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O HOMEM RIDÍCULO: UM POSSÍVEL DIÁLOGO ENTRE DELEUZE E

DOSTOIÉVSKI

Daniela Lima
Uma filosofia que a ninguém
entristece e a ninguém contraria
não é uma filosofia.1

“Havia chovido o dia todo, e era a mais gelada e tenebrosa das chuvas, uma
espécie de chuva ameaçadora”2, é neste cenário sombrio que Fiódor Dostoiévski
descreve o encontro entre uma menina de oito anos e um homem de horríveis
qualidades no conto “O sonho de um homem ridículo”. O Homem Ridículo era visto
como tal por ser indiferente àquilo que todo mundo sabia: à medida que se aprofundava
nos estudos, se deparava ainda mais com seu próprio ridículo. Assim como nos estudos,
também era ridículo na vida. O homem sem nome – que poderia ser qualquer um ou
todo mundo – era visto afinal como um idiota. Mas o que é ser um idiota? Em “O
idiota”, Dostoiévski descreve uma sociedade que entende a utopia do amor-compaixão
do príncipe Míchkin como idiotia. Para Gilles Deleuze 3, a filosofia se coloca ao lado do
idiota como de um homem sem pressupostos, que é salvo do discurso dogmático por
ignorar aquilo que todo mundo sabe e ninguém pode negar.

Mesmo que tenhamos de nos fazer de idiota, façamo-lo à maneira


russa: um homem do subsolo, que nem se reconhece nos
pressupostos subjetivos de um pensamento natural nem nos
pressupostos objetivos de uma cultura de seu tempo e que não
dispõe de compasso para traçar um círculo. (DELEUZE, 1988,
p.191)

1
NIETZSCHE apud Zourabichvili, 2016, p. 52.
2
DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 93.
3
DELEUZE, 1988, p. 191.
Deleuze evoca a metáfora do círculo para apontar a figura que se desenha
quando os pressupostos são colocados nos eixos de desenvolvimento do pensamento
filosófico. São esses pontos ou pressupostos que parecem escapar ao pensamento do
Homem Ridículo. Ou, antes disso, o personagem de Dostoiévski é aquele que se recusa
a começar a pensar.

No entanto, na mais tenebrosa das noites, um encontro inesperado – e


aparentemente sem importância – com uma menina violenta o pensamento do Homem
Ridículo, até que ele se vê inserido involuntariamente em uma busca pela verdade.

Segundo Deleuze4, “a verdade não se dá, se trai; não se comunica, se interpreta;


não é voluntária, é involuntária. [...] A busca pela verdade é aventura própria do
involuntário. Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este
nada significa”.

A menina e o homem indicam que é da contingência do encontro, de sua


paradoxal não-conexão, que o pensar emerge. Percebendo os textos de Dostoiévski e
Deleuze como um espaço de emergência de idéias, este trabalho pretende pensar o conto
“O sonho de homem um ridículo” e “A imagem do pensamento” com Deleuze e
Dostoiévski.

O CÍRCULO DE GIZ: SOBRE O FRACASSO DE COMEÇAR

No caso da filosofia, a imagem do círculo


daria testemunho, antes de tudo, de uma
impotência para começar verdadeiramente
e para repetir autenticamente5.

4
DELEUZE, 2003, p. 89.
5
DELEUZE, 1988, p. 190.
“A filosofia sempre esteve muito ocupada em começar”6, mas seria possível
começar verdadeiramente? Um verdadeiro começo em filosofia significaria estabelecer
um marco zero, um ponto de partida ou de ruptura capaz de eliminar todos os
pressupostos. Mas como seria possível estabelecer esse marco, se um conceito
pressupõe outro conceito? Se ao escapar do conceito encontra-se seu esboço mais
vacilante: o senso comum? É como se começar fosse algo que está sempre acontecendo
às costas do filósofo.

