que vem da consciéncia religiosa de nosso tempo sao infinitamente novos e variados; sé que nao, como pensam alguns, no sentido de retratar Cristo e episédios dos Evangelhos, ou repetir de uma nova forma as verdades cristas de unidade, fraternidade, igualdade e amor, mas no sentido de que todos os fendmenos mais antigos ¢ ordinarios da vida, conhecidos ha muito por todos os lados, evocam os sentimen- tos mais novos, inesperados e tocantes, assim que uma pessoa 0s considera de um ponto de vista cristao. O que pode ser mais antigo do que as relagdes entre esposos, de pais com filhos, de filhos com pais, as relag6es das pessoas com seus compatriotas, com estrangeiros, com ataque, defesa, propriedade, ter- ra, animais? Mas, tao logo se olham esses fenémenos de um ponto de vista cristo, imediatamente se levantam sentimentos mais novos, complexos, tocantes e infinitamente variados. Da mesma maneira, nao hd um estreitamento, mas uma ampliagao da Area de contetido para a arte do futuro que ira transmitir os senti- mentos mais simples e cotidianos, acessiveis a todos. Na nossa arte, 0 que é considerado digno de ser transmitido é somente a expressao de sentimentos préprios de uma determinada classe, € isso com a con- digo de que seja transmitida da maneira mais refinada, inacessivel & maioria; mas todo o enorme campo da arte infantil popular — piadas, provérbios, adivinhagées, cangGes, dangas, jogos infantis, mimica — nao é considerado um objeto digno da arte. O artista do futuro entendera que inventar uma historinha, uma canc4o tocante, uma cangoneta, uma charada divertida, uma brinca- deira engragada, fazer um desenho que dara alegria a dezenas de ge- ragdes ou a milhées de criancas e adultos é incomparavelmente mais importante e frutifero do que escrever um romance ou uma sinfonia ou pintar um quadro que distraira por curto tempo alguns membros da classe rica e depois sera esquecido para sempre. O campo dess< arte dos sentimentos simples e acessiveis ¢ enorme e até agora quas¢ intocado. Assim, a arte do futuro nao sera empobrecida. Ao contrario, ser: infinitamente enriquecida de contetido. E dessa mesma maneira, ¢ forma da arte do futuro nao sera inferior 4 forma da arte de hoje 20 O que # ante? sera, sim, incomparavelmente superior — prevalecera, em detrimento da técnica refinada e complexa, 0 talento do artista em transmitir de forma breve, simples e clara, sem supérfluos, o sentimento que expe- rimentou. Lembro-me de haver conversado certa vez com um astrénomo fa- moso que dava palestras ptiblicas sobre a analise espectral das estrelas da Via Lactea e de lhe dizer que bom seria se ele, com seu conheci- mento e competéncia, desse uma palestra sobre cosmografia, na qual falasse somente dos movimentos mais conhecidos da Terra, porque entre Os seus ouvintes certamente havia muitas pessoas, especialmen- te mulheres, que nao sabiam bem por que havia dia e noite, verao e inverno. O sabio astrénomo replicou com um sorriso: “Sim, seria uma coisa muito boa, mas é muito dificil. Discursar sobre a andlise espec- tal das estrelas da Via Lactea é muito mais facil.” Ocorre o mesmo na arte: escrever um longo poema sobre o tempo de Cleépatra, ou pintar um quadro de Nero incendiando Roma, ou compor uma sinfonia no espirito de Brahms ou Richard Strauss, ou uma 6pera no espirito de Wagner, é muito mais facil do que contar uma histéria simples sem nada de supérfluo e, a0 mesmo tempo, de um modo tal que transmita os sentimentos do narrador, ou de fazer um desenho a lapis que emocione 0 observador ou o faca rir, ou escrever quatro com- passos de uma melodia simples e clara que transmita um estado de espirito e seja lembrada pelos que a ouviram. “E impossivel para nds, agora, com o nosso desenvolvimento, voltar aos meios primitivos”, diz o artista dos nossos dias. “E impossivel para nés escrever histérias como a de José, o Sonhador, ou a Odisseia, fazer estatuas como a Vénus de Milo, escrever miisicas como as cangées populares.” E de fato é impossivel para os artistas da nossa época, mas nao para os do