“Abrir-se para a diferença implica em se deixar afetar pelas
forças de seu tempo. ” (ROLNIK, 1998, p.8).
O estudo da Arquitetura e Urbanismo, dentro das escolas brasileiras no
geral, tem se voltado estritamente a análise formal e utilitária, impossibilitando a expansão do campo disciplinar, numa perspectiva rígida que considera discussões de temas transversais como ‘anti arquitetura’ e limita-se ao que já está posto. Essa restrição parte de uma sensatez que é importante para manter o fazer arquitetônico em sua ‘alçada’, mas em excesso pode ser seu próprio veneno. Como observado na introdução do livro ‘Walkscapes: o caminhar como prática estética’ de Francesco Careri (2003) o que se observa pelo mundo nos últimos anos, é uma expansão do campo para outras áreas, aproximando psicologia, paisagem, cartografia e outros, que trazem aprofundamentos instrumentais ‘anti arquitetônicos’ como discussões ‘de margem’ funcionando como recurso para reinventar o objeto projetual em si. A cartografia é o objeto de análise deste breve artigo exploratório e pretende extrapolar a materialidade física dos espaços construídos elucidando mapas afetivos, compostos por rastros das ocupações dos grupos sociais transpostos através de linhas e vetores, atravessamentos sobre os espaços públicos metropolitanos, revelando-se sobre o desenho urbano enrijecido em suas estrias. Essa cartografia existe em constante mutação, suas sucessivas sedimentações condensam mapas instantâneos e frágeis, articuladas em instrumento estético capaz de descrever e modificar os espaços de uso público, estes que muitas vezes são de ‘uma natureza que ainda deve ser compreendida e preenchida de significados, antes que projetada e preenchida de coisas’ (CARRERI, 2003). As áreas públicas das grandes e médias cidades se concentram majoritariamente no espaço das ruas, elas acontecem como elemento de ligação e movimento da cidade, são estrias da urbanidade onde acontece uma sociedade difusa. Nessa perspectiva, áreas amplas e verdes como largos, praças, e anfiteatros públicos possibilitam respiros para o desenvolvimento de afetos dos microgrupos sociais, são ambientes de estabilização e desestabilização do vínculo social ou corpo coletivo que o vivencia, assim como, se transforma a partir deles. No corpo deste ensaio buscaremos entender os movimentos dos grupos ou tribos urbanas nas áreas públicas projetadas e aproximar o olhar sobre os vetores de transformação das linhas urbanas em suas desterritorializações e reterritorializações. 1. ENCONTROS CONCEITUAIS: UMA CARTOGRAFIA RIZOMÁTICA DE AFET(AÇÃO)
Os estudos da cartografia enquanto processo metodológico do
pensamento é ainda pouco explorada dentro do campo da Arquitetura e do Urbanismo, sendo necessários intensos deslocamentos teóricos para explorar o espaço urbano na dimensão das forças de afetação. Dessa forma, bordou-se de filosofia e pinceladas de sociologia as bases para exploração do tema. O exercício cartográfico experimental que aqui se pretende, dentro dos limites de aprofundamento temático-temporal deste trabalho, foi embebido da obra Mille plateaux. Capitalisme et schizofhrénie (1980) dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, que aborda a contemporaneidade e seu estado de coisas como dissolução da perspectiva hierárquica e totalizante da realidade. As relações se estabelecem em estado de multiplicidade, através de agenciamentos rizomáticos. Esta perspectiva se apresenta como um mapa em constante cartografia, uma rede no qual não existem centros, mas sim encontros, com múltiplas entradas e saídas aonde tudo está conectado. Tal cartografia se contrapõem ao pensamento arborescente moderno, desenhada a partir de um ponto inicial. Nas palavras dos autores: “Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas. ” (DELEUZE, 19955, p.16).
