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1 Instituto de Saúde Abstract Recent studies in different countries have shown an increase in anabolic steroid con-
Coletiva, Universidade
sumption among young people and the harm caused by indiscriminate use. In Brazil, research
Federal da Bahia.
Rua Padre Feijó 29, on steroid abuse is scarce. The present study examines the risk perception of health problems as-
Salvador, BA sociated with anabolic steroid consumption among young working-class adults engaged in
40110-170, Brasil.
body-building practices in a poor neighborhood in the city of Salvador, Bahia. The methodology
iriart@ufba.br
2 Pós-graduação em involved an anthropological approach based on qualitative research techniques consisting of
Medicina e Saúde, Faculdade ethnography, in-depth interviews, and a focus group with steroid users. The data describe the
de Medicina, Universidade
most common substances consumed and highlight the lack of information among interviewees
Federal da Bahia.
Rua Pedro Lessa 123, concerning potential related health hazards, showing that for many steroid consumers the quest
Salvador, BA for muscle-mass development to achieve an idealized body supersedes the risk of harmful side
40110-050, Brasil.
tarcisio@ufba.br
effects. The results indicate the need for culturally sensitive measures to prevent steroid abuse
among youth.
Key words Substance Abuse; Anabolic Steroids; Exercise; Risk Factors; Anthropology
Resumo Estudos recentes em diferentes países têm apontado o aumento do consumo de esterói-
des anabolizantes entre jovens fisiculturistas e atletas, e os danos à saúde causados pelo seu uso
indiscriminado. No Brasil, estudos sobre o uso de anabolizantes são escassos. No presente traba-
lho, examina-se a percepção de risco à saúde, associada ao consumo de anabolizantes, entre jo-
vens fisiculturistas de um bairro pobre da cidade de Salvador. A metodologia privilegiou méto-
dos de coleta de dados qualitativos tais como etnografia, entrevistas semi-estruturadas e grupo
focal com usuários de anabolizantes. Os dados produzidos descrevem as principais substâncias
utilizadas e os padrões de uso, e apontam a falta de informação dos jovens entrevistados sobre a
extensão dos danos à saúde decorrentes do consumo de anabolizantes, mostrando que para mui-
tos, o desejo de desenvolver massa muscular e alcançar o corpo ideal se sobrepõe ao risco de efei-
tos colaterais. Os resultados indicam a necessidade de se desenvolver ações culturalmente apro-
priadas, voltadas para a prevenção do abuso de anabolizantes junto à essa população.
Palavras-chave Abuso de Substância; Esteróides Anabólicos; Exercício; Fatores de Risco; Antro-
pologia
pra sua perna e vê sua perna grossa, você olha lizadas nas academias freqüentadas por eles.
pra seu peito e vê seu peito grande, olha pra seus Essa relação também inclui hormônios femini-
bíceps e vê eles aumentando, então você passa nos, usados de forma isolada ou em combina-
assim, não vou dizer adorar, mas a se amar ção com androgênios, e também produtos ve-
mais ainda, se cuidar mais ainda” (fisiculturis- terinários, a exemplo de complexos vitamíni-
ta, 33 anos). cos e antiparasitários. Entre os esteróides an-
É presente no discurso dos informantes, drogênicos, os mais utilizados são: Durateston
uma freqüente insatisfação com suas medidas (Testosterona), Stradon P (Testosterona + Es-
corporais, por maiores que essas sejam, o que tradiol) e Deca-durabolim (Nandrolona). Os
remete à existência de uma dicotomia entre o hormônios femininos mais mencionados pelos
corpo real e o corpo ideal. Se o corpo represen- informantes foram os anovulatórios Uniciclo
ta o envelope do sujeito subjetivamente cons- (Algestona e Estradiol) e Premarim. O baixo po-
tituído, entre os nossos informantes, a hiância der aquisitivo dos fisiculturistas dos bairros po-
entre o somático e o psíquico parece aumenta- pulares, leva à opção pelos produtos mais ba-
da. Esse fato está expresso no próprio ato de ratos, incluindo nessa categoria os de uso vete-
malhar, onde a relação não é mais com o corpo rinário. Entre esses, os mais freqüentemente
como um todo, mas com partes do mesmo. Tra- mencionados foram o ADE (vitaminas A, D e E),
balha-se individualmente os braços, as pernas, Potenai (complexo vitamínico à base de vitami-
o peito e às vezes apenas determinados grupos na B) e o antiparasitário Ivomec (Ivermectina).