futuro, que nao conhecerd toda a depravacao do progres- so técnico que oculta a auséncia de contetido, e que, por nao ser um profissional e nao ter remuneracao por suas atividades, produzira arte somente quando sentir uma necessidade interior irrepresavel. Assim, a arte do futuro sera completamente diferente daquilo que hoje é considerado arte, tanto em contetido quanto em forma. Ela conterd somente aqueles sentimentos que atraem as pessoas em di- re¢ao a uniao. Quanto a forma, ela sera acessivel a todos. E, portanto, o ideal de perfeicao no futuro nao sera a exclusividade de um senti- 208 mento compreensivel somente para alguns, mas, a0 contrario, sera a sua universalidade. Esse ideal nao sera embaragamento, obscuridade e complexidade, como hoje, mas brevidade, clareza e simplicidade de expressao. E, apenas quando a arte se tornar assim, ela cessara de dis- trair e corromper as pessoas, exigindo o desperdicio de suas melhores forcas, como faz agora, e se tornard o que deveria ser — um meio de transferir a consciéncia religiosa crista do campo da mente e da razao para o campo do sentimento, colocando desse modo as pessoas mais préximas, na pratica, na propria vida, da perfeicao e da unidade apon- tades para elas pela consciéncia religiosa. Capfruto XX Conciusio Fiz 0 melhor que pude com este trabalho sobre arte, um assunto que me é préximo e do qual me ocupei durante 15 anos. Ao dizer isso, nao quero dar a entender que passei 15 anos escrevendo-o. E que, quando comecei a escrever sobre arte, 15 anos atras, pensei que a tarefa que havia empreendido seria terminada sem interrup¢des; ™as ficou evidente que meus pensamentos sobre esse tema ainda €stavam pouco claros, que nao podia exp6-los de uma forma que me satisfizesse. Desde entao, refleti bastante e comecei, varias ve- 2€S, a escrever incessantemente sobre o assunto. Porém, a cada vez, Sentia-me incapaz de chegar a uma conclusao satisfatoria e abando- nava o trabalho. Agora, ao termind-lo, e por mais pobremente que 0 tenha feito, espero que meu pensamento bisico sobre alguns pon- tos abordados — 0 caminho falso que a arte esta seguindo, a cau- Sa disso e o que constitui o verdadeiro propésito da arte — esteja Correto. E, portanto, este trabalho, embora longe de estar completo, uma vez que precisa ainda de muitas explicagdes e adicdes, nao sera €m vao — a arte cedo ou tarde abandonard o caminho falso que to- mou. Mas, para que isso aconteca e para que a arte tome uma nova diregao, € necessirio que outra atividade espiritual humana — a ciéncia, da qual a arte sempre foi intimamente dependente — tam- bém abandone 0 caminho falso em que se acha. A ciéncia e a arte estdo tao intimamente ligadas entre si como os Pulm6es e 0 coragao, de tal forma que se um 6rgao esta pervertido, o Outro nao consegue funcionar adequadamente. A verdadeira ciéncia estuda e apresenta a consciéncia humana as verdades e 0 conhecimento que sao considerados mais importantes Pelo povo de determinado periodo e sociedade. A arte transfere essas Tolstdi em seu gabinete de trabalho (...),V.N. Meshkov (1868-1946). verdades do campo do conhecimento para 0 campo do sentimento. Portanto, se o caminho que a ciéncia segue é falso, assim também sera ocaminho da arte. A ciéncia e a arte sao como aquelas barcacas de an- coretes, ou “maquinas”, como eram chamadas, que percorriam nossos rios. Como os barcos que carregam a ancora para diante e a derrubam, a ciéncia prepara para o movimento, cuja direcao é dada pela religiao, enquanto a arte é como 0 sarilho manejado da barcaca, que, ao puxar a barcaga para a Ancora, realiza o movimento ele mesmo. E, assim, a atividade falsa da ciéncia inevitavelmente traz uma atividade igual- mente falsa da arte. Como a arte em geral é a transmissao de varios tipos de sentimen- tos — e no entanto chamamos de arte, no sentido estrito da palavra, somente aquilo que transmite sentimentos que reconhecemos como importantes —, assim também a ciéncia em geral é a transmissao de todo o conhecimento possivel — mas chamamos de ciéncia, no sen- tido