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O feminino ao som de uma valsa solitária

Sonia Pascolati1
Marina Stuchi2

Resumo: As mulheres são presenças fundamentais na dramaturgia de Nelson Rodrigues


e em Valsa no. 6 a representação do feminino constrói-sepelo viés da sexualidade e de
interdições morais que pesam sobre ela. Trata-se de um monólogo habitado por várias
vozes sociais que atravessam o dizer da adolescente Sônia, configurando uma interdição
moral à realização dos desejos sexuais femininos; desse modo, chama a atenção como o
autor estabelece relação estreita entre forma e conteúdo ao eleger o monólogo para
construir essa arena discursiva, como diria Bakhtin (2002), na qual digladiam-se as
vozes dos genitores, do médico, de vizinhos e, especialmente, da consciência fraturada
de Sônia. O monólogo, enquanto forma dramática, tem a potência de revelar o íntimo da
personagem, assim como pode constituir uma mise-en-scène em que vários discursos se
desenrolam pela subjetividade de uma única personagem.
Palavras-chave: Nelson Rodrigues; sexualidade; feminino; monólogo.

Sei que há entre nós os “outros”... Os “outros” sempre


existem, estão em toda parte... (Sônia, em Valsa no. 6.)
(RODRIGUES, 2003, p. 422)

Introdução

Nelson Rodrigues (1912-1980) dispensa apresentações. Conhecido e


reconhecido como marco do teatro moderno brasileiro, ainda hoje provoca debates que
o colocam entre polos como moralidade e imoralidade, conservadorismo e transgressão,
direita e esquerda, machismo e feminismo. Talvez esse seja um equívoco crítico: insistir
na dicotomia e não na dialética. E mais: reduzir um dramaturgo da complexidade de
Nelson Rodrigues a pares opositivos é desconsiderar a diversidade de facetas de sua
dramaturgia.
Astuto observador da sociedade de seu tempo, ao desnudar as relações sociais, o
autor mostra o esfacelamento do ser humano, do indivíduo que vive em sociedade e, ao
reprimir seus instintos mais primitivos, acaba por desenvolver taras que o leva aos atos
mais exacerbados.
A obra dramática de Nelson Rodrigues possui ampla variedade formal, apesar de
voltar sempre aos mesmos temas. Desde sua primeira peça,A mulher sem

1
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras e do ProfLetras, Programa de Mestrado Profissional
em Letras da UEL- Universidade Estadual de Londrina. Pesquisadora nas áreas de dramaturgia, teatro,
literatura comparada e literatura infantojuvenil. Contato: sopasco@hotmail.com.
2
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UEL- Universidade Estadual de Londrina com
pesquisa sobre dramaturgia contemporânea. Bolsista CAPES. Contato: marinastuchi@gmail.com.
pecado(1941)3, o autor insere no texto dramático elementos da vida psíquica das
personagens por meio da projeção de seus pensamentos materializados em cena. Em
Vestido de noiva (1943), o dramaturgo recusa a ordem cronológica na apresentação da
ação dramática e o enredo é construído por meio de fragmentos com cenas desconexas
que se encaixam aos poucos como se fizessem parte de um quebra-cabeça. E como bem
aponta Sábato Magaldi (2004, p. 27), são indisfarçáveis os parentescos entre a peça que
lhe rendeu estrondoso sucesso e sua incursão pelo monólogo, especialmente porque
ambas protagonistas são tomadas pelo olhar do leitor-espectador no justo intervalo de
tempo entre um golpe – o atropelamento de Alaíde e o apunhalamento de Sônia – e a
morte.
Valsa no. 6, escrita e encenada em 1951,abre a segunda das quatro décadas de
produção dramática do autor. Sônia, a protagonista, é uma adolescente dividida entre a
necessidade de recato e desejos sexuais emergentes. Sozinha em cena, ela busca a
cumplicidade da plateia no desejo de recuperar fatos sobre sua morte – apunhalada pelo
médico da família, Dr. Junqueira – e transgressão moral, a de ter um caso com Paulo,
um homem casado. Ambígua, fragmentada, temendo estar louca, Sônia divide com o
leitor/espectador seu percurso de busca identitária cujo resultado é a apresentação e
representação de personagens e a simulação de uma ação dramática só possível pelo
recurso ao épico, uma vez que Sônia narra fatos decorridos, em conjunção com o lírico,
já que o monólogo permite que uma subjetividade, embora de modo contraditório e
oscilante, construa-se gradualmente diante do receptor.
A reflexão proposta acerca de Valsa no. 6 contempla dois eixos. O primeiro são
as representações do feminino, com foco na sexualidade e interdições morais
socialmente projetadas sobre ela. A fragmentação de Sônia, dividida entre a infância
(pureza) e a maturidade (exercício da sexualidade), revela a tensão própria da mulher
cuja sexualidade é reprimida socialmente, dado explicitado, por exemplo, no apego de
Sônia a um dizer social abonador, verbalizado por um coro que a aponta como “meiga”,
“educada”, “boa menina” (RODRIGUES, 2003, p. 412), menina “que tocava muito
bem”, “sabia francês”, “estudou nos melhores colégios” (RODRIGUES, 2003, p.
427),em contraste com a imagem que ela própria constrói de Sônia como uma outra,
“falsa, falsíssima!”, em quem “Tudo, [em Sônia], não presta [...]” (RODRIGUES, 2003,
p. 418). De um lado, a Sônia cujo desgosto único é ter perdido a missa porque chovia
demais; de outro, aquela capaz de ter caso com homem casado. E as vozes

As datas entre parênteses correspondem ao ano de escrita dos textos.