musculares; fala-se em corpo dividido, e se es- Os dados coletados revelam que o consumo
tabelece parâmetros para cada parte. O corpo de anabolizantes tem início logo após os pri-
é investido de uma função instrumental, tor- meiros meses de contato dos iniciantes com os
nando-se um corpo para ser visto e voltado pa- colegas de musculação na academia. A consta-
ra o consumo. Para muitos desses jovens fisi- tação de que companheiros, que iniciaram as
culturistas, essa função instrumental do corpo atividades físicas na academia à mesma época,
toma a forma de um investimento profissional, conseguiram desenvolver massa muscular con-
no qual a posse de um corpo musculoso au- sideravelmente maior, no mesmo tempo de prá-
menta as chances de conseguir colocação no tica, leva os novatos a procurar informações
mercado de trabalho como seguranças e vigi- sobre as razões desse fato. A escuta e participa-
lantes. Para outros, a exibição do corpo malha- ção nas conversas entre os fisiculturistas vete-
do nas festas populares da cidade, torna-se uma ranos, onde o uso de anabolizantes é um tema
forma de atrair clientes homossexuais, que pa- muito freqüente, cria a curiosidade e facilita a
gam aos fisiculturistas por seus serviços, exa- inserção do iniciante nos meandros de seu con-
cerbando seu papel instrumental como fonte sumo.
de renda. P: “Como uma pessoa se inicia no uso de
anabolizantes?”
R: “Primeiro é... tá vendo a pessoa que tá lá,
Substâncias utilizadas, padrões com mais tempo de academia, aí vai se chegan-
de uso e razões para o consumo de do, procurando saber como a pessoa tá forte...
anabolizantes entre os fisiculturistas Aí, procura saber como é pra ficar forte rápido,
em dois, três meses ficar... aumentar o peso ra-
Os esteróides anabólico-androgênicos, comu- pidamente, aí o colega vai e ensina. Diz a ele.
mente chamados simplesmente de anaboli- Ele procura saber o nome, a gente dá o nome, ele
zantes, são substâncias sintetizadas em labora- vai lá e compra. (...) quando eles perguntam co-
tório, relacionadas aos hormônios masculinos mo é que toma, tudo, a gente explica tudo direi-
(androgênios). Essas substâncias aumentam a tinho a eles, como é que toma, como a gente to-
síntese protéica, a oxigenação e o armazena- mou né” (fisiculturista, 22 anos).
mento de energia resultando em incremento A impaciência com o tempo necessário pa-
da massa muscular e de sua capacidade de tra- ra o desenvolvimento da massa muscular com
balho. Na gíria popular, os anabolizantes são o exercício físico isoladamente, não se restrin-
vulgarmente conhecidos pelo nome de “bom- ge, no entanto, aos iniciantes. Os veteranos tam-
ba” (em referência ao efeito de inchaço muscu- bém referem não se contentar com a lentidão
lar por eles produzido), e é também comum que do crescimento muscular, e com os minguados
fisiculturistas sejam chamados pejorativamen- resultados obtidos por meio de uma suada mus-
te de “bombados”. culação destituída de ajuda química. O anabo-
Cerca de 25 substâncias, a maioria esterói- lizante é visto então, como uma droga podero-
des anabólico-androgênicos, foram menciona- sa que permite ao organismo trabalhar mais ra-
das pelos sujeitos da pesquisa como sendo uti- pidamente, proporcionando resultados quase
colaterais, associados ao uso de anabolizantes, tados com aparente naturalidade e não levam
descritos na literatura são a atrofia testicular, a à interrupção do uso das substâncias. Os fisi-
ginecomastia e a hipertensão arterial (Korkia & culturistas veteranos demonstram ter mais
Stimson, 1997). Entre as complicações decor- consciência dos riscos à saúde, presentes no
rentes do uso de equipamentos de injeção não consumo de anabolizantes. Eles referem, em
esterilizados estão os abcessos cutâneos (Rich seu discurso, vários efeitos colaterais como
et al., 1999), a infecção pelo HIV, pelos vírus complicações locais associados à aplicação dos
das Hepatites B e C e por outros agentes de produtos, problemas renais, atrofia muscular
transmissão parenteral. atribuída ao uso de Ivermectina (Ivomec), ton-
De maneira geral, os fisiculturistas entre- turas e desmaios secundários ao uso de ADE e
vistados não demonstram bom nível de infor- até mesmo infarto agudo do miocárdio.