A filósofa Suely Rolnik, fonte inspiradora deste ensaio exploratório, em
seu livro Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo (1989), aproxima o diálogo sobre o ato de cartografar os afetos em uma perspectiva atravessada pela realidade brasileira, constituindo uma pesquisa consistente na análise dos processos de subjetivação. Ela traz a figura das ‘noivinhas’, personagem feminino, que, entre anos de 1950 e 1990 transmutam-se em 25 outras noivinhas movidas pelo desejo antropofágico de se alimentar de tudo, em intensa afet(ação). 1 O cartógrafo se encontra também em estado de antropofagia afetual, observando, absorvendo e se transformando junto. Na narrativa, essa noivinha precisa se desprender do padrão patriarcal monogâmico do território doméstico familiar, se permitindo vivenciar seu ‘corpo vibrátil’ e desterritorializar-se, para então, reinventar os territórios e perder o medo (Rolnik, 1989). 1¹ No delinear do raciocínio, as noivinhas podem trazer uma metáfora do Brasil enquanto povo, no processo de territorialidade, movendo-se enquanto corpo coletivo através do desejo antropofágico que grita por delinear seus sentidos e romper com o colonialismo, desterritorializando-se e reterritorializando-se sobre as marcas do passado, de dominação e exploração. Uma leitura que à primeira vista parecia paralela, sem pontos de contato, ás filosofias contemporâneas já apresentadas, mas logo se mostrou complementar, foi o livro O tempo das tribos do sociólogo francês Michel Maffesoli (1988). De sua análise é possível entender o contexto pós-moderno de massificação social, que se faz ver claramente na era midiática- informacional do século XXI, e o delinear dos grupos que dele se alimentam. A ‘desindividualização’ desfaz o sujeito e o rearranja socialmente na busca por conexões afetivas e interesses em comum, conformando-se em corpos coletivos ou tribos afetuais. Esses grupos podem ser observados em reuniões musicais, esportivas ou de consumo e dessa vivencia forma-se uma ambiência na qual as legitimidades espaciais vão se construindo com o uso (MAFESOLI,1988). Essas tribos afetuais no contexto contemporâneo, existem de forma nômade, sem pontos referenciais de partida ou chegada e possibilitam experiências espaciais coletivas, dentro dos processos de diferenciação rizomáticos. O território da cidade, especialmente as áreas públicas e abertas já comentadas anteriormente, se transforma numa experiência estética através do contato entre os diversos grupos urbanos. O encontro com o outro, ou os muitos outros, proporcionado pela ambiência urbana, promove um estado de desterritorialização, e logo se reterritorializam a partir dessa afet(ação) absorvida. Esse movimento se reverbera no espaço urbano construído, o qual, sendo rizoma, se faz maleável a essa tensão, como um tecido, dissolvendo o desenho dos caminhos, limites e pontos referenciais num espaço liso de infinitas possibilidades de rearranjos e reinvenção de sua estrutura.
2. Á(GORA) CONTEMPORÂNEA: UM RASCUNHO CARTOGRÁFICO
Na cidade de Londrina-PR, aonde o cartógrafo deste ensaio estabelece
seus afetos, teve suas áreas de fundo de vale preservadas durante o processo de ocupação dos lotes urbanos, aonde foram projetados alguns equipamentos de lazer ao ar livre. Essas áreas então imersas no vai e vem da cidade e possibilitam estados de afeto em meio a vida metropolitana. O objeto de exploração cartográfica escolhido é um desses equipamentos públicos localizado na região central da cidade. Fica na área do córrego do Leme, hoje conhecido como Zerão, na porção norte fazendo limite com a Av. Bandeirantes. Lá acontece o ‘Anfiteatro do Zerão’; foi projetado na década de 70 e tem formato de um palco de arena com extensa arquibancada.
Figura 1 – Aero foto do córrego do Leme (Zerão) em 1974 e em 1991.
Fonte: BORTOLOTTI, João Batista. Planejar é preciso: memórias do planejamento urbano de Londrina, 2007 (Modificada pelo autor). czdiso: memórias do planejamento urbano de Londrina, 2007
Segundo Bortolotti (2007), um fato interessante da construção do
complexo de lazer foi a apropriação espontânea desse espaço por parte da população, sem que fosse necessária qualquer intervenção do poder municipal. A conformação do anfiteatro, aproximando eixos importantes da cidade e seu assentamento no relevo bordeado de mata verde, o revela como uma espécie de ágora: “'Na Grécia antiga, a ágora era a praça onde se vivia a democracia, lugar de encontro e de confronto, para se conhecer novas pessoas e ter novas experiências; era o fulcro da vida social e civil; local em que as pessoas se encontravam para discutir negócios, política e também onde se rezava. O termo está relacionado a raiz do verbo agueiro que exprime a ideia de reunião. ” (BARDA, 2009, p.40).
