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MONNEYRON, Frédéric; XIBERRAS, Martine. Le monde hippie.

De l’imaginaire psychédélique à la
révolution informatique. Paris: Imago, 2008.

Tradução Livre de Renata Palandri Sigolo

Transcrição de Flavio Cunha

O mundo hippie

Do imaginário psicodélico à revolução informática

Capítulo I

O Correr das Águas

“É coisa estranha, mas qualquer um que desaparece, não deixamos nunca de vê-lo em
São Francisco. Que cidade charmosa essa deve ser, assim dotada de todas as atrações do outro
mundo”. Essa saborosa observação de Oscar Wilde, no final do século XIX, não se distancia de
dois esquemas que contribuem, depois de bastante tempo, para identificar São Francisco no
imaginário coletivo: o de uma cidade refúgio de marginais do mundo inteiro, e o de uma cidade
aberta às experiências mais extremas às margens do mundo visível e em relação com o além.
Cidade do refúgio e da aceitação da diferença, do cosmopolitismo, da liberdade e do melting
point, a cidade encarnou, vez por vez, muitos sonhos do mundo europeu e muitas visões
paradisíacas em um sincretismo renovado por cada onda de visitantes. Por outro lado, qualquer
que seja o Éden, o Eldorado, Jerusalém ou Gólgota, paraíso dos semitas ou paraíso de Urris, ela
deixa entrever todas as visões da cidade dos deuses ou da cidade ideal.

Se juntarmos suas particularidades arquitetônicas, geográficas e climáticas, como sua


ponte monumental sobre o Golden Gate, suas colinas, sua baía, sua neblina, sua suavidade, sua
primavera perpétua- mesmo se, para retomar a palavra célebre de Marc Twain, o inverno mais
frio que possamos passar, será incontestavelmente o verão em São Francisco - não estamos
longe, de fato, de ter todos os elementos da imagem que a cidade imporá ao mundo nos anos
1960 e é a cristalização desses diferentes elementos que, nesse decênio, fez de uma cidade de
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sonho com magnetismo excepcional, a cidade de um sonho, o sonho psicodélico, a utopia da paz
interior e do amor universal.

Esta cristalização aparece como um bom exemplo das fases liminares um e dois da
estruturação de um movimento cultural tal como o propõe a tipologia durandiana, o correr das
águas e o reconhecimento das autoridades. Assim, é retraçado, no que se segue, ao mesmo tempo
a história recente do movimento e as fontes mais antigas das quais ele é originado.

A rebelião beatnik

Sem dúvida, os principais autores do que nós chamamos de Beat Generation, Kerouac,
Burroughs, Ginsberg, Corso, Ferlinghetti, Snyder e outros, Orlovsky ou McClure, não são
originários de São Francisco nem mesmo da Califórnia, e quando alguns dentre eles como
Ferlinghetti, que abre sua livraria City Lights, no bairro North Beach, se instalarão lá, não é
finalmente que de maneira tardia, quando então o movimento beatnik já desapareceu. Se a cidade
não pode ser considerada seu berço, ao menos podemos considerá-la como seu refúgio
simbólico. Efetivamente, não somente os beatniks vieram a São Francisco sem parar, ao longo de
múltiplas peregrinações, mas, sobretudo, eles lá acharam um contexto propício à encarnação de
seus sonhos.

São Francisco serve bem a seu imaginário. Para além das montanhas e dos desertos ela
parece poder ser para esses jovens homens vindos do Oeste, que juntam sua maneira de ser com
o Go West, young man, de Horace Greeley, o local de todas as possibilidades, de todas as
liberdades. Seu clima mesmo favorece a constituição de uma boemia que, refutando o
consumismo desiquilibrado do way of life americano, não conta com a friagem de inverno e
achará sempre do que subsistir sobre suas praias ao longo da baía. Cidade extrema do Ocidente,
ela encontra também, de certa maneira, este Oriente misterioso que se acha do outro lado do
oceano e do qual os beatniks promovem suas virtudes e procuram capturar o senso místico mas,
para se convencer dessa adequação de São Francisco ao imaginário beat, não há sem dúvida
melhor meio que ler as principais produções do movimento e, em particular, os romances de seu
fundador. Se vários romances de Jack Kerouac, por exemplo, The Dharma Bums ou Big Sur, tem
por contexto em parte ou em totalidade São Francisco, é o primeiro e o mais conhecido dentre

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eles, On the Road, do qual a característica autobiográfica permanece ainda duvidosa é, nesta
visão, particularmente ilustrativa.

Observaremos, de início, que São Francisco constitui uma espécie de ponto focal do
romance, uma vez que o narrador efetua, em cada uma de suas três primeiras partes, uma
permanência mais ou menos prolongada, se excetuamos Nova York, igualmente presente nas
quatro partes do romance, mais precisamente Denver, no centro de vários itinerários o destaque
já de todas as outras cidades atravessadas e também a importância que lhe é acordada. Por este
tratamento particular, ela se torna um lugar onde se encontram subjetividade e real e, de fato,
antes de ser vivida, a cidade é ardentemente desejada. Uma vez que se acha no coração dos
Estados Unidos, em Denver, aos pés dos Montes Rochosos, o narrador é atraído pelo desejo de ir
mais longe “isso me motivava a ir até São Francisco”. A contestação de que “todo mundo ia a
São Francisco”, ao menos aqueles que partilhavam os valores de seu modo de vida, reforça o
desejo e entrega, de antemão, a cidade como local mágico.

A realidade estará à altura do sonho. A chegada a São Francisco é vivida sob o modo de
exaltação:

Eu percebi de repente que eu estava na Califórnia. Brisa quente, brisa feliz que
podemos transar, e palmeiras. Nós dirigimos ao longo de Sacramento, rio legendário,
sobre uma super auto-estrada, ainda colinas, subida, descida e, repentinamente, a vasta
baía (era um pouco antes da aurora) repleta de raios de lua sonolentos de Frisco

Um dos esquemas que identificará a cidade, aquele que dá abertura sobre o além, não
demora a se esboçar.Apenas recentemente tendo descido do ônibus, o narrador insiste, sobretudo
no que conota esse mistério no sobrenatural.

Eu errava como espectro desencarnado e eis que era Frisco, suas longas ruas
desertas onde os cable-cars se perdiam na névoa branca. De um passo incerto fiz a volta
em alguns quarteirões. Na aurora, os bandidos sobrenaturais no canto de Missão e na
Terceira Rua mendigavam.

Pela sequência, esses são todos os principais esquemas do imaginário beatnik que a
frequentação da cidade permitirá revelar. Quando ele se esforçará para libertar a quintessência da
cidade e de expressar o que ela representa para ele, o narrador não deixará de projetar sobre ela o
que constitui o essencial de seus interesses pessoais: a liberdade, a sexualidade, a música ou o
misticismo. No fim de sua primeira estadia, no alto de um cânion que domina a cidade, ele a
caracteriza assim:

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Havia o Pacífico, alguns contrafortes mais longe, azul e imenso e, ao largo, uma alta
muralha de brancura que chegava do legendário campo de batatas onde a névoa de
Frisco nascia. Ainda uma hora, e ele se dissiparia pela Porta de Ouro para envolver de
branco a cidade romântica e um jovem tipo pegava sua garota pela mão e subia
lentamente uma longa calçada branca com uma garrafa de Tokay em seu bolso. Era isso
Frisco, e as belas mulheres de pé na brancura de suas marquises, esperavam seus caras e
Coit Tower e o Embarcadero, o Market Street e as onze colinas plenas de pessoas”.

Durante uma segunda estadia, é a dimensão mística que, em um primeiro tempo, ele irá
valorizar mais. Um passeio em Market Street é a ocasião de uma revelação de uma verdade do
Universo. Ele escreve:

“Durante um instante eu tinha esperado esse degrau de êxtase que eu tinha sempre
ansiado, que era a travessia total do tempo mensurável até o reino das sombras
intemporais, o rastro no deserto de nossa condição mortal, a impressão que a morte me
expulsava diante dela com pontapés, ela mesma perseguida por um espectro, se bem que
eu achava minha salvação apenas sobre uma prancha onde os anjos, para voar,
mergulhavam no abismo sagrado do nada antes da criação, e aqui os raios de uma força
maravilhosa resplandeciam na explosão do espírito absoluto, campos de lótus imensos
se ordenavam sobre o mágico enxame das borboletas celestes”.

E depois a seguir:

Eu podia ouvir o grunhido de uma efervescência indescritível que não vinha somente de
minha orelha, mas do infinito e que não tinha nenhuma relação com os sons (...). Eu
provava uma beatitude suave, vacilante, como se eu tivesse tido uma boa dose de
heroína nas veias, como depois de um gole de vinho depois do meio-dia e, de repente,
arrepiava, eu tinha formigamentos nos meus pés”.

