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02/04/2020 Separados pelo coronavírus

questões de poder

SEPARADOS PELO CORONAVÍRUS


Ao falar contra isolamento, Bolsonaro surpreende até Bannon, favorável à quarentena total; no Brasil,
cúpula do Congresso teme autoritarismo e evita confronto direto
THAIS BILENKY
31mar2020_16h08

Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de Pedro Ladeira/Folhapress

N
o final de janeiro, quando a disseminação do novo coronavírus era
assunto restrito à China, o estrategista americano Steve Bannon,
interlocutor e referência ideológica da família Bolsonaro, passou a
dedicar seu podcast “War Room” ["Sala de Guerra”] ao assunto,
acrescentando a palavra Pandemia ao título do programa. O gigante
asiático já era o principal alvo de Bannon em sua retórica nacionalista, e o
“vírus chinês”, como se diz nas rodas ultraconservadoras, fez com que ele
aumentasse a ferocidade das críticas.

Bannon diz que alertou o presidente americano Donald Trump, de quem


foi colaborador, ainda naquelas primeiras semanas do ano. Avisou que o
coronavírus extrapolaria fronteiras e se tornaria uma questão global
inevitavelmente. Só no fim de março, depois de semanas minimizando os

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impactos do vírus, Trump afinou seu discurso com o de Bannon:


estendeu a quarentena nos Estados Unidos até o final de abril, acatando
recomendações das autoridades sanitárias de seu país. “Se é para descer
ao inferno, que seja o mais rápido possível”, disse Bannon à Fox News
um dia antes de Trump recrudescer a quarentena, medida à qual é
“totalmente favorável”.

Qual não foi a surpresa de Bannon, porém, ao ver o brasileiro Jair


Bolsonaro na contramão de Trump e de comandantes da maioria dos
países. Bannon procurou interlocutores brasileiros querendo entender o
posicionamento do aliado, dizendo-se preocupado. Se há uma estratégia
por trás da recusa de Bolsonaro em considerar a pandemia mais do que
uma “gripezinha”, essa estratégia é de alto risco, alertou.

A economia brasileira não aguentaria um isolamento horizontal imposto


a toda a população, argumentaram os interlocutores brasileiros em
resposta. A maioria não pode trabalhar de casa, as atividades entrariam
em colapso, a pobreza explodiria e o cenário político resultante disso para
Bolsonaro seria alarmante. Uma quarentena vertical, restrita a grupos de
riscos como idosos, atenuaria os efeitos econômicos, sustentou-se.

Bannon sugeriu um discurso mais confiante na capacidade de


recuperação do Brasil, tanto do ponto de vista da saúde pública quanto
da economia. Sem fazer tal correlação (até porque está mais ocupado com
o cenário americano), o estrategista sem querer propôs um ajuste à
campanha “O Brasil Não Pode Parar”, que o Palácio do Planalto estudou
e desistiu de lançar, para algo como “Nada Pode Parar o Brasil”.

É o que Trump passou a fazer, ao prever o começo da recuperação para


junho. “Muitas coisas boas acontecerão”, prometeu. A família Bolsonaro
manteve a admiração pelo americano. O deputado Eduardo Bolsonaro
(PSL-SP), filho do presidente, replicou publicação nas redes sociais
comparando a agilidade de Trump ao declarar o novo coronavírus uma
emergência de saúde e de segurança pública à suposta demora de seu
antecessor, Barack Obama, ao tomar a mesma atitude perante o H1N1.

Mas, no Brasil, o clã presidencial não ajustou o discurso. Bolsonaristas


apontam o exemplo da Suécia, raro país desenvolvido europeu a não

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suspender o comércio e os serviços e manter normal a vida de seus 10


milhões de habitantes.

A
insistência em negar a necessidade de uma quarentena geral para os
210 milhões de brasileiros, que vivem em ambientes muito mais
desiguais e subdesenvolvidos que os suecos, dividiu o próprio
governo Bolsonaro. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é o
principal defensor da abordagem técnica.

A posição do presidente, escancarada com seu passeio pelo comércio em


cidades-satélites de Brasília no domingo passado, motivou notícias-
crimes da oposição pedindo seu afastamento temporário até que se julgue
se “infringiu determinação do poder público destinada a impedir a
introdução ou propagação de doença contagiosa”.

Na cúpula do Congresso, mantém-se um consenso provisório em torno


do não enfrentamento. Deputados e senadores argumentam que um
movimento para tirar Bolsonaro da Presidência, por impeachment ou
notícia-crime, alimentaria o discurso de “perseguição pelo establishment”
adotado pela família presidencial e por seus apoiadores.

O avanço da Covid-19 no Brasil e a crise de liderança decorrente das


atitudes de Bolsonaro, sua insatisfação com ministros que não o
defendem incondicionalmente, seu entrevero com governadores e
prefeitos, sua indisposição com o Judiciário e com o Congresso, deixam
senadores experientes preocupados. As preocupações sanitárias se
juntam às políticas criando uma “catástrofe de proporções bíblicas”,
definiu um importante articulador.

Como não se sabe a situação nem daqui a dois dias, é difícil prever
mudanças na postura da cúpula do Congresso, que por ora, consolidada
na pessoa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), reluta em
falar em impeachment. Avalia-se que é preciso haver um derretimento
maior da popularidade de Bolsonaro, com avaliação de ótimo/bom no
limite de 10% – as últimas pesquisas mostraram a manutenção do apoio
de cerca de 30% dos brasileiros.

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Teme-se que Bolsonaro, cada vez mais isolado, se saia com uma solução à
la Hungria, que aprovou o direito do primeiro-ministro Viktor Orbán de
governar por decreto para agilizar ações contra o novo coronavírus. Por
isso a reiteração da cautela como melhor vacina.

Mesmo políticos da oposição foram críticos à carta pública de líderes do


PT, como Fernando Haddad, do PDT, como Ciro Gomes, do PSOL, como
Guilherme Boulos, e do PCdoB, como Flávio Dino, pedindo a renúncia de
Bolsonaro – horas depois decidiu-se ainda entrar com a queixa-crime.

O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) expressou essa insatisfação. Disse


que a movimentação enseja o discurso das “milícias bolsonaristas” sobre
a obstrução que os derrotados de 2018 supostamente fazem contra o
vitorioso. “Qualquer grama de energia gasta agora com algo que não seja
o combate ao coronavírus é desperdício”, afirmou.

“Precisamos fazer o isolamento social e o isolamento político do


Bolsonaro. Deixar o Congresso trabalhar com as áreas de Saúde,
Economia e social do governo e deixar o presidente fazer as provocações
dele sozinho.” Na avaliação de Silva, que tem bom trânsito entre a
esquerda e a cúpula da Câmara, “a aposta suicida” de Bolsonaro de opor
sua “fé pessoal à ciência” cobrará seu preço, e suas iniciativas cada vez
mais acirram a ingovernabilidade.

Nem Bannon nem os políticos mais experientes de Brasília dizem


compreender a lógica por trás das atitudes de Jair Bolsonaro.

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