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♣♥♦♠

coleção ás de colete

Terceira Prova — 18/01/2007

Editor: Augusto Massi

Composição: Ricardo Assis (Negrito)


Marília Garcia
20 poemas para o seu walkman
p e r g u n ta s s o b r e a d i f e r e n ç a e n t r e
Svetlana

na véspera de sua partida para


ny, emmanuel hocquard datilografa
um poema de george oppen
em sua máquina de escrever
underwood n. 3. é como svetlana querendo voltar
para barcelona aqui não fico
mais nem um dia dizia no café
com nome grego que
lhe fazia falta ver as coisas
invisíveis daquela cidade e seu marido
na contramão carregando
no braço o menino sem língua,
tentando alcançar o que
aparecia do outro lado do mar
se alguém ainda viria
para ajudá-los
  nesta época
do ano a tormenta não costuma
demorar (o poema era em inglês)
e tinham medo de se perder,
ela dizia, por isso a distância,
ritmo de degrau seguindo
cortado, por isso
   o modo de andar e
o ziguezague do avião sempre que saíam juntos.
tinham medo e todos os dias fazia
algo para evitar. depois queria
encontrá-lo na rua,
perdido, como um acidente:
cruza uma esquina e vê. desligou


a chamada na hora M.A.
precisa, a voz cortada outra
vez antes de seguir
pelas ramblas. é como o perigoso encadeamento
das coisas murmurou ao sair
da sala.
    antes de filmar
tudo observou a posição do sol naquela
tarde com casas árabes e imaginou
a seqüência dos diálogos

em camadas. quase uma língua em


curvas ou
     ficar parado no escuro. as duas diante
da lente não se viam jamais: alternavam
a posição (a de branco
sorria sob o fundo de algas)
depois enquadrou o deslocamento
para hong kong num vôo
atrasado. como seguir tentando um ângulo
inverso se quando passam os dias
tudo piora? como seguir o horário
girado que adquirem depois
de anos de escassez?
sentou num dos bancos
de frente para as duas

(há algo que custa dizer


e não sabe o que é,
um peso geral de
coisas talvez)

 
de onde vem o nome i. um filme
patagônia? e os pingüins? como
precisar a seqüência daquelas
imagens? e como fazia para não sabe em que momento
nadar tão perto das aconteceu [estava de preto] nem
rochas? podia imaginar que a mecha
armada sobre o rosto se tornaria
qualquer coisa que não se nota
depois de uns dias. a pergunta serve
apenas para manter a horizontalidade
das coisas
    (não crê que
possa explicar como queria
encontrar alguém assim: levanta
com pressa e entrega o papel
verde-musgo). leva tempo entender
de onde vem tanta palavra e qual
língua pode ser usada num momento
de anóxia (o túnel estreito sempre
em linha reta e depois
o reflexo congelado
na linha 14).

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ii. rue de fleurus iii. liancourt 9

daquela janela, a placa no lado como fazer para voltar se não traz
oposto da rua com as iniciais de g. o bilhete lilás nem a carte
s. não ouve nada muito bem, mas ainda orange? conta duas portas
deve esperar o frio muito fino, tomar o à direita e sobe a escada
trem a chuva o meio- -caracol.
fio contornar o jardim – e ali o vendedor uma parte de tudo é fixa
de crepes tinha fechado o negócio. o livro começa e escapa do campo de visão
com uma pergunta ao acaso sobre esta e escuta. como estar em praga
cidade, mas o principal nem supõe – e entender o que dizem
como chegar ao ponto de encontro [tout le monde laisse les
com o filme começado. todas as vezes problèmes dans leur têtes
perdia a estação e traçava rotas comme on dit là-bas]
diversas (tentava explicar trocando de cabines
e ligando diversas vezes por
dia, em deslocamentos
aéreos.)

12 13
iv. tout arrive v. na beira do canal

(contando da banda terrorista “al fin no llego a saber si es


deste país e das notas de grande o pequeño. es una
svetlana sobre gràcia) cuestión de ocultamiento”.

– a porta é verde, avisa,


basta subir que os corredores
dão no mesmo quarto. é uma questão
de álgebra, dizia, é só mais
uma questão (no vídeo chegava sempre
tarde demais e ficava olhando:
o elevador amarelo e a
porta com o 9 e um
cadeado.)

ouvir o som de uma língua


não quer dizer algo tão
definitivo – o acento se
encaixa na outra língua e
asfixia o espaço daquelas
palavras

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Num dia branco Apêndice a Num dia branco (com Lise Sarfati)

segura a borda da mesa com a cortina em ondas na


o cabelo vermelho vamos sala, semicírculos de luz
para a polônia que cobrem
   ver a neve    o chão, pouco a pouco
andava tão dispersa assim uma imagem recorrente: “dehors
ele nunca conheceu a família com ganas maintenant...” mas não sabe, um
de frio. sempre aquele pedaço de terra cravado naquele
movimento oceano e viver ali: seu nome
   preciso ler outras não vem no lugar do destinatário não
coisas a frase cortada mais de 100 quilômetros de
no mesmo ponto fresta de luz escuta e a caixa do correio
onde fala uma gargalhada quebrada pode deixar a
assomada à janela quando o vê chave que o inquilino encontrará
do outro lado da rua procurando o tem olheira e casaco azul
castelo. os cabelos curtos, deitada no sofá
    cabelo curto, segura a ponta amarelo. todos falam alguma
da mesa e mastiga as sílabas língua eslava (sabe que perdeu alguém
em sua língua. para sempre). no fim do ano, vamos
cruzar o estreito. andava tão dispersa
assim pelo movimento ele
nunca
   viu a neve

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De dentro da caixa verde iii.
sobre a mala
a caixa de chá (não o desejo
i. de contar os aviões partindo
como o sulco da caligrafia na pista sobre o mar) na passagem tinha impresso
chegando toda semana. como o retorno (temos os dias contados? para
o pulôver vermelho onde vai? sua voz de
que veste agora (não era neblina no escuro)
a volta para casa, um consolo, nem
a limusine negra veio buscá-la
de outro poema)
 
uma noite que se estende
com os ruídos de um sono
ausente — e se você levanta num
entressonho, parece outra cidade, quando chega
a luz do dia muito antes da hora — não sei
em que mapa ficou leeds
nem aquele passeio de mãos dubitativas
em torno da praça.
 
ii.
de vestido amassado no pico
da montanha (o ponteiro dos segundos
rabisca o silêncio): — não sou
felice, sorria com calma, de dedos
trêmulos – é uma relação
virtual, eu vibro como esta estrada – olhos de gato
no escuro concreto, do banco
da frente nem suspeitava da perseguição. nem
suspeitava das vozes que vêm do oceano
(algum barco ainda aguarda
na enseada?)

