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ARTIGO ARTICLE 1379

Musculação, uso de esteróides anabolizantes


e percepção de risco entre jovens fisiculturistas
de um bairro popular de Salvador, Bahia, Brasil

Body-building, steroid use, and risk


perception among young body-builders
from a low-income neighborhood in the city
of Salvador, Bahia State, Brazil
Jorge Alberto Bernstein Iriart 1

Tarcísio Matos de Andrade 2

1 Instituto de Saúde Abstract Recent studies in different countries have shown an increase in anabolic steroid con-
Coletiva, Universidade
sumption among young people and the harm caused by indiscriminate use. In Brazil, research
Federal da Bahia.
Rua Padre Feijó 29, on steroid abuse is scarce. The present study examines the risk perception of health problems as-
Salvador, BA sociated with anabolic steroid consumption among young working-class adults engaged in
40110-170, Brasil.
body-building practices in a poor neighborhood in the city of Salvador, Bahia. The methodology
iriart@ufba.br
2 Pós-graduação em involved an anthropological approach based on qualitative research techniques consisting of
Medicina e Saúde, Faculdade ethnography, in-depth interviews, and a focus group with steroid users. The data describe the
de Medicina, Universidade
most common substances consumed and highlight the lack of information among interviewees
Federal da Bahia.
Rua Pedro Lessa 123, concerning potential related health hazards, showing that for many steroid consumers the quest
Salvador, BA for muscle-mass development to achieve an idealized body supersedes the risk of harmful side
40110-050, Brasil.
tarcisio@ufba.br
effects. The results indicate the need for culturally sensitive measures to prevent steroid abuse
among youth.
Key words Substance Abuse; Anabolic Steroids; Exercise; Risk Factors; Anthropology

Resumo Estudos recentes em diferentes países têm apontado o aumento do consumo de esterói-
des anabolizantes entre jovens fisiculturistas e atletas, e os danos à saúde causados pelo seu uso
indiscriminado. No Brasil, estudos sobre o uso de anabolizantes são escassos. No presente traba-
lho, examina-se a percepção de risco à saúde, associada ao consumo de anabolizantes, entre jo-
vens fisiculturistas de um bairro pobre da cidade de Salvador. A metodologia privilegiou méto-
dos de coleta de dados qualitativos tais como etnografia, entrevistas semi-estruturadas e grupo
focal com usuários de anabolizantes. Os dados produzidos descrevem as principais substâncias
utilizadas e os padrões de uso, e apontam a falta de informação dos jovens entrevistados sobre a
extensão dos danos à saúde decorrentes do consumo de anabolizantes, mostrando que para mui-
tos, o desejo de desenvolver massa muscular e alcançar o corpo ideal se sobrepõe ao risco de efei-
tos colaterais. Os resultados indicam a necessidade de se desenvolver ações culturalmente apro-
priadas, voltadas para a prevenção do abuso de anabolizantes junto à essa população.
Palavras-chave Abuso de Substância; Esteróides Anabólicos; Exercício; Fatores de Risco; Antro-
pologia

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Introdução sugere um elevado consumo de diversos tipos