estrito da palavra, somente 0 que transmite conhecimento que reconhecemos como importante. O grau de importancia tanto dos sentimentos transmitidos pela arte como do conhecimento transmitido pela ciéncia ¢ determinado pela consciéncia religiosa de determinado tempo e sociedade — isto é, a compreensao geral, entre as pessoas daquela época e daquela soci dade, do propésito da vida. 211 O que # ante? Aquilo que contribui mais do que tudo para o cumprimento desse propésito é estudado com afinco e € considerado a principal ciéncia; aquilo que contribui menos é considerado menos importante; aquilo que nao contribui em absoluto para o cumprimento do propésito da vida humana nio é estudado ou, se for, nao é considerado ciéncia Assim foi sempre e assim devia ser agora, porque essa é a propriedade do conhecimento humano e da vida humana. Mas a ciéncia das classes superiores da nossa época, que, além de nao reconhecer nenhuma re- ligiao, considera todas como supersti¢4o, nao podia e nao pode seguir esse propésito. Os homens da ciéncia da nossa época sustentam que estudam tudo igualmente, mas como esse tudo implica um ntimero infinito de ob- jetos e é impossivel estudar tudo igualmente, isso sé é mantido em teoria. Na realidade, o que é estudado nao é tudo, mas somente aquilo que, por um lado, é mais necessario e, por outro lado, é mais agradavel para aqueles que se ocupam da ciéncia. E, para os homens de ciéncia que pertencem a alta classe, o que é mais necessario é manter a ordem na qual desfruram de privilégios; e 0 que é mais agradivel é 0 que satisfaz a curiosidade ociosa, ndo exige grande esfor¢go mental e pode ter aplicacdes praticas. E, portanto, uma area da ciéncia que inclui a teologia, a filosofia aplicada 4 ordem existente, e histéria e economia politica da mesma es- pécie, preocupa-se predominantemente em provar que a ordem da vida é exatamente a que deveria existir, que ela veio a luz e continua a fun- damentar-se em leis imutaveis e nao sujeitas 4 vontade humana e que, assim, qualquer tentativa de viold-la é errada e inutil. A outra 4rea —a ciéncia experimental, que inclui matematica, astronomia, quimica, fisi- ca, botanica e todas as ciéncias naturais — est4 ocupada somente com 0 que nao tem relacao direta com a vida humana, com o que é curioso e pode ter aplicagGes lucrativas para a vida das classes superiores. E para justificar a escolha de objetos de estudo, feita pelos homens de ciéncia da nossa época de acordo com a sua posi¢ao, eles inventaram uma teo- ria da ciéncia pela ciéncia, exatamente como a teoria da arte pela arte. Tal como na teoria da arte pela arte, em que parece que estar ocupa- do com todos aqueles objetos que nos agradam é arte, assim também, de acordo com a teoria da ciéncia pela ciéncia, 0 estudo de objetos que nos interessam é ciéncia. 14 Leon Toisror De modo que uma parte da ciéncia, em vez de estudar como as pessoas deveriam viver para cumprir o seu destino, demonstra a lega- lidade e a imutabilidade da ordem de vida existente, que é md e falsa; a outra parte — a ciéncia experimental — se ocupa com questées de simples curiosidade ou com avangos técnicos. A primeira area da ciéncia é prejudicial nao somente pelo fato de que confunde os conceitos e fornece solug6es falsas, mas também porque toma o lugar que deveria ser ocupado pela verdadeira ciéncia. Ela é Prejudicial porque todo homem, para comecar a estudar as questdes mais importantes da vida, necessita primeiro refutar as estruturas de falsidade que foram acumuladas ao longo das eras e que s40 mantidas Por todos os poderes de inventividade da mente com respeito a cada uma das questées mais essenciais da vida. E a segunda area — exatamente aquela de que a ciéncia moderna é tao orgulhosa e que é vista por muitos como a nica ciéncia genuina — € prejudicial porque desvia a atencao das pessoas de assuntos real- mente importantes para outros insignificantes; e, além disso, porque, devido a falsa ordem das coisas que é justificada e mantida pela pri- meira area da ciéncia, a maior parte das