Essa sensação de beatitude sobre a qual desemboca essa apreensão mística do mundo e
das coisas não está destituída de uma imensa vontade de viver que se exprime mais
particularmente por uma sensibilidade a todas as comidas que podem oferecer a cidade, mas que
convoca também outras solicitações:

Junte os feijões vermelhos de Market Street que queimam a língua, as batatas


fritas à francesa na noite, ao vinho vermelho do Embarcadero e os mariscos à Sausalito do
outro lado da baía, eis o que me extasiava em São Francisco. Junte a névoa, à névoa acre
que dá fome, e as pulsações do neon na noite suave, os saltos altos das mulheres nas
calçadas, as pombas brancas na vitrine de uma mercearia chinesa.

Não é, enfim, até a paixão da Beat Generation pela música em geral - e pelo jazz em
particular- na qual se combinam seu furor de viver e seu misticismo que acham sua realização

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em São Francisco. Na saída de sua terceira estadia na cidade, um pouco antes de retornar ao
Leste, o narrador e Dean Mauriat passeiam por “dois dias de voluptuosidade” e é nas boates de
jazz que eles irão viver. A música que eles escutam é a ocasião para uma exaltação total que
transcende a situações individuais como o início de uma orgia:

Era um bando em delírio. Eles estavam todos excitando o saxofone, segurando o


it e guardando, com gritos e olhos furibundos e, agachado, ele se levantava novamente e
de novo fletia as coxas com seu instrumento, fechando a boca com um grito límpido sobre
a massa de gente.Uma negra de seis pés muito magra começou a rolar seus ossos diante
do saxofone do cara e ele se contentou em lhe dar um soco, “I!I!I!”.

O modo de vida e os valores de Kerouac e dos seus vão se dispersar, pois, se os beatniks
acharam em São Francisco um receptáculo adequado aos seus sonhos; é como se eles tivessem
semeado a cidade que,inteiramente, se colocará a sonhar por sua vez. E, o que era ainda somente
uma rebelião individual conduzida por um pequeno grupo, vai se transformar em uma revolta
mais ampla que pretende transformar as mentalidades e as estruturas sociais ocidentais. A Beat
Generation, sem abandonar seus antigos profetas, os descobre de novo.

A Revolução Psicodélica

O movimento psicodélico, mais comumente conhecido sob o nome de movimento hippie


que, no meio dos anos 1960, nasce em São Francisco, cristaliza, como por uma evolução natural,
todos os grandes esquemas dos beatniks. Fazendo isso, ele marca uma importante ruptura no
universo contestatório americano e de maneira mais geral, no universo contestatório ocidental.
Ele se apresenta, em efeito, como uma revolução religiosa ou, como o assinalava o sociólogo
americano Theodore Roszak, no livro que, a partir de 1969, consagrou aos diversos movimentos
da juventude americana da época:

Desde o século das luzes, ao menos, a tendência maior do pensamento revolucionário


foi sempre anti-religioso, abertamente e agressivamente ateu.(...) Os candidatos
revolucionários do Ocidente estiveram fortemente agarrados a uma tradição de
laicicidade cética e militante.

Parece possível colocar um olhar lúcido sobre o movimento do qual o festival de


Woodstock, aqui próximo dos 40 anos, constituiu a apoteose e o acabamento emblemático e de
apreciar suas permanências e os seus resultados. Sem dúvida, reduzimos deste movimento, os
homens que deixavam seus cabelos longos e, de um modo geral, um modo original de se vestir,
camisas com flores, jeans usados e desbotados, blusas transparentes, saias ciganas, bordados com

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motivos indianos, sedas e veludos, mas atrás deste modo capilar e vestimentar, o mais importante
que poderíamos pensar, ele remete em questão, o dismorfismo sexual que permanecia no
Ocidente depois do início do século XIX. É também toda uma visão de mundo que se define.

O movimento psicodélico se apresenta, desde as suas primeiras manifestações, como um


questionamento sistemático do prometeismo1 que, depois das Luzes ao menos, e durante todo o
século XIX, assegurou seu domínio sobre as sociedades ocidentais desta “grande ideologia
progressista que pretende planificar a felicidade social e individual somente com os instrumentos
da razão”. Alan Watts, que pode aparecer, com título justo, como um dos mestres do pensamento
da juventude americana, que protesta a empresa totalitária da razão que quer regrar as menores
parcelas da vida moderna:

Pelos seus costumes, pela sua maneira de viver, a civilização ocidental nos impõe até o
excesso de um perpétuo bom senso. Ela proíbe a existência na nossa vida de um canto
reservado à arte do puro devaneio. Nosso jogo não é nunca um jogo verdadeiro, pois ele
é quase sempre racionalizado.

As necessidades de sair dos moldes da razão e os seus avatares sociais, os mais


solidamente estabelecidos, se manifestam pela revalorização do noturno sob as mais variadas
formas que se articulam, apesar de tudo, através de dois esquemas maiores, de uma parte, pelo
gosto pelo irracional (a magia, o ocultismo e, de uma maneira geral, os misticismos, quer sejam
eles orientais ou ocidentais estão, particularmente, em lugar de honra), de outra parte, por uma
vontade que podemos chamar dionisíaca, de se ligar às forças vivas da natureza ou da
sexualidade. De fato, a contestação, na medida em que se desenvolve, coloca em questão os
fundamentos filosóficos da civilização moderna, o cartesianismo que distingue o corpo do
espírito, as Luzes que abrem a era da atomização individual, o positivismo científico que
assegura o domínio do homem sobre a natureza, e por isso ela se apóia sobre o espiritualismo das
religiões orientais ou extremo-orientais.

É assim que o budismo zen, do qual Alan Watts se faz um talentoso vulgarizador, lhe
parece melhor para exprimir a coesão cósmica e revelar a interdependência dos diferentes
elementos do universo, ao que o sincretismo do cristianismo primitivo não é insensível. Do
mesmo modo, ela recusa as classificações operadas pelo mundo ocidental: o recorte da sociedade
em fronteiras nacionais, raciais, religiosas, sociais e ideológicas, em nome amor universal que
transcende tudo isso.

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Refere-se ao mito de Prometeu, da mitologia grega. A idéia daquele que cria o homem superior a tudo,
que é a idéia da sociedade ocidental, que não é de união, é de superioridade.
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A esta mudança dos valores fundadores da sociedade moderna, que se justapõem
também, em outro lugar, a uma rejeição dos modos de vida ocidentais e a reivindicação de uma
total liberdade em relação às estruturas existentes no local, ou seja, uma nova ética largamente
antagonista àquela que predomina, pertencendo a uma geração “onde a juventude estava
oprimida, pressionada, explorada e estressada pelos custos sociais e políticos da Guerra Fria e
seduzida pelas mais excessivas promessas de uma extraordinária prosperidade”, os hippies
recusaram de se engajar nas vias de uma sociedade de consumo, em bairros residenciais
intercambiaveis, dormir em beliches, conduzir carros idênticos ou ainda olhar os citycons
insípitos em suas televisões. Como alternativa, eles preconizam uma melhor simbiose com a
natureza, esta que deveria se acompanhar de uma relativa pobreza.

Menosprezam também a felicidade normal do casal ocidental, considerando o ciúme que


a consome, que a mina na ocasião como um sentimento burguês (seu prazer é o meu prazer se
torna quase a palavra de ordem), e procuram uma maneira mais aberta e menos vergonhosa de
viver a sexualidade. Para além de uma exibição dos corpos sem pudor, mas também sem
ostentação e um certo gosto pelo naturismo, o tantrismo é frequentemente chamado, em uma
maior circulação do sexo, ou seja, a sexualidade em grupo frequentemente recomenda, qualquer
que seja o referencial, informal, de uma festa ocasional, ou mais formal, de uma vida em
comunidade. De uma maneira mais geral, eles não querem sacrificar o homem ao progresso
tecnológico, o homem do presente ao homem do futuro, e buscam a plenitude de todos os
instantes, se religando, assim, com o tempo cíclico, próprio das sociedades arcaicas que
entregam a eternidade em um instante:

Por que (...) fazer depender a felicidade do homem, do desenvolvimento das forças
produtivas e da luta de classes? Por que sacrificar em vão para as gerações futuras a
geração de hoje quando todos poderiam ser felizes no presente? O que eles querem não
é o paraíso extraterreno ou uma sociedade futura, é a paz da alma, é a liberdade de ser si
mesmo, é o paraíso agora, paradise now.