de anabolizantes entre jovens fisiculturistas. O
A crescente valorização do corpo nas socieda- termo fisiculturista está sendo aqui utilizado
des de consumo pós-industriais – refletida nos para designar os praticantes de exercícios físi-
meios de comunicação de massa, que expõem cos com pesos, que visam a modelagem do
como modelo de corpo ideal e de masculinida- corpo através do desenvolvimento de massa
de um corpo inflado de músculos – pode estar muscular (body-building). Nos bairros popula-
contribuindo para que um número crescente res, a prática do fisiculturismo se realiza fre-
de jovens envolva-se com o uso de esteróides qüentemente em academias de musculação que
anabolizantes, na intenção de rapidamente de- funcionam em espaços improvisados e equipa-
senvolver massa muscular (Courtine, 1995). O das de forma precária. O alto consumo dessas
consumo dessas substâncias, especialmente substâncias entre os fisiculturistas, é atestado
entre jovens fisiculturistas e atletas, tem sido pelo grande número de seringas usadas, que
registrado com freqüência ascendente em vá- são trocadas por esses jovens, junto aos agen-
rios países (Lise et al., 1999; Nilson, 1995; Perry tes comunitários de saúde do CETAD, assim
et al., 1992; Scott et al., 1996) e diversos estu- como pelos relatos dos cadernos de campo dos
dos têm documentado os danos à saúde causa- agentes que documentam o padrão de uso des-
dos pelo seu uso (Evans, 1997; Korkia & Stim- sas substâncias, e os efeitos colaterais que es-
son, 1997; Rich et al., 1999). tão produzindo entre os usuários.
Nos Estados Unidos, estudo populacional Este estudo, visa contribuir para a produ-
realizado em 1993 estimou em mais de um mi- ção de conhecimento sobre o uso de anaboli-
lhão o número de usuários de anabolizantes zantes entre os jovens fisiculturistas das clas-
( Yesalis et al., 1993). Em relatório recente, o ses populares de Salvador, buscando fornecer
National Institute on Drug Abuse (NIDA, 2001) subsídios para projetos de prevenção – assim
informa que a porcentagem de estudantes do como para redução dos efeitos nocivos decor-
curso secundário (high school) que utilizou es- rentes do seu uso – que sejam culturalmente
tas substâncias cresceu 50% nos últimos qua- apropriados junto à essa população. Os objeti-
tro anos, passando de 1,8% para 2,8. O aumen- vos específicos são: (1) analisar os significados
to do consumo de suplementos alimentares e associados à fisicultura e as razões do uso de
anabolizantes nessa população (Durant et al., anabolizantes entre jovens fisiculturistas; (2)
1993; Yesalis, 1997) levou o governo norte-ame- descrever as principais substâncias utilizadas,
ricano a lançar, no ano passado, uma campa- o seu padrão de uso e os efeitos colaterais per-
nha nacional para alertar os jovens dos perigos cebidos e (3) analisar a percepção de risco dos
associados à sua utilização (NIDA, 2001). usuários.
No Brasil, estudos que abordem o uso de
anabolizantes são escassos, não existindo da-
dos epidemiológicos que indiquem a extensão Metodologia
do consumo dessas substâncias. Alguns indí-
cios, no entanto, sugerem que o uso de anabo- O presente estudo aborda o problema do abu-
lizantes pode estar crescendo entre os jovens so de esteróides anabolizantes com uma pers-
pertencentes a diferentes classes sociais, po- pectiva sócio-antropológica utilizando-se, con-
dendo representar, em breve, um importante sequentemente, de métodos de pesquisa qua-
problema de saúde pública. Os meios de comu- litativos. A escolha metodológica deve-se ao
nicação de massa têm noticiado com alguma caráter exploratório do estudo e à necessidade
freqüência o consumo dessas substâncias nas de produzir dados em profundidade sobre o uso
academias de musculação, e chamado a atenção dessas substâncias, procurando compreender
para os casos de efeitos colaterais graves decor- os fatores sócio-culturais subjacentes à prática
rentes de seu uso abusivo (Folha de São Paulo, da musculação e ao uso de anabolizantes.
2000a, 2000b). Sabe-se ainda, segundo estimati- A pesquisa foi realizada em um bairro po-
va do CEBRID (Centro Brasileiro de Informações bre de Salvador, que tem aproximadamente 60
sobre Drogas Psicotrópicas), que o consumidor mil habitantes, e cujo nome será omitido para
preferencial no Brasil está entre os 18 e 34 anos preservar a privacidade dos informantes. As-
de idade e, em geral, é do sexo masculino. sim como outros bairros periféricos das gran-
Nossa atenção para o problema originou-se des cidades brasileiras, esse possui uma infra-
no trabalho de redução de danos que o CETAD estrutura urbana extremamente precária, ca-
(Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Dro- racterizada pela presença de esgotos a céu aber-
gas da Universidade Federal da Bahia), vem rea- to, ausência de unidades de saúde e áreas de
lizando em bairros populares de Salvador, e que lazer. Somam-se à essa realidade, o alto índice

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de desemprego da população do bairro e a for- Os fisiculturistas utilizam com freqüência