conquistas técnicas da ciéncia experimental nao visa ao beneficio da humanidade, mas ao seu mal. E somente para os que dedicaram sua vida a esses estudos que Parece que todas as descobertas feitas no campo da ciéncia natural sdo muito importantes e titeis. Isso acontece apenas porque eles nao olham em torno de si e nao veem o que é realmente importante. Bas- taria que se afastassem do microscépio psicolégico com o qual exa- minam os objetos que estudam e olhassem em torno para ver quao sem valor é todo aquele conhecimento que para eles é motivo de tanto orgulho. Nao estou falando da geometria imaginaria,' andlise espec- tral da Via Lactea, forma dos atomos, tamanho do cranio das pessoas da Idade da Pedra e ninharias do género, mas do conhecimento de micro-organismos, raios X e assim por diante — comparado com 0 conhecimento que negligenciamos e deixamos ser pervertido por professores de teologia, jurisprudéncia, economia politica e ciéncia financeira. Basta olhar em volta para perceber que a atividade prépria da ciéncia genuina nao é 0 estudo de algo pelo qual acidentalmente Nos tornamos interessados, mas de como a vida humana devia ser organizada — as questoes de religio, moralidade, vida social, sem a one O que & ante? resolugdo das quais todo o nosso conhecimento da natureza é preju- dicial e sem valor. Congratulamo-nos e sentimos orgulho porque a nossa ciéncia permi- te explorar a energia de uma queda-d’Agua e fazer essa forca funcionar em fabricas, ou porque furamos tuneis através de montanhas. Mas © problema é que fazemos essa energia da cachoeira trabalhar nao para o beneficio do povo, mas para 0 enriquecimento dos capitalistas que produzem objetos de luxo ou dispositivos para a destruicao de seres humanos. A mesma dinamite com que explodimos montanhas, para fazer tuneis através delas, usamos também na guerra, a qual nao apenas ndo queremos renunciar, como consideramos necessaria e € algo para o qual estamos constantemente nos preparando. Se sabemos agora fazer inoculagGes preventivas contra a difteria, encontrar uma agulha num corpo por meio dos raios X, endireitar uma corcunda, curar sifilis, fazer cirurgias extraordinarias, nao fi- cariamos tao orgulhosos dessas realizacGes, ainda que sejam indis- cutiveis, se entendéssemos plenamente o verdadeiro propésito da ciéncia genuina. Se apenas um décimo das forcas hoje gastas em ob- jetos de mera curiosidade e aplicacao pratica fosse gasto na ciéncia verdadeira, na organizacdo da vida das pessoas, a maior parte daque- les que agora est4o doentes nao teria adoecido e é bom destacar que apenas uma parcela minima desses doentes é curada hoje em clinicas e hospitais. Nao haveria criancas subnutridas e corcundas crescendo em fabricas, nao haveria cinquenta por cento de mortalidade infantil. Geracées inteiras nao se tornariam degeneradas, nao haveria prosti- tuicao, sifilis, matanca de centenas de milhares de pessoas na guerra, horrores de insanidade e de sofrimento que a ciéncia dos dias de hoje considera condi¢ao necessaria da vida humana. Pervertemos de tal modo o conceito de ciéncia que as pessoas da nossa época acham esquisita a men¢ao de ciéncias que propiciariam o fim da mortalidade infantil, prostitui¢ao, sifilis, degeneracao de ge- races inteiras, assassinato em massa de pessoas. Parece-nos que a ciéncia s6 é ciéncia quando um homem em um laboratério derrama um liquido de um frasco em outro, decomp6e 0 espectro, abre sapos € cobaias, ou produz, em um jargao cientifico especial, alguns obscuros rendilhados teolégicos, filoséficos, historicos, juridicos ou politico- 216 Leow Toust61 -econdmicos de frases convencionais, semi-inteligiveis para ele mes- mo, que tém por objetivo mostrar que as coisas sao como deviam ser. Contudo, a ciéncia genuina — uma ciéncia que mereceria de fato © respeito hoje exigido pelos representantes de uma parte, a menos importante, da ciéncia — nao consiste nisso, mas em descobrir em que se deve ou nao acreditar. Consiste ainda em descobrir como a vida da humanidade deve ou nao deve ser organizada; como