18 19
Victoria station 39º34’13.26”n 2º20’49.50”e (diz em catalão)

cotovelos sobre o braço da cadeira, i.


consulta o mínimo relógio de pulso: nove quando o vir
estará de verde musgo
e vinte. tem os cílios tremendo num cacoete com o caderno aberto para
seguido e os letreiros piscando esconder o rosto. poderá ser numa auto-
regulam a chegada dos trens. o postal com um estrada. nunca chega na hora certa: a sirene alta
urso branco dizia quarta-feira vs. atirando seus pedaços na parede do
o ponto de encontro é cada vez mais distante, túnel.
você pode estar num quarto de hotel ou numa     ali tinha um contexto
estação, “chego sempre fora da hora”. ele disse de tudo, não seguir falando
que sabia, foram anos fugindo da chuva sem o ritmo adequado
– ficava na última cadeira contando os segundos ou o que tivesse ganas.
antes da partida. – essa é a única agora a voz que chega não tem
maneira de estar entre. sons. a quantidade de ar entre eles
e o deslocamento
podia levantar num movimento perpétuo, para chegar.
cabeça erguida e um postal: eis a senha.
(assim fugia a silhueta da mulher (pensar que em outros tempos
de costas) a essa altura podia ser um silêncio ouvia sermões a dois
maquinal, mas o ruído na hora de dizer passos de casa
e os largos dedos apontando tornavam    ou saía para ler no parque)
qualquer fuga impossível – sim, está tudo bem agora,
toquei duas horas de
piano e mais duas
de corrida.

(embora quisesse
dizer algo diferente)

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ii. Aquário
todas as igrejas com suas torres
redondas e a paisagem não muda nunca.
pode ficar ouvindo o que dizem tem o pânico das algas marinhas
deitado no estofado de trás quando acorda de frente para o estádio.
por duas noites seguidas, mas depois o quarto é um aquário
não sabe para onde vai com setas submersas de
para que direção sol e seu corpo filtrado
segue a estrada pela luz do insulfilm
no livro perdido apenas um tem o contorno
nome: de um magnetismo
amalfitano. inverso. não que importassem

as horas. apenas não sabia como ali chegara. não


sabia quanto tempo tinha passado (um cão
lambia o pé, a mesma imagem
congelada)

e na saída: “vai me responder de novo com


uma pergunta?” “mas a configuração é
diferente.” e ela disse, não lembro o que ela disse.
o estádio é um buraco no tempo e de cima
suas guelras latejam os ecos da última partida.
você se encolhe atrás do vidro
redondo, luta para vencer
as pequenas pedras, como num oceano
violeta genciana

22 23
O que fazem a e b quando chegam a.
a cidades destruídas passados uns dias já sabe que
as tentativas aquáticas não podem ser
usadas nos rios deste país. sabe que ninguém
a. responde à neve. quando está sozinha
estar tão longe num quarto com no quarto pensa que terá dois dias
dois quadros e uma janela úteis. depois pensa nos glúons
para o pátio. no meio do e quarks e nos anos estudando
pátio uma macieira a cromodinâmica quântica.
parada.
    sai com duas malas de 20 quilos e na chamada b.
explica: todos os nomes aqui são um pensa na chuteira que sempre quis
equívoco. jamais pode andar ter. nas aulas de pólo aquático,
fora da zona delimitada (“chamam nos cálculos. recebe a chamada de morte
isso de um kindergarten, mas é e diz: daqui não sinto nada. leva as roupas
um palco enorme de madeira, até a lavanderia da esquina e fica
mal enxergo onde termina parado girando os olhos. no dia seguinte
o teto”) escreve: amanheceu tudo branco
pela primeira vez.
b.
chega numa terça-feira depois de perder
dois vôos na mesma cidade.
             a legenda da foto
dizia: soneca. mas não explica muito
bem quem estava ao lado, o frio era o único
tema de conversação. a casa tem três
quartos com papel de parede e o vão
entre a janela e a porta congela as
primeiras noites.

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Olho vigilante Liancourt, 9

i. y entonces pedir cada noche


não passar de uma superfície que sea veloz, sin dolor
circular, um tanto vítrea nos momentos pasar del on al off
graves e bastante fixa. a primeira cena sempre Andi Nachon
se congela, nada pode passar do instante
anterior (sólo voces) apenas uma carta de papel i.
cor de aço que se mistura ao quarto com estar ali é perder o
aquela caligrafia torta e ela resto: como não dormir por várias
diz tudo o que você não quer noites, andar com um livro de pequeno
(mas no arquivo este pavilhão formato sob o braço, aprender uma nemo
aparece sempre entrecortado) technique para não esquecer a direção certa
após entrar em colapso, vira para (depois liga pedindo uma paisagem
o banco ao lado e vermelha porque já fossilizou o
canibaliza todas as falas. resto) desce a torre pelas laterais e chega
seu comportamento sempre no mesmo lugar: uma cabine
quer apenas um pulsar. telefônica. se percorre 100 km, como
posso descrever o quanto é pequena?,
logo se afogará, não há como explicar
ii. porque o sistema nunca é perfeito. os
com menos velocidade primeiros passos enganam, mas depois
via do trem a neve cobrindo está ilhado.
os campos (no satélite a cidade    pode ser o 11-m
crescia para o sul) ou a física marinha que o
levam a outro continente, mas não define
– hoje é a noite mais fria do ano bem quanto tempo restará. sabe
ou do mundo apenas que o livro começa
no seu dizer digital naquele dia.
aparecia na tela pela primeira vez.
depois disso não tem mais volta
nem calefação