te presença do comércio ilegal de drogas, inti- em sua narrativa, expressões que remetem ao
mamente associada ao aumento da violência “desejo de crescer”, “ficar grande”, “ficar forte”,
urbana. de forma a chamar a atenção das pessoas, atra-
Os dados aqui analisados, foram produzi- vés de um corpo dilatado e com “músculos
dos empregando-se as seguintes técnicas: (1) bem definidos”. Uma análise mais atenta dos
grupo focal, realizado com dez usuários de ana- termos utilizados pelos informantes sugere,
bolizantes de uma academia de musculação do porém, que esses transcendem a idéia de cor-
bairro; (2) entrevistas em profundidade (semi- po físico, remetendo a uma vontade de crescer
estruturadas), realizadas com seis informan- e se fortalecer subjetivamente. Em um contex-
tes-chave (cinco usuários de anabolizantes e to de periferia urbana – marcado pela violên-
um agente de saúde do CETAD), residentes no cia, pelo tráfico de drogas e pelo desemprego –
bairro; (3) relatos transcritos ao longo de dois que não proporciona aos jovens muitas pers-
anos nos diários de campo de dois agentes co- pectivas de construir uma identidade positiva,
munitários de saúde do CETAD e (4) observa- a fisicultura surge como uma possibilidade de
ção sistemática realizada pelos pesquisadores construção identitária. Através do trabalho so-
em uma academia de musculação do bairro. bre o corpo, esses jovens buscam uma forma
Trata-se de uma academia popular, equipada de se destacar na comunidade e de compensar
de forma precária, mas freqüentada regular- uma baixa auto-estima. Uma dimensão da iden-
mente por cerca de 75 fisiculturistas. Os usuá- tidade positiva construída pelos fisiculturistas
rios da academia são jovens das classes popu- é a que enfatiza sua condição de atleta. Muito
lares, na sua grande maioria do sexo masculi- referida nas entrevistas, a percepção de si mes-
no, com idades que variam de 17 a 37 anos. mo, enquanto atleta, é elemento de sua identi-
Eles trabalham sobretudo, no mercado infor- dade capaz de opor-se à condição de desempre-
mal como vigilantes, seguranças, guardadores gados/desocupados em que muitos se encon-
de carro, vendedores ambulantes ou biscatei- tram. O corpo torna-se então, um instrumento
ros. Alguns são estudantes e ainda não estão no privilegiado, por meio do qual a pessoa busca
mercado de trabalho. Para se exercitar na aca- reconstruir o Eu (Self), fortalecendo uma iden-
demia, cada fisiculturista paga uma mensali- tidade fragilizada. A repercussão externa da
dade de R$ 5,00. imagem corporal projetada, passa a ser extre-
mamente valorizada pelos fisiculturistas, que
se percebem como possuidores de um corpo
Significados associados à musculação modelo, símbolo de masculinidade, admirado
entre fisiculturistas das classes populares e invejado pelos homens, e desejado pelas mu-
lheres.
A prática da musculação – “malhação” na gíria “A importância (da musculação) é a gente
utilizada pelos fisiculturistas – assume múlti- chegar num lugar e poder botar uma camisinha
plos significados no discurso dos jovens entre- decotada, tá com os músculos trabalhado, tudo
vistados. Em suas narrativas sobre as razões em dia, chegar numa praia e poder botar uma
que os levaram a começar o trabalho de fisicul- sunga, que tá o corpo todo trabalhado, boniti-
tura, os informantes freqüentemente fazem nho... (...) o pessoal começa a falar com a gente
alusão à admiração neles suscitada pela visão assim, tipo achar um ídolo, alguma coisa assim:
de corpos fortes e musculosos, que passam a ser ‘Pô, tá forte, tá bonito, tá beleza’, e param mais
tomados como modelo de corpo ideal, e ser- pra prestar atenção na gente (...)” (fisiculturis-
vem de estímulo para o início da musculação. ta, 22 anos).
“Eu comecei a treinar com 14 anos. Comecei O aumento dos músculos e a sua manuten-
a gostar porque eu via... eu achava bonito a pes- ção, tornam-se uma obsessão para os fisicultu-
soa com o corpo bem definido...” (fisiculturista, ristas, que competem entre si, comparando
29 anos). suas medidas de braços e pernas e passando a
“Um camarada meu me emprestou uma re- não poupar esforços para atingir um corpo
vista, eu olhei, nessa revista tinha até Arnold ideal. O culto ao corpo se traduz em um inves-
Schwarzenegger, então daí por diante, com me- timento narcísico que aparece bem evidencia-
nos de 18 anos, eu comecei a malhar. Como eu dis- do no discurso dos informantes, onde se enfa-
se a você, né, a gente vê uma pessoa forte... e aí me tiza o prazer na admiração do próprio corpo
interessou a musculação” (fisiculturista, 33 anos). em frente ao espelho:
“Uma vontade que eu tinha de querer ficar “Rapaz, a gente passa a amar nosso corpo, a
forte, criar muitos músculos, dividir o corpo” gostar dele, se olha no espelho com... se achan-
(fisiculturista, 22 anos). do.... você se gosta mais ainda. Porque você olha