mação sobre os danos causados à saúde pelos O conhecimento do risco potencial e dos
anabolizantes que utilizam. Os conhecimentos danos sofridos por outrem, não se transforma
que possuem sobre esses produtos, muitas ve- necessariamente, porém, em ação preventiva,
zes, não guardam relação com as suas proprie- por diversas razões. Primeiro, o desejo de fazer
dades farmacológicas. As informações sobre os crescer a massa muscular e alcançar o corpo
efeitos colaterais são sobretudo oriundas da ideal, se sobrepõe ao risco potencial. Em se-
experiência pessoal, da observação de colegas gundo lugar, o fisiculturista percebe o risco co-
da academia e dos relatos de casos vivenciados mo uma “aventura”, assegurando-se, na ilusão
por amigos ou conhecidos, nos quais o uso des- do pensamento mágico, de que o problema
sas substâncias acarretou sintomas graves. Os nunca irá acontecer com ele.
sintomas menores e temporários tais como ce- “Todo mundo que começa a tomar esses ne-
faléia, náuseas, tonturas, irritabilidade, acne, fe- gócios sabe que corre o risco de não dar certo né,
bre e aumento dos pêlos corpóreos, com o tem- de parar em um hospital, alguma coisa assim.
po, passam a ser percebidos pelos usuários de Mas a gente acaba arriscando e tomando” (fisi-
anabolizantes como normais. Não transparece culturista, 22 anos).
no discurso dos entrevistados, preocupação P: “Qual o risco que você acha que corre?”
com os possíveis efeitos a longo prazo que o uso R: “O risco que corre é da gente ter um abces-
contínuo dessas substâncias possa produzir. so. Tem um colega que teve um abcesso, teve que
“A gente toma em uma segunda, quando é abrir o braço pra tirar, teve um colega que per-
na terça a gente já sente febre, dor de cabeça, deu a perna tomando injeção localizada na
aqueles efeitos colaterais... a primeira vez que perna. Esses riscos todo a gente sabe que pode
eu tomei eu fiquei com medo. Depois, todo acontecer com um da gente. P: E como é que vo-
mundo dizia que dava febre mesmo, dava dor cês lidam com esse risco? R: É aquele tipo, aven-
de cabeça, eu acabei me acostumando e achan- tura. Você pensa: ‘Ah, vou aventurar. Comigo
do normal quando eu tomava” (fisiculturista, não acontece’. Aí você vê que todo mundo pensa
29 anos). assim” (fisiculturista, 22 anos).
Entre os iniciantes, que ainda não possuem A consciência do risco, presente no discur-
bagagem empírica no uso de anabolizantes, a so de nossos entrevistados mostra-se frágil e
desinformação quanto aos seus efeitos sobre a fugaz. A ocorrência de algum caso de efeito co-
saúde é ainda maior. No afã de rapidamente hi- lateral grave, decorrente do uso de anabolizan-
pertrofiar seus músculos e sem consciência do tes na rede de relações dos usuários ou mesmo
risco que incorrem, eles muitas vezes exage- noticiado na mídia, causa um impacto apenas
ram nas doses injetadas, na expectativa de po- temporário na percepção do risco dos fisicul-
tencializar seu efeito. turistas: “Logo quando acontece assim (algum
“Tem muitos caras (iniciantes) aí que a gente caso grave de efeito colateral) a gente fica com
explicou: ‘Tem que tomar tanto, tomar 1ml, 2ml’. medo: ‘Não, eu vou parar, não vou tomar mais’,
Só que eles pensam que se tomar 5ml eles ficam aquele negócio todo, pensa que se conscienti-
mais rápido ainda. Aí acaba tomando 5ml, co- zou, mas passa dois, três meses, a poeira baixa,
mo tem um caso lá recente, que um colega to- aí todo mundo começa de novo” (fisiculturista,
mou parece que foi 10ml de ADE, um negócio 22 anos).
que pra cada 50kg tem que tomar 1ml, o animal, P: “Sempre correndo esse risco por causa do
um cavalo. Aí ele tomou 10ml e parou no hospi- corpo, pra manter o corpo?”
tal, teve convulsão” (fisiculturista, 22 anos). R: “Com certeza. Corre esse risco pra manter
Muitos informantes fizeram referência às o corpo forte, manter a massa muscular” (fisi-
alterações no desempenho sexual e redução do culturista, 22 anos).
volume de esperma provocado pelo uso dos A certeza de que problemas de saúde mais
anabolizantes. Esses sintomas, porém, são tra- graves, subseqüentes ao uso de anabolizantes,
nunca acontecerá com o usuário se reafirma a “Eles tomam limonada Bezerra, Purgoleite.
partir de sua experiência pessoal. O fato dele São medicamentos que eu acho que existem prá
nunca ter percebido sintomas mais graves e lavar o organismo, o intestino. Eles acham que
conhecer pessoas, que apesar do alto consu- tá tirando a sujeira” (Agente comunitário do
mo, nunca manifestaram maiores problemas CETAD).