Essa ágora se configura para além do espaço físico material, existindo
como ambientação de encontro de diversas tribos urbanas que podem ser cartografadas sobre ela. Diversos agrupamentos de pessoas se apropriam das escadarias durante o dia e a noite para realizar todo tipo de atividade, desde subir e descer as escadarias na prática de exercícios físicos, grupos artísticos utilizando para práticas teatrais, grupos musicais, coletivo de ‘sketchers’ arquitetônicos, coletivos políticos que fazem reuniões e eventos, além dos moradores de rua que usam a concha acústica para moradia provisória. É de fato território do encontro, ágora de afetos e deslocamentos plurais. Nela é possível adentrar por diversos lados, e nesses fluxos do caminhar e contemplar acontecem as interlocuções entre as tribos ali envolvidas com o espaço projetado. As linhas das arquibancadas, cadenciam a visão e definem aonde deve-se sentar; as escadas definindo aonde deve-se passar; elas se reconfiguram no mapa cartográfico como vetores. O movimento dos corpos e se revelam em vibração, fluxo dos corpos vibráteis observados pela Sueli Rolnik (1989) ou movimentos nômades conceituados por Deleuze e Guattari (1997). As linhas e vetores da cartografia que se revelam e modificam-se a cada instante, tensionando o desenho projetado do concreto e ali passa a acontecer um espaço liso, espaço do possível, aonde os afetos estabelecem-se entre os grupos sociais, a princípio fechados em si mesmos, e podem se transformar em afet(ação), novos movimentos de ação e transformação da realidade contemporânea. O movimento é convulsionado, o choque e estranhamento promove sedimentações dos vetores dessa cartografia. Compartilhar o espaço se faz potência nômade, ou Máquina de Guerra (Deleuze e Guattari,1997), sendo a ágora contemporânea o agenciamento rizomático pulsante das coletividades metropolitanas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARDA, Marisa, Espaço (Meta)Vernacular na Cidade Contemporânea, São
Paulo, Editora Perspectiva, 2009.
BORGES, Felipe Amaral. Por uma organização nômade: rizoma e máquina-de-
guerra na luta social. III Congresso Internacional Rede Pilares, Rio Grande do Sul, 2014.
BORTOLOTTI, João Batista. Planejar é preciso: memórias do planejamento
urbano de Londrina, 2007
CARERI, Francesco. Walkscapes: caminhar como prática estética. Barcelona.
Gustavo Gili, 2003.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia,
vol.1. São Paulo: Ed. 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia,
vol.5. São Paulo: Ed. 34, 1997.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1998.
ROLNIK, Sueli. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do
desejo, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.
ROLNIK, Suely. Ninguém é deleuziano. Entrevista – Núcleo de Estudos e
Pesquisas da Subjetividade Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1995.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
DUARTE, R. B. Instrução para E4 avançado. Londrina: Eduel, 2016.
ROLNIK, Suely. Subjetividade Antropofágica. Escritos – Núcleo de Estudos e
Pesquisas da Subjetividade Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1998 PASSOS, Eduardo, KASTRUP, Virgínia e ESCÓSSIA, Liliana da (orgs.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre. Sulina, 2009.
SCHVARSBERG, Gabriel. Rua de Contramão: o movimento como desvio na
cidade e no urbanismo. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2011. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução André Telles. Rio de Janeiro, 2004
MEJÍA, Rafael Estrada. Micropolíticas, cartografias e heterotopias urbanas:
derivas teóricometodológicas sobre a aventura das (nas) cidades contemporâneas. Revista Espaço Acadêmico, Nº 132, Dossiê Rastros Urbanos, Encontros, Experiências e Narrativas (Org.: Cristina Maria da Silva) – Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2012.