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PENAL EM FOCO

Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal


Algumas re�exões sobre os tipos penais relevantes numa situação de epidemia e pontos
legislativos controversos

LUCAS MONTENEGRO
EDUARDO VIANA

23/03/2020 07:41

Crédito: Luiz Silveira/Agência CNJ

Introdução
Embora não seja fácil apontar algo positivo em crises, elas servem ao
menos para sabermos o quanto estamos preparados. Isso vale, é claro,
para a crise que já se vivencia com a expansão do coronavírus no Brasil,

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que, se não contida a tempo, será um desa�o para nosso sistema de


saúde.

Mas o coronavírus vem também contaminar as bases já tão inseguras do


Direito Penal brasileiro. Sintomas disso já começam a aparecer nas redes
sociais – onde se acredita ser possível, com poucos caracteres
disponíveis, discutir seriamente assuntos cientí�cos delicados: opiniões
de toda sorte sobre condutas supostamente criminosas de pessoas
infectadas ou com suspeita de infecção.

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As notícias dos últimos dias já nos fornecem exemplos do problema: no


Distrito Federal, o marido de uma paciente infectada se nega a fazer
exames e permanecer em isolamento; o Presidente da República,
contrariando orientação do Ministério da Saúde e com suspeita de
contaminação ainda não descartada, estimula atos públicos, vai a
manifestação, cumprimenta pessoas e manuseia aparelhos celulares; um
empresário, após ser diagnosticado com a Covid-19, viaja para uma
cidade turística, participa de festas com amigos e contrata funcionários
para trabalhar em sua luxuosa residência de verão.

O que tem nosso Direito Penal a dizer sobre essas condutas? Perigo de
contágio de moléstia grave (art. 131 CP)? Crime de epidemia (art. 267
CP)? Infração de medida sanitária preventiva (art. 268 CP) [1] ? Crime de

lesão corporal (art. 129 CP)? Crime de homicídio (art. 121 CP)? A tomar
pelas opiniões publicadas, basta encontrar um desses tipos penais, e o
problema estará resolvido, quem sabe antes mesmo do diagnóstico
adequado.

A situação, no entanto, é muito mais complexa, e nem sempre há uma


resposta tão clara e rápida quanto as redes sugerem. Este artigo, com
pretensões modestas, tem como �nalidade ensaiar algumas re�exões
sobre os tipos penais que podem ter de fato alguma relevância numa
situação de epidemia e, simultaneamente, apontar para pontos
controversos e de�ciências da atual legislação.

Nosso objetivo, portanto, não é dar um tratamento aprofundado a todos


os problemas, senão somente apresentar diretrizes mais seguras para
possíveis discussões em torno da relevância jurídico-penal daqueles

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comportamentos praticados durante o período da pandemia.

Para desenvolver esses objetivos, começamos deixando claro quais


delitos não se aplicam à situação de epidemia ( abaixo 1); depois
trataremos daqueles tipos penais que podem ter alguma relevância na
discussão ( abaixo 2 e 3); por �m, apresentaremos as conclusões deste
breve diagnóstico ( abaixo 4).

1. Tipos que não se aplicam ou têm pouca


relevância no atual cenário do Covid-19
1.1 Perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 CP)

Quanto a pelo menos dois tipos penais, pode-se a�rmar que eles têm
pouca ou nenhuma relevância em casos envolvendo a epidemia de
coronavírus. O primeiro deles é o art. 131 CP: “Praticar, com o �m de
transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz
de produzir o contágio: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Como esse é um delito de mera conduta (ou ação), a ocorrência do


contágio é irrelevante para sua incidência. E duas razões concorrem para
que esse crime tenha pouca relevância no atual cenário.

Em primeiro lugar, o tipo pressupõe uma moléstia grave. Não é fácil saber
o que isso signi�ca exatamente, tampouco há na jurisprudência uma
de�nição clara ou um rol de enfermidades referido diretamente ao art.
131 CP.