O que Jim Morrison, o cantor poeta dos The Doors resumiria em sua lápide, se tornou
célebre: “nós queremos um mundo e nós o queremos agora”. Essa crítica aos fundamentos
racionalistas e materialistas da civilização ocidental e o chamado à efervescência e ao bucolismo
dionisíaco podem parecer originais por sua formulação e pelo grande eco que eles encontram em
uma camada importante da juventude americana. Eles se inscrevem, porém, tanto um quanto
outro, em uma longa tradição. A primeira descende em linha direta das filosofias esotéricas que,
do século XVIII até hoje, se desenvolveram paralelamente ao prometeismo dominante e, para
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além dele, tem ligação com uma tradição mais antiga e uma sabedoria atemporal.
Semelhantemente o desejo de viver de forma diferente sua sexualidade, a idéia de reconstituir no
ato sexual uma unidade cósmica, não são, sem se lembrar das práticas mágicas de um Aleyster
Crowley, que buscava utilizar a energia sexual, os hippies farão sua fórmula “Faça o que
quiseres, pois é tudo da lei” uma de suas palavras-chaves e, para além revisam o tantrismo e os
rituais antigos dos dionisíacos ou das bacanais.

É também no retorno à natureza que nós achamos antecedentes. Jean François Revel nota,
justamente, que “à iminência da primeira grande revolução tecnológica já tinha iniciado o sinal
que advertia os corações dos homens, em torno de 1760”. Além de Rousseau, é Thoureau que
constitui uma referência maior. O que parecia inovador tem sólidas raízes e empresta das fontes
doutrinais as mais diversas e, a priori heterogêneas. Os diferentes componentes que constituem o
terreno do qual se alimenta a revolução psicodélica vão, efetivamente, dos mistérios antigos às
religiões orientais, passando pelos misticismos e por autores como Fourrier, Jung ou Reich.

Do “correr das águas” à confluência

Os hippies aparecem como os herdeiros de todas as contestações da ideologia moderna


progressista e, sobretudo, de todos os excessos dessa ideologia, o imperialismo militar e o
consumo ostentatório, mas, ao mesmo tempo, eles são herdeiros de diferentes tradições de
êxtase, a experiência sensível, fenomenológica ou experiência espiritual confirmada, o que os
conduz a procurar as explicações e as conceitualizações junto às sociedades tradicionais.

Adotando os modos de vida alternativos, alternativos a estes ou aqueles propostos pela


sua sociedade, eles serão também considerados como os herdeiros dos movimentos comunitários
e libertários. Porém, este aspecto indiferenciado e heterogêneo das referências hippies, não
deveria esconder a grande coerência interna do que era no início uma utopia, um projeto sem
lugar (o amor, não a guerra) e que se transformou, ao longo das experimentações, em uma
verdadeira “filosofia” (o amor em um contexto comunitário e natural). Uma visão da ordem
cronológica das diferentes fontes permite observar uma estratificação das referências e de revelar
a coerência lógica dos principais esquemas retidos para forjar um ethos de vida. É possível
distinguir quatro grandes períodos históricos nos quais os hippies se alimentam e, na sequência,
fundam suas hipóteses no movimento social e cultural de curto e longo termo.

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É extraindo dessas diferentes elaborações históricas que eles compõem seu próprio
pensamento, um pensamento não somente crítico (contra a guerra, contra o consumo), mas
também rico em proposições (pelo amor, pela comunidade) de tal maneira que a terminologia
contracultura hippie pode ceder muito bem lugar ao termo cultura ou imaginário hippie.

Um primeiro extrato de referências se acha ao lado das sociedades tradicionais, de onde


procedem, às vezes, a inspiração espiritualista e o modo de vida comunitário. A “nova”
sensibilidade forjada na mesma experiência do êxtase permite viver concretamente o amor, a
espiritualidade e a abertura ao outro os valores que são apresentados sob todos os planos
econômico, político, psicológico, sexual e ambiental e servem de guia para todas as experiências
da vida dos hippies.

Sua atração pelas religiões ancestrais e a espiritualidade das religiões orientais ou


extremo-orientais, o hinduísmo, e em particular o tantrismo, o budismo e o xamanismo, lhes
permitem reencontrar e herdar dessas tradições de êxtase. Eles podem assim denominar seu
sentimento de amor universal, sua sensação de coesão cósmica, do universo, e a
interdependência de diferentes elemento. Assim o Nirvana, termo sânscrito, Nir, que significa
privativo, e Va, sopro, designando no sentido literal a extinção, a perda do sopro, da respiração, e
no sentido da suprema calma, ou seja, a “pequena morte” de Lacan, não significa o retorno ao
nada, mas antes, a extinção do eu no Eu maior. Essa experiência, ou este estado, são também
denominados no hinduísmo, Brahman ou, no budismo, Buda, o estado de Buda. O Nirvana é
“luminoso e livre de toda a construção mental, livre da impureza do apego e de outras paixõe..., a
felicidade da iluminação”.

Os hippies encontram, também, as primeiras formas de espiritualidade e de comunidade


religiosa, próprias da cultura ocidental, mas retornando muito longe nas fontes daquela cultura:
os rituais antigos dos dionisíacos ou das bacanais, as comunidades essênias ou pitagóricas, os
mendigos cínicos, os discípulos de Epícuro e, enfim, as comunidades cristãs - mas estas do
cristianismo primitivo perseguido e escondido nas catacumbas. O modo de vida comunitário em
simbiose com a natureza se traduz igualmente por uma atração pelo Oriente, ou ainda por
culturas indígenas, como estas dos índios da América do Norte, que fascinam os hippies em
razão de sua vida selvagem e de seus xamanismos.

Um segundo extrato das fontes é constituído por todos os movimentos contestatórios


ocidentais da modernidade, do Renascimento ao século XIX. A contestação passa, então, por
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colocar em questão as estruturas sociais individualistas em vigor ou por colocar em questão as
estruturas do pensamento materialista. Poderíamos insistir sobre a semelhança, mesmo
longínqua, dos hippies com os monges de François Rabelais, ou os colocar na descendência das
experiências da vida comunitária definidas no início do século XIX nos falanstérios de Saint-
Simon(1760-1825) e do pai Enfantin, por Icarie de Cabet (1788-1856) ou as comunidades
eletivas de Charles Fourier (1772-1837). Todos esses movimentos serviram não somente à
instrumentação da vida coletiva, mas também à elaboração de novas regras de vida.

É possível, também, aproximar a experiência mística do movimento hippie às


especulações do Iluminismo do fim do século XVIII, que se apresenta como a reação subterrânea
à razão e às Luzes. Mas ela é, evidentemente, mais próxima ainda da teosofia de Helena
Blavatsky com a qual os hippies partilharam a idéia de que a Índia é o berço espiritual da
humanidade e que a espiritualidade hindu, por menos que façamos esforço de nos impregnarmos
dela, pode salvar o mundo do materialismo e permitir estabelecer a igualdade de todos, a paz e a
fraternidade universal. Sem dúvida, também eles se juntam à necessidade pregada por George
Gurdjieff de proceder a limpeza dos nossos psiquismos cheios de cultura, de satisfação e de
medo, operação requisito sem a qual nenhum início espiritual pode ser vislumbrado.

O terceiro extrato provém da herança romântica do século XIX. Os hippies como os


românticos são, em efeito, adeptos da viagem interior dos psiconautas, ou o deslocamento
geográfico com destino ao Oriente. No interior do “Clube dos Haxixeiros” ao hotel Pimodan, em
Paris, sabemos que vários poetas e artistas da época se reuniam para saborear e experimentar o
dawamesk ou a geléia de haxixe, notadamente, Gérard de Nerval, Théophile Gautier e Charles
Baudelaire. Essas experimentações tinham lugar sob o comando do doutor Moreau de Tours, que
observava como os estados de consciência modificados pelos psicotrópicos se assemelhavam aos
estados de delírio em seus pacientes, espelho cheio de labirintos de sua própria psicogeografia
interior e que os interrogavam sobre as maneiras de utilizar essa proximidade para a terapia. Da
mesma maneira que o dawamesk, a viagem ao Oriente é, no século XIX, um rito obrigatório
propriamente iniciático para os românticos em geral, e franceses em particular. Ele aparece como
uma busca até o centro de si mesmo para descobrir sua “parte oriental”, seu paraíso, a dimensão
do sonho:

Para dar uma definição sintética, a viagem iniciática é o caminho para olhar a
morte face a face, ou Deus, ou si mesmo, frequentemente tudo ao mesmo tempo.
É por isso que se trata de uma passagem que provoca transformação, ou seja, a
metamorfose do sujeito.