3
sociaisafiançando um comportamento casto e reprovando peremptoriamente a admissão
do desejo sexual.
As mulheres são fundamentais na dramaturgia rodrigueana, sempre em
contraponto com as personagens masculinas, como reitera Irã Salomão (2000, p. 20).
Em Vestido de noiva, uma de suas mais conhecidas criações, Alaíde é uma mulher
burguesa, presa aos constrangimentos morais de sua classe, mas desejosa de conhecer o
submundo atraente e sedutor da prostituição. No Álbum de família (1945) rodrigueano,
muitas são as imagens femininas: a recatadíssima cunhada que fornece meninas virgens
a serem ignominiosamente defloradas; a mãe de família que ousa amar o próprio filho e
concretizar o ato sexual com um outro; a filha adolescente experimentando o prazer
lésbico com uma colega de colégio interno. Em tragédia de 1947, Nelson Rodrigues
leva toda uma família de mulheres de moral ilibada à destruição porque uma das filhas,
Moema, a “senhora dos afogados”, decide eliminar as demais mulheres para ter com
exclusividade o amor do pai. Zulmira ocupa a cena em A falecida (1953) ao buscar a
todo custo a castidade incorruptível que pressente na prima Glorinha, mesmo que para
isso precise auto impingir-se constrangimentos como nunca mais ir à praia, sequer
beijar o próprio marido e seguir os rígidos preceitos da inventada igreja teofilista. Dona
Guigui, de O Boca de Ouro (1959), fica dividida entre o papel de esposa e o de amante
do famoso bicheiro suburbano cuja alcunha dá título à peça, assim como cria diferentes
facetas para Celeste, jovem a quem se atribui ora a imagem do cordeiro imolado, ora a
da assassina inescrupulosa. Em Beijo no asfalto (1961), tal como Alaíde e Lúcia na peça
de 1943, novamente duas irmãs apaixonadas pelo mesmo homem: enquanto Selminha, a
esposa, passa de defensora ferrenha do marido ao nojo por saber que ele beijou um
homem em agonia de morte, a cunhada aproveita o momento de fragilidade do
casamento para tentar seduzir o cunhado. E a lista prosseguiria, contemplando toda a
obra do autor.
Como se vê, as mulheres assumem papel de sujeito da ação dramática em boa
parte do repertóriorodrigueano e estão sempre às voltas com questões morais que
condicionam o desejo sexual e as interdições que pesam sobre ele. O feminino está
sempre enredado em intrigas que envolvem amor e morte, pulsão de vida (sexo) e
destruição.Sônia, por sua configuração dupla, ambígua, resume em si um
comportamento feminino recorrente: a repressão dos desejos, a punição do exercício da
sexualidade, a submissão da mulher a comportamentos socialmente estabelecidos,
especialmente o de que só é permitida vida sexual ativa no âmbito do casamento e sem
consideração pelo prazer feminino.
O segundo eixo é uma reflexão sobre a escolha do monólogo, experiência que
não se repetirá na trajetória do escritor. O monólogo é a forma ideal para encenar o
mergulho do indivíduo em si mesmo concomitantemente à revelação dessa interioridade
a um interlocutor que, embora passivo, é implícito à forma: o espectador. Ao falar de si,
o monologante abre espaço em sua subjetividade para o atravessamento de vozes
constituintes do eu. Em Valsa no. 6isso é, de fato, premente, pois se trata de uma
protagonista adolescente, em fase de construção identitária e descoberta da sexualidade,
tudo condicionado por um dizer social interditivo e moralizante.
De acordo com Bakhtin (2002, p. 112), a expressão pela linguagem é
fundamental para organizar nossa atividade mental. No mecanismo de interação verbal,
são fundamentais o locutor e o interlocutor, alguém que diz e o outro a quem o dizer é
dirigido, pois “[...] a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente
organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo
representante médio do grupo social ao qual pertence o interlocutor”. Parece ser essa a
configuração do monólogo teatral, pois ele pressupõe um interlocutor – no caso de
Valsa no. 6, o dizer de Sônia é dirigido várias vezes ao espectador, mesmo não havendo
expectativa de resposta –, mas mesmo que ela não exista, já que ninguém responde a
Sônia, a configuração discursiva do possível interlocutor passa a habitar o discurso da
protagonista e como ela todo um dizer social sobre o mundo e o ser feminino.
Embora tenhamos escolhido dois eixos de reflexão, o objetivo primordial é
relacioná-los, tentando responder à questão: que efeitos produz a eleição do monólogo
como forma dramática para a discussão da sexualidade feminina e seus interditos
morais?