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pra sua perna e vê sua perna grossa, você olha lizadas nas academias freqüentadas por eles.
pra seu peito e vê seu peito grande, olha pra seus Essa relação também inclui hormônios femini-
bíceps e vê eles aumentando, então você passa nos, usados de forma isolada ou em combina-
assim, não vou dizer adorar, mas a se amar ção com androgênios, e também produtos ve-
mais ainda, se cuidar mais ainda” (fisiculturis- terinários, a exemplo de complexos vitamíni-
ta, 33 anos). cos e antiparasitários. Entre os esteróides an-
É presente no discurso dos informantes, drogênicos, os mais utilizados são: Durateston
uma freqüente insatisfação com suas medidas (Testosterona), Stradon P (Testosterona + Es-
corporais, por maiores que essas sejam, o que tradiol) e Deca-durabolim (Nandrolona). Os
remete à existência de uma dicotomia entre o hormônios femininos mais mencionados pelos
corpo real e o corpo ideal. Se o corpo represen- informantes foram os anovulatórios Uniciclo
ta o envelope do sujeito subjetivamente cons- (Algestona e Estradiol) e Premarim. O baixo po-
tituído, entre os nossos informantes, a hiância der aquisitivo dos fisiculturistas dos bairros po-
entre o somático e o psíquico parece aumenta- pulares, leva à opção pelos produtos mais ba-
da. Esse fato está expresso no próprio ato de ratos, incluindo nessa categoria os de uso vete-
malhar, onde a relação não é mais com o corpo rinário. Entre esses, os mais freqüentemente
como um todo, mas com partes do mesmo. Tra- mencionados foram o ADE (vitaminas A, D e E),
balha-se individualmente os braços, as pernas, Potenai (complexo vitamínico à base de vitami-
o peito e às vezes apenas determinados grupos na B) e o antiparasitário Ivomec (Ivermectina).
musculares; fala-se em corpo dividido, e se es- Os dados coletados revelam que o consumo
tabelece parâmetros para cada parte. O corpo de anabolizantes tem início logo após os pri-
é investido de uma função instrumental, tor- meiros meses de contato dos iniciantes com os
nando-se um corpo para ser visto e voltado pa- colegas de musculação na academia. A consta-
ra o consumo. Para muitos desses jovens fisi- tação de que companheiros, que iniciaram as
culturistas, essa função instrumental do corpo atividades físicas na academia à mesma época,
toma a forma de um investimento profissional, conseguiram desenvolver massa muscular con-
no qual a posse de um corpo musculoso au- sideravelmente maior, no mesmo tempo de prá-
menta as chances de conseguir colocação no tica, leva os novatos a procurar informações
mercado de trabalho como seguranças e vigi- sobre as razões desse fato. A escuta e participa-
lantes. Para outros, a exibição do corpo malha- ção nas conversas entre os fisiculturistas vete-
do nas festas populares da cidade, torna-se uma ranos, onde o uso de anabolizantes é um tema
forma de atrair clientes homossexuais, que pa- muito freqüente, cria a curiosidade e facilita a
gam aos fisiculturistas por seus serviços, exa- inserção do iniciante nos meandros de seu con-
cerbando seu papel instrumental como fonte sumo.
de renda. P: “Como uma pessoa se inicia no uso de
anabolizantes?”
R: “Primeiro é... tá vendo a pessoa que tá lá,
Substâncias utilizadas, padrões com mais tempo de academia, aí vai se chegan-
de uso e razões para o consumo de do, procurando saber como a pessoa tá forte...
anabolizantes entre os fisiculturistas Aí, procura saber como é pra ficar forte rápido,
em dois, três meses ficar... aumentar o peso ra-
Os esteróides anabólico-androgênicos, comu- pidamente, aí o colega vai e ensina. Diz a ele.
mente chamados simplesmente de anaboli- Ele procura saber o nome, a gente dá o nome, ele
zantes, são substâncias sintetizadas em labora- vai lá e compra. (...) quando eles perguntam co-
tório, relacionadas aos hormônios masculinos mo é que toma, tudo, a gente explica tudo direi-
(androgênios). Essas substâncias aumentam a tinho a eles, como é que toma, como a gente to-
síntese protéica, a oxigenação e o armazena- mou né” (fisiculturista, 22 anos).
mento de energia resultando em incremento A impaciência com o tempo necessário pa-
da massa muscular e de sua capacidade de tra- ra o desenvolvimento da massa muscular com
balho. Na gíria popular, os anabolizantes são o exercício físico isoladamente, não se restrin-
vulgarmente conhecidos pelo nome de “bom- ge, no entanto, aos iniciantes. Os veteranos tam-
ba” (em referência ao efeito de inchaço muscu- bém referem não se contentar com a lentidão
lar por eles produzido), e é também comum que do crescimento muscular, e com os minguados
fisiculturistas sejam chamados pejorativamen- resultados obtidos por meio de uma suada mus-
te de “bombados”. culação destituída de ajuda química. O anabo-
Cerca de 25 substâncias, a maioria esterói- lizante é visto então, como uma droga podero-
des anabólico-androgênicos, foram menciona- sa que permite ao organismo trabalhar mais ra-
das pelos sujeitos da pesquisa como sendo uti- pidamente, proporcionando resultados quase