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Essa mesma busca se acha atestada nos hippies dos anos 1960, aqui aparecendo como
uma nova geração romântica em ruptura com a sociedade ocidental para se fundir com um além
“idealizado”. Enfim, uma última fonte hippie, um último extrato, se apóia sobre as referências
contemporâneas do século XX, ou seja, como nós já vimos, uma estiagem sobre o movimento
estético societal da Beat Generation uma dezena de anos anterior. Os hippies recebem um
reforço teórico dos campos filosófico e científico. Willian Reich e Herbert Marcuse, em
particular, um médico psicanalista e o outro filósofo alemão, instalados nos Estados Unidos
depois dos anos 1930, lhe fornecem as justificativas privilegiadas em sua vontade de
reconsiderar as relações do homem contemporâneo à sexualidade. Os hippies acham nas
pesquisas do primeiro, a teoria segundo a qual o orgasmo e, de uma maneira geral, uma via
sexual florescente, são necessárias à boa saúde mental e psíquica de cada indivíduo (tanto
homem quanto mulher). Na sequência, eles aderem à idéia de uma revolução sexual essencial,
pela qual convém reunir as condições favoráveis para permitir a cada um o acesso ao gozo. A
filosofia política do segundo traz a confirmação de que as sociedades ocidentais reprimiram a
expressão da sexualidade em nome do princípio de realidade, mas que é possível ir para além
desse princípio e imaginar uma civilização que não seja repressiva e reconciliar prazer e
trabalho. Que Marcuse tenha sido nos anos 1960 professor de ciências políticas na Universidade
da Califórnia, em San Diego, contribuiu, evidentemente, para difundir largamente essas idéias
sobre o campus californiano.

Vemos antes na manifestação simultânea das diversas contestações da ideologia


prometiana que em sua origem particular que subsiste a especificidade do movimento. Essa
simultaneidade remarcável pode ser compreendida como a tomada de consciência da caducidade
de um prometeismo que se encontra no cume de sua tarefa, a instalação de uma sociedade de
abundância. Herbert Marcuse, ele mesmo, já havia pressentido, entretanto, essas diversas formas
de contestação, se elas acham seu pivô na suspeita de um prometeismo enfraquecido
permanecem, porém, sem a ligação orgânica real que permitiu vislumbrar uma autêntica
alternativa. Esta ligação é a experiência das drogas que vai fornecer, forjando uma nova
sensibilidade, uma nova visão do real. A droga, proveta do psicodelismo- e da contracultura em
geral - é o elemento central que fará, às vezes, considerar o movimento como uma nova religião,
anunciando, segundo os termos dos hippies, deles mesmos, “a entrada na Era de Aquário”.

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Capítulo II

Nas Fontes das Religiões

O uso de drogas não é certamente novo no Ocidente. Os líderes do movimento


psicodélico não pararam de se deslocar, às vezes sobre o apadrinhamento dos mais célebres
amadores dos paraísos artificiais do século XIX: Baudelaire, Rimbaud ou Thomas De Quincey, e
de lembrar, por exemplo, o “Clube dos Haxixeiros”. Mas de uma parte, as drogas psicodélicas
(mescalina, psilocibina, LSD), que são resultado dos progressos da química, se distinguem
fundamentalmente do ópio ou da maconha consumidos no século XIX e, de outra parte, seu uso
toma um senso e uma amplitude desconhecidas até então.

Se, como notam dois observadores, “os escritos concernentes às drogas do gênero ópio-
haxixe se dividem em uma tendência positiva que elogia seu poder de liberar a imaginação e de
aumentar as sensações agradáveis, e uma tendência negativa que as acusa de atrapalhar a mente e
prostrar o corpo [...], ninguém lhe reivindica um uso religioso e a experiência mística parece bem
além de suas possibilidades”. Ora, é precisamente essa reivindicação que vê o dia com força nos
anos 1960, insistindo notadamente sobre as relações existentes entre os estados interiores
provocados pela ingestão de mescalina ou de LSD e a experiência mística.

A emergência desta reivindicação permite ao movimento entrar em sua fase de


consolidação e reconhecimento, quarta fase da metáfora potamológica, segundo Gilbert Durand,
que denomina e tipifica a bacia semântica. Pois as experiências de êxtase esparsas saídas das
tradições diversas são então sintetizadas e explicadas pelos diferentes líderes do movimento, e
conduzem à afirmação de novos modos de vida.

A experiência do êxtase

Desde 1924, o farmacólogo berlinense Louis Lewin assinalava a experiência sensível


específica induzida pelos alucinógenos. Ele lhes reservava um lugar à parte na sua classificação
geral, os Phantastica, que compreende todas as substâncias que desenvolvem a imaginação
fantástica, induzindo visões e imagens caricaturadas da realidade, representando para o sujeito os
símbolos de sua psicogeografia e revelando seus fantasmas os mais secretos. Se o peiote, o
cactus mágico e ritual dos índios, e a mescalina, seu princípio ativo, são as drogas típicas de
propriedades alucinógenas, os Phantastica reagrupam também a erva ou a maconha, saída da
cannabis, e o LSD assim como os cogumelos alucinógenos. Todos esses produtos, em seu uso
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ritual, são descritos como reguladores ou passadores de um mundo a outro, suscitando
experiências de superlucidez ou clarividência.

“As drogas nos aborrecem com seu paraíso, mesmo que elas nos dêem um pouco de
saber”, dizia Henri Michaux, para quem a mescalina é a mais espetacular ou a mais brutal das
drogas alucinógenas, pois ela “desmascara o que as outras escondem”. Ele a descrevia “feita para
violar o cérebro, para dar seus segredos, e os segredos dos estados raros. Para desmistificar”. E,
em seguida, como a chave do êxtase, induzindo um sentimento de infinito tradicionalmente
reservado ao domínio da metafísica, e que pode ser aproximado e explicado pela “a fé da via
vibratória”. A experiência psicodélica provoca especificamente visões de luz – “a faísca na
cabeça” –, de multiplicidade, de espaços temporários fragmentados, de desdobramentos da
consciência, de multiplicação das percepções, de rapidez, de mobilidade, de “movimentos
pulsativos”. As faculdades envolvidas são assim resumidas por Michaux: hiperacuidade, atenção,
sensorialidade, inteligência, abstração, imaginação.

A testemunha de Antonin Artaud, que participou de rituais antigos, é ainda mais


espantosa:

Há em todo homem um velho reflexo de Deus onde nós podemos contemplar ainda a
imagem desta força do infinito que um dia nos lançou em nossa alma e esta alma em
um corpo e é para a imagem dessa força que o peiote nos conduziu.

Mas, sobretudo, a relação entre alucinógenos e experiência mística é o final de uma longa
maturação e de especulações tanto psicológicas quanto antropológicas. Vários autores a sugerem
já no final do século passado. Assim, William James, em suas Variedades de experiências
religiosas, consagra um capítulo aos efeitos do éter; Havelock Ellis, em Mescalina: um novo
paradigma artificial, descreve as maravilhosas visões permitidas pela mescalina, ou ainda
Aleister Crowley, em sua magia, utiliza as drogas para intensificar suas visões. E a antropologia
cultural permite um passo suplementar. Antropólogos americanos – notadamente Slotkin e
Watson – se interessaram na utilização que os índios do México e do sudoeste dos Estados
Unidos fazem do peiote. Se seus trabalhos se limitam à descrição da conduta exterior dos índios
sob efeito do peiote e a constatação que seu uso é coletivo, eles ressaltam que a droga é um
elemento importante em sua prática religiosa.

Porém, é à Aldous Huxley, que a seguir, se interessa aos usos indígenas e que
experimenta ele mesmo a mescalina, que se dará o mérito de fazer claramente a ligação entre a
13
experiência da droga e a experiência religiosa. Huxley, que mergulhou desde muito tempo nas
doutrinas místicas – ele publica, em 1945, uma importante coletânea, Filosofia Perene –
descreveu, em 1954, a experiência mística, sobre a qual trabalha a mescalina, em As Portas da
Percepção, que se tornará a Bíblia dos hippies. Ele insiste, em particular, sobre as modificações
da consciência, as modificações estéticas da percepção, as divagações, a liberação de inibições,
sobre o sentimento de interdependência com o cosmos e a impressão de eternidade e de infinito
que dão ao homem de sensibilidade normal a possibilidade de ascender ao visual, e ao homem de
sensibilidade visual, de tornar-se visionário. Ele liga esses fenômenos às visões dos místicos
ocidentais e orientais, notadamente àqueles transportados pelo Livro dos Mortos tibetano. Ele
conclui assim:

“A experiência da mescalina é uma graça gratuita, não necessária à salvação, mas útil
em poder, e que é necessário aceitar com gratidão, se ela se torna disponível [...] Sob a
influência da mescalina, nós temos, efetivamente, coisas melhores para ocupar nosso
pensamento”.