A doutrina se restringe muitas vezes a oferecer exemplos: tuberculose,


cólera, febre amarela, sarampo, meningite. Exemplo não é de�nição,
razão pela qual há uma clara necessidade de maior precisão doutrinária e
jurisprudencial.

No espaço que nos é concedido não seria possível tratar do problema a


fundo, mas deixamos, a título de sugestão, alguns critérios para balizar a
interpretação: a inexistência de cura, a possibilidade de sequelas ou o
alto risco de morte são fortes candidatos.

Quanto a Covid-19, ainda é difícil fazer uma subsunção segura, a�nal


pouco se sabe sobre o vírus. As reações variam bastante de caso a caso,
a depender do histórico e faixa etária do paciente.

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Os estudos atualmente existentes, a maioria baseados nos casos


laboratorialmente con�rmados na China, não permitem conclusões sobre
o que seria o desenvolvimento típico da doença. [2] Na ausência de

informações seguras, consideramos que a dúvida pode favorecer o réu.

Mesmo se superadas as di�culdades de determinação da elementar


“moléstia grave” e a atual ausência de informações sobre o vírus, há uma
segunda razão para que esse tipo penal não tenha relevância.

A cláusula “com o �m de”, que nesse caso indica um delito de intenção,


expressa a necessidade de que o tipo seja realizado com a �nalidade
especial. Não basta que o sujeito saiba da infecção e queira realizar um
ato capaz de contagiar outra pessoa.

Transmitir a doença tem de ser a razão pela qual ele realiza a conduta, o
seu propósito. Concretamente: alguém que sabe estar infectado e aperta
a mão de um conhecido para cumprimentá-lo não tem a intenção de
transferir a enfermidade, embora aceite que o aperto de mão possa levar
ao contágio [3] . Mesmo que ele tenha certeza do contágio, se agiu com
outra intenção, não haverá crime. Claramente, casos dessa natureza
serão muitos excepcionais, para não mencionar as di�culdades de prova
que esse tipo especí�co de dolo implica.

1.2 Epidemia (art. 267 CP)

O segundo tipo penal, esse ainda mais improvável e irrelevante, é


previsto no art. 267 CP. O artigo pune o crime de epidemia: “Causar
epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena –
reclusão, de dez a quinze anos.” Trata-se de um crime de resultado, isto é,
a epidemia, cujo surgimento pode ser imputado ao agente.

Epidemia é a disseminação rápida de uma doença entre um grande


número de indivíduos de uma população humana em determinado
território. Para a realização desse tipo penal, tem de haver, além do
resultado epidemia, um vínculo entre a conduta do sujeito e a existência
da epidemia que, em dogmática penal, é explicitado pelos conceitos de
causalidade e imputação objetiva.

De forma simpli�cada, o sujeito tem que, em razão de uma conduta


especí�ca, poder ser responsabilizado pelo desenvolvimento da própria
epidemia. Seria o caso, por exemplo, de alguém que contamina com uma
bactéria infecciosa uma fonte de água potável que abastece toda uma

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região.

A difusa disseminação da Covid-19 já é uma realidade em algumas


regiões do país (São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo), de modo que se
pode falar na já existência de uma epidemia.

Ou seja, haveria o resultado típico, mas esse resultado não pode ser
imputado a um autor especí�co. A atribuição da epidemia a alguém que,
por exemplo, estando infectado, cumprimenta várias pessoas em uma
manifestação não satisfaria a exigência de causalidade, isto é, a
existência de uma epidemia não dependeria exclusivamente dessas ações
e existiria em uma situação hipotética, mesmo que essa conduta não
houvesse ocorrido.

Trocando em miúdos: a epidemia atualmente existente, ou ao menos a


que se anuncia em algumas regiões do país, não pode ser atribuída a uma
pessoa, mas é o resultado de uma transmissão difusa e, alguns casos, já
sustentada, ou seja, sem que se possa sequer reconstruir a cadeia de
transmissão.

Com isso, chegamos a uma conclusão intermediária: apenas em situações


extremamente inusitadas, se satisfeitos os critérios apontados acima, os
artigos 131 e 267 CP teriam alguma importância no contexto de crimes
relacionados a Covid-19.