Os ruídos de um monólogo

A obra dramática de Nelson Rodrigues volta sempre aos mesmos temas – a


morte como punição, o sexo como tabu, a traição –, porém apresenta soluções formais
diversas.Para encenar os conflitos de uma adolescente dividida entre os deveres morais
burgueses e os desejos sexuais nascentes, nada melhor do que um monólogo, uma
confissão, especialmente quando esse monólogo absorve tantas outras vozes.No drama
rodrigueano, o conteúdo precipita-se em forma, ou seja, há uma dialética permanente
entre forma e conteúdo. Pode-se destacar nas peças de Nelson Rodrigues o modo pelo
qual ele transforma a subjetividade em objeto de investigação, explorando maneiras
diversas de trazer à cena os sentimentos mais profundos de suas personagens.
(STUCHIé citação direta??). Em uma entrevista a Sábato Magaldi publicada no Diário
Carioca, Nelson Rodrigues conta como nasceu a ideia do monólogo:

Achei, sempre, que um dos problemas práticos do teatro é o excesso


de personagens. Entendo, no caso, por excesso, mais de uma. Pensei,
por isso, há muito tempo, na possibilidade de tal simplificação e
despojamento, que o espetáculo se concentre num único intérprete.
Um intérprete múltiplo, síntese não só da parte humana como do
próprio décor e dos outros valores da encenação. Uma pessoa
individuada – substancialmente ela própria – e ao mesmo tempo uma
cidade inteira, nos seus ambientes, sua feição psicológica e humana.
(MAGALDI, 2004, p.26).

O monólogo enquanto forma dramática é relativamente pouco estudado e


teorizado, não havendo menção a ele na maioria das obras teóricas relativas ao drama.
Como aponta Pavis (2008, p.247-248), no Dicionário de teatro, monólogo significa o
discurso de uma pessoa só ou um discurso que a personagem faz para si mesma, razão
pela qual o teórico . Ainda na definição do mesmo verbete, Pavis contrapõe monólogo a
diálogo “pela ausência de intercâmbio verbal” admitido no teatro realista somente
“motivado por uma situação excepcional (sonho, sonambulismo, embriaguez, efusão
lírica)”. Mais adiante, no mesmo verbete, o monólogo enquanto peça é rapidamente
definido como o drama de uma única personagem ou uma forma que ganha força apenas
na “escritura contemporânea” caracterizada como “dramaturgia do discurso”.
No verbete referente ao monólogo, no Léxico do drama moderno e
contemporâneo, Hausbei e Heulot (2012, p.115-116) também definem o monólogo
como oposto ao dialógico, ou uma categoria que pode estar dentro da forma dramática,
mas não o elevam ao status de forma dramática.

Na dramaturgia tradicional, o monólogo denota uma interrupção na


cadeia dialética da ação dialogada que ele prepara, amalgama ou
resume. Exerce, portanto, funções épicas (Épico) e líricas a fim de
comunicar informações que escapam seja no aqui agora do ato
enunciativo, seja na esfera ‘inter-humana’, trazendo à tona o estado
interior do personagem.
O monólogo é relacionado também com a crise do drama e com as mudanças
ocorridas no seio da forma dramática ao colocar em xeque suas categorias estruturantes:
ação, conflito, diálogo. A peça O pai (1887) de Strindberg, apesar de manter a categoria
do diálogo entre as personagens, pode ser encarada como “um longo monólogo, um
monodrama que desenvolve a monoperspectiva no bojo de uma estrutura dialogal.”
(HAUSBEI; HEULOT, 2012, p.118).
No Dicionário de teatro brasileiro (Guinsburg; Faria; Lima (Orgs), 2006, p.187)
encontramos uma definição diferente acerca do monólogo, mais ampliada, pois o trata
como “um texto dramático a cargo de um só intérprete no palco.”. Interessante notar que
desde o fim do século XIX é possível localizar alguns monólogos na dramaturgia
brasileira como O Peixoto, O comediógrafo e João Caetano de Arthur Azevedo, todos
de 1887, porém, não chegam a configurar algo a que se possa chamar de tradição do
monólogo na dramaturgia nacional.
Na Europa, a dramaturgia do eu que começa a despontar no fim do século XIX
ainda estava presa à forma dramática absoluta, como aponta Szondi (2011, p.43) ao
analisar a peça As três irmãs (1900) de Tchekhov, na qual podemos encarar as falas das
personagens como solos, ou solilóquios, pois apesar de se dirigirem a outras
personagens, expressando as urgências do íntimo, não necessariamente há o
estabelecimento do diálogo dramático.
Para Ryngaert (2013, p.89. Grifo nosso) os monólogos como forma dramática

reinam sobre a dramaturgia dos anos 70-80. Além das contingências


da produção, estas peças para um único ator favorecem o testemunho
direto e também a narrativa íntima, a entrega dos estados de alma
sem confrontação com outro discurso, quando a cena torna-se uma
espécie de confessionário menos ou mais impudico, propício ao
número de atrizes e atores.