O autor do Melhor dos Mundos coloca, porém, algumas reservas em relação à extensão
que convém dar a essa descoberta, como o fará mais tarde Alan Watts a propósito do LSD. Esse
último se mostrou, por exemplo, “muito embaraçado em descobrir que o LSD poderia provocar
para ele uma experiência muito poderosa de tomada de consciência cósmica” e entende reservar
seu uso a uma elite familiar dos misticismos.

Parecem existir estados de consciência diferentes da “consciência de quando estamos


acordados”, ou “estados de vigília” como dizem os psicólogos, caracterizado pela racionalidade
e a lógica da consciência dita “normal”. O sonho, os lapsos, o rir, a alucinação, a hipnose, o
retorno do coma, o transe e o êxtase..., talvez, mesmo o estado de graça ou uma espiritualidade
mística, poderiam então se deixar classificar na categoria de “estados de consciência
modificados”. Para esses cientistas que os observaram, todos esses estados de consciência
modificados não são equivalentes, e seria impossível estabelecer um continuum de experiências
que vão do transe (efervescência de sentidos e do eu) ao êxtase (plenitude de sentidos e do eu)
passando pelo ênstase (apaziguamento de sentidos e introspecção do eu). Todas as drogas
permitem assim acessar a esses estados de consciência modificada, mas com algumas
particularidades que nós já tentamos colocar em evidência. A família dos Phantastica ou dos
produtos psicodélicos parece mais propícia a experiência mística que todos os outros produtos
psicotrópicos. Porém, o álcool e a família dos Inebriantia, assim como um certo número de

14
outras drogas, podem, segundo a pertinência do contexto cultural, favorecer o acesso. Existe, de
fato, uma ligação fenomenológica de embriaguês ao êxtase, depois do êxtase a experiência
confusa do sagrado, suscetível de conduzir a uma construção de sentidos do tipo místico, assim
que o sujeito e o momento sociocultural o permitam. Mas a cultura ocidental moderna, e
sobretudo o campo científico, tem, evidentemente, bastante dificuldade para dar serenamente um
estatuto a esse campo de observações e experimentações. Porém, um eixo de pensamento se
preocupou com essas observações e experimentações.

Segundo Emile Durkheim, é na efervescência própria às festas coletivas e rituais das


sociedades tradicionais que se constrói a experiência mística propriamente dita: a sensação de
uma separação radical entre o mundo conhecido de todo o dia, profano, e o acesso a um outro
mundo, povoado por espíritos, deuses, de fantasmas, de entidades diversas, tantas representações
para nossa cultura do mundo sagrado. E no contexto ocidental, Thérèse d’Avila descreveu a
sensação de fusão com Deus como um êxtase divino. Um problema de representação se coloca,
porém. Assim, quando Mircea Eliade distingue do xamanismo uma experiência de êxtase e do
sagrado, ele se atrapalha com as várias precauções contra as representações correntes. As
experiências extáticas dos xamãs “tem o mesmo vigor e a mesma nobreza que as experiências
dos grandes místicos do Oriente e do Ocidente”, mas a história das tradições religiosas “intervêm
afinal para juntar, para pegar e dobrar em seus próprios cânones, as experiências extáticas de
certos privilegiados”. Pois, de fato, a manifestação de um fato religioso é sempre histórica, quer
dizer, condicionado pelo contexto histórico. Eliade percebe, então, que “o psicólogo será levado
a considerar, antes de tudo, como a revelação de uma psiqué em crise ou mesmo em regressão”,
e o estado do xamã será assimilado a este de um doente mental.

Da mesma maneira que toda vocação religiosa, o êxtase do xamã se manifesta


seguramente por uma “crise”, “por uma ruptura provisória de um equilíbrio espiritual do futuro
xamã”. Mas, e é isso que importa para o nosso propósito, “o xamanismo é uma das técnicas
arcaicas de êxtase, às vezes mística, magia e religião, no censo ampliado do termo”. Em toda a
área geográfica dos diferentes xamanismos (Ásia central e setentrional), “a experiência extática é
mantida pela experiência religiosa por excelência, o xamã, e somente ele, é o grande mestre do
êxtase”. E isso, mesmo se essa técnica do êxtase não esgota “todas as variedades de experiência
extática atestado na história das religiões”. Como em um grande número de religiões, “existe
uma técnica extática à disposição de uma certa elite”. O xamã é às vezes mágico, mas com uma
especialidade “mágica” particular – o domínio do fogo e do “vôo” mágico – e medecine-man,
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um curandeiro com um método específico, pois seu êxtase é particular, “um transe durante o qual
sua alma é chamada a deixar o corpo para empreender ascensões celestes ou descidas infernais”.
Os xamãs são “eleitos” e acessaram então uma “zona do sagrado inacessível aos outros membros
da comunidade”. Eles mantêm “as relações com os espíritos, que são possuídos por estes
últimos, ou que eles dominam”. O xamã se distingue porém do “possuído”, pois ele consegue se
comunicar com espíritos da natureza, mortos, demônios, “sem porém se transformar em seus
instrumento”. É pelo meio de seu transe extático que os xamãs curam: eles acompanham os
mortos até o reino das sombras e servem de mediadores entre mortos e deuses.

A experiência do êxtase pode então ser interpretada de várias maneiras e, em particular,


com uma conotação tanto positiva, quanto negativa. Se a cultura ocidental tem tendência a
privilegiar o aspecto nefasto ou o aspecto alucinatório do êxtase, como sentimento de terror
inspirado pelas primeiras experiências do sagrado, as culturas tradicionais não hesitam em
mergulhar nas interpretações místicas. A cultura indiana oferece notadamente muitas
explicações, imagens, mitos, que permitem dar um senso a essas experiências do inefável, um
senso que os hippies acharão. Assim, os sábios ocidentais puderam observar e descrever o estado
do “renunciante”, sadhou ou sanyasin, como um “indivíduo fora do mundo”, que (teoricamente)
atinge esse estado de êxtase cósmico e renuncia à vida profana e social, e que se opõe
irremediavelmente ao indivíduo moderno, ou seja, “indivíduo no mundo”.

Segundo Romain Rolland, o “sentimento oceânico” exprime a atitude natural a uma certa
“dilatação ou expansão do eu”. Essa noção, recuperada por Freud, torna mais sensível o estado
fenomenológico psíquico e mental provocado pela experiência do êxtase, e de sua interpretação
pelas culturas modernas e tradicionais. Para os viajantes ocidentais, essa sensação oceânica é
mais frequentemente intraduzível, dificilmente verbalizável, e provoca sentimentos de vertigem
e perda. Mas, assim que ela é verbalizada, acompanhada por um guia que ajuda a interpretá-la,
ela pode ser descrita como um afluxo de alegria, um repentino “maravilhamento” (encantamento,
fascínio), ou ainda a impressão de ter acesso ao saber universal. Os sinais exteriores permanecem
os de uma experiência que faz desabar o entendimento, torna a fala balbuciante e submerge a
pessoa, mas as pessoas retranquilizadas podem então descrever sua sensação de plenitude:
sensação de estar plenamente vivo, totalmente livre, sensação de pertencimento universal, ou de
se perceber como elemento entre os outros elementos. Assim como a interpretação que a
acompanha e permite explicá-la, a experiência permanece suscetível de provocar dois tipos de
estado, seja de fascinação, seja de angústia extrema.
16
É antes como aberrações, divagações, como desvio, perturbações nervosas,
descompensações, que essa experiência é geralmente interpretada pelos ocidentais, pelos
psiquiatras, diagnosticando-a como uma “crise”, um desabamento melancólico ou crises de
delírio agudas pela psiquiatria francesa, ou esquizofrenia para a psiquiatria anglo-saxônica.
Freud tendia, acima de tudo, a descrever antes os efeitos negativos dos estados de estranheza,
ansiedade ou angústia suscitados pelo sentimento oceânico, mesmo se ele admitia que esses
estados negativos podem às vezes se transformar em estados de exaltação, de bem-estar, ou de
alegria intensa. E porque essa experiência se transforma frequentemente na perda do controle de
si, em um fenômeno de embriaguez das profundidades, em um movimento de dissolução, ou de
expansão de um eu ilimitado, ele a analisa então como um restabelecimento do narcisismo
primário da primeira infância, assim que a mãe e o filho não estão ainda separados. Mas o
sujeito, segundo Freud, não poderia reconhecer ou se lembrar desse desenraizamento radical, a
experiência extática aborta ao proveito de uma expansão incontrolável de angústia.