Deleuze sublinha a incapacidade do filósofo de começar


verdadeiramente. Um verdadeiro começo exige a expulsão de
todo pressuposto. Mas é em vão pretender começar por um
conceito que não pressuponha outro [...], pois nem por isso se
escapa a pressupostos de outra ordem, implícitos ou
preconceituais, que só podem se apoiar no senso comum.
(ZOURABICHVILI, 2016, p.44)

Os pressupostos explícitos (conceitos) e implícitos (senso comum) determinam e


são determinados pelos modos de pensar – eixos sobre os quais o pensamento se
desenvolve. Um dos modos de pensar que podem orientar essa “geografia do
pensamento”7 é a recognição. O ato de recognição é baseado em encontrar semelhanças,
correlações e identidades entre as coisas do mundo e aquilo que já se conhece
previamente. Transforma o processo de conhecimento em um tipo de reconhecimento.
Ou, nas palavras de Deleuze 8, “traz à luz, ou ao explícito ou ao conceito, o que era
conhecido simplesmente de maneira implícita”. O processo de recognição é orientado
pelo senso comum e norteado pela moral presente no mesmo, de modo que se poderia
supor que a recognição traçasse superfícies sobre as coordenadas da ordem vigente. Tais
coordenadas limitariam a produção de conhecimento constituindo uma imagem do
pensamento dogmática9 ou representacional. A recognição estabeleceria uma relação
meramente contemplativa com o mundo.

6
ZOURABICHVILI, 2016, p. 43.
7
DELEUZE, 1988, p.130.
8
DELEUZE, 1988, p. 190.
9
Em “Diferença e repetição” (1988), Deleuze propõe quatro postulados sobre a imagem dogmática do
pensamento: (a) pensamento como exercício natural (Cogitatio natura universalis); (b) expressão do
Enquanto o começo é pensado como fundamento, ele está
submetido a um reconhecimento inicial cuja forma é a do senso
comum, de modo que, assim, a filosofia não chega a se desfazer
de uma afinidade prévia com o assunto. (ZOURABICHVILI,
2016, p. 44)

A problemática do exercício do pensamento se tornou central para Deleuze


porque os modos de pensar e as suas expressões, ou imagens do pensamento,
delimitariam as produções científica, filosófica e até mesmo a criação artística. Na
década de 1960, Deleuze problematizou essa questão em três obras: “Nietzsche et la
philosophie” (1962), “Proust et les signes” (1964) e “Différence et répétition” (1968).
Da perspectiva deleuziana, existem algumas imagens do pensamento ou modelos de
representação predominantes na cultura ocidental. Portanto, uma das condições da
verdadeira criação seria a “destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si
própria”10.

O pensamento conceitual filosófico tem como pressuposto


implícito uma imagem do pensamento, pré-filosófica e natural,
tirada do elemento do senso comum. [...] E é sobre esta imagem
que cada um sabe, que se presume que cada um saiba, o que
significa pensar. Pouco importa, então, que a filosofia comece
pelo objeto ou pelo sujeito [...] Podemos denominar esta imagem
do pensamento de imagem dogmática ou ortodoxa, imagem
moral. (DELEUZE, 1988, p. 218-219)

bom senso e do senso comum (c); modelo da recognição (d); Eu penso como princípio unificador de
todas as faculdades.
10
DELEUZE, 1988, p. 230-31.
Segundo Zourabichvili11, a impotência de se desfazer dos pressupostos está
ligada à recognição, isto é, a um processo em que se tenta ultrapassar e conservar
pressupostos em um jogo sem começo e sem fim. Uma filosofia da diferença
renunciaria o ato de recognição, duvidaria da própria intimidade com as coisas do
mundo e afirmaria uma relação de estranhamento e desfiguramento – e não de
identidade ou familiaridade – com as mesmas. Poderíamos imaginar essa filosofia como
a conhecida metáfora de William Faulkner: “é como acender um fósforo no campo no
meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta
escuridão existe ao redor”.