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ii. l e pay s n ’ e s t pa s l a c a rt e
pode viver num pedaço
de terra no mar, cercado de fósseis
marinhos e não responde de que
lado fica a segunda porta, não diz
nada além:
   é muito cedo ainda
[...] e sabe que isso
  não é real.
os olhos desligados no escuro por
dias cansados, as três estradas não
significam nada [...] tenta identificar
o contorno do rosto mas quando giram
surpresos [...] quando giram surpresos
vai segurando o riso para não perder o dia
não perder o momento exato de se
virar e dizer o nome
errado

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Le pays n’est pas la carte,

pensa bem, mas


se tivesse as ruas quadradas
teria ido a outro café, teria dito tudo de
outro modo e visto de
cima a cidade em vez de se
perder toda vez
na saída do metrô. não é desagradável
estar aqui, é apenas
demasiado real diz com cílios erguidos
procurando um mapa

ii.
não é o avião em rasante sobre
a água e nem o corpo
na janela semi-aberta
vendo o desenho
dos carros embaixo — não comenta nada
porque prefere armar planos
em silêncio
(estaria sonhando
com colinas?)
 

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iii. Regra fácil
de lá manda longas
cartas descrevendo o país,
os terremotos e a forma da cidade. i.
pode me dizer que nunca se vir não significa atravessar
espanta mas não percebe que a cidade e se deter num quarto
caminha perguntando: escuro – não significa se deter numa
é de plástico a cabine? é sua voz estrutura de madeira sob as árvores
na gravação? é um navio no de laranja – lê o mesmo verso
horizonte? pode ser apenas várias vezes e espera sob a
uma margem de erro mas marquise, o reflexo pisca-
não pensa nisso
com freqüência pisca das letras borradas, aquele risco
no ar por onde tudo começa –
(pode ser apenas a janela “andaremos pela cidade, é sempre
aberta que carrega os papéis) a primeira noite. o inverno me tranca
em casa até chegar

a notícia.”
(pode ser aguardar pode ser
verde-musgo pode ser uma
cidade-satélite pode vir escrito
num livro) o ruído da espera essa
granada verde-musgo
no centro da mesa.

32 33
ii. Um sinal
quando o vê
não tem mais olheiras nem
olha fixo. entra pela porta- um beco de pedras da sexta
avenida e um risco azul ao redor
giratória e se dirige a uma máquina: da retina eram as últimas pistas (não
a regra se impõe, diz sabia que terminaria diante das
desviando o rosto de qualquer montanhas). uma voz em off: este
vestígio que pudesse identificá-lo. homem morrerá no fim. e se
é uma regra fácil e não há você acorda e não sabe
como escapar – se caminha até a esquina    quem é
já verá tudo (sabe que vir pode significar ou se não sabe de onde
outra coisa.) saíram essas moedas holandesas,
pode entrar numa cafeteria de vidro
em busca de sinais, pode conhecer
uma menina chamada katherine
ou heather, que viva em leeds
para sempre.

(– como você sabe


que isso é um sinal?
apenas é, diz limpando
a poeira cinza
e colante)

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Carte orange iii.
funciona como um movimento
disrítmico que
i.    entremescla os dois
quer estar em uma níveis. ficam até tarde buscando uma resposta
cidade alta por que não disse antes que se encaixasse no que parecia
que era isso de onde pode ver concreto: levar um guarda-chuva
o arame invisível que faz e esquecer a carte orange em casa.
mover o poema. entra pela direita a alegria ali tinha algo
em silêncio, senta num ângulo para com as alturas.
olhar de cima podiam ter subido a pé
se dissesse ao fundo um risco
por onde tudo começa.
   pode ser
um mínimo frio, a janela entreaberta
dando para o farol girando
seus reflexos pelo mediterrâneo ou
tanger passando todos os anos para chegar ali.
controla tudo do sétimo ou
do outro lado
   da tela. cada fala
com seu acento
de defesa

ii.
depois a rua deserta queria ter saído
mais cedo a estação de trem
abandonada para ver
do alto e uma tormenta de areia ou
uma tormenta de chuva ou uma
tormenta de eletricidade
ou ficar olhando com espanto
todas as vezes.

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Um carrossel na cabeça ii.
toda a vida uma ação real
para tornar real uma metamorfose. e c. tarkos
i. em montparnasse sem dizer, se esconde
sobretudo conheceu alguém atrás das árvores (a basca lhe acena
num dia terminado que dizia roubar de outro poema). no bolso,
frases pela rua e o homem-sanduíche amarelo e em formato pequeno,
ziguezagueando em sua frente l’argent: a medida exata
muito antes de poder baixar ao para explodir o mundo
metrô (o que parecia apenas o pesadelo e fugir de tudo
da primeira
noite:
    no corredor o descascado
da parede e depois esquece
tudo esperando uma resposta com
seus olhos longos
e duros)
   não que saiba
muito bem de onde chegam e se entra
na avenida certa pensa que do outro
lado na horizontal a plaça reial está
cheia, os movimentos seguem
a mesma direção
só que em paralelo. dizia
que as frases pegava para outro contexto.
ia indo com meias vermelhas girava
o pescoço 180º na noite mais curta
do ano: pela costa se pergunta porque
foi embora justo quando podia ter
dito o certo,
   tinha um carrossel na cabeça e o mais
apropriado seria não continuar fixada
nos gêmeos (mientras uno decía
¡que hermosa estás!)