A cultura indiana, em revanche, não hesita em descobrir imediatamente uma experiência


mística. Essa experiência psíquica de encantamento dá uma impressão de infinito, um sentimento
de eternidade. A explicação sublinhada pelos especialistas da cultura indiana coloca em destaque
a carga simbólica e ritual dessa experiência do sagrado, que banha e impregna toda a atmosfera
da Índia. Existem, nas culturas tradicionais, códigos de deciframento e mesmo de indução do
sagrado, de “etnométodo” capazes de nomear sem estigmatizar quando ele acontece. A cultura
indiana reconhece não somente o sentimento oceânico, mas ela sabe enumerá-lo em diferentes
níveis. Um dos primeiros estados de graça e de devoção é a bhakti, sentimento de amor que une
o homem ao universo. Os sábios, os renunciantes ou os sadhous fazem crescer esse estado de
comunhão cósmica até a renúncia de toda a vida social, ao nirvana, estado de êxtase “fora do
mundo”. Os sadhous – que vivem na pobreza, retirados nas montanhas – influenciaram o
movimento hippie de maneira forte. Os sadhous, chamados baba na Índia, darão mesmo seu
nome aos primeiros hippies que irão fazer a peregrinação indiana, os baba-cool (bichos-grilo).

Em um surpreendente retorno, o “sentimento oceânico” reencontra então suas raízes


orientais. Em efeito, essa noção foi inspirada a Romain Rolland por Ramakrisna que a resgata na
filosofia dos Vedas, textos mais antigos do hinduísmo, a metáfora vaga/oceano para explicar as
noções de consciência pessoal (atman, em sânscrito) e de consciência supra pessoal (brahman).
A cultura ocidental, preconizando o individualismo, ignora que a alma individual é a alma
universal, e que a vaga é o oceano. Mas, esclarecida por este ensinamento, a alma compreende
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que ela deve abolir toda fronteira entre si mesma e o outro. Então, a vaga consente em se
escorrer nas outras ondas e de se impregnar delas em retorno; elas são então todas, igualmente
atravessadas pelo fluxo e refluxo do mesmo movimento oceânico. Os métodos que consistem em
captar esse “élan vital” preconiza antes de tudo um soltar, como compreenderá Timothy Leary
quando ele faz sua própria divisão e seu próprio método. Como a metáfora platoniciana da
caverna, o homem prisioneiro em sua ignorância sai da penumbra graças ao conhecimento, para
entrar em um mundo luminoso da verdadeira realidade, uma surrealidade esmagadora e
deslumbrante, a altura do estado de nirvana indiano.

Assim, a Índia e o Oriente permanecem suscetíveis de provocar esse acesso direto – a


quem sabe reconhecê-lo – ao sentimento oceânico e, então, à primeira forma de experiência
mística. Da mesma maneira que as drogas, e principalmente os Phantastica, parece propício a
esse tipo de experiências extáticas. Ora, os hippies vão conjugar o conjunto de modos e métodos
conhecidos para acessar ao sagrado: as drogas alucinógenas, a iniciação à Índia, a música
psicodélica, o encontro festivo e coletivo... E é bem porque os limites do eu se tornam incertos e
infinitos que o êxtase provoca o sentimento oceânico ou a união com o Grande Tudo (versão
oriental), ou de pertencimento universal (versão ocidental).

“Nomeando o rio”: em torno de Timothy Leary

Assim que as atividades e as práticas tornam-se típicas e redundantes, elas acabam por ser
erigidas em regras ou em regramentos, pois elas dão lugar à justificativas teóricas, que são
elaboradas conceitualmente: trata-se de uma “tipificação” e de uma ritualização das atividades. A
experiência de êxtase sob psicotrópicos, depois um modo de vida comunitário sob psicotrópicos,
se efetua em um primeiro momento de modo espontâneo ou “selvagem”, sem conhecimento nem
experimentações particulares. Depois, ao longo do tempo, os hippies vão redescobrir, reencontrar
as regras de uso dos Phantastica, depois reinventar os rituais que permitem compreender e se
proteger de seus efeitos sempre potencialmente nefastos a curto e a longo prazo.

Certos personagens do movimento hippie têm uma parte ativa nas fundações ideológicas
e rituais. Eles se fixam então na memória coletiva como líderes, ou figuras, ou seja, “papas”. Sua
história pessoal, várias vezes contada (por eles mesmos ou por biógrafos), se transforma pouco a
pouco em lenda. Para cada movimento cultural, existem assim vários personagens que podem ser
escolhidos para dar uma figura, um nome, ou um ícone, e caracterizar definitivamente o
movimento na memória coletiva. Às vezes, é mesmo a posteriori que um personagem permite
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simbolizar o movimento. Assim, segundo Gilbert Durand, o movimento do franciscanismo teria
podido ser representado por Roger Bacon, ou Guillaume d’Occam e o nascimento do
romantismo e da filosofia da natureza poderia ser encarnado por Rousseau, Goethe ou Kant. Pois
“a nomeação de um mito pode ser reativada, reembebida, exacerbada por uma personalidade
(Alexandre, Auguste, Joana d’Arc, Napoleão, Lénin...)”. Para o movimento hippie, foi possível
escolher bem várias figuras carismáticas entre as estrelas, promovidas por aqueles que
compunham o movimento musical, político ou científico. Se nós escolhemos Timothy Leary, é
porque sua própria história reflete às vezes as vicissitudes do movimento e as tentativas de
elaboração conceitual e ritual, e porque o movimento, ele mesmo, o reconheceu como um de
seus porta-vozes ou de seus papas, um papa “angelical”, se houver...

São, de fato, dois psicólogos de Harvard, o professor Timothy Leary e seu assistente
Richard Alpert, que popularizaram a ligação êxtase/espiritualidade, dos quais os termos são
então bem estabelecidos e que a atmosfera da época permite acolher. São eles que
conceitualizarão os usos típicos, maneiras e rituais dos Phantastica. Ao contrário de Huxley ou
de Watts que vêem a droga pelo misticismo, eles partem de experiências muito sérias – com
objetivos médicos – sobre as drogas alucinógenas em geral e sobre o LSD em particular. Mas, na
sequência de uma viagem ao México, onde Timothy Leary experimenta em Cuernavaca os
cogumelos alucinógenos – o que ele descreverá como a experiência religiosa mais profunda de
sua vida –, ele desenvolve pouco a pouco o aspecto religioso que dela se origina. Mesmo se, ao
ver os maus efeitos do LSD que ele pode constatar, se mostra “mais convencido que nunca da
importância de uma seleção inicial, de uma preparação e de um meio de sustentação”, ele
abandonará, depois de 1963, as funções universitárias para se consagrar à promoção do
movimento psicodélico que seus primeiros artigos começaram a suscitar.

Daí então, quem nós chamamos de “papa do LSD” – denominação que ele mesmo se
utilizou voluntariamente – se instala em Millbrooks, Estado de New York, em uma propriedade
vitoriana de sessenta e quatro quartos, emprestada por Peggy Hitchcock e seus irmãos, herdeiros
da fortuna dos Mellon. Ele funda uma comunidade sobre o modelo daquela dos “cientistas
místicos” de Hermann Hesse em Glasperlenspiel (O jogo de contas de vidro) e desenvolve sua
filosofia de expansão de consciência que ele resumiu pela seguinte fórmula: You have to be out
of your mind to use your head (“é necessário sair de sua mente para bem utilizar sua cabeça”).
Então, Timothy Leary escreve que “o movimento psicodélico repousa sob uma atitude mística,
anti-científica, anti-intelectual e antirracionalista”. Mas ele se baseia na teoria de Einstein
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segundo a qual “o cérebro humano é usado somente em 80%” – teoria que se torna um dos
slogans de todo o movimento – e expõe “uma visão do mundo fundada sobre o progresso
indefinido de conhecimentos e de tecnologia”. Essa visão do mundo, transpassada por um
esquema de progresso, aparece paradoxalmente como um novo prometeísmo.

Em um artigo publicado no Harvard Review e intitulado “a política da expansão da


consciência”, Leary escreve:

É possível que daqui a vinte anos todo o nosso léxico psicológico e experimental [...]
cresça a ponto de cobrir novos campos de consciência e novas formas de pensamento
hoje desconhecidas. Daqui a vinte anos, todas as instituições sociais serão
transformadas pelas percepções inéditas encontradas por essas experiências de expansão
da consciência. Numerosas instituições sociais canalizarão a expressão do sistema
nervoso assim revelado.