associados ao uso dos esteróides anabolizan- P: “Que influência isso tem depois, no uso do
tes, faz com que o usuário confie em que é pos- anabolizante?”
sível utilizar essas substâncias sem comprome- R: “Eles acham que tão aptos a usar mais,
ter a saúde. que limpou, lavou tudo, e aí começa a fazer no-
“Eu penso assim, eu sei o que eu tô fazendo, vamente o uso. (...) Isso quer dizer que o corpo
né, eu sei que aquilo ali prejudica minha saúde. tá preparado pra receber... vai fazer mal, mas ele
Eu tô tomando, mais sei que eu posso morrer vai resistir”. P: “O corpo fica mais forte, então?”
naquela hora ali” (fisiculturista, 29 anos). R: “Exatamente. Ficou com menos sujeira” (Agen-
P: “Mas você prefere continuar?” te comunitário do CETAD).
R: “Mas eu prefiro continuar... Eu acho que É importante também, para compreender a
com fé em Deus não vai acontecer nada comigo. percepção de risco dos usuários de anabolizan-
Até agora eu tô tranqüilo. Até agora eu não senti tes, levar em conta os seus possíveis efeitos psi-
nada. É até pra eu fazer uma lavagem no orga- co-fármacológicos. Várias publicações científi-
nismo porque eu tô nessas drogas e nunca acon- cas têm chamado a atenção para mudanças de
teceu nada comigo” (fisiculturista, 29 anos). humor, aumento da agressividade e dependên-
É comum entre os fisiculturistas entrevista- cia psíquica entre os usuários, durante o perío-
dos, a referência a diferentes estratégias para do de utilização dessas substâncias (Choi & Po-
lidar com risco associado ao uso de anaboli- pe Jr., 1994; Kleinman, 1990; Lise et al., 1999).
zantes, de forma a minorá-lo. Alguns informan- No presente estudo, os informantes relataram
tes afirmam que não se sentem muito em risco dificuldade em deixar de usar anabolizantes,
porque seguem um padrão de utilização de ana- referindo sentir desânimo e falta de energia pa-
bolizantes que eles consideram mais seguro. ra malhar quando não estão sob o efeito dos
Esse padrão de uso apresenta algumas va- mesmos. Em alguns usuários, a dependência
riações segundo cada usuário, e incorpora di- parece se manifestar de forma semelhante à
ferentes estratégias percebidas como proteto- que ocorre com quem utiliza substâncias psi-
ras. Entre essas, encontra-se a procura por co-ativas, produzindo comportamentos como
aplicação da injeção de anabolizantes por ami- a “fissura” que se caracteriza pela necessidade
gos, parentes ou colegas que tenham algum premente de consumo das substâncias.
curso de enfermagem ou experiência nessa P: “Se você parar de usar anabolizante, você
prática, o que diminuiria os riscos de uma apli- sente falta?”
cação mal feita. Foi também citado como es- R: “No começo eu sentia. Quando eu parei
tratégia protetora por alguns, a precaução na assim, uma, duas semanas, é tipo um vício, tipo
ingestão de coquetéis, onde diferentes tipos de um cigarro. Dizem que cigarro não tem jeito de
anabolizantes são misturados, assim como a parar de fumar e era assim, a gente pensava que
diminuição das doses e aumento do intervalo nunca ia deixar de tomar” (fisiculturista, 25
entre uma aplicação e outra. anos).
“Eu mesmo tomo, mas eu tomo controlada- “Tem cerca de cinco usuários lá que todos os
mente, tomo duas vezes por mês, eu não sou dias, o dinheiro que pegam é para comprar. Me
igual aos outros colegas que tomam toda sema- lembra muito aquele cara fissurado em cocaí-
na, duas, três por semana, não sabendo o efeito na, que pega qualquer dinheiro e vai comprar
depois” (fisiculturista, 27 anos). um papel seja de que qualidade for. É quase a
É importante ressaltar, no entanto, que al- mesma coisa (...) usam todo dia e ficam naque-
gumas dessas estratégias protetoras não pos- la fissura, pedem logo a seringa: ‘Vamos logo,
suem embasamento científico ou são realiza- vamos logo. Me dê logo aí que eu tomo essa
das de forma incorreta ou pouco sistemática, o pancada’ (gíria usada pelos UDI para se referir
que reduz sua eficácia. É o caso, por exemplo, à injeção de drogas)” (Agente comunitário do
da muito citada prática de, periodicamente, CETAD, notas de campo).