38 39
Linha 14 ii.
atravessou o cemitério antes
de descer as escadas, o viu
this is the future/ (of an illusion) encostado no mármore branco,
Stereolab 4 passos para o sul, 17
   para oeste.
i. quer descer, escapar,
custa esquecer o último túnel, o tempo ninguém que tenha descido
subterrâneo e o demorar pôde jamais voltar (não responde porque seu tempo
aquela hora. é diferente ou porque
   no mapa, é como um fio lilás e o já não entende).
vidro tem espessura de muralha:
quase um perigo iminente. enquanto iii.
submergem em alta velocidade, não desvia acima de 120 decibéis começa a correr
para ver quem vem atrás, ali risco, mas insiste: você quer
ainda atuam as leis vir comigo? o eco da
da gravidade voz no vidro. do outro lado
   (sabe que precisa sempre responde algo sem som,
responder mas talvez não entenda a um acento diferente
pergunta. um leve movimento na falta de voz.
de rosto cobre os círculos
na parede) talvez não responda
porque gastou o
mecanismo.

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Trocadéro na mão (quero passar aqui
para sempre) caminham devagar porque
pode ser uma questão
sabe que custa chegar de silêncio
e atravessar os últimos passos
na esteira, os minutos da
ligação final
   (a cor na parede
sempre produz a complementar na
zona vizinha. deve se fixar em todos
os detalhes e na máquina de raio-x já não
lembra de nada.)
   sentar no metrô na última
noite tentando encontrar. não sabe
que o livro termina assim. “sempre
lembrarei daquele dia de frio em
trocadéro sempre restará algum
lugar, mesmo que seja um lago retangular
com as bordas de pedra.” estava lá parada
com o bilhete para a véspera – ver o mar
diminuir na passagem por cima,
um minivulcão de um
quilômetro cúbico e tomar a
direção errada
    do quarto alto escuta todos
os passos noturnos e vê apenas uma
forma de mármore branco. ele se agacha
para entrar pela porta e fala devagar. não
importa o que faz parte ou não das
coincidências. primeiro seguia de costas
pelo rio branco e dizia em câmera lenta
as coisas erradas. no instante em que
virou estava parada com o papel

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Duas vozes

i. O que se esconde atrás de uma voz ii. En extrañeza de mundo

sofre em alguma parte no carro metal-chispante


em silêncio. entre eles seus cílios riscando o ar
na mesa de vidro do café apenas denso e cada um ensimesmado.
um círculo de água estranharam-se em silêncio durante
e quanto tempo mais dura tanto tempo (essa cidade nasceu
uma noite terrível? pela janela de uma série de erros e derrotas) na
tudo escuro não há luzes piscando lá fora película pareciam dizer: como você
não há som, só a fumaça sob os pés suportou todos esses anos?
um território lunar, alguém voltar é sempre um estado de
disse. e se você olha para um lugar qualquer concreção nebulosa, uma negatividade
como algo estranho acaba por poder retê-lo em aceitar o aceitável
na memória por um tempo indefinível. não
este lugar, pensa bem. um abraço do alto dizer aterrar é melhor do que
da escada antes de tudo dos corredores aterrizar nesse lugar
paralelos da chave azul e ficar parada numa esquina
sobre a mesa. à espera do código
o que se esconde por detrás de algo
se você olhar bem pode ser que veja.
(sentado no banco
durante todas as horas).

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Classificação da secura ii.
alguém que não consegue se mover
e uma semana de vozes cortadas, deve
i. se acostumar aos movimentos em câmera
agora já é quase amanhã mas queria lenta, à descida pela escada em
dizer apenas que é muito espiral:
tarde: acrescentar quatro horas ao relógio     recorta os sons de cada
indica que já é depois. lá é sempre quarto e apaga as perguntas que
depois. parecia um nome mais detesta responder. como aquela
italiano com aquele som ecoando e a noite no ônibus, ruídos do rádio e
resposta em outra língua mostrava pedaços de frases atiradas,
a cor das linhas no mapa,“é lilás”, para sempre girando as horas.
não dizer algo preciso    ver a paisagem
para não terminar: com ela sem ela e precisar o tamanho da ausência
saio cedo todos os dias. fico de com poucos dados – sabe que as baleares ficam
vez em quando escondido do outro lado do mar, que custa chegar
no porto. tomarei anos depois e dizer. ergue os olhos para
o transmediterrâneo e comerei fixar o que tem ali e não perder
calçots, de vista a secura.
    até chegar o instante antes
do instante, momento em que vê o relógio
e diz: não. já conhece todos os erros
do sistema e a retina derretendo
sempre que levanta
   para sair dali.
(precisão é o retângulo do degrau
inferior.)

46 47
20 poemas para o seu walkman ii.
depois descia as ruas
e queria ficar no carro trancado
i. segurando um livro. o penhasco
um dos primeiros dias apagava qualquer definição
do ano, francesc subia a notre-dame de coisas, mas quando
-de-lorette atrás de jacques roubaud se virava
e sentava no café gioconda de frente ela já não estava
para uma sacola com um tomara o barco para casa e dizia
gato dentro. que talvez no verão seguinte mas
   um dos primeiros só ligava para contar do emprego
dias do outono, não parecia seguro de matemática – “quase um objeto
ficar ali – como a beira do barco poroso” – sair para um concerto de rock
escorregadia e do outro lado e preparar variações para uma
tudo era um quarto com terraço vegetariana amável que pinta
as ruas crescendo ao redor a estação de branco o apartamento
de trem com mato cobrindo as antes de ir.
linhas e às vezes um mergulho
na água salgada: iii.
   ficar boiando um dos primeiros dias
com um walkman e depois olhar para e chegava o cartão da
os pés: – um pouco insulano isso de as catalunha, dizia que ficava
línguas isoladas se misturarem mudo em seu metro e noventa
pouco a pouco e dirigir esbarrando nas pessoas e olhava
na estrada à noite. para os pés: um tênis azul. se não tivesse
tanta hierarquia ou o que pensaria
(estaria de verde? traria uma pilha
de objetos nas mãos? teria um
fone de ouvido? e ainda cantaria
em voz alta)

48 49
Código Morse encontro às cegas
(escala industrial)

por só esse instante esperou toda


vida durante a espera olhando para
os lados, o ruído constante do morse
e uma faixa fluorescente saindo
de dentro do aquário. a escada
na lateral do prédio não sabe
onde vai dar
   todos os corredores aqui são
paralelos mas você parece não
lembrar que numa noite foi até seu quarto
e ficaram parados enquanto chovia. você
parece não lembrar que os dias da semana
se perdem neste lugar
(um sinal breve e dois longos) e não tem a chave
para o naufrágio verde, esquece
sempre os dias e a língua (voy olvidando el
portugués) mas esse instante. é como
ficar no por enquanto é como o barco
que afunda sem apagar as luzes como
esse dia (perder a mala e não saber.
nos momentos mais elétricos
se cala e observa)