Para Timothy Leary, a experiência religiosa, é a descoberta extática, “absolutamente


irrefutável e subjetiva”, das respostas às questões humanas fundamentais: o que é a morte, o que
é a vida, de que energia ela é composta? Quem eu sou?... E, no The Politics of Ecstasy, ele
mostra como cada religião propõe suas respostas, utilizando e canalizando essa experiência
mística para imprimir nela suas próprias interpretações. Assim, as religiões podem ser
classificadas em função do tipo de respostas, ou imagens mentais pelas quais elas preenchem os
poços sem fundo dos questionamentos humanos que surgem com muito mais acuidade sobre os
psicotrópicos. Demais, Leary propõe distinguir diferentes estados modificados de consciência
em uma classificação que se aproxima dos níveis de consciência aberta pelas religiões e
paralelamente acessíveis pelas drogas. E distingue sete níveis de consciência sobre um
continuum, que vão desde a experiência extática, ou da transcendência, à simples falta de fé ou
ao niilismo.

O budismo (próximo dos estados provocados pelo LSD) permite transcender a via de
encontro ao estado de Buda, luz branca além da forma (êxtase propriamente dito). O hinduísmo
(peiote e psilocibina), mais elitista, reserva estes estados de Buda chamados nirvana aos
destinados excepcionais de certos sadhous ou santos, mas leva ao comum dos crentes a se
representar à complexidade das reencarnações, e o lugar do humano na harmonia do todo no
universo. O tantrismo (haxixe e MDMA), uma das vias particulares do hinduísmo, se concentra
sobre a energia somática e sexual (a kundalini) e os nós energéticos do corpo (os chakras) para

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atingir a supraconsciência. O zen, o judaísmo hassídico, o sufismo, o cristianismo primitivo
(maconha), utilizam ainda os métodos (liturgia) para concentrar a energia sensorial. O
protestantismo e o judaísmo talmúdico (excitantes) são as religiões do ego. O catolicismo e as
seitas reconhecendo o diabo (álcool) são fundados sob a emoção do medo. O suicídio e o culto a
morte (narcóticos e venenos) são niilistas, negando toda a transcendência.

Budismo LSD

Hinduísmo Peiote, Psicocibina

Tantrismo Haxixe, MDMA

Zen, judaísmo hassídico, sufismo, cristianismo primitivo Maconha

Protestantismo, judaísmo talmúdico Excitantes

Catolicismo, seitas satânicas Álcool

Dessa classificação, é possível reparar que, para Timothy Leary, as religiões que se
aproximam das experiências de êxtase, então dos caminhos da transcendência, começam
somente no quarto nível, e ele privilegia assim as religiões extremo-orientais. Desse modelo, os
hippies reterão, todavia, que todas as religiões têm por primeira mensagem o amor, a paz e a
harmonia, e se lembrarão às vezes do cristianismo – notadamente lhe fazendo homenagem na
ópera-rock: Jesus Cristo Super Star. Mas eles sublinharão sua preferência pelas religiões
orientais que não desprezam seus produtos preferidos, os Phantastica, como meio de acesso à
experiência mística.

Encontraremos permanecendo nessa mesma hipótese de uma ligação muito densa entre
continente geográfico, perenidade de uma grande religião, e uso moderado de um produto
psicotrópico em um outro especialista da experiência religiosa,Philippe de Félice . Sua
classificação traz algumas nuances, associando alguns conjuntos graças à variável cultural:
Extremo-Oriente, zen e ópio; Oriente, Islã e haxixe; Europa, álcool e cristianismo, Américas,
xamanismo e cactos sagrados. E também deve ser observado que sem argumentar tão
precisamente sobre as diferentes tradições religiosas, Bergson pôde evocar, também, diferentes
meios de acesso ao sagrado e sublinhar a proximidade da experiência entre os psicotrópicos e as
vias de acesso ditas “naturais”. Mircea Eliade igualmente mostrou que, nas sociedades
tradicionais o xamã utiliza os psicotrópicos para se ligar ao mundo dos ancestrais e dos deuses, e
que essas culturas acham isso perfeitamente “natural”.

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Em todo o caso, a revolução psicodélica se apresenta muito rápido como permitindo o
progresso do espírito humano, até onde é possível, segundo a expressão de Jack Kerouac, “de
olhar Deus na face” e como modificando radicalmente nossas relações com o outro e com a
natureza. Alan Watts, que Timothy Leary converteu ao movimento psicodélico, exprime muito
claramente em Joyous Cosmology a transformação da relação do eu com o outro e com a
natureza que permite o LSD:

Se revela [...] uma forte sensação de comunhão com o outro, provavelmente próxima da
sensibilidade particular que permite a um grupo de aves fazer evoluções no ar como se
elas não formassem um só corpo. Uma sensação deste tipo parece poder constituir um
bem melhor fundamentado pelo amor mútuo e a ordem social que a ficção da vontade
separada.

A imagem do homem, não mais “concebido como espírito preso em seu contrário, a
carne, mas como organismo inseparável de seu meio social e natural”, agora é possível graças à
“suas notáveis drogas que permitem ver o que normalmente ignora a consciência separadora – o
mundo como um conjunto de relações recíprocas”.

E Timothy Leary, ele mesmo, tira as implicações sociais desta expansão de consciência.
Resumindo a filosofia do movimento pela fórmula lapidária: Turn in, tune in, drop out, ele
convida a colocar em cheque a ordem estabelecida, a procurar as estruturas sociais mais de
acordo com as novas dimensões da consciência e com a solidariedade cósmica revelada. Assim
ele defende o estilhaçamento da célula familiar: ele considera que os problemas essenciais vêm
da família e da sexualidade, e vê o sexo coletivo como uma etapa quase necessária. Ele defende a
simbiose com a natureza e com uma profunda renovação do corpo social.

A constituição de um novo conjunto orgânico, onde a base seriam as comunidades que


começam a se desenvolver então, poderia achar seu modelo social na organização comunitária de
certas sociedades orientais ou primitivas. Como para os primeiros cristãos ou os primeiros
sonhadores do comunismo antigo, o grupo comunitário é a chave mestra inicial da filosofia
hippie. Essa filosofia do elo social repousa sobre a noção de fraternidade universal – os adeptos
se chamam, às vezes, irmãos-irmãs – e ela é estabelecida sob o sentimento do coletivo, e suas
regras vão até a revolução sexual preconizada por Wilhelm Reich.

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A segunda chave mestra da filosofia hippie repousa sobre a experiência sensorial da
liberdade individual, ou a paz interior, da qual a expressão e a definição serão procuradas entre
os filósofos místicos orientais, que repararam nela e a descreveram como o estado de Buda ou
nirvana. O meio de se desprender das rotinas cotidianas, de abandonar o que é muito pesado,
para viver sua vida plenamente, reside na prática das drogas psicodélicas, mais especificamente
alucinógenas e propícias à experiência do êxtase. Leary define assim os termos:

Turn in: tornar sensível aos desejos e múltiplos níveis de consciência assim que os
caminhos específicos permitem ascendê-la [...]. Tune in: exteriorizar, materializar,
exprimir essas novas perspectivas interiores [...]. Drop out: ter confiança em si,
descobrir sua própria singularidade e se engajar na via da mobilidade, da escolha e da
mudança.

Todas as outras experiências sensíveis do mesmo tipo, viagens xamânicas, transe de


criação ou transe extático dos estados de nirvana e Buda, parecem induzir também estados
modificados da consciência. Nós temos acesso a elas pelas práticas ancestrais da ascese, da
concentração, da meditação, ou como no yoga pela diminuição e suspensão da respiração, ou
ainda pela escuta de músicas privilegiadas tradicionais, e reinventadas aqui pelas sonoridades
psicodélicas.

A experiência das substâncias psicodélicas, abrindo espaços desconhecidos e


manifestando o amor cósmico, permite assim integrar em uma só divisa os esquemas mais
diversos do imaginário dos anos 60: neo-tribalismo, neo-rousseauismo, neo-fourierismo,
revolução sexual, atração pelo Oriente.

O arranjo dos rios

Que em torno desse corpus doutrinal, aliás muito simples, se constituiu muito rápido todo
um ritual é o indício da epifania de uma nova religião. Aplicando os grandes princípios do amor
universal, os hippies reinventam os modos de vida mais conviviais, mais coletivos e, sem dúvida,
mais generosos que os da sociedade prometeiana e individualista que o cerca. Um novo “estar
junto” se elabora no quotidiano, que, no início das experiências da vida comunitária, só deseja
reconhecer como regra a liberdade. O lema dos situacionistas franceses, “Gozar sem entraves”,
ilustra magnificamente os ambientes efervescentes dos grandes encontros hippies, nos concertos
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e nas manifestações célebres como na vida quotidiana das primeiras comunidades abertas a tudo
e a todos.