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USO DE ESTERÓIDES ANABOLIZANTES E PERCEPÇÃO DE RISCO 1383

mágicos, e recompensando imediatamente o Os informantes não referem limitação da


suor despendido na malhação. oferta dos produtos utilizados, relatando ser
“É pra ter o resultado rápido, né, chegar rá- fácil a sua aquisição, tanto nas farmácias quan-
pido ao nosso objetivo, que é ficar forte, criar to nas casas de produtos veterinários. Os pro-
massa muscular, ganhar peso. A gente toma pra dutos importados, como o Winstrol (Stanazo-
chegar rápido lá. Uma Decadurabolim mistu- lol), por serem mais caros, são mais cortejados
rada com Estradon-P, ela dá um desenvolvi- pelos fisiculturistas. A via de administração
mento corporal bastante excessivo, chega ao mais freqüentemente utilizada é a injetável,
ponto de aumentar um quilo e meio a dois qui- preferida pelos informantes por ser a mais ba-
los por semana, certo?” (fisiculturista, 29 anos). rata e produzir um efeito imediato, embora,
“O efeito positivo é que eu tava com mais ou entre os produtos mencionados na pesquisa,
menos 37, 38 centímetros de braço, né? Aí foi pra alguns são disponíveis no mercado apenas pa-
40, 42 centímetros. Aí fica todo mundo surpreso, ra uso oral.
aquele negócio, você nem acredita quando você “Praticamente, eu gosto mais de tomar é a
se olha no espelho e você se vê forte” (fisicultu- injetável. O efeito bate logo. Aqui, em geral, nin-
rista, 22 anos). guém tem condição de comprar o de uso oral,
As substâncias são usadas em dosagem e pois os melhores são a partir de vinte reais” (fi-
freqüência variáveis, determinadas pelo maior siculturista, 33 anos).
ou menor imediatismo dos fisiculturistas na O culto ao corpo musculoso, que estimula a
aquisição de forma física desejada, pelo nível competição entre os freqüentadores da acade-
de conhecimento dos mesmos sobre essas subs- mia pela escolha do mais forte, do que tem os
tâncias, pelas experiências pregressas em rela- músculos mais bem definidos ou de quem tem
ção aos seus efeitos colaterais e pelos recursos o corpo que atrai mais atenção nas ruas, con-
disponíveis para a aquisição dos produtos. tribui para o aumento do consumo de anaboli-
Os ciclos sistemáticos do tipo pirâmide des- zantes. Esse consumo atinge seu ápice nos me-
critos na literatura, em que o usuário utiliza do- ses que antecedem o carnaval, mais precisa-
ses crescentes até o final da segunda ou tercei- mente a partir do mês de outubro, quando os
ra semana, seguidas por doses decrescentes, por fisiculturistas se preparam para o ciclo de fes-
igual período, até o final do ciclo (NIDA, 2001), tas populares de verão. Nesse período, os atle-
não foram observados nos dados coletados tas intensificam o treinamento e partilham os
neste trabalho. O uso referido acontece de for- custos dos coquetéis de anabolizantes. O obje-
ma irregular, algumas vezes contínuo, quase tivo é estar com o corpo bem desenvolvido pa-
diário ou com intervalos maiores, com inter- ra ser exibido no verão.
rupções motivadas pelos efeitos colaterais, e
retorno ao uso pela falta de motivação para
malhar e insatisfação com as formas corpóreas Efeitos colaterais e percepção de risco
na ausência do uso de anabolizantes. Coque- entre os usuários de anabolizantes
téis à base de dois ou três esteróides androgê-
nicos e ADE, são freqüentemente preparados e Os múltiplos e freqüentes efeitos colaterais re-
compartilhados pelos atletas: “O ADE vem num lacionados ao uso de anabolizantes têm sido
frasco de 50ml. A gente pega o frasco de ADE, ti- amplamente descritos na literatura. Esses vão,
ra 25ml e guarda em outro frasco, e dentro da- desde as alterações orgânicas provocadas pelas
quele 25ml de ADE a gente coloca 5ml de Dura- próprias características farmacológicas dos
teston, coloca 10ml de Androgenol e coloca 5 produtos utilizados – a grande maioria deles
Primabolan, aí mistura tudo no mesmo frasco e relacionados com o hormônio masculino tes-
toma” (fisiculturista, 26 anos). tosterona – habitualmente em doses muito
Associado ao imediatismo de resultados, além das fisiologicamente manejáveis pelo or-
presente no discurso dos informantes, encon- ganismo; às infecções de transmissão sangüí-
tra-se a firme suposição da impossibilidade de neas pelo uso de equipamentos não estéreis de
atingir o “corpo ideal”, que se caracteriza não injeção, até os traumas locais relacionados com
apenas pela massa muscular, mas também pe- aplicação incorreta desses produtos. Embora
lo delineamento dos músculos, sem o auxílio seja difícil comprovar a relação causal do uso
dos anabolizantes. de anabolizantes e infarto agudo do miocárdio,
“Ver alguém ‘empenado’ naturalmente, só fatores de risco como dislipidemia, alteração
com produtos naturais, ficar com o corpão enor- nos fatores da coagulação e hipertrofia do mio-
me, todo definido, todo gigante, tem condições? cárdio relacionados ao uso desses produtos,
Não existe! Tem que ter muito produto químico têm sido registrados na literatura (Kennedy &
dentro do corpo!” (fisiculturista, 27 anos). Lawrence, 1993). Outros importantes efeitos