O começo deve ser repetido, e mesmo afirmado a cada vez,


porque o mundo não tem a realidade ou a confiabilidade que
pensamos: ele é heterogêneo. [...] Assim, ele [o pensamento] pode
pensar nas condições de um começo radical absoluto e enunciar,
ao mesmo tempo, que “estamos sempre no meio”. O verdadeiro
começo está necessariamente fora do conceito ou no limite do
conceito, e depende da capacidade desse último não se fechar
sobre si. (ZOURABICHVILI, 2016, p. 44)

O que a filosofia pensa perder, ao renunciar um começo que nunca possuiu, é o


que ela pode ganhar. Se o pensamento fracassa terrivelmente em começar, é porque
talvez o começo não dependa de sua vontade, de sua boa vontade, de uma decisão
arbitrária, de um capricho individual. O ato de pensar começa do meio, começa radical e
efetivamente quando o pensamento está fora de si mesmo. A potência do pensamento
está na percepção de que começar não depende dele.

11
ZOURABICHVILI, 2016, p. 44-7.
UMA HISTÓRIA DESAGRADÁVEL: A VIOLÊNCIA DO SIGNO

Há uma falha em tudo. É assim que a luz entra12.

Senti de repente que para mim dava no mesmo que existisse um


mundo ou que nada houvesse em lugar nenhum. Passei a perceber
e a sentir com todo meu ser que diante de mim não havia nada.
No começo, me parecia sempre que, em compensação, tinha
havido muita coisa antes, mas depois intuí que antes não tinha
havido nada, apenas parecia haver. (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 92-
3)

As páginas iniciais de “O sonho de um homem ridículo” já enunciam que o personagem


de Dostoiévski se tornaria pouco a pouco um homem sem pressupostos. Segundo
Deleuze13, apenas alguém “cheio de má vontade de pensar, que não chega a pensar nem
na natureza nem no conceito” não teria pressupostos. Neste ponto, Deleuze parece
encontrar Dostoiévski, visto que o Homem Ridículo é aquele que se define e é definido
pela extrema má vontade de pensar, principalmente sobre as coisas que tinha que
pensar.

Andando na rua, eu vou dando encontrões nas pessoas. E não era


por andar mergulhado em pensamentos: sobre aquilo que eu tinha
que pensar, já então cessara completamente de pensar: tudo me
era indiferente. E se ao menos eu tivesse resolvido as questões?
Mas para mim tudo ficou indiferente, e as questões se afastaram.
(DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 93)

12
Verso da música “Anthem”, de Leonard Cohen.
13
DELEUZE, 1988, p. 191.
Mas será que o Homem Ridículo realmente cessara de pensar? Talvez seu
pensamento desorganizado, fora de si mesmo, tenha tão somente rompido o processo de
recognição. O paradoxo do personagem de Dostoiévski é que sua indiferença à perda do
começo, sua má vontade de pensar, seu afastamento das questões, sua impotência
extrema para reconhecer as coisas do mundo é o que o levaria ao mais radical começo.
Segundo Zourabichvili, “o pensamento só é absolutamente potente na ponta extrema de
sua impotência”14. Mas para que aquele homem de afetos embotados começasse a
pensar verdadeiramente, seria necessário algo que violentasse, arrastasse, forçasse seu
pensamento.

O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um


encontro; mas precisamente da contingência do encontro que
garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar
não decorre de uma simples possibilidade natural. (DELEUZE,
2003, p. 91)

Na mais gelada e tenebrosa das noites, a violência do encontro abalou o


pensamento do Homem Ridículo: uma menina de oito anos pediu ajuda para a mãe que
estava morrendo, caminhou ao lado dele chorando e engasgando, até que ele a enxotasse
com um grito. Segundo Zourabichvili15, “encontro é o nome de uma relação
absolutamente exterior na qual o pensamento entra em conexão com aquilo que não
depende dele”. Aquele encontro fortuito desviou os eixos do pensamento do
personagem de Dostoiévski, de modo que ele não conseguiria mais seguir sem se
perguntar: “por que não ajudei a menina?”. O signo não era uma aparência ou aparição
clara e explícita; mas um jogo de claro-escuro em que a questão se mostra à medida que
o pensamento se desenvolve. O que o homem encontrara não era a menina afinal, mas
uma força que o tirara do imobilismo: o Homem Ridículo começara a pensar.