harmonizar as relagdes sexuais, como educar criangas, como usar a terra, como cultiva-la sem oprimir outras pessoas, como se relacionar com estran- geiros, como se relacionar com os animais e em muitos outros pontos importantes para a vida humana. Assim a ciéncia verdadeira sempre foi, e assim ela deve ser. E essa ciéncia esta emergindo em nossa época. Se, por um lado, ela é rejei- tada por todos os cientistas que defendem a ordem de vida existente, Por outro, é considerada vazia e inutil — uma ciéncia nao cientifica — por aqueles que estao envolvidos com a ciéncia experimental. Tém sido publicados, por exemplo, muitos livros e tratados pro- vando a obsolescéncia e o absurdo do fanatismo religioso e a necessi- dade de estabelecer uma razoavel visdo religiosa de mundo, que cor- responda a nossa época. No entanto, muitos tedlogos refutam essas obras, afiando suas faculdades mentais repetidamente para manter e justificar superstigdes ha muito ultrapassadas. Ou um tratado é di vulgado mostrando que uma das principais razGes para a pobreza do povo é que o proletariado do Ocidente nao tem terra. Parece-nos que a ciéncia genuina deveria receber bem esse tratado e desenvolver ou- tras conclus6es a partir dele. Mas a ciéncia da nossa época nao faz nada disso; ao contrario, e a economia politica o prova — a saber, que a propriedade de terras, assim como qualquer outra, deve ser mais € mais concentrada nas maos de uns poucos, como é afirmado pelo marxismo contemporaneo. Da mesma forma. parece-nos que seria fun¢ao da ciéncia genuina provar a irracionalidade e falta de proveito da guerra e da pena capital, ou a desumanidade e perniciosidade da Prostitui¢ao, ou a insensatez, dano e imoralidade de usar drogas ou alimentar-se de animais, ou a irracionalidade, iniquidade e atraso do fanatismo patridtico. E existem trabalhos que falam sobre tudo isso, mas eles nio sao considerados cientificos — enquanto sao trabalhos que provam que todos esses fendmenos devem existir, ou que se de- 217 O que é ante? dicam a questdes de mera curi iosidade que nio tém qualquer relacdo com a vida humana, O desvio da ciéncia contemporanea em relacdo ao seu verdadeiro Propésito Pode ser visto com chocani homens de ciéncia e: tados, mas, sim, Esses ideais da moda que di mil anos, mas ¢, Sérios. Alguns obtido da ter: Preparado em humano sera naturais, ite clareza nos ideais que alguns stabeleceram para si mesmos e que nao sao rejei- aceitos pela maioria dos cientistas, S40 manifestados nao apenas em esttipidos livros escrevem como sera o mundo daqui a mil ou trés ‘ambém por socidlogos que se consideram cientistas desses ideais sio que o alimento, em lugar de ser a, pela agricultura e pela criacao de animais, sera laboratorios por meios quimicos e que o trabalho ‘ubstitufdo quase totalmente pela utilizagdo de forcas O homem nao comerA, como hoje, que ele criou, ouo pao do trigo que ci uma maca de uma Arvore de um Ovo posto por uma galinha resceu no seu proprio campo, ou que ele vem cuidando ha anos e que floriu € amadureceu Perante os seus olhos, mas alimento nutritivo prepara- do em laboratérios pelo trabalho cor qual ele nao Participard. Nao havera mbinado de muitas pessoas, do "Poca se desviou do verdadeiro caminho. As pessoas da nossa epoca, tricao sadia e sufj todas as necessid ou a maioria delas, carecem de nu- iciente (ec o mesmo se da com habitacao, roupas e lades basicas). Além disso, essa mesma vasta maioria € forcada a trabalhar constantemente, acima de suas forcas e em de- trimento de seu bem-estar. Essas duas infelicidades podem ser remo- vidas facilmente Pela abolicdo da luta mitua, do luxo, da distribuicao inadequada das Tiquezas e, também, pela abolicao da falsa e danosa ordem estabelecida, que nao prioriza a organizacao da vida humana de forma racional. Porém, de acordo com a ciéncia, essa ordem exis- tente é imutavel como o movimento dos corpos celestes e, Portanto, a Sua tarefa nao reside em elucidar a falsidade dessa ordem e estabele- cer uma nova, mas em alimentar todas as pessoas mantendo