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colaterais, associados ao uso de anabolizantes, tados com aparente naturalidade e não levam
descritos na literatura são a atrofia testicular, a à interrupção do uso das substâncias. Os fisi-
ginecomastia e a hipertensão arterial (Korkia & culturistas veteranos demonstram ter mais
Stimson, 1997). Entre as complicações decor- consciência dos riscos à saúde, presentes no
rentes do uso de equipamentos de injeção não consumo de anabolizantes. Eles referem, em
esterilizados estão os abcessos cutâneos (Rich seu discurso, vários efeitos colaterais como
et al., 1999), a infecção pelo HIV, pelos vírus complicações locais associados à aplicação dos
das Hepatites B e C e por outros agentes de produtos, problemas renais, atrofia muscular
transmissão parenteral. atribuída ao uso de Ivermectina (Ivomec), ton-
De maneira geral, os fisiculturistas entre- turas e desmaios secundários ao uso de ADE e
vistados não demonstram bom nível de infor- até mesmo infarto agudo do miocárdio.
mação sobre os danos causados à saúde pelos O conhecimento do risco potencial e dos
anabolizantes que utilizam. Os conhecimentos danos sofridos por outrem, não se transforma
que possuem sobre esses produtos, muitas ve- necessariamente, porém, em ação preventiva,
zes, não guardam relação com as suas proprie- por diversas razões. Primeiro, o desejo de fazer
dades farmacológicas. As informações sobre os crescer a massa muscular e alcançar o corpo
efeitos colaterais são sobretudo oriundas da ideal, se sobrepõe ao risco potencial. Em se-
experiência pessoal, da observação de colegas gundo lugar, o fisiculturista percebe o risco co-
da academia e dos relatos de casos vivenciados mo uma “aventura”, assegurando-se, na ilusão
por amigos ou conhecidos, nos quais o uso des- do pensamento mágico, de que o problema
sas substâncias acarretou sintomas graves. Os nunca irá acontecer com ele.
sintomas menores e temporários tais como ce- “Todo mundo que começa a tomar esses ne-
faléia, náuseas, tonturas, irritabilidade, acne, fe- gócios sabe que corre o risco de não dar certo né,
bre e aumento dos pêlos corpóreos, com o tem- de parar em um hospital, alguma coisa assim.
po, passam a ser percebidos pelos usuários de Mas a gente acaba arriscando e tomando” (fisi-
anabolizantes como normais. Não transparece culturista, 22 anos).
no discurso dos entrevistados, preocupação P: “Qual o risco que você acha que corre?”
com os possíveis efeitos a longo prazo que o uso R: “O risco que corre é da gente ter um abces-
contínuo dessas substâncias possa produzir. so. Tem um colega que teve um abcesso, teve que
“A gente toma em uma segunda, quando é abrir o braço pra tirar, teve um colega que per-
na terça a gente já sente febre, dor de cabeça, deu a perna tomando injeção localizada na
aqueles efeitos colaterais... a primeira vez que perna. Esses riscos todo a gente sabe que pode
eu tomei eu fiquei com medo. Depois, todo acontecer com um da gente. P: E como é que vo-
mundo dizia que dava febre mesmo, dava dor cês lidam com esse risco? R: É aquele tipo, aven-
de cabeça, eu acabei me acostumando e achan- tura. Você pensa: ‘Ah, vou aventurar. Comigo
do normal quando eu tomava” (fisiculturista, não acontece’. Aí você vê que todo mundo pensa
29 anos). assim” (fisiculturista, 22 anos).
Entre os iniciantes, que ainda não possuem A consciência do risco, presente no discur-
bagagem empírica no uso de anabolizantes, a so de nossos entrevistados mostra-se frágil e
desinformação quanto aos seus efeitos sobre a fugaz. A ocorrência de algum caso de efeito co-
saúde é ainda maior. No afã de rapidamente hi- lateral grave, decorrente do uso de anabolizan-
pertrofiar seus músculos e sem consciência do tes na rede de relações dos usuários ou mesmo
risco que incorrem, eles muitas vezes exage- noticiado na mídia, causa um impacto apenas
ram nas doses injetadas, na expectativa de po- temporário na percepção do risco dos fisicul-
tencializar seu efeito. turistas: “Logo quando acontece assim (algum
“Tem muitos caras (iniciantes) aí que a gente caso grave de efeito colateral) a gente fica com
explicou: ‘Tem que tomar tanto, tomar 1ml, 2ml’. medo: ‘Não, eu vou parar, não vou tomar mais’,
Só que eles pensam que se tomar 5ml eles ficam aquele negócio todo, pensa que se conscienti-
mais rápido ainda. Aí acaba tomando 5ml, co- zou, mas passa dois, três meses, a poeira baixa,
mo tem um caso lá recente, que um colega to- aí todo mundo começa de novo” (fisiculturista,
mou parece que foi 10ml de ADE, um negócio 22 anos).
que pra cada 50kg tem que tomar 1ml, o animal, P: “Sempre correndo esse risco por causa do
um cavalo. Aí ele tomou 10ml e parou no hospi- corpo, pra manter o corpo?”
tal, teve convulsão” (fisiculturista, 22 anos). R: “Com certeza. Corre esse risco pra manter
Muitos informantes fizeram referência às o corpo forte, manter a massa muscular” (fisi-
alterações no desempenho sexual e redução do culturista, 22 anos).
volume de esperma provocado pelo uso dos A certeza de que problemas de saúde mais
anabolizantes. Esses sintomas, porém, são tra- graves, subseqüentes ao uso de anabolizantes,