Cumpre-nos examinar, agora, os tipos penais que não podem ser


imediatamente descartados, esses são os tipos de infração de medida
sanitária preventiva (art. 268 CP), um tipo de perigo abstrato, e perigo
para a vida ou a saúde de outrem (art. 132 CP), de perigo concreto.

2. Tipos penais de perigo


2.1 Infração de medida sanitária preventiva (art. 268)

2.1.1 O diagnóstico

Esse é um tipo penal que de fato pode ter alguma relevância. Há, no
entanto, muitos pontos a esclarecer. O tipo básico do art. 268 CP conta
com a seguinte redação: “Infringir determinação do poder público,
destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.”

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Trata-se de um crime de perigo abstrato. Isso quer dizer que a sua


ocorrência independe de que haja contágio ou até mesmo qualquer risco
para saúde de outras pessoas. É su�ciente que as determinações em
questão sejam infringidas.

O problema aqui, obviamente, consiste em saber o que são tais


determinações do poder público. A situação é de uma norma penal que,
por si só, não identi�ca a conduta proibida, mas atribui essa tarefa a
outras normas. É o que se denomina norma penal em branco.

Esse tipo de técnica legislativa gera conhecidamente fricções com o


princípio da legalidade, que impõe, dentre outras coisas, que as normas
penais sejam su�cientemente determinadas. No caso das normas penais
em branco, para que o cidadão saiba exatamente qual conduta é proibida,
não é su�ciente consultar o  Código Penal, mas é preciso recorrer a outras
leis, decretos, resoluções etc.

Na jurisprudência alemã, a constitucionalidade deste tipo de norma penal


que, como o art. 268 CP, não faz menção explícita a outra lei, está
condicionada ao seu próprio grau de determinação. [4]

Tomando esse critério por base, é difícil a�rmar que o art. 268 CP satisfaz
as exigências constitucionais. A�nal, fala-se apenas em “determinação do
poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença
contagiosa” , sem que se saiba ao que “determinação” se refere.

A cláusula “destinada a impedir introdução ou propagação de doença


contagiosa” é também excessivamente ampla: ela se aplicaria para
quaisquer determinações sobre doenças contagiosas, independentemente
da gravidade e velocidade de propagação?

Aplica-se também para determinações sobre resfriados ou gripes? Diante


desse quadro de indeterminação, uma possível saída seria subordinar a
aplicação do art. 268 CP à existência de uma lei federal, já a que o
princípio da legalidade (art. 5º CF, XXXIX; art. 1º CP) exige que a condutas
criminosas devem ser de�nidas por lei.

Não há, no entanto, como há em outros países, uma lei destinada à


prevenção e enfrentamento contra doenças infecciosas, com previsão
clara das condutas exigidas pelos cidadãos, as medidas que o poder
público está autorizado a tomar e a previsão de sanções em casos de
descumprimento. [5] A ameaça de uma onda de infecção do coronavírus

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veio, no entanto, denunciar esse vazio legislativo.

2.1.2 Problema resolvido?

Diante da crise que se avizinhava, foi aprovada às pressas a Lei n. 13.979,


de 6 de fevereiro de 2020, que trata especi�camente da emergência do
coronavírus. Assim, se poderia dizer que, pelo menos quanto a infecções
por coronavírus, há uma lei federal para dar suporte legal ao art. 268 CP.

Dentre outras coisas, a lei autoriza a determinação de medidas como


isolamento, quarentena e realização compulsória de exames médicos (art.
3º), bem como alguns deveres de comunicação (arts. 5º e 6º). Mas a lei
não resolve tudo.

Ela foi adicionalmente regulamentada pela Portaria nº 356, de 11 de


março de 2020, do Ministério da Saúde. Segundo a Portaria, por exemplo,
a aplicação da medida de isolamento depende de prescrição médica ou
recomendação do agente de vigilância epidemiológica (art. 3º, § 1º); a
decretação de quarenta exige ato administrativo formal e devidamente
motivado (art. 4º, § 1º).