a ordem 218 Leow Tousto1 existente, e dar a todas a oportunidade de serem tio ociosas quanto as. classes dominantes sao hoje na sua vida depravada. Com tudo isso, fica esquecido que a alimentacao baseada em pao, vegetais € frutos tirados da terra pelo trabalho proprio é a alimentagao mais agradavel, saudavel, leve e natural, € que 0 trabalho de exercitar Os musculos é uma condicao de vida to necessaria quanto a oxigena- ¢a0 do sangue por meio da respiracao. Inventar maneiras para que as pessoas sejam bem nutridas por meio de alimentos quimicamente preparados e fazer as. forcas da na- tureza trabalharem por elas, enquanto a distribuicdo de propriedade de trabalho permanecem erradas, ¢ 0 mesmo que inventar uma ma- neira de bombear oxigénio para dentro dos pulmées de um homem que esta trancado em um aposento com ar viciado, quando tudo o que Precisa ser feito é tira-lo desse aposento. Nenhum douto professor jamais montar um laboratério para pro- dugao de alimento que seja melhor do que aquele que ja foi montado no mundo vegetal e animal, e, para usar os frutos desse laboratério e Participar disso, o homem sé tem que se dar a venturosa necessidade do trabalho, sem o qual a vida humana é um tormento. Os cientistas, no entanto, em lugar de aplicar todas as suas forcas para retirar aquilo que impede que o homem use essas béncdos, aceitam a situagao como sendo imutavel e, em vez de organizar a vida dos homens para que possam trabalhar contentes e ser nutridos pela terra, Projetam meios de transformé-los em anomalias artificiais. E a mesma coisa que, em vez de tirar o homem do aposento trancado para o ar fresco, alguém in- ventasse um meio de bombear o oxigénio necessdrio para dentro dele, permitindo-lhe viver nao em uma casa, mas em um Porao abafado. Esses ideais errados nao poderiam existir se a ciéncia nao estivesse no mau caminho. E, infelizmente, os sentimentos transmitidos pela arte surgem so- bre a base dada pela ciéncia. Que sentimentos podem ser evocados Por essa ciéncia que se en- contra no caminho errado? Uma parte dela evoca sentimentos anti- quados que foram ultrapassados pela humanidade, sentimentos que nos dias de hoje sao maus e exclusivos. A outra parte, ocupada com © estudo de assuntos que, por sua propria esséncia, nao tem relacao com a vida humana, nao pode servir de base para a arte. 219 O Que é anre? De forma que a arte da nossa época, para ser arte, deve ignorar a ciéncia e fazer o seu Proprio caminho, ou entao se orientar pela ciéncia que é rejeitada Pela ortodoxia cientifica. E é isso que a arte faz quando cumpre, ao menos parcialmente, o seu propésito. E de se esperar que o trabalho que tentei fazer sobre a arte seja feito também sobre a ciéncia; que a incorre¢ao da teoria da ciéncia por amor a ciéncia seja apontada para as pessoas, que elas vejam claramente a necessidade de aceitar a doutrina crista em seu verdadeiro significado que, com base nela, seja feita uma reavaliagao de todo o conhecimen- to que possuimos e do qual somos tao orgulhosos. Que todos vejam. quao secundario e sem valor é 0 conhecimento experimental, e quao Primario e importante € 0 conhecimento religioso, moral e social; € que esse conhecimento nao seja exclusivo das classes superiores, mas que constitua principal objeto de todas as pessoas livres e amantes da verdade, as quais, por nao estarem sempre de acordo com aalta classe, fizeram avancar a verdadeira ciéncia da vida. Quanto a matemitica, astronomia, fisica e quimica, assim como em Telacdo as ciéncias bioldgicas, técnicas e médicas, elas serao estudadas na medida em que contribuam para libertar as pessoas das ilusdes religio- S88, juridicas e sociais, ou sirvam ao bem de todos € nao de uma sé classe. Somente entao a ciéncia deixara de ser o que é hoje — por um lado, um sistema de sofismas necessario para manter uma ordem de vida ob- Soleta, e, por outro, uma pilha disforme de conhecimentos variados, de Pouco uso e totalmente desnecessirios — para se tornar um todo harmo- nioso e organico, com um Propésito definido e razoavel, compreensivel