Pouco a pouco, essas atmosferas de solidariedade elétricas e fusionais, se renovando,


acham suas próprias formas, seus ritos, seu estilo e sua justificativa racional. A utopia
psicodélica torna-se uma filosofia em atos. A grande sociabilidade vibrante de todas as tribos
reunidas ou a pequena sociabilidade sensual que se forma nas comunidades são a prova deste
amor total e utopista podendo bem se encarnar, depois se instituir. Mas, ao se instituir, a
sociabilidade hippie, grande ou pequena, descobre suas regras e seus limites.

Sem dúvida, certas das características mais marcantes do movimento que se desenvolve
em São Francisco tem já essa nova sociabilidade defendida por Timothy Leary. Assim a tentativa
de uma vida comunitária e libertária no bairro de Haight-Ashbury aparece, sem pensar na sua
avaliação, positiva ou negativa, como a forma possível, em um nível microscópico, de
organização de sociedade futura, com suas clínicas gratuitas, com sua comida fornecida a preços
mais baixos pelos Diggers e o LSD por Augustus Owsley Stanley III, ao menos em um primeiro
momento, antes que isso não seja oficialmente proibido. Da mesma maneira que os love-in, be-in
e outros smoke-in no Parque Golden Gate – qualquer que seja o pretexto: reunir
espontaneamente para festejar o amor em 06 de outubro de 1966 ou, mais tarde, a recusa à guerra
do Vietnam – ou as danças que, nos balrooms do Filmore (abertos em 1965 por Bill Graham) e
de Avalon, acompanha espontaneamente os grupos de rock que se produzem, eles podem
aparecer como tantos rituais que visam ultrapassar o indivíduo em um todo maior. O termo da
moda à época era together. Os grandes festivais de rock, dos quais o primeiro acontece em
Monterey, 150 Km mais ou menos ao sul de São Francisco durante o verão de 1967 e que
constituirá um modelo para os festivais subseqüentes, aparecerão na sequência como uma
representação quase ideal desse “esta junto”, do qual Jerry Rubin, por sua vez, fará a
quintessênia alguns anos mais tarde no Do It, se lembrando do Human Be-In de janeiro de 1967
no terreno de pólo do Parque Golden Gate:

Os hippies de São Francisco convidaram um dia os radicais de Berkeley em seu templo


budista. Inicialmente nos disputamos depois decidimos unir as tribos do Haight-
Ashbury e Berkeley. Uma reunião de todas as tribos. Parque Golden Gate. [...] Sem
pensar em palavras de ordem. Nossos corpos nus eram nossos slogans. [...] No lugar de
falar de comunismo, nós começávamos a vivê-lo.

24
Mas, em um primeiro momento, é uma cultura particular, verdadeira imagem da marca de
São Francisco, que o sonho psicodélico contribui a iniciar. Ele origina, em efeito, em suas
manifestações as mais visíveis sobre as quais se denominou de uma “cultura da vertigem”.

São as revelações que permitem que o LSD – as revelações de infinitude do espaço, da


unidade cósmica ou comunhão com o outro – que aparecem como ponto focal da nova visão do
mundo, e é essa experiência que a maior parte das práticas culturais do psicodelismo procura
reconstituir e, na sequência, partilhar. Assim devem ser interpretados os gêneros particulares de
arte gráfica, o do pôster, que nasce na época, mais particularmente em 1966, e que, recuperando
os pressupostos surrealistas e utilizando as técnicas modernas, busca transformar as referências e
abrir sobre uma realidade outra, à “dissolver o indivíduo no ambiente cósmico”, mas também
aquela que cria as roupas coloridas e impressos que fazem a ligação com as experiências drogas
psicodélicas. Do mesmo o acid-rock, aos quais se voltam mais ou menos todos os grupos da
cidade, os mais representativos e os mais conhecidos sendo Jefferson Airplane, Grateful Dead e
Quicksilver Messenger Service. O nome mesmo do primeiro desses três grupos sublina suas
propriedades “planadoras”, tanto que o seu segundo álbum, Surrealiste Pillow, feito às vezes de
referência às imagens do surrealismo e a Alice no país das maravilhas. As letras de White Rabbit,
uma das canções do álbum, é todo um programa: elas mencionam uma “pílula” que, como para
Alice de Lewis Caroll, e como no caso do LSD, permite crescer, ou aumentar sua consciência:
One pill makes you larger/ One pill makes you small (Uma pílula te torna maior, uma pílula te
torna pequeno). Tanto que os efeitos descritos restam estranhos e quase inquietantes: When logic
and proportion / Have fallen softly dead (Quando a lógica e a proporção desaparecem
progressivamente), como no universo onírico de Alice. Quanto ao segundo grupo, seu guitarrista
e principal compositor, Jerry Garcia, adotou cedo o apelido de “Captain Trip”.

Mais do que toda outra forma de música dos Sixties, o acid-rock visa fazer chegar à
vertigem. Para ele mesmo uma vez que ele privilegia, como a música hindu, o ritmo e a melodia
em detrimento da harmonia e utiliza todas as possibilidades da eletrônica, mas também para
todas as sortes de solicitações sensoriais das quais ele se cerca durante suas representações de
forma a constituir um espetáculo total: a liberação de perfumes orientais – sândalo ou incenso –
os light-shows – projeções de protoplasmas criados pelo líquido colorido injetado entre duas
placas de vidro – inventados por Ken Kesey e sua equipe dos Merry Pranksters e rapidamente
recuperado pelos principais organizadores dos concertos de São Francisco.

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Muito logicamente, a viagem ao interior de si mesmo, a trip que permite o LSD, se
acompanha de uma viagem geográfica que é também uma viagem iniciática, bela aproximação
que permanece no trajeto antropológico, “quer dizer a incessante troca que existe no nível
imaginário entre os impulsos subjetivos e assimiladores e as intimações objetivas emanando do
meio cósmico e social”, do qual fala Gilbert Durand. Ele se inscreve na continuidade da viagem
beatnik, On the Road que se torna um livro cult, e será emblematizado pelo célebre filme Easy
Rider. Mas, enquanto a viagem beatnik estava majoritariamente circunscrita no território
americano, com uma extensão eventual ao México, a viagem hippie, ela se exerce ainda
voluntariamente sobre o continente norte-americano como esta dos Merry Pranksters e sobre os
caminhos mexicanos das drogas, se dá assim de novos horizontes. A viagem ao Oriente
(Afeganistão e Índia, e mais marginalmente Marrocos) se torna um rito iniciático de primeira
importância. Fazendo isso, se recupera um senso que remete ao século XIX, aos românticos,
igualmente adeptos a viagens dos psicotrópicos, e de viagens sob psicotrópicos, para os quais a
viagem ao Oriente era um rito obrigatório, uma “passagem” obrigatória da experiência sensível,
um percurso até o centro de sim mesmo onde se trata de descobrir sua “parte oriental” e a chave
perdida de uma compreensão da cultura ocidental. A viagem é a metáfora de um percurso
iniciático, esquema comum à numerosas tradições, que supõe a idéia de paraíso e de busca, e
descreve uma forma de encaminhamento, uma sucessão de passagens ritualizadas de um lado a
outro.

De uma maneira mais geral, a viagem hippie acha, ao menos, uma inspiração que
remonta ao romantismo e ressurge no início do século XX. Ao apelo da Índia responderam os
indivíduos isolados, tão diferentes quanto Aleister Crowley, Alexandra David-Neel, Georges I.
Gurdjieff, Hermann Hesse ou Hermann von Keyserling, tanto quanto, sob a impulsão de líderes
como Allen Ginsberg ou Timothy Leary, ou como modelo a viagem dos “Beatles” à Caxemira, o
que foi apenas uma pequena amostra da juventude ocidental que, nos anos 60 e 70, pegam o
“caminho das Índias”, de carona ou de ônibus. Eles vão procurar, é claro, os paraísos artificiais
da droga que estimam parte integrante da cultura oriental, mas também a espiritualidade que
esses paraísos permitem e que são necessários ao Ocidente integrar para equilibrar seu
materialismo. As roupas trazidas do Oriente tornam-se rapidamente as peças indispensáveis de
uma moda hippie. Esta, refeita por certos costureiros, se impõe bem rapidamente como uma
moda inteiramente à parte. Seria um erro ver aqui um efeito superficial e não a expressão de um
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choque em profundidade, pois para entrar nas crenças e costumes de um povo ou de uma
civilização à qual já se emprestou os usos da consumação do kif ou do haxixe, convém sem
dúvida entrar antes em suas roupas.

Como para as práticas que se relacionam ao consumo das drogas ou ao estilo de se vestir,
as atividades da vida quotidiana em geral, a música, a sexualidade, a alimentação, as festas, mas
também a educação das crianças, as relações dos vizinhos, se ritualizarão pouco a pouco. Assim,
se eles não se constituem realmente, ao menos foram de uma certa maneira de uso e costume
hippies.

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