50
Tomorrow is easy but today is uncharted
John Ashbery

 
[de verde sob o relógio]
 
parada sob a sombra do relógio de aço o problema é que
não há nenhum novo problema pensa nos olhos gastos
o perfil o sinal do braço a espera com seu ruído quando
olha de lado cada um traz seu crustáceo cintilante que
fará agora corre para fora com os cabelos soltos pronto
que fará depois o contorno dos lábios com frases tiradas
de um guia a voz metálica impessoal saída de um disco
microsillon o primeiro encontro naquela tarde parecia
que tudo acabaria seu olhar a forma de uma cidade des-
truída refletia e no cidade vira de costas
 
 
[um quarto cor de grafite com um buraco no alto
sem janela]
 
em pé olhando pra fora sobre a cômoda algo derreti-
do a cera amarela um vídeo clip una canción sinfin vem
de paris depois de anos-luz país de dores anônimas diz
que queria um mundo calculado fatos que se reduzem
a tapas agora poderia sair sem olhar não tema as hélices
que fazem sua voz girar dos dias ausentes guarda a som-
bra dela e o blaugrana do estádio a mudança de tom ao
telefone o conta-me coisas e o filme de hh em silêncio
queria dizer nada quase nada talvez trouble and desire
there’s nothing but trouble and desire
 
 

55
[na estrada de mão-dupla] [na rambla sob o céu do siamês]
   
no estofado do banco da frente sob a pele o reflexo do quina de mesa e os cabelos sobre o vidro caminha sem
deserto pode ser que não ouça nada naquele estado quer rumo todos os dias senta-se para ler no primeiro café não
levá-la para l’autre cap sair dali correndo ligar o carro era a hora certa mas o avião girava em ângulo reto per-
fabricar um escafandro para os lábios em movimento cebeu que deveria se levantar dizer qualquer coisa fin-
vira de lado ao sair andando hoje só vê as formas trian- gir a parede seca de cal ardia os olhos e agora as malas
gulares o agudo das pontas a tempestade contra a limpi- crescendo como ruídos de uma dança de corvos em seu
dez horizontal na hora da viagem just like this rainstorm caderno ele a combatia num jogo de espelhos do outro
ela disse coisas que não se dizem saiu em câmera lenta e lado dizendo de lá qualquer coisa removeram uma praça
ao subir a terceira passarela se virou para o céu poderia enquanto isso se entretém com o céu do siamês a praça
ser um dia como outro mas quando a vê com olhos rijos itália não está mais ali acha mesmo que era a voz dele
parece morta talvez sonífero para instantes sem o skype enquanto dormia 
talvez correr sob a tormenta em ziguezague ela falando  
do pânico e das noites giradas em huelva
  [cabeça erguida, crê que é invisível]
   
[chove sai correndo do café com nome grego entra no senta-se com os dedos atentos congelados um piscar
segundo edifício sobe dois lances encaixa a chave] pode liquidar a comoção da epígrafe tem frustrações e
  esta é mais uma fixada em descobrir o que sua voz não
a roupa de frio sobre o biombo abaixa a cabeça para diz não sabe mais qual a distância para a outra margem
entrar ouve tudo o sapato molhado um sistema certo para o tempo sempre cortado os órgãos gemendo nos cem
dizer o que quer talvez não lembre mas sabe pela fresta primeiros quilômetros do outro lado o meio sorriso a
de detalhes que ela não percebeu subiu cada degrau com máquina verde-musgo um tictac obsessivo tenta se lem-
passos surdos criou planos museológicos e ouviu alguém brar a cor calcular o comprimento de um mar de peque-
chamar seu nome a peça de 38 toneladas não foi encon- nas mortes e descobrir o que acontece quando encerra
trada e saiu do quarto sem virar para trás sabe que não a véspera 
disse gostaria de ficar sozinho tudo como sempre foi
fica na janela calculando as possibilidades de sumiço de
equal-parallel/ guernica-bengasi foi apenas a primeira no
deserto quando os obstáculos sob a claridade a certeza
de alguém falando dos sinais 
 

56 57
[espera o ferry] a l g o q u e s e e s q u i va
 
refaz os detalhes parada olhando a sombra de molas per-
gunta se são reais busca as palavras exatas esquecendo
oito dias arrumando livros quadrados horas aguardando
a tela do monitor piscando num perigo iminente busca
algo para dizer sabe que tudo acaba passa segundos triste
cachecol vermelho vendo o eco do mar na enseada e no
caminho de volta esquece a cor do céu lilás vê de longe
aqueles ombros descendo com braços longos e finos
depois o bilhete sobre a mesa mensagem dúbia que não
esclarece um planeta explodindo em silêncio no espaço

58
Codecs

i.
estar em contato durante
um trânsito mútuo é diferente, não conta
porque ainda não tem
uma resposta.
   apenas se fixa na estrada
e segue conduzindo as esteiras. não
sabe se ela gosta de olhar para
aquelas fotografias do deserto
em p/b. se gosta de escutar
o som dos escorpiões que só
existem em sonhos e se
vai no próximo verão a nigéria
dizendo apenas: saibro.
   se faz parte de uma salina
o que parece imaginar. não diz onde
está agora, apenas
aguarda
    que voltem dos bosques gelados
que sigam juntos até terça
que se digam adeus – a voz
na chamada não esclarece
e depois de achadas as pistas não
tem volta:
   eletricidade constante
em tudo o que via. deve pensar
em coisas objetivas: pequena
placa esmaltada na entrada com
o nome da rua

