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Sonhos de ocupação, marcas do comum

A obra de Freud provocou uma inflexão marcante na direção que até então tinha
tomado a análise dos sonhos e a compreensão do significado do sonho para o
sonhador, valorizando uma dimensão predominantemente singular, relativa ao
desejo. Com Deleuze-Guattari as formas da reprodução socialsociais são produzidas
pelo desejo, na organização que dele deriva em condições determinadas. Valeria,
portanto, perguntar: o que os sonhos podem prospectar dessas
produções tectônicas do comum? E ainda: seriam eles capazes de sismografar
movimentos políticos que se engendram e não discernimos por estarmos mergulhados
neles, cegos pela de realidade equilibrada pela consciência e a razão? O clássico
trabalho de Beradt sobre os sonhos de alemães quando da ascensão do nazismo -  em
que mesmo campos de concentração surgem nos sonhos, muito antes que fossem
construídos -, mostrou a conexão destas produções oníricas e políticas, e serve-nos de
principal referência para tentar uma leitura contemporânea de outros sonhos. Trata-se
de sonhos de estudantes de uma universidade pública federal em uma cidade
litorânea do Estado de São Paulo, Brasil. Tais estudantes ocuparam por 38 dias o
edifício central do campus. Neste período a maior parte das atividades acadêmicas foi
interrompida e um coletivo de estudantes organizava-se para produzir a alimentação,
limpeza, portaria, segurança, comunicação, cultura etc. O contexto era de resistência
ao governo da época, cuja legitimidade estava sendo fortemente contestada por um
movimento que o acusava de golpe de estado e que estava protestando contra uma lei
que limitava por vinte anos os gastos públicos, entre outras questões. Foi feito um
convite a quem estava na ocupação por meio de um cartaz: “Troque um sonho por
sonho”. Perto, colocamos cadeiras por onde passavam quem entrava no local. Aos que
se aproximavam, explicávamos a proposta de que contassem um sonho que haviam
sonhado no período da ocupação, que seria gravado em áudio e compartilhado, em
troca de um doce chamado “sonho”. Todos que aceitaram o convite autorizaram
verbalmente que o sonho pudesse ser divulgado, o que chegou a ser feito, por um
tempo, na rádio da universidade. Passados três anos, esperamos, pela análise destes
sonhos, explorar o que aconteceu e o que está hoje acontecendo. Não é a análise de
um sonho ou outro que nos interessa, mas do conjunto de imagens, que supomos ser
indicativo de um comum. Perguntamo-nos se esses sonhos deixariam entrever
mecanismos que se instalam na vida de todos nós, mas ainda não eram totalmente
visíveis. E ainda, se neles haveria algum alerta do que viria a se tornar a realidade
política em 2019 no Brasil, com um presidente de extrema direita. Ao mesmo tempo, e
para isso, estamos interessados em investigar um meio de ouvir/ler os sonhos, sem as
associações livres dos sonhadores, e que permita acessar, não a interioridade privada,
mas as forças e formas do mundo que participaram de sua produção.

Não é a análise de um sonho ou outro que nos interessa, mas do conjunto de imagens,
que supomos ser indicativo de um comum. Será que poderemos encontrar nesses
sonhos um alerta que antecipa o que ainda parece inverossímil? Os sonhos possuem
uma potente força de condensação, que pode nos ajudar a alcançar a dimensão em
que o comum se institui, sem alarde. Os sonhos de ocupação deixariam entrever
mecanismos que se instalam na vida de todos nós, mas que ainda não são totalmente
visíveis? Pelos meandros dos nichos do cotidiano, aparentemente privados, pensamos
poder acessar um substrato comum que, embora sensível, e só parcialmente visível,
ainda resiste a se fazer dizível.

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