realizar uma limpeza intestinal através da in- Por fim, o compartilhamento de seringas
gestão de chás e purgantes que purificariam o na aplicação do anabolizante, representa tam-
organismo e, supostamente, o prepararia para bém um grande risco para a transmissão de
melhor receber novas doses de anabolizantes. doenças entre os usuários. A maioria dos infor-
Todavia, isto não possui respaldo nas caracte- mantes afirmou não compartilhar aparelhos de
rísticas farmacológicas dos produtos utilizados. injeção e utilizar o serviço de troca de seringas,
implantado no bairro pelo programa de redu- alcançar um suposto corpo ideal se sobrepõe
ção de danos do CETAD. Entretanto, o risco do ao risco de efeitos colaterais.
compartilhamento existe e pode encontrar ter- Informações que começam a ser coletadas
reno fértil na crença, manifesta no discurso de pelo Programa de Redução de Danos do CE-
um informante, de que todos os fisiculturistas, TAD, em bairros da periferia de Salvador, per-
pelo simples fato de investirem muito em seus mitem supor que a realidade encontrada no
corpos, são necessariamente saudáveis. Subja- bairro do estudo, provavelmente se repete em
cente a este discurso está o imaginário, muito outros locais populares da cidade. O culto ao
disseminado, de que a doença é sempre trazida corpo, extremamente disseminado na socieda-
pelo outro, no presente caso, aquele que não de brasileira e refletido na mídia, associado à
faz parte do grupo de amigos fisiculturistas. desinformação, pode criar condições favorá-
“Esse lance de dividir seringas, tens uns que veis ao abuso de anabolizantes tornando-o um
divide” (fisiculturista, 26 anos). significativo problema de saúde pública, como
P: “Uma seringa para todo mundo?”. vem ocorrendo nos Estados Unidos. Há neces-
R: “Prá todo mundo não, mas um, dois, eles sidade de estudos de prevalência que apontem
dividem. Mas essa galera que malha é muito di- a magnitude do consumo dessas substâncias,
fícil de ver esse negócio de doença, de AIDS, isso sobretudo entre os jovens de cidades brasilei-
é muito difícil. O cara que malha ele gosta mui- ras de médio e grande porte. Existem indícios
to dele, ele não divide seringa. Mas quando ele de que o uso de anabolizantes possa estar ocor-
divide, ele sabe que não vai pegar nada. Quan- rendo significativamente também, em acade-
do ele divide é porque ele tá com o camarada, mias de musculação dos bairros de classe mé-
aparece assim: ‘Pô, vamos tomar’, e bota. É mui- dia, mas estudos qualitativos e quantitativos
to difícil, o cara que malha assim de ter doença. são necessários para verificar este fato.
Porque todo mundo que malha usa camisinha, Os resultados indicam a necessidade de se
em qualquer relação. Aí não é muito fácil ele pe- desenvolver ações culturalmente apropriadas,
gar essas doenças não” (fisiculturista, 26 anos). voltadas para a prevenção do abuso de anabo-
lizantes pelos jovens fisiculturistas, ou seja,
ações que levem em conta o contexto sócio-
Conclusão cultural em que ocorre o consumo de anaboli-
zantes e os significados que lhe são associados
Os dados produzidos neste estudo, documen- pelos usuários.
tam o uso indevido de anabolizantes e os da- No que tange à prevenção junto à popula-
nos à saúde causados por essas substâncias, ção de usuários no presente estudo, conside-
entre jovens fisiculturistas das classes popula- rando-se o perfil dos fisiculturistas e os com-
res de Salvador. O estudo analisa o consumo portamentos de risco relacionados ao consu-
dessas drogas à luz do contexto sócio-cultural mo de anabolizantes descritos, sugere-se a ado-
local e das condições psicossociais dos fisicul- ção dos mesmos princípios e práticas que nor-
turistas, onde a construção do corpo musculo- teiam as políticas de redução de danos entre os
so e a sua exposição pública, constituem-se em usuários de substâncias psico-ativas.
importante instrumento de construção identi- Essas incluem, além da orientação e infor-
tária, assumindo também uma função utilitá- mação preventiva, a provisão de preservativos,
ria relacionada à sexualidade e à inserção no equipamentos estéreis de injeção e a criação
mercado de trabalho. Os dados apontam a falta de serviços de assistência à saúde para essa po-
de informação dos jovens entrevistados sobre pulação. O aumento de consumo de anaboli-
a extensão dos danos à saúde decorrentes do zantes nos meses que precedem as festas po-
uso de anabolizantes, mostrando que para mui- pulares de verão, aponta para a necessidade de
tos, o desejo de desenvolver massa muscular e intensificação das ações preventivas nesse pe-
ríodo do ano.
Agradecimentos
Referências
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