61
ii. K. e suas âncoras
pode ser um peixe russo em
extinção, até que chega. mas isso
não explica. é agustina ligando i.
do continente, dizendo as coisas podiam ser três homens altos de frente
pela metade. mas não há como saber: “aperte para o mar. um porto onde os navios
o botão da direita e pegue um pacote de codecs aguardam para sair. cobrem a vista.
eles ajudam a ver imagens, definir o de amarelo olha para o chão
o campo de visão”. sem ele não procurando uma célula de l.h.
vê nada, acorda virada para o fundo
gelatinoso do rio e passa as horas quer olhar algo que alguém
aguardando como um problema muitas vezes não quer ver. quer dizer algo
sem resposta: é uma ilha tão pequena que alguém muitas vezes não disse. mas pensa bem
que quando não espera e sabe que o nível do mar
despenca no mar. é um engano.

ii.
uma cidade ausente ocupada
por enguias atlânticas pode ser uma forma
de ficar entre mas não posso fazer
isso se convence. (traziam armas
brancas para o duelo)

pode ser muito tarde e fica fora


porque não quer voltar (crees que
alguien olvida algo?)

iii.
pensa numa morte em que se
pode rir aos gritos. pensa
em algo que um dia
esqueceu. mas ninguém
esquece nada.

62 63
Escorpiões e a esquiva Sant Elm

pela quarta ou quinta vez contra o chumbo daquele


tenta dar uma cronologia: me fundo (apenas o horizonte
deitei e parecia um deserto aquela piscando) dizia em voz lenta é uma
areia salgada. escala industrial poderia ser uma
   — mas estamos em méxico city, diz, faixa no centro da avenida reli tudo
estamos no ponto mais próximo a baleia os dias os encontros falhos
da esquiva. a ponte os ruídos da cidade
e vejo
eles vêm de noite, no campo, que o contraste
quando uma nuvem se forma apaga o sujeito traz
e tudo está perdido. rente ao chão. um tempo sem tempo era mais um
me deitei e tratei de ouvir os ruídos dia pelo mediterrâneo enquanto volta
dos escorpiões para casa no escuro [não enxerga as luzes
ao longe?] apenas o ano novo ela saindo
mas não havia ruídos, do carro vermelho e andando em linha tor
só o vento e os clarões. ta pelo movimento das ilhas (sob a luz dentro de
uma loja escura ele falava da paula por ali
tratei de ouvir ela atravessa todos os dias e toma
o barulho da fábrica o barquinho para chegar) à beira-
mas não ouvia nada mar um mapa para riscar as
(conhecer pode ruas, uma forma de quase viver
ser destruir) nesta outra língua, a mesma travessia
só um eco ou que faz daquele lugar jacente
algo que um círculo de água no centro
se esquiva. da mesa no centro para transportar
os dias

64 65
(sentado no banco de madeira Do outro lado da tela
contava a experiência lost
in translation e podia quase ver
do outro lado do mar do vento i.
do deslocamento de ar e partículas acontece de estar
o infinito de cada num deserto de estar num
  coisa) lugar inclassificável ao vê-lo
cruzar a praça arrastando
uma rede de memória no
momento em que o apito marca
os passos e você levanta a mão
para falar
como se precisasse
de um impulso ou se dissesse
que hacen falta los subtítulos
al hablar. nesse instante
busca se fixar em todas
as cores antes de dizer
   mas vê apenas
uma mancha ocre – então
não reage, olha a cabeça erguida
e a dele em semi-círculo fazendo o
contorno
   (parece estar em denfert
de noite: chove o suficiente e o guarda-chuva
grená é pequeno, não cabem apertados ali embaixo –
embora recolha os dedos para caber –
corre para comprar um despertador
e ouvir as histórias da distância
para chegar a polônia
   num dia branco.)

66 67
ii. Inferno musical
a menina da livraria subterrânea
pergunta a que horas sai seu vôo
e você não responde – recolhe as miradas i.
persecutórias e sai mudo, mutismo o que explicou sobre a melodia
é isso sim nem pode imaginar de que lado de sistemas não fazia sentido pois
estão ou de onde escrevem todas as dessa vez não havia
vezes. também não há como saber de    som algum.
onde saem tantas luzinhas porque é — é uma deformação, quase um inferno
o máximo que já esteve musical que,
do outro lado     ao transbordar,
   do oceano: o máximo congela,
de distância através da tela, a imagem como o mármore, o tombo ou
embolotada que tenta chegar o tapa. poucos usam a palavra anti-
mas é lento e cortado, um filme harmonia ou anti-
antigo sem voz densidade (nada se acopla
com nada aqui)
a vida se divide em
duas partes móveis e você pode
entrar numa melodia circular
atrás da configuração correta

ii.
– ezeiza es un sitio que no
existe mas chegar é repetir o
gesto inexistente, como dizer uma
frase sem som ou se tornar o mesmo
uma semana depois no momento em que
a aeronave se desloca com
mais esforço.
    no desenho tenso da esteira
a única mala – para tomar a estrada
de noite no deserto asfixiante
e escuro.

68 69
Em linha reta daquela foto – não pode distinguir
os riscos de ferrugem nem saberia dizer
se subiam ou desciam a ponte
i. na hora exata porque andavam
“uma arquitetura movediça” se em linha reta
lhe perguntassem dos onze     (somente nesse momento
muros alinha- deixa o carro sempre provocando
dos e “algo verde e acurado” com perguntas ilógicas porque um
se quisessem saber o que passaria essa sistema não
noite às 20h25, hora em que entraria     se troca jamais)
carregando a caixa. a mera
negativa era aleatória porque agora
via apenas
lasers e seus efeitos de realidade

ii.
– jamais teria deixado sua sorte
nas mãos do acaso era o que pensava
da foto da nasa e embora nada
soubesse de infraroxos, segurava
a pulseira no braço esquerdo
comparando-a com a vizinha
da via-láctea – enquanto
o pó sideral
em roxo
    escorria pelo cotovelo.
dentro do radiotaxi vê apenas
azul-grená nisso tudo, tentando apagar
a margem da foto e levanta com
espanto ao ver – entrecortada
chora, lamenta o afogamento
e os limites de velocidade,
tão entrecortada vê apenas
a medida do guidom na claridade