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nunca acontecerá com o usuário se reafirma a “Eles tomam limonada Bezerra, Purgoleite.
partir de sua experiência pessoal. O fato dele São medicamentos que eu acho que existem prá
nunca ter percebido sintomas mais graves e lavar o organismo, o intestino. Eles acham que
conhecer pessoas, que apesar do alto consu- tá tirando a sujeira” (Agente comunitário do
mo, nunca manifestaram maiores problemas CETAD).
associados ao uso dos esteróides anabolizan- P: “Que influência isso tem depois, no uso do
tes, faz com que o usuário confie em que é pos- anabolizante?”
sível utilizar essas substâncias sem comprome- R: “Eles acham que tão aptos a usar mais,
ter a saúde. que limpou, lavou tudo, e aí começa a fazer no-
“Eu penso assim, eu sei o que eu tô fazendo, vamente o uso. (...) Isso quer dizer que o corpo
né, eu sei que aquilo ali prejudica minha saúde. tá preparado pra receber... vai fazer mal, mas ele
Eu tô tomando, mais sei que eu posso morrer vai resistir”. P: “O corpo fica mais forte, então?”
naquela hora ali” (fisiculturista, 29 anos). R: “Exatamente. Ficou com menos sujeira” (Agen-
P: “Mas você prefere continuar?” te comunitário do CETAD).
R: “Mas eu prefiro continuar... Eu acho que É importante também, para compreender a
com fé em Deus não vai acontecer nada comigo. percepção de risco dos usuários de anabolizan-
Até agora eu tô tranqüilo. Até agora eu não senti tes, levar em conta os seus possíveis efeitos psi-
nada. É até pra eu fazer uma lavagem no orga- co-fármacológicos. Várias publicações científi-
nismo porque eu tô nessas drogas e nunca acon- cas têm chamado a atenção para mudanças de
teceu nada comigo” (fisiculturista, 29 anos). humor, aumento da agressividade e dependên-
É comum entre os fisiculturistas entrevista- cia psíquica entre os usuários, durante o perío-
dos, a referência a diferentes estratégias para do de utilização dessas substâncias (Choi & Po-
lidar com risco associado ao uso de anaboli- pe Jr., 1994; Kleinman, 1990; Lise et al., 1999).
zantes, de forma a minorá-lo. Alguns informan- No presente estudo, os informantes relataram
tes afirmam que não se sentem muito em risco dificuldade em deixar de usar anabolizantes,
porque seguem um padrão de utilização de ana- referindo sentir desânimo e falta de energia pa-
bolizantes que eles consideram mais seguro. ra malhar quando não estão sob o efeito dos
Esse padrão de uso apresenta algumas va- mesmos. Em alguns usuários, a dependência
riações segundo cada usuário, e incorpora di- parece se manifestar de forma semelhante à
ferentes estratégias percebidas como proteto- que ocorre com quem utiliza substâncias psi-
ras. Entre essas, encontra-se a procura por co-ativas, produzindo comportamentos como
aplicação da injeção de anabolizantes por ami- a “fissura” que se caracteriza pela necessidade
gos, parentes ou colegas que tenham algum premente de consumo das substâncias.
curso de enfermagem ou experiência nessa P: “Se você parar de usar anabolizante, você
prática, o que diminuiria os riscos de uma apli- sente falta?”
cação mal feita. Foi também citado como es- R: “No começo eu sentia. Quando eu parei
tratégia protetora por alguns, a precaução na assim, uma, duas semanas, é tipo um vício, tipo
ingestão de coquetéis, onde diferentes tipos de um cigarro. Dizem que cigarro não tem jeito de
anabolizantes são misturados, assim como a parar de fumar e era assim, a gente pensava que
diminuição das doses e aumento do intervalo nunca ia deixar de tomar” (fisiculturista, 25
entre uma aplicação e outra. anos).
“Eu mesmo tomo, mas eu tomo controlada- “Tem cerca de cinco usuários lá que todos os
mente, tomo duas vezes por mês, eu não sou dias, o dinheiro que pegam é para comprar. Me
igual aos outros colegas que tomam toda sema- lembra muito aquele cara fissurado em cocaí-
na, duas, três por semana, não sabendo o efeito na, que pega qualquer dinheiro e vai comprar
depois” (fisiculturista, 27 anos). um papel seja de que qualidade for. É quase a
É importante ressaltar, no entanto, que al- mesma coisa (...) usam todo dia e ficam naque-
gumas dessas estratégias protetoras não pos- la fissura, pedem logo a seringa: ‘Vamos logo,
suem embasamento científico ou são realiza- vamos logo. Me dê logo aí que eu tomo essa
das de forma incorreta ou pouco sistemática, o pancada’ (gíria usada pelos UDI para se referir
que reduz sua eficácia. É o caso, por exemplo, à injeção de drogas)” (Agente comunitário do
da muito citada prática de, periodicamente, CETAD, notas de campo).
realizar uma limpeza intestinal através da in- Por fim, o compartilhamento de seringas
gestão de chás e purgantes que purificariam o na aplicação do anabolizante, representa tam-
organismo e, supostamente, o prepararia para bém um grande risco para a transmissão de
melhor receber novas doses de anabolizantes. doenças entre os usuários. A maioria dos infor-
Todavia, isto não possui respaldo nas caracte- mantes afirmou não compartilhar aparelhos de
rísticas farmacológicas dos produtos utilizados. injeção e utilizar o serviço de troca de seringas,