Embora o teórico refira-se à dramaturgia contemporânea, parte de sua afirmação


aplica-se perfeitamente ao texto aqui analisado, pois o que vemos é exatamente a
“entrega de estados de alma de Sônia”, uma entrega ainda mais intensa na medida em
que a protagonista está nitidamente cindida entre duas imagens de si, uma pudica e
infantil e outra transgressora e entrando na idade adulta e sexualmente ativa. Porém, o
monólogo moderno de Nelson Rodrigues não foge à confrontação com outros discursos;
pelo contrário: o dramaturgo investe na teatralidade ao possibilitar que o receptor ouça
outras vozes por meio do dizer de Sônia.
Ana Amélio Brasileiro (2010, p. 105-106), partindo dos mesmos teóricos, aponta
como o monólogo na contemporaneidade ganha força como forma discursiva que
questiona o status da linguagem como representação da realidade e está mais
intimamente ligado a

[...] dramaturgias que enfatizam a experiência subjetiva do fluxo da


consciência em detrimento do suposto artificialismo do diálogo entre
personagens com idéias coerentes e compartilháveis (visto como uma
irrealidade por muitos autores). Tais dramaturgias apostam na relação
dialógica entre o ator e o espectador – este, no caso, reflexivamente
engajado, que interpreta e da sentidos particulares à voz que se
expressa em cena.

Essa reflexão sobre o monólogo nos auxilia a pensar no texto criado por Nelson
Rodrigues em 1951, época na qual essa forma dramática era pouquíssimo usual na
dramaturgia brasileira. Em Valsa nº6, apesar de termos uma única intérprete em cena,
podemos acessar o discurso de diversas outras personagens, mesmo que filtrados pela
subjetividade de Sônia. Por isso a definição proposta por Ana Amélia Brasileiro (2010,
p. 106) é tão adequada para caracterizar essa criação de Nelson:
Podemos defender a atualidade da peça escrita por Nelson Rodrigues ao colocá-
la em diálogo com análises de textos teatrais bastante recentes, os quais têm como
característica principal a polifonia.

[...] o monólogo, antes de ser o discurso de uma pessoa, tem a


potência de se constituir, por exemplo, como uma miseenscène em que
vários discursos se desenrolam, através de muitas personagens,
vividas por apenas um ator ou atriz, que assim o faz sem que os
espectadores deixem de se envolver reflexiva, imaginativa e
emocionalmente com a narrativa, entrando no jogo cênico a partir de
novos pactos entre a realidade da plateia e a realidade da cena.
(BRASILEIRO, 2010, p.106).

Bakhtin (2002, p. 112) acredita que a expressão pela linguagem é capaz de


organizar nossa atividade mental e esta tende a externalizar-se. A partir de suas
reflexões, é possível pensar o monólogo rodrigueano como múltiplas formas de
expressão para Sônia, pois ela (a) busca organizar sua atividade mental desestruturada
pela proximidade da morte por meio da vazão de sua subjetividade e para isso recorre
(b) à comunicação com um interlocutor mudo, mas que funciona como o outro para sua
comunicação. Seu objetivo é descobrir quem é e o que aconteceu com ela, devendo para
isso (c) efetivar um desbloqueio mental.

A atividade mental tende desde a origem para uma expressão externa


plenamente realizada. Mas pode acontecer também que ela seja
bloqueada, freada: nesse último caso, a atividade mental desemboca
numa expressão inibida [...]. Uma vez materializada, a expressão
exerce um efeito reversivo sobre a atividade mental: ela põe-se então a
estruturar a vida interior, a dar-lhe uma expressão ainda mais definível
e estável.

Claro que o pensador russo refere-se ao mecanismo da linguagem em geral, mas


acaba fornecendo instrumental teórico para pensarmos as especificidades do monólogo
teatral e nas deste em particular. A exteriorização da atividade mental de Sônia por meio
do monólogo, seu esforço por dizer-se enquanto procura por si mesma, acaba por
propiciar o encontro dela mesma com vozes sociais; ou melhor, leva à percepção de que
apenas o encontro com o outro é capaz de revelar quem somos – e que somos a soma de
muitos dizeres alheios.
Esse atravessamento discursivo que acontece na configuração do monólogo
Valsa no. 6 revela o que Bakhtin (2002, p. 118-119) chama de “ideologia do cotidiano”,
domínio no qual entrecruzam-se o exterior (expressão pela linguagem) e o interior
(atividade mental) fazendo emergir conteúdos ideológicos determinados por fatores
sociológicos. Em nossa análise, consideramos que as representações do feminino
decupáveis do monólogo de Sônia demonstram os conflitos do sujeito imerso na arena
social do discurso em busca de individuação. Vejamos como essas facetas do feminino
concretizam-se em Valsa no. 6.