70 71
Olhando a poeira ii.
depois de uns dias apaga
as cores dessa rua molhada só para
i. parecer nouvelle vague. tinha um pouco
chega ao café e não sobrou daquela alegria de viver junto ou
ninguém só um rastro de eco o choque de chegar: no quilômetro
para aquele que coleta plânctons mil sentado com o livro entre os
e pixels e não volta mais porque dedos, dispensa o w/t porque já pode
essa cidade é muito forte mas pode dizer tudo e terminar com uma pergunta
ser que visite no domingo a feira porque um dia esse lugar chega
onde encontrará o livro a ser.
que mais espera, feito só
de números.
   pensa sempre em
duas noites sem encaixe: na 1 partia
de madrugada, ali parada com sua
chave e o tubo cilíndrico de chá para
o dia seguinte – a sala vazia
amanhecendo, a sombra no táxi
e o verde derretendo dos seus
olhos.
    na 2, escutava
música sob o fundo azul e lia
um poema, estava mais no
fundo de um oceano, sua voz
deixava ecos no mar ou essa foi a primeira
vez, também não lembra o que
era quando chegou – lima no es ni
linda ni fea, dizia ali com ganas de recomeçar
olhando a poeira “as pessoas
gostamos de começar, parece que tudo
pode ser e quase sim.”

72 73
Ponto zero Ponto cego

desde que partiu, o dia ganhou talvez seja uma forma de


cinco horas e o corredor cor-de- desespero, por ter perdido tudo (no
vinho é estreito, mal cabe nas escadas começo não era assim.
espiraladas que
    em seqüência um minuto de espera e depois
definem o tubo de dias o traço: um corvo negro
para chegar. contava duas lendas)
    o que restou foi
uma cidade dobrada a partir do uma era de mármore,
chão: vestia vermelho e a outra te procurava
no alto caminha em linha pela cor, às vezes pela altura.
reta. embaixo só lhe resta estranho esse encontro ali à noite
desviar de tudo (sabe apenas que precisa no descampado deserto.
chegar ao point zero, de onde são
medidas as distâncias, onde obrigada, disse recebendo o livro.
tudo começa, mas nunca encontra o que é que eu faço?
a marca, tudo se dissolve quando (anoto tudo e depois me escondo
se aproxima) para decifrar a mensagem).
    – queria que estivesse aqui já devia saber que o sistema estava errado,
não diz porque dizer é um uma arquitetura corrente.
deserto aberto sobre a
mala. queria que
pudesse ser real mas não é. tudo
no lugar de sempre, quase assim
tão objetivo.

74 75
Uma mulher que se afoga posfácio

ruído da chuva
e uma lâmpada elétrica
acende a única janela do alto
naquela cidade destruída. na beira da cama,
de branco, esperou meses para abrir o livro de
notas achado num café. “quando acredita que
a chuva vai passar?”

(mas queria dizer em que


pensa? queria dizer até quando?
queria dizer outra coisa)

de dentro do quarto
gris, apenas o contorno
ao redor dos objetos que
desmaiam um de cada vez e trocam
de lugar enquanto você espera. a luz do poste
filtrada pelas cortinas tem a forma de um quadrado
radioativo (poderia ser um wet dream que
me faz trocar os dias da semana?)

devemos ir, foi a última coisa


que falou com sua capa-de-
chuva e um bote salva-
vidas.

76
Notas no Schiphol Airport: portão c9
[18 oct 06 – 14.27hs]

#1 : Já tinha passado a manhã inteira da terça naquele


apartamento de Kreuzberg – onde não havia ninguém
– olhando pela janela. Tentava escrever, mas era como se
estivesse esperando alguém a quem explicar os detalhes
de uma viagem – e súbito compreendesse que não falava
aquela língua. Talvez por isso tivesse ficado distraído,
deixando sua vista passar entre as varinhas de vime da
cortina, e só mais tarde iria reparar na sua tentativa de
decodificar a seqüência da fumaça branca da chaminé
daquele outro prédio.

#2 : Não é que tivesse conseguido escrever alguma coisa,


mas acreditava que sim. Ao sentar na sala do aeroporto,
foi estranho não achar a folha. Devia dizer: “Pensou em
encontrá-la [mesmo que fosse outra], sugerir que talvez
fosse melhor viver do lado de fora. Depois imaginou
que fossem aqueles poemas no seu walkman, e tentou
lembrar do que eles diziam. Quando você começou a
se sentir assim? perguntou uma voz – mas não viu nin-
guém. Achou engraçado ter o mesmo nome, a mesma
biografia de alguém que, nessa situação, teria procurado
entender”.

#3 : Quando o capitão – fazia agora uma hora – tinha


dito que Schiphol era um dos aeroportos mais bonitos,
a imagem tinha sido outra: “sabia que seria novamente
esse céu cinza que conheço”. Mentalmente, o que queria
explicar para ela, poderia se traduzir assim: “primeiro
ia dizer / que esses poemas eram tudo / o que eu queria

79
escrever, e o modo em que eu me via / e via / o mundo. E #6 : E enquanto isso a névoa continuava descendo sobre
logo // o avião aterrando deixou tudo claro: tinham sido um dos aeroportos mais bonitos do mundo [segundo o
esses poemas no meu / walkman, os que – já nem sabia capitão do vôo kl1823], e algumas poucas pessoas pas-
/ quando – me ensinaram esse modo de olhar; isso / que savam pelo espaço que separava as janelas da mesa na
agora / eu chamava eu.-” qual um homem de suéter preto e fones de ouvido sorria
e escrevia.
#4 : O riso, enquanto andava pelos corredores do aero-
porto, tinha a ver com um motivo para não escrever que Aníbal Cristobo
tinha imaginado minutos antes: “Olha, é como quando
Mick Jagger recusou uma entrevista dizendo que seria
sempre melhor entrevistar alguém nascido quando já
existiam os Rolling Stones, do que ele próprio. Estas
notas, escritas da mão de alguém nascido depois do livro,
seriam muito melhores.”