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1386 IRIART, J. A. B. & ANDRADE, T. M.

implantado no bairro pelo programa de redu- alcançar um suposto corpo ideal se sobrepõe
ção de danos do CETAD. Entretanto, o risco do ao risco de efeitos colaterais.
compartilhamento existe e pode encontrar ter- Informações que começam a ser coletadas
reno fértil na crença, manifesta no discurso de pelo Programa de Redução de Danos do CE-
um informante, de que todos os fisiculturistas, TAD, em bairros da periferia de Salvador, per-
pelo simples fato de investirem muito em seus mitem supor que a realidade encontrada no
corpos, são necessariamente saudáveis. Subja- bairro do estudo, provavelmente se repete em
cente a este discurso está o imaginário, muito outros locais populares da cidade. O culto ao
disseminado, de que a doença é sempre trazida corpo, extremamente disseminado na socieda-
pelo outro, no presente caso, aquele que não de brasileira e refletido na mídia, associado à
faz parte do grupo de amigos fisiculturistas. desinformação, pode criar condições favorá-
“Esse lance de dividir seringas, tens uns que veis ao abuso de anabolizantes tornando-o um
divide” (fisiculturista, 26 anos). significativo problema de saúde pública, como
P: “Uma seringa para todo mundo?”. vem ocorrendo nos Estados Unidos. Há neces-
R: “Prá todo mundo não, mas um, dois, eles sidade de estudos de prevalência que apontem
dividem. Mas essa galera que malha é muito di- a magnitude do consumo dessas substâncias,
fícil de ver esse negócio de doença, de AIDS, isso sobretudo entre os jovens de cidades brasilei-
é muito difícil. O cara que malha ele gosta mui- ras de médio e grande porte. Existem indícios
to dele, ele não divide seringa. Mas quando ele de que o uso de anabolizantes possa estar ocor-
divide, ele sabe que não vai pegar nada. Quan- rendo significativamente também, em acade-
do ele divide é porque ele tá com o camarada, mias de musculação dos bairros de classe mé-
aparece assim: ‘Pô, vamos tomar’, e bota. É mui- dia, mas estudos qualitativos e quantitativos
to difícil, o cara que malha assim de ter doença. são necessários para verificar este fato.
Porque todo mundo que malha usa camisinha, Os resultados indicam a necessidade de se
em qualquer relação. Aí não é muito fácil ele pe- desenvolver ações culturalmente apropriadas,
gar essas doenças não” (fisiculturista, 26 anos). voltadas para a prevenção do abuso de anabo-
lizantes pelos jovens fisiculturistas, ou seja,
ações que levem em conta o contexto sócio-
Conclusão cultural em que ocorre o consumo de anaboli-
zantes e os significados que lhe são associados
Os dados produzidos neste estudo, documen- pelos usuários.
tam o uso indevido de anabolizantes e os da- No que tange à prevenção junto à popula-
nos à saúde causados por essas substâncias, ção de usuários no presente estudo, conside-
entre jovens fisiculturistas das classes popula- rando-se o perfil dos fisiculturistas e os com-
res de Salvador. O estudo analisa o consumo portamentos de risco relacionados ao consu-
dessas drogas à luz do contexto sócio-cultural mo de anabolizantes descritos, sugere-se a ado-
local e das condições psicossociais dos fisicul- ção dos mesmos princípios e práticas que nor-
turistas, onde a construção do corpo musculo- teiam as políticas de redução de danos entre os
so e a sua exposição pública, constituem-se em usuários de substâncias psico-ativas.
importante instrumento de construção identi- Essas incluem, além da orientação e infor-
tária, assumindo também uma função utilitá- mação preventiva, a provisão de preservativos,
ria relacionada à sexualidade e à inserção no equipamentos estéreis de injeção e a criação
mercado de trabalho. Os dados apontam a falta de serviços de assistência à saúde para essa po-
de informação dos jovens entrevistados sobre pulação. O aumento de consumo de anaboli-
a extensão dos danos à saúde decorrentes do zantes nos meses que precedem as festas po-
uso de anabolizantes, mostrando que para mui- pulares de verão, aponta para a necessidade de
tos, o desejo de desenvolver massa muscular e intensificação das ações preventivas nesse pe-
ríodo do ano.

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USO DE ESTERÓIDES ANABOLIZANTES E PERCEPÇÃO DE RISCO 1387

Agradecimentos

A pesquisa foi parcialmente financiada pelo Ministé-


rio da Saúde (Coordenação Nacional de DST-AIDS)/
Organização Mundial da Saúde, e o primeiro autor
contou com bolsa do Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (DCR/CNPq) du-
rante a realização do estudo. Agradecemos também à
colaboração de Jane Montes, Edward MacRae e Beni-
mário Silva.

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