A cereja do bolo, entretanto, vem com a Portaria Interministerial nº 5, de


17 de março de 2020, que determina, em seus arts. 3º e 4º, que o
descumprimento das medidas de isolamento e quarentena, bem como a
resistência a se submeter a exames médicos, testes laboratoriais e
tratamentos médicos especí�cos, acarreta punição com base nos arts.
268 e 330 CP.

Com essa cascata de normas, o cidadão �ca sabendo a conduta passível


de punição: ele é obrigado a �car em casa em isolamento, porque a
prescrição médica (norma i) se baseia na Portaria nº 356 (norma ii), que
regula a medida de isolamento de�nida na Lei nº 13.979 (norma iii), que,
segundo a Portaria Interministerial nº 5 (norma iv), seria uma
determinação do poder público destinada a impedir a propagação de
doença contagiosa e, portanto, satisfaz o tipo penal do art. 268 CP (norma
v).

Considerando a premissa liberal de que o cidadão tem de saber quais


condutas são puníveis pelo Estado, é fácil ver por que esse tipo de
construção legislativa é problemática.

Mas se a situação é ruim com essas normas, muito pior sem elas.

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Deixando a questão da constitucionalidade do artigo de lado, o melhor


que se pode fazer, para garantir um mínimo de segurança jurídica, como
defendido acima, é vincular a aplicação do art. 268 CP estritamente às
determinações previstas na Lei nº 13.979, seguindo a forma estipulada
nas portarias.

Concretamente: a medida de isolamento só existe juridicamente se for


determinada por médico ou agente de vigilância epidemiológica e
observar as demais exigências previstas no art. 3º da Portaria nº 356.

Além disso, a pessoa tem de ter sido comunicada previamente sobre a


compulsoriedade da medida (Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º).
Exclusivamente nesse caso, a infração à determinação de permanecer em
isolamento será um crime.

O mesmo vale para a quarentena : sua validade depende de ato


administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por
Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou
Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão,
publicada no Diário O�cial e amplamente divulgada pelos meios de
comunicação (art. 4º, § 1º).

Um outro ponto importante é considerar o que signi�ca cada medida. O


isolamento, segundo a de�nição legal (Lei nº 13.979, art. 2º, § 1º),
somente é aplicável a pessoas doentes ou contaminadas, e não pode ser
determinada para pessoas com suspeita de contaminação.

A quarentena, por outro lado, pode ser aplicada a pessoas com suspeita
de contaminação, mas exige ato administrativo de autoridade pública, e
não pode ser determinada por ato médico, como exposto acima [6] . Há na

mídia muita confusão entre as duas medidas.

Somente se satisfeitos esses requisitos, pode-se falar em infração de


medida sanitária preventiva nos termos do art. 268 CP. Não satisfeitos os
requisitos para determinação das medidas, não há que se falar mesmo
em punição por tentativa, pois o sujeito suporia estar cometendo um
delito que não existe (delito putativo).

Em suma, a tomar pelas portarias emitidas pelo governo federal, as


condutas cobertas pelo art. 268 CP são as seguintes: descumprimento de
determinações de isolamento e quarentena, bem como a resistência a se
submeter a exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos

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especí�cos.

Em todos esses casos, é fundamental que se respeitem as exigências


formais para decretação de tais medidas. Para compreender o que se
deduz da cascata de normas mencionada acima, sugerimos o seguinte
quadro sinóptico:

Conduta
penalmente
Medida sanitária Requisitos
relevante
(art. 268 CP)

– Prescrição médica ou por


recomendação do agente de
vigilância epidemiológica, com prazo
máximo de 14 dias prorrogáveis por
Isolamento : igual período (Portaria nº 356 art. 3º, Infringir o
separação de § 1º) isolamento
pessoas domiciliar ou
contaminadas – Comunicação prévia à pessoa hospitalar
afetada sobre a compulsoriedade da
medida (Portaria Interministerial nº
5, art. 4º, § 1º)