Sexualidade assassinada

Tal como a protagonista entrando em cena perguntando por Sônia, também nós
podemos iniciar com a questão: quem é Sônia? E a resposta sempre será dupla. Sônia é
uma menina de 14 anos, quase 15, enfrentando uma fase de transição, tal como
diagnostica Dr. Junqueira, o velho médico da família. Nela habitam a menina que vez
ou outra “corre, pelo palco, trocando as pernas” (RODRIGUES, 2003, p. 415) ou
“começa a pular amarelinha” (RODRIGUES, 2003, p. 420), como indicam as rubricas,
e a desabrochante mulher, que passa a ter vergonha de tudo, tal como uma Eva que se
descobre nua num paraíso de possibilidades. O constrangimento pelos pés
descalços,experimentado pela menina, aponta a ambiguidade enfrentada: dificuldade de
encarar a nudez, isto é, a própria sensualidade, assim como receio de enfrentar essa
nova fase descalça, despreparada, sem meias ou sapatos – mas isso tudo emparelhado ao
prazer de descobrir o próprio corpo, no ponto exato em que ele se transforma,
desabotoa:

Sônia de meias curtas... E os cabelos rolandosobre o silêncio das


espáduas...
(cordial)
Sônia era uma menina, tão menina, que, até, nós duas tomávamos
banho juntas...
(amável ainda)
Perfeitamente.
E a toalha era felpuda.
Eu gostava de ver as gotas, milhares, sim, milhões de gotas nas costas,
nos braços, de Sônia.
Cada gesto...
(ri divertidíssima)
... era uma catástrofe de gotas. (RODRIGUES, 2003, p. 420-421).

Aqui onde Eudinyr Fraga (1998, p. 110) vê a sugestão de uma ligação lésbica
consigo mesma, preferimosdestacar a feição masturbatória da cena em que Sônia se
sente duas, mas sendo uma apenas, descobre o prazer proporcionado pelo próprio corpo
capaz de chegar a um orgasmo similar a uma “catástrofe de gotas”. Interessante o eco
que a imagem de Sônia de costas – exatamente onde será golpeada com um punhal –
encontra no vocábulo “catástrofe”, evidenciando a relação entre a sexualidade e a morte
como punição.
A mesma dubiedade no campo da sexualidade já é apontada logo no início da
peça quando, adoentada, Sônia necessita de cuidados médicos, mas protesta
veementemente contra a visita de Dr. Junqueira: “Dr. Junqueira, não quero! Não deixo
ele olhar minha garganta! (atitude de menina). Não admito que homem nenhum veja
minhas amígdalas!” (RODRIGUES, 2003, p. 401). Considerando a garganta como
metonímia do órgão sexual feminino, negar-se a mostrar a garganta e as amígdalas é o
modo de a Sônia-menina deixar clara sua resistência a qualquer menção ou contato
sexual. Todavia, a Sônia-adulta possui vida sexual ativa embora seja muito jovem, o que
já contraria regras sociais, mas a contravenção é manter um caso com homem casado.
Dessa perspectiva, a menção à garganta pode ser lida por outra chave: a da interdição do
dizer, pois a garganta centraliza nossa capacidade de dizer-se pela linguagem, de
construir a própria identidade em face do outro. O calar-se, então, é o signo do dobrar-se
a pressões alheias à nossa vontade.
No caso de Sônia, é simbólico reduzir seu estado emocional a um problema na
garganta quando o próprio médico diagnostica que “Sua filha era menina. Transformou-
se em mulher”(RODRIGUES, 2003, p. 405). Sônia cala-se duplamente: por um lado, é
proibida de revelar que assume seu desejo por homem casado, afinal, a voz social
exclama indignada: “Pois é, homem casado! Casadinho! E está direito? Claro que não,
evidente, onde já se viu, essa é muito boa!” ao que ela replica, numa clara introjeção do
dizer alheio à sua própria configuração identitária: “Eu, não, Deus me livre! Homem
casado, comigo, está morto, enterrado!”. O tempo verbal de sua próxima fala deixa
ainda mais claro que sua vontade está sendo calada para respeitar interdições morais:
“Além disso, eu não acharia bonito homem casado!” (RODRIGUES, 2003, p. 419.
Grifo nosso). O futuro do pretérito indica algo que poderia ter acontecido, mas está
condicionado a possibilidades, portanto, Sônia acharia homem casado bonito, não
fossem as interdições que pesam sobre essa atitude. Percebe-se claramente, pela
sequência das falas, que a conclusão de Sônia é resultado do dizer alheio sobre o seu
próprio falar, pois “é a educação puritana, religiosa (“Eu vou cometer um pecado! o
padre disse que não ir à missa é pecado!...”) que antagoniza os desejos eróticos”
(FRAGA, 1998, p. 112).
Observa-se que há uma oposição entre o que é permitido e o que é interditado e
a essa oposição corresponde o par Santa / Puta, conforme análise de Irã Salomão (2000,
p. 80), para quem esses são os arquétipos das personagens femininas de Nelson
Rodrigues: “Para a santa tem-se a boa medida, o recolhimento, a castidade, o silêncio e
zelo do lar. Para a puta, o desregramento, o erotismo, a fantasia, o sonho e a
sexualidade”. O comportamento de Sônia desobedece a fronteira entre esses espaços e
rompe a configuração dicotômica desses papeis uma vez que ela quer fundir castidade e
erotismo, recolhimento e sonho. O resultado disso é a fratura da consciência de si,
sempre atravessada pelo dizer alheio.
Por essa razão Sônia se vê obrigada a desdobrar-se num eu e num outro. Essa
outra sim “Só pensa e sonha... (vela o rosto, com pudor) ... com homem feito”, tendo
“horror de rapaz novo” e preferindo o marido de alguém (RODRIGUES, 1992, p. 420).
A adolescente enfrenta o embate entre ser e parecer, internalizando esse conflito do eu
com as regras sociais coibitivas: “Eu sinto os olhos de Sônia dentro de mim...”
(RODRIGUES, 2003, p. 417). O olhar do outro a controlar nosso comportamento, nosso
sentir e dizer é uma forma de poder, já que, como assegura Foucault (2005, p. 9-10.
Grifo nosso), o mais conhecido procedimento de exclusão é a interdição:

Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode
falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não
pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância,
direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo
de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se
compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se
modificar. Notaria apenas que, em nossos dias, as regiões onde a
grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as
regiões da sexualidade e as da política: como se o discurso, longe de
ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se
desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas
exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes.

O reflexo desse embate entre a sanção alheia sobre o dizer e os sentimentos da


protagonista leva, inclusive, a por em dúvida o que sente por Paulo, oscilando entre
odiá-lo e admitir que o ama ardentemente, com “verdadeira adoração”, achando-o “tão
bonito que se [eu] pudesse...” – isto é, não fossem as interdições, ela viveria “acendendo
círios diante dele” (RODRIGUES, 2003, p. 417). Aqui a imagem quer transitar entre o
sagrado e o profano, afinal, círios são acesos aos santos, a quem cabe a castidade, o
sacrifício, a negação dos prazeres carnais. Um círio para Paulo seria, pelo contrário,
acender velas para o desejo, para o prazer carnal. Segundo Silva (2017, p. 74), o homem
faz do corpo feminino um objeto de controle, de exercício do poder patriarcal por meio
da submissão do corpo da mulher aos desejos do homem, como é possível observar na
relação entre Sônia e Dr. Junqueira. Exatamente por recusar-se ao contato sexual com o
médico, Sônia é ceifada na possibilidade de experienciar sua sexualidade com Paulo,
afinal, “Corpo desejado, o corpo das mulheres é também, no curso da história, um corpo
dominado, subjugado, muitas vezes roubado, em sua própria sexualidade” (PERROT,
2013, p.76).
Sônia deveria acomodar-se no papel de “boneca” – delicada, cordata,
manipulável, de beleza irretocável – tal como indica a primeira rubrica da peça que
descreve seu figurino: “Vestida como que para um primeiro baile”. Mas o primeiro
baile é um rito, o marco de uma transição, razão pela qual já na primeira execução da
Valsa no. 6, “Seu rosto passa a exprimir paixão, quase o êxtase amoroso”
(RODRIGUES, 2003, p. 397). E aqui concordo com Fraga (1998, p. 112) sobre “o ato
de tocar piano tranforma[r]-se num simulacro de masturbação”, interpretação
psicanalítica proposta por Carmine Martuscello (1993, p. 186) de acordo com quem a
relação da protagonista com a própria sexualidade não se dá de forma natural e
confortável, sendo permeada por incompreensão e repressão.

[...] a masturbação, na infância e na puberdade, é uma das causas de


culpa e de vergonha que não pode ser negligenciada, porque está
vinculada aos pensamentos sexuais reprimidos. A vergonha é um
reforço da repressão, que age tentando dissuadir o ego – ou,
simplificadamente, a consciência – de sua insistência na sexualidade
repudiada. [...] A valsa equivaleria a uma masturbação camuflada, que
é tocada mesmo à revelia da vontade e da deliberação consciente,
como que obedecendo apenas à pressão tentadora do desejo.