Para todas as pessoas — 0Uu seja, a apresentacao das verdades oriundas da consciéncia religiosa de nossa época a consciéncia das pessoas. E, a partir desse Pressuposto, a arte, que sempre depende da cién- cia, seré o que Pode e deve ser: um 6rgao da vida e do progresso da humanidade, tao importante quanto a ciéncia. A arte nao é Prazer, consolacao ou divertimento; é algo grandioso. Ela é um Orgao da vida da humanidade, que transmuta a consciéncia racional das pessoas em sentimento. Em nossa época, a conscién- ia religiosa é a consciéncia de fraternidade entre os homens e seu bem-estar em miitua uniao. A ciéncia verdadeira deveria indicar va- "los meios de aplicar essa consciéncia a vida. A arte deveria transmu- far essa consciéncia em sentimento. E sua tarefa é enorme. 220 Grofivaters Tanzunterricht (1872), Franz von Defregger (1835-1921) A arte, orientada pela religido com a ajuda da ciéncia, deve fazer de tal forma que a vida conjunta e pacifica dos homens, que hoje é manti- da por medidas externas — tribunais, policia, instituigdes de caridade, inspegdes de locais de trabalho e assim por diante —, possa ser obtida pela atividade livre e feliz dos homens. A arte deve eliminar a violéncia e somente ela pode fazer isso. Tudo aquilo que hoje permite aos homens viverem juntos, indepen- dentemente do medo de violéncia e punicao (e, em nossa época, uma parte enorme da ordem da vida é baseada nisso), tudo foi realizado pela arte. Se por meio dela puderam ser transmitidos os costumes de tratar objetos religiosos de uma certa maneira, de tratar pais, filhos, esposas, conhecidos, estranhos, estrangeiros de uma certa maneira, de tratar idosos, classes mais altas, inimigos, animais ¢ o sofrimento de uma certa maneira — e isso foi observado por milhdes através de geracdes, € nao s6 sem nenhuma violéncia, mas de uma forma que nao pode ser abalada por nada além da arte —, entao ela pode evocar outros costu- mes, que podem corresponder a consciéncia religiosa da nossa época daa O que é anre? Se a arte péde transmitir o sentimento de reveréncia por icones, pela Eucaristia ou pela pessoa de um rei, o sentimento de vergonha pela trai¢ao da amizade, o de lealdade a bandeira, o da necessidade de vin- gar um insulto, de doar trabalho para a constru¢ao e 0 adorno das igrejas, o dever de defender a propria honra ou a gléria da terra patria, @ mesma arte pode evocar reveréncia pela dignidade de cada homem e Pela vida de cada animal; pode evocar a vergonha do luxo, da violén- cia, da vinganca, do uso de objetos que sao uma necessidade para ou- tras pessoas para o prazer proprio; pode fazer com que as pessoas se sacrifiquem para servir aos outros, de forma livre e feliz, sem o notar. A arte deveria fazer de tal forma que os sentimentos de fraternidade € de amor ao proximo, hoje acessiveis a poucos, tornem-se habituais, um instinto para todos. Evocando os sentimentos de fraternidade e amor sob condi¢ées imaginarias, a arte religiosa habilitar4 as pessoas a experimentarem os mesmos sentimentos na realidade sob as mes- mas condic6es; ela lancara na alma de cada um os trilhos ao longo do qual correrd naturalmente 0 comportamento daqueles educados pela arte. E unindo as mais diversas pessoas em um so sentimento e abo- lindo a separacdo, a arte do povo educara a humanidade para a unio e mostrara, nao em raciocinio, mas realmente, a alegria dessa uniao para além das barreiras instaladas pela vida. O propésito da arte de nossa época consiste em uansferir do cam- Po da raz4o para o do sentimento a verdade de que o bem-estar das Pessoas reside na uniao e em estabelecer, em lugar da violéncia que hoje impera, o Reino de Deus — isto é, de amor —, que todos consi- deramos 0 mais alto objetivo da vida humana. Talvez, no futuro, a ciéncia abra para a arte ideais ainda mais novos € mais elevados, e a arte os realizar4. Mas, em nosso tempo, 0 seu Propésito esta claro e definido: a tarefa da arte crista é a realizacao da uniao fraterna dos homens. 222

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