Quarentena :
restrição de Desrespeitar
Ato administrativo formal e
atividades ou a restrição
devidamente motivado, publicada no
separação de de atividades
Diário O�cial e amplamente
pessoas suspeitas determinada
divulgada pelos meios de
de contaminação s em ato
comunicação. (Portaria nº 356 art.
das pessoas que administrativ
4º, § 1º)
não estejam o
doentes

– Indicação mediante ato médico ou


por pro�ssional de saúde (Portaria nº
Realização
356, 6º)
compulsória de Resistir à
exames médicos , realização de
testes – Comunicação prévia à pessoa exames,
laboratoriais e afetada sobre a compulsoriedade da testes e
tratamentos medida (Portaria Interministerial nº tratamentos
médicos 5, art. 4º, § 1º) indicados.
especí�cos

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A Lei nº 13.979 prevê, além disso, deveres de comunicação por parte de


cidadãos e órgãos públicos. Em tese, essas determinações não estariam
excluídas do âmbito do art. 268 CP. A Portaria Interministerial nº 5 não
menciona esses casos, mas não é razoável supor que uma portaria possa
determinar se uma conduta é ou não criminosa, quando esses deveres de
comunicação são estabelecidos claramente por lei.

2.1.3 Uma observação �nal: o concurso de normas

Por �m, um comentário sobre o art. 330 CP, o crime de desobediência. Em


boa parte dos casos de infração de medida sanitária preventiva (art. 268),
o tipo penal do art. 330 CP também será realizado caso a ordem advenha
de funcionário público. Inversamente, no contexto de crimes envolvendo a
epidemia, todos os casos de desobediência implicam necessariamente a
infração prevista pelo art. 268 CP.

Entre os dois tipos existe o que se denomina concurso aparente de


normas (na modalidade de consunção), pois o conteúdo de ilícito do art.
330 CP é consumido pelo do art. 268 CP. O agente só será punido,
portanto, pelo crime de infração do art. 268 CP. A menção ao 330 CP na
Portaria Interministerial nº 5 é desnecessária.

2.2 Perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 CP)

Um tipo de perigo que merece ser verdadeiramente levado a sério é


aquele previsto no art. 132, CP, cuja redação é a seguinte: “Art. 132 –
Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena –
detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais
grave”.

Se dedicarmos um olhar super�cial, e consideramos os casos que


estamos analisando, não há, a rigor, obstáculo à subsunção. Isso porque o
tipo penal admite que o perigo, que é individual [7] , tenha a saúde (e não

somente a vida) [8] como objeto de referência – embora seja possível


cogitar uma redução teleológica do tipo.

No que aqui nos interessa da perspectiva do tipo objetivo, basta que o


agente exponha a vítima a uma situação de perigo direto e iminente à
saúde. Vamos submeter essa intuição à inspeção dogmática para veri�car
se, realmente, os casos apresentados ( acima 1) podem ser subsumidos ao

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art. 132 CP.

O perigo, conforme redação do dispositivo, deve ser direto e iminente. No


espaço que dispomos não conseguiríamos desenvolver melhor argumento
para tentar explicar essas elementares.

Cremos, entretanto, que a ideia que subjaz ao tipo objetivo pode ser
acessada por meio do conceito de perigo concreto. Segundo de�nição
largamente admitida, o perigo concreto é um estado em que a lesão ao
bem jurídico é de tal forma imediata e provável que sua ocorrência
dependerá somente do acaso [9] ; a valoração dessa casualidade é feita

segundo um exame de prognose póstuma objetiva (julgamento ex ante ),


isto é, o terceiro julgador deve veri�car se o comportamento tinha uma
real possibilidade de causar perigo de lesão ao bem jurídico no momento
de sua execução [10] .

O perigo também deve ser abrangido pelo dolo, direto ou eventual, do


autor – talvez seja bastante óbvio, mas às vezes o óbvio precisa ser dito.
Isso signi�ca que a imputação subjetiva será aperfeiçoada tanto na
hipótese do comportamento realizado com o propósito de criar o perigo
como na hipótese em que, apesar de prever a probabilidade do dano, não
se abstém de realizar o comportamento [11] .