14
ZOURABICHVILI, 2016, p.47
15
Ibidem, p. 52.
A menina tinha uns oito anos, de lencinho e só de vestidinho, toda
encharcada, mas guardei na lembrança especialmente os seus
sapatos rotos encharcados, ainda agora me lembro deles. Foram
especialmente eles que me saltaram aos olhos. De repente ela
começou a me puxar pelo cotovelo e a me chamar. Não chorava,
mas soltava entre gritos umas palavras que não conseguia
pronunciar direito, porque tremia toda com tremedeira miúda de
calafrio. Estava em pânico por alguma coisa e berrava
desesperada: “Mámatchka! Mámatchka!”. Voltei o rosto a ela,
mas não disse uma palavra e continuei andando, só que ela corria
e me puxava, e na sua voz ressoava aquele som que nas crianças
muito assustadas significa desespero. Conheço esse som. Embora
ela não articulasse bem as palavras, entendi que a sua mãe estava
morrendo em algum lugar. [...] Primeiro lhe disse que fosse
procurar um policial. Mas ela corria sem parar ao meu lado. Foi
então que bati o pé e dei um grito. (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 95)

Em Deleuze, o devir-criança é uma potência de criação, de ruptura e de


resistência. Esse conjunto de forças invisíveis parece ter atingido o Homem Ridículo: é
o encontro com essas forças que desorganiza o personagem, faz com que ele seja levado
a uma busca pela verdade no limite extremo do delírio. O Homem Ridículo afirma que
todos – do mais sábio ao último dos bandidos – buscam uma mesma e velha verdade.
Portanto, quando ele encontra a verdade na possível resposta para sua pergunta é tratado
como delirante e alucinado: “ah! Como é duro conhecer a verdade sozinho. Mas isso
eles não vão entender. Não, não vão entender” 16.

Aqui retomo a questão deleuziana: a pergunta não deveria ser como alcançar a
verdade, mas em quais condições o pensamento é levado a buscar a verdade?

Há sempre uma violência de um signo que nos força a buscar, que


nos rouba a paz... A verdade nunca é o produto de uma boa

16
DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 91.
vontade prévia do pensamento... A verdade depende de um
encontro que garante a necessidade daquilo que é pensado... Que
quer aquele que diz ‘eu quero a verdade?’ Ele só quer coagido e
forçado. Ele só a quer sob o império de um encontro, conectado
ao signo. (DELEUZE, 1988, p.24-5)

CONCLUSÃO: NÃO POSSO PROSSEGUIR, VOU PROSSEGUIR

O Homem Ridículo de Dostoiévski talvez pudesse estar ao lado de outros


personagens que também escaparam do que era estabelecido: tornou-se indiferente ao
que precisava fazer, assim como Bartleby, de “Bartleby, o escrivão”. Parecia não ter
pressupostos ou referências, sendo movido a pensar por uma força inexprimível, tal qual
Ulrich, de “O homem sem qualidades”. E assim como eles O Homem Ridículo, para
quem “a loucura seria uma promoção”17, desafiaria a imagem dogmática ou
representacional do pensamento com o vazio de uma existência singular.

Nos limites dessa breve reflexão, busquei relacionar uma das questões mais
centrais na obra de Deleuze, ou seja, a problemática do exercício do pensamento com o
vertiginoso caminho do personagem de Dostoiévski, que vai da má vontade de pensar a
uma busca pela verdade no limite do delírio.

Quando Kafka escreveu em seu diário que “um escritor escreve sempre em
língua estrangeira”18, estava nos mostrando como é possível fazer a língua delirar,
produzir um devir outro, tirando a literatura de seus eixos, desterritorializando a
linguagem. Pensar com Dostoiévski e Deleuze é deslocar a geografia do pensamento em
nome dessa intensidade. É se aproximar da verdade descoberta pelo Homem Ridículo,
ao fim do conto de Dostoiévski: “é preciso prosseguir! É preciso prosseguir!”19.

17
DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 91.
18
BRASIL, 2010, p.13.
19
DOSTOIÉVISKI, 2011, p. 123.
BIBLIOGRAFIA

Brasil, Luiz Fernando de Assis. A escrita criativa. Rio Grande do Sul: Editora PUCRS,
2010.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

_________________. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011.

_________________. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Duas narrativas fantásticas. São Paulo: Editora 34, 2011.

ZOURABICHIVILI, François. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. São Paulo:


Editora 34, 2016.

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