Se executar a valsa propõe um gesto masturbatório, de exploração da


sexualidade, a incapacidade de tocar a música infantil “Nesta rua, nesta rua tem um
bosque...” remete à impossibilidade de Sônia permanecer ingênua, pura, o estado de
infância.É pela transgressão sexual que Sônia pagará com a vida, pois, como símbolo do
patriarcado que rege o agir feminino, Dr. Junqueira arroga-se o direito de puni-la por ter
se entregado a outro que não ele, ou seja, retira-se de Sônia o direito de eleger seu
objeto de desejo sexual. Segundo a moral burguesa e os fundamentos do patriarcado, à
menina caber preparar-se para e esperar pelo casamento: “De uma maneira mais ou
menos velada, sua juventude [da mulher] consome-se na espera. Ela aguarda o
Homem”, sintetiza Beauvoir (2013, p. 431), mas Sônia não se acomoda a esse papel. E
o preço a pagar é alto, pois, mais do que a morte, pesa sobre ela a angústia do
desconhecer-se, de procurar uma ordem em uma subjetividade fraturada.
A intolerância em relação ao sexo (perda da virgindade, sexo fora do casamento,
liberdade sexual) e a severidade da repressão, normalmente com a morte, é tema
recorrente na obra de Nelson Rodrigues, sendo esta permeada por uma moral
dicotômica entre o Bem e o Mal. O não cumprimento das exigências morais da ordem
estabelecida leva o sujeito ao aniquilamento, obrigando-o a afastar-se da sociedade,
sendo o sentimento de culpa a mola propulsora da destruição das personagens
rodrigueanas. Sônia, ao subverter os ensinamentos de sua educação cristã e perder a
virgindade com um homem casado, é condenada à perdição por não reprimir sua
sexualidade e evidenciar a transição da menina em mulher.

De fato, uma das características marcantes nos personagens de Nelson


Rodrigues é a compulsão pela vulgaridade, a impossibilidade de evitar
certos excessos. Por um lado, representam elas, em geral, pessoas de
moral burguesa que, embora conscientes das normas corretas de agir
(têm o código na cabeça), não resistem a um impulso interior mais
poderoso do que suas noções puritanas e mergulham, esparramam-se
em algum comportamento tido como sujo dentro de suas próprias
concepções. Quase sempre, o fenômeno que então vemos suceder é o
de uma moral extremamente puritana e ortodoxa rasgada e corrompida
por aquele que mais se deleitava em defendê-la ou por pessoa ligada a
este. (LINS, 1979, p.72).

Como aponta Martuscello (1993, p.148), a relação entre a repressão e o desejo é


construída de forma dicotômica na obra rodriguiana: a repressão adquire uma conotação
de Bem e o desejo associa-se ao Mal.

Toda a obra teatral de Nelson Rodrigues está carregada dessa


moralidade dicotomizada, que muito bem traduz a necessidade de
balizamento e sinalização comportamental para que os erros e desvios
da ética possam ser reconhecidos e evitados. O homem rodriguiano é
um homem essencialmente preocupado com o acerto e com o erro,
sempre situado dentro dos limites que circunscrevem a diretriz
socialmente aceita para a conduta, e jamais extravasando para a
anomia ou a ausência de regras que caracterizam a “supraurbanidade”
de algumas classes sociais.

Desse modo, pode-se ver na figura do médico um guardião da moral e dos bons
costumes, mesmo que o faça via assassinato. A descrição do assassinato pode ser
encarada como uma analogia do ato sexual, primeiramente com a execução da valsa
(masturbação), logo depois com a penetração do punhal nas costas da moça
(defloramento), e a morte ao desabar a cabeça sobre o piano (orgasmo).

Não saber que Sônia é ela mesma é também uma forma de projetar
para a outra, e de não assumir como sua, a nova realidade sexual que
despontava. Somente com a morte, perpetrada em gesto cruel e forte, e
marcante como um defloramento, é que as duas vivências foram
integradas numa única. Seu assassinato foi como um renascimento: ela
precisou morrer, passar pelo impacto da penetração do punhal, para
desfazer a dissociação da personalidade e recobrar sua verdadeira
identidade. A aproximação inconsciente que existe entre o
defloramento e a morte pode ter servido de base para Nelson
desenvolver de tal forma a construção do monólogo, fazendo com que
um fosse representado pelo outro. (MARTUSCELLO, 1993, p.188)

A morte, portanto, pode ser associada à perda da virgindade: o médico matou a


inocência de Sônia, provocando a cisão de sua personalidade e o não reconhecimento da
menina na mulher.
Monólogo e sexualidade: um dizer reprimido