Considerando o que foi dito até aqui, e tentando racionalizar o tipo à luz
do grupo de casos que apresentamos, sugerimos o seguinte: primeiro , o
tipo depende da prova de que o autor está contaminado: se não há
Covid-19, então não se pode cogitar dessa imputação; e isso porque se
não há perigo de resultado, então – ainda que exista uma colocação em
perigo – não será possível imputar o tipo [12] ( i).

Segundo , é preciso haver prova de que o indivíduo tinha consciência de


que ele se encontra contaminado ( ii ).

Terceiro , se nas circunstâncias concretas o autor pudesse esperar (ou


con�ar racionalmente) que o risco não se realizaria, então não será
possível imputar esse tipo penal ( iii ) [13] .

Quarto , o agente consciente da contaminação que expõe uma pessoa a


perigo realiza o art. 132 CP, isso não afasta, de acordo com o caso
concreto, o possível concurso com o 268 CP, desde que observadas as
diretrizes de aplicação desse dispositivo ( acima 2.1.2).

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Cumpre ressaltar, adicionalmente, o seguinte: imagine-se que o indivíduo


– que sabe estar contaminado ou tem fundada suspeita da contaminação
– cumprimenta a um amigo.

Como vimos, é possível cogitar a realização do tipo de perigo do art. 132


CP. Na hipótese em que o amigo é de fato contaminado, o tipo penal do
art. 132 CP também restaria formalmente realizado.

No entanto, como há um resultado danoso à saúde, o delito de lesão


corporal não pode ser ignorado. Havendo de fato uma lesão corporal no
sentido do art. 129 CP, o sujeito seria punido apenas por este delito, já
que o art. 132 CP é subsidiário ao art. 129 CP (concurso de leis).

Dito isso, chegamos ao último delito que merece consideração, mas que é
aparentemente ignorado pelas manifestações que até o momento temos
conhecimento: o crime de lesão corporal.

3. Lesão corporal
O último tipo penal que merece consideração é o de lesão corporal. É
possível que a consideração desse tipo penal tenha causado alguma
estranheza em nosso leitor. E isso porque quando se fala em lesão
corporal intuitivamente associamos o comportamento à lesão corpórea.

Entretanto, não podemos esquecer que o núcleo o tipo, a ofensa, tanto


pode ser à integridade corporal como à saúde. E é exatamente nessa
segunda elementar que o atual quadro de pandemia adquire signi�cado.

Essa primeira consideração pode ter provocado re�exões do gênero: bem,


se o tipo penal alcança lesão à saúde, então, por que não se pune pela
lesão corporal o colega de faculdade que, severamente gripado, insiste
em assistir as aulas e transmite o vírus para o restante da sala?

A resposta, aqui, é quase intuitiva, razão pela qual nos cabe dar somente
um fundamento para essa intuição. O direito penal somente se ocupa
daqueles riscos socialmente intoleráveis. [14]

Comportamentos socialmente adequados fundamentam a permissão dos


riscos [15] que a sociedade já tolera e o fundamento dessa aceitação, em
regra, ou decorre de um juízo de ponderação que se faz, isto é, o risco
será socialmente tolerável quando as vantagens com a realização do

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comportamento superam as desvantagens da sua não realização [16] ou

decorre de um risco inerente ao curso da vida.

No último caso estamos diante, na elaboração de Wolter , de


insigni�cantes riscos reais ( unbeachtlich geringen realen Risikos ) [17] .
Voltando para o caso do nosso estudante gripado: nesse caso, é evidente
que existe um risco de transmissão do vírus, mas esse risco é inerente ao
curso da vida, razão pela qual, mesmo numa eventual transmissão do
vírus – o que, naturalmente, representa uma ofensa à saúde [18] – o

estudante não terá realizado objetivamente o art. 129 CP.