#5 : Era essa sensação a que tinha feito que, no dia ante-


rior – sem ter escrito – tivesse sentido aquela vontade
de riscar tudo e começar de novo assim: “Quer saber o
que eu acho? Acho que dentro de algum tempo, para se
referir a esses sons que você traz aqui, as pessoas dirão:
“me sentia dentro de um poema da Marília, e ouvia
minha voz, mas o sentido continuava longe, e só conse-
guia entender que ia me afastando de alguma coisa – que
também era eu”. E que depois dessas músicas, muitas pes­
soas irão desenvolver um outro gosto não só pela poesia,
mas pelos seus próprios desejos de se imaginarem assim,
e por esse outro modo de sentir seus fragmentos de fala
e de memória, e por todos esses sinais incompreensíveis
que juntamos cada dia, e, em geral, um outro gosto e um
outro amor por observarem o maravilhosas e inexplicá-
veis e verdadeiras e diferentes que podem ser as vidas
deles – quando olhadas assim. Parabéns.”

80 81
sobre a autora
Nasci no dia 29 de novembro de 1979, no Rio de Janeiro,
cidade em que cresci ouvindo os ruídos do bonde amare-
lo e onde vivo até hoje. Graduei-me em Letras na uerj,
onde defendi a dissertação Velocidades e vozes sobre as
Galáxias do Haroldo de Campos. Trabalho na editora
7Letras, do Jorge Viveiros de Castro, quem editou meu
mini-livro Encontro às cegas na coleção da baleia branca
e integro o conselho da revista Inimigo Rumor. Devo
muito este 20 poemas para o seu walkman e minha rela-
ção com a literatura a duas pessoas presentes de modos
distintos, a quem o dedico, e a quem tenho uma infinita e
alegre gratidão: Carlito Azevedo e Aníbal Cristobo.
Agradeço ainda a presença, a leitura, o incentivo de
Ricardo Domeneck, Daniel Chomsky, Augusto Massi,
Heitor Ferraz, Flora Süssekind, Valeska de Aguirre,
Isadora Travassos, Debora Fleck, Leila Name, Izabel
Aleixo, Franklin Alves, Manoel Ricardo de Lima, André
Garcia, Silvia Rebello, Graziela Grise, Paula Glenadel,
Richard Priestley, Thereza Cristina, Francesc Flexas e
Svetlana.

Poesia

Encontro às cegas. rj: Moby Dick, 2001.

Tradução

Duas flores de Katherine Mansfield. rj: Moby Dick, 2001.


Poemas de Benjamin Prado, in Inimigo Rumor, n. 18, sp/rj:
CosacNaify/7 Letras, 1º semestre 2006.

85
índice
Perguntas sobre a diferença entre

Svetlana........................................................................................... 7
M.A................................................................................................. 9
i. Um filme................................................................................... 11
Num dia branco.......................................................................... 16
De dentro da caixa verde............................................................ 18
Victoria Station............................................................................ 20
39º34’13.26” n 2º20’49.50” e (diz em catalão)........................ 21
Aquário........................................................................................ 23
O que fazem a e b quando chegam a cidades destruídas........ 24
Olho vigilante.............................................................................. 26
Liancourt, 9.................................................................................. 27

Le pays n’est pas la carte

Le pays n’est pas la carte............................................................ 31


Regra fácil.................................................................................... 33
Um sinal....................................................................................... 35
Carte orange................................................................................ 36
Um carrossel na cabeça............................................................... 38
Linha 14....................................................................................... 40
Trocadéro..................................................................................... 42
Duas vozes................................................................................... 44
Classificação da secura................................................................ 46
20 poemas para o seu walkman................................................. 48
Código morse.............................................................................. 50

Encontro às cegas (escala industrial). ................................ 55


Algo que se esquiva

Codecs.......................................................................................... 61
K. e suas âncoras......................................................................... 63
Escorpiões e a esquiva................................................................ 64
Sant Elm....................................................................................... 65
Do outro lado da tela.................................................................. 67
Inferno musical............................................................................ 69
Em linha reta............................................................................... 70
Olhando a poeira......................................................................... 72
Ponto zero................................................................................... 74
Ponto cego................................................................................... 75
Uma mulher que se afoga........................................................... 76

Posfácio [Aníbal Cristobo]......................................................... 79


Sobre a autora.............................................................................. 85
© Marília Garcia, 2006
© Cosac Naify, 2006
♣♥♦♠
© Viveiros de Castro Editora, 2006 coleção ás de colete

Coleção Ás de colete
Lero-lero [1967-1985] Cacaso
Coordenação Carlito Azevedo
Antologia Adília Lopes
Conselho editorial Aníbal Cristobo, Heitor Ferraz,
Sete pragas depois Antonio Cisneros
Marcos Siscar, Marília Garcia,
Paula Glenadel e Valeska de Aguirre
A rosa das línguas Michel Deguy
Poemas [1968-2000] Francisco Alvim
Capa e projeto gráfico Age de Carvalho
Poesia reunida [1969-1996] Orides Fontela
Composição Negrito Produção Editorial
Revisão Augusto Massi
Foto da capa Marília Garcia série bolso

Metade da arte [1991-2002] Marcos Siscar


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Caveira 41 Age de Carvalho
Começo Nathalie Quintane
Guimarães, Júlio Castañon
Planos de fuga Tarso de Melo
Poemas [1975-2005] / Júlio Castañon Guimarães.
— São Paulo : Cosac Naify ; Rio de Janeiro : Viveiros de Quase uma arte Paula Glenadel
Castro Editora, 2006. — (Coleção Ás de colete ; 14) Miniaturas kinéticas [1997-2004] Aníbal Cristobo
Música possível Fabiano Calixto
isbn 85-7503-138-4 (Obra completa)
isbn 85-7503-524-x (Cosac Naify) Poemas [1975-2005] Júlio Castañon Guimarães
isbn 85-7577-274-0 (Viveiros de Castro) A cadela sem Logos Ricardo Domeneck
Rilke shake Angélica Freitas
1. Poesia brasileira i. Título. ii. Série.

06-3561  cdd-869.91

Índices para catálogo sistemático:


1. Poesia : Literatura brasileira 869.91
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