Valsa no. 6 inicia, obviamente, com a presença de Sônia em cena, mas logo
juntam-se a ela personagens fundamentais: a mãe e o pai, ou seja, a família. Na tentativa
de recuperar fiapos de si, as primeiras personagens convocadas por Sônia são símbolos
de controle, a representação, no espaço privado, das interdições que circulam no espaço
público. Além disso, pai e mãe estabelecem paradigmas de comportamento de gênero,
cabendo à mãe a histeria – “Minha filha está morrendo, doutor! [...] Salve minha filha!
Pelo amor de Deus, salve!” (RODRIGUES, 2003, p. 401) – e ao pai a autoridade, a
firmeza, o poder: “(imita, agora, o pai, retorcendo a ponta de um bigode) Agora, ela vai
ficar sozinha! Todo mundo para fora do quarto! Já.” (RODRIGUES, 2003, p. 403). Os
papeis sociais atribuídos a homem e mulher na relação de casamento certamente atuam
sobre a psique da menina-moça que parece aderir à fragilidade da mãe e deixar-se
dominar pelo poder das figuras masculinas.
O monólogo é a forma dramática por excelência da manifestação subjetiva, da
revelação do íntimo para o que se faz necessário o recurso ao épico, ao narrar-se.
Contudo, esse processo de narrar (épico) a intimidade (lírico) exige a colaboração de um
ouvinte, um interlocutor (dramático), representado nesse texto de Nelson pelo público/
plateia cuja participação efetiva – uma interação factual com a intérprete – não está
prevista pelo texto, mas acaba acontecendo a cada vez que a consciência de Sônia
permite a emersão das vozes corais. O desdobrar-se em tantos outros é “uma maneira de
mostrar os vários eus de que somos formados” (FRAGA, 1998, p. 110), mas é
especialmente um modo de revelar um pensamento social, afinal, a fratura do eu é
devida, em grande parte, às interações de linguagem, reveladas pela presença do coro.
As vozes que compõem o coro revelam um dizer social especificamente moral, seja na
recusa de um comportamento, quando julga impossível que Sônia tenha mesmo um caso
com homem casado – “(cochichos escandalizados) O quê? / E Sônia? / Virgem! / Nossa
Mãe! / Que blasfêmia!” (RODRIGUES, 2003, p. 419) – ou quando caracterizam seu
assassino, Dr. Junqueira, fazendo questão de reforçar os valores da família burguesa:
“(coro) Casado, sim! / No civil e no religioso. / Com filhos. / Tinha uma mulher muito
boa!” (RODRIGUES, 2003, p. 425).
Ao observarmos o texto de Nelson de um ponto de vista dramatúrgico e
estabelecermos que a protagonista assume a função de sujeito da ação dramática, temos
que seu querer limita-se a investigar a própria identidade. Isso no presente da ação, mas
como se trata de recuperação da memória, no passado recente Sônia tem outro querer:
ela deseja Paulo. Os obstáculos enfrentados por ela são multiplicados em várias figuras
– família, coro de comadres, Dr. Junqueira –, mas todos de ordem moral e social. A
forma do monólogo permite que esses obstáculos sejam internalizados pela menina-
mulher, condicionando seu fazer, sua performance como sujeito. Internalizadas as
interdições sociais, o monólogo revela as contradições internas de Sônia, fazendo dela,
ao mesmo tempo, sujeito de um querer e obstáculo à realização de seu próprio desejo.
Portanto, é a forma dramática monólogo que permite a intensificação dos embates
internos da protagonista.
Desse modo, a escolha do monólogo contribui como debate sobre o feminino,
pois, ao concentrar todas as vozes proibitivas na consciência de uma só personagem,
revela o mecanismo cruel de dominação da mulher: são tantas interdições que pesam
sobre ela que, fragilizada pelos ditames patriarcais e burgueses, acaba deixando-se
dominar pelo dizer alheio, agindo em conformidade com ele. Nesse mesmo fio de
raciocínio e considerando a aplicação do modelo actancial ao estudo do texto dramático
tal como propõe Anne Ubersfeld(2005) a partir da semiótica greimasiana, temos que o
par Destinador / Destinatário, respectivamente a força que age sobre o Sujeito e aquela
que se beneficia de seu fazer, são figurativizados pela mesma instância: a sociedade
patriarcal. Como destinadora da ação dramática, a sociedade conservadora e machista é
reguladora do dizer e do agir de Sônia. E como ela é punida com a morte por ousar agir
de um modo diferente do preconizado, a sociedade é também beneficiária do resultado
da ação dramática, uma vez que, ao eliminar Sônia como sujeito de um querer libertário,
beneficia-se com a manutenção do status quo. À mulher, o espaço da casa, da castidade,
da negação do desejo. A ela, o silêncio, uma vez que o monólogo apenas artificialmente
permite o compartilhar das angústias.
Sônia termina sendo observada em seu ataúde, provavelmente com o mesmo
vestido branco indicado pela rubrica inicial, uma espécie de máscara que reforça a
ambiguidade da personagem. O olhar do outro continua sendo seu algoz mesmo após a
morte, pois a aponta: “Está ali, deitada, a menina que iludia a todos. [...] Parecia uma
jovem santa, branca e sem mácula, tão frágil e tão fina” (RODRIGUES, 2003, p. 429).
Os termos “iludia” e “parecia” são nova punhalada na adolescente, pois não basta ser
punida com a morte, é preciso denegrir – para opor-se ao branco, santo, sem mácula... –
completamente qualquer imagem da mocinha.
Embora a última fala seja de Sônia, ela é apenas um grito que procura atravessar
a valsa de Chopin, mas não é capaz de calar o coro em torno de si, um coro de comadres
que, polifonicamente, reafirmam posturas castradoras.
acho que aqui é possível melhorar as relações entre monólogo e polifonia, assim
como reforçar a construção do feminino por meio do monólogo.acho que fiz isso no
acréscimo em verde.

Referências
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