Convertendo a resposta em uma fórmula: a imputação do tipo objetivo


deve ser negada porque o estudante gripado não ultrapassa o limite dos
riscos permitidos e, por isso mesmo, não cria um perigo juridicamente
relevante.

Visto que um comportamento que implica transmissão da Covid-19 não


tem suportabilidade social ( soziale Tragbarkeit [19] ), di�cilmente alguém
sustentaria que esse é um caso que expressa um risco permitido.

A própria Lei 13.979/20 corrobora esse ponto ao estabelecer, como dever


de todo cidadão, a comunicação imediata às autoridades sanitárias em
caso de possíveis contatos com os agentes infecciosos ou de circulação
em áreas consideradas contaminadas (art. 5º).

Esse pequeno cenário sobre a lesão corporal nos permite concluir, com
alguma facilidade, o seguinte: o indivíduo que sabe estar contaminado
pela Covid-19, e transmite o vírus a um terceiro, realiza objetivamente o
art. 129 CP, que pode ser quali�cado pelo perigo de vida (art. 129, § 1o, II
CP) ou pelo resultado morte (art. 129, § 3o CP).

Do ponto de vista subjetivo, essa imputação pode ser dolosa ou culposa.


Doutro lado, a realização desse tipo não afasta o concurso de crime com o
268 CP, desde que observadas as diretrizes de aplicação desse dispositivo
(acima 2.1.2).

Somos obrigados, entretanto, a registar um problema adicional para a


atribuição desse tipo penal: estamos diante de um quadro de pandemia
que, por de�nição, é caracterizado pela sua fácil, difusa e incontrolável
transmissibilidade.

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Como a imputação dos crimes de resultado, que é o caso da lesão


corporal, requer a demonstração da relação de causalidade (art. 13 CP), a
di�culdade de reconstruir a cadeia causal coloca sérios, e possivelmente
insuperáveis, problemas para a imputação do tipo e para o
processamento do caso em juízo.

4. Resultados
Retomando, em resumo, as considerações feitas neste artigo,
apresentamos nosso diagnóstico jurídico-penal da situação:

1. É muito improvável que os delitos dos artigos 131 e 267 CP adquiram


relevância no contexto de pandemia de Covid-19;
2. O tipo de infração de medida sanitária preventiva (art. 268 CP) pode
de fato ter um papel relevante na situação em curso. Há, no entanto,
dúvidas quanto à constitucionalidade da norma. Em todo caso, uma
aplicação do art. 268 CP teria de, no mínimo, atentar estritamente os
preceitos da Lei 13.979 e das portarias referidas ao surto de
coronavírus.
3. O tipo de perigo para vida ou para a saúde de outrem (art. 132 CP)
poderá adquirir relevância, nos casos em que alguém, consciente da
contaminação, exponha outro a perigo concreto.
4. Na hipótese de dano efetivo, também assumirá relevância o delito de
lesão corporal (art. 129 CP) e suas formas quali�cadas, como o
resultado morte.

Agradecimentos

Agradecemos ao nosso professor, Luís Greco, bem assim colegas


Orlandino Gleizer, Gustavo Quandt e Heloisa Estellita pela leitura,
comentários e sugestões feitas à versão original.

[1] Segundo notícia divulgada pelo Estadão no dia 16 de março de 2020, o art. 268

subsidiará o pedido de impeachment do deputado federal Alexandre Frota contra o


presidente da república. Cf. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pedido-de-
impeachment-de-frota-contra-bolsonaro-vai-alegar-crimes-contra-saude-

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publica,70003235731.

[2] Nesse sentido, o informe do Robert-Koch-Institut. Acessível em: https://www.rki.de

/DE/Content/InfAZ/N/Neuartiges_Coronavirus/Steckbrief.html

[3] Caso esse conhecido também saiba da contaminação, também deve ser

considerado a impossibilidade de imputação objetiva da conduta em razão do


comportamento autorresponsável da vítima.

[4] BVerfGE 22, 1, 18.

[5] A Alemanha, por exemplo, tem uma lei de proteção a infecções (Gesetz zur

Verhütung und Bekämpfung von Infektionskrankheiten beim Menschen).

[6] Isolamento e quarentena podem ser determinados também a objetos, como de

bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas. A


infração às respectivas determinações em relação a esses objetos também
con�guraria crime nos termos do art. 268 CP.

[7] O perigo comum poderá con�gurar crime contra a incolumidade pública (Título

VII); naquilo que se aplica ao nosso problema, o crime de epidemia ( acima 1.2).

[8] Não discutiremos, porque não é o objetivo do artigo, as questões referentes à

legitimidade e melhor redação para o dispositivo. Limitamos a informar que o seu


espelho foi o anteprojeto de Código Penal Suíço de 1908. A versão �nal desse
código, entretanto, optou por uma redação restritiva, limitando a criminalização à
exposição a perigo iminente de morte.

[9] Cf. Roxin/Greco , AT 5 §10, Rn. 124; Wessels/Beulke/Satzger , AT I 48 , nm. 43; Otto , §
4, Rn. 11; NK 5 – Kargl , StGB, Vor §§ 306, Rn. 19 e ss; NK 5 –Zieschang , § 315, nm. 30 e

ss.

[10] Fischer 66 , § 315c, nm. 15a; Roxin/Greco , AT 5 §11, nm. 147; Zimmermann JR
2018, 25.

[11] Cf. Hungria , p. 418

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[12] Sobre os problemas de comprovação e con�guração do resultado de perigo

concreto, cf. Roxin/Greco , AT 5 §11, nm. 148 e ss.

[13] Cf. BGH NJW 95, 3131; Renzikowski JR 1997, 115.

[14] Decidimos discutir esse problema no âmbito da lesão corporal, porque, na

doutrina penal, ele é normalmente discutido nos delitos de resultado, no âmbito da


imputação objetiva. No entanto, o problema da adequação social do risco poder ser
um parâmetro de intepretação geral para a tipicidade, de modo que também seria
aplicado a delitos de mera atividade, cf. Roxin/Greco , AT 5 §10, nm. 33 ss. Assim, a
mesma discussão vale para o delito perigo para a vida ou saúde de outrem
apresentado anteriormente (art. 132 CP).

[15] Não é desconhecido o fato de que alguns autores fazem uma clara distinção

entre “ risco permitido ” e “ ação socialmente adequada ”. Aqui, essa distinção não
tem necessidade de ser realizada. Sobre isso, cf. Roxin/Greco , AT 5 § 10, nm. 33 e ss.

[16] Cf. Roxin/Greco , AT 5 §11, nm. 55.

[17] Wolter , Objektive Zurechnung und modernes Strafrechtssystem, in:

Gimbernat/Schünemann/Wolter, Internationale Dogmatik der objektiven Zurechnung


und der Unterlassungsdelikte, 1995, p. 3 e ss.

[18] Ofensa à saúde é a causação ou o incremento – signi�cante – de uma condição


patológica na vítima. Entende-se como tal aquela que desvia o estado normal das
funções físicas ou psíquicas da vítima. Cf. BGHSt 36, 1, 6; Fischer 66 , § 223, nm. 8 e
13 e ss;

[19] Roxin/Greco , AT 5 § 10, nm. 39.

LUCAS MONTENEGRO – assistente cientí�co na cátedra de direito penal, �loso�a e teoria do


direito da Universidade Martinho Lutero, de Halle e Wittenberg (titular da cátedra: Joachim
Renzikowski); doutorando na Universidade Humboldt, de Berlim (orientador: Luís Greco); LL.M.
na Universidade Georg August, de Göttingen (orientador: Dietmar von der Pfordten); graduação
pela Universidade Federal do Ceará.
EDUARDO VIANA – Professor de Direito Penal da Universidade Federal da Bahia (UFBa) e da
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Doutor e mestre em Direito Penal pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com estágio doutoral realizado na Universität

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Augsburg, Alemanha (2014-2017) e Universitat Pompeu et Fabra, Barcelona - Espanha


(2013-2014).

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