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Identidades Culturais Urbanas em Época de Globalização: António Firmino Da Costa
Identidades Culturais Urbanas em Época de Globalização: António Firmino Da Costa
EM ÉPOCA DE GLOBALIZAÇÃO*
uma inesgotável diversidade de modalidades in- Isso permite recolocar a questão, mas já de
termédias ou ambivalentes, em que aquelas atri- outro modo. Por que é, então, que as concepções
buições polarizadas se revelam, afinal, grande correntes das identidades culturais tendem a sur-
parte das vezes, muito menos evidentes e unívo- gir, na vida social, de formas redutoras e polariza-
cas do que poderia parecer à primeira vista. das, nomeadamente quando se manifestam na es-
Vale a pena sublinhar este ponto. Se quiser- fera pública e nos processos de ação coletiva? Por
mos levar em consideração os resultados de um que, grande parte das vezes, as identidades cultu-
conjunto significativo de trabalhos de pesquisa e rais são entendidas e expressas, socialmente, de
análise em ciências sociais, é a essa multiplicida- maneira essencialista e reificante?
de, entrecruzada e dinâmica, das identidades cul- Mais ainda. Por que isto acontece quando,
turais, que somos conduzidos. Tais pesquisas e justamente, os novos contextos urbanos e os pro-
análises permitem perceber bem o caráter plural e cessos de globalização alargam e potenciam toda
plástico, contextual e interativo, mutável e entre- a sorte de contatos e interconexões, de sincretis-
laçado das identidades culturais, e as profundas mos e multiparticipações – numa versão exacer-
ambigüidades de que muitas vezes se revestem bada do cruzamento de círculos sociais e dos efei-
nas suas manifestações simbólicas e nas suas di- tos potenciais da metrópole nas experiências de
nâmicas relacionais. vida, de que Simmel (1986, 1997) já falava há cer-
Assim sendo, uma hipótese conceitual que ca de um século? Ou, o que os conceitos, hoje em
proporia, desde o início, é a da pertinência de dia tão glosados, de redes, fluxos e hibridações,
uma conceitualização não essencialista das tal como surgem, por exemplo, em Castells (1996,
identidades culturais. E, em conseqüência, das 1997, 1998) ou em Appadurai (1990), entre muitos
identidades culturais contemporâneas. Esta hipó- outros, pretendem exprimir teoricamente? Ou,
tese, é claro, não tem nada de particularmente ainda, o que conceitos, como os de campos de
original ou inovador. De certo modo, poder-se-ia possibilidades e mundos sociais urbanos, de meta-
mesmo dizer que a rejeição das concepções es- morfose e mediação, tal como teorizados e utiliza-
sencialistas dos fenômenos identitários é hoje, dos analiticamente por Gilberto Velho (1981,
em larga medida, um adquirido das ciências so- 1994, 1999, 2001), permitem captar de maneira
ciais (Pinto, 1991; Calhoun, 1994; Silva, 1996; tão cognitivamente produtiva?
Costa, 1999; Brubaker, 2001). Na verdade, talvez Sendo as identidades culturais socialmente
não seja bem assim, talvez o adquirido não seja construídas, e, portanto, múltiplas e contingentes,
tão vasto ou tão inequívoco. Mas deixo este as- mutáveis e contextuais, por que as concepções
pecto da discussão para o final. hoje mais difundidas e socialmente atuantes de-
De momento, para prosseguir, basta conce- mostram uma forte propensão para entendê-las
der que tal conceitualização não essencialista es- como essências, sejam essas “sociais”, “meta-so-
teja suficientemente bem alicerçada nas ciências ciais”, sejam mesmo “metafísicas”? Por que se ten-
sociais atuais. Partindo dessa base, é possível de a conceber as identidades culturais como rígi-
avançar mais um passo. Quando examinados de das e estanques, projetando-as, com esta configu-
perto, com algum cuidado observacional e algu- ração de sentido, na própria dinâmica social?
ma lucidez analítica, os referidos fenômenos de Esta é, então, não só uma segunda questão,
identidade cultural evidenciam, em regra, contor- mas uma questão, digamos assim, de “segundo
nos muito menos nítidos, permanentes e unívocos grau”. Creio ser possível propor a hipótese analí-
do que aqueles com que, pelo contrário, tendem tica – esta talvez já menos corrente – de que, hoje,
a surgir no debate público – seja no discurso me- não se pode analisar bem uma sem a outra. Isto é,
diático, seja nos enunciados programáticos da atualmente, o estado dos processos sociais e o
ação coletiva politizada, seja nas categorizações “estado da arte” das ciências sociais parecem re-
culturais utilizadas em muitas das situações rela- querer que se trate de forma integrada: a) a aná-
cionais do cotidiano. lise das identidades culturais; e b) a análise das
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concepções socialmente prevalecentes sobre iden- que se aceite a factualidade das premissas. Impli-
tidades culturais, incluindo concepções de fundo ca, ainda, aceitar a caracterização analítica da re-
erudito, e mesmo, até, as que circulam no campo lação entre elas como uma relação paradoxal.
das ciências sociais. Ora, aqui, o problema não é de pertinência
Na medida em que essas últimas estão en- empírica mas de referência teórica. Uma consta-
volvidas, a articulação iniludível entre os dois pla- tação factual só se constitui como surpresa – e,
nos referidos – o das identidades culturais e o das mais ainda, só adquire o estatuto de paradoxo –
concepções sobre as identidades culturais – cons- perante uma teoria prévia ou, pelo menos, peran-
titui, ela própria, uma manifestação da reflexivi- te uma convicção cognitiva até então implicita-
dade social contemporânea e dos processos de mente partilhada (Gil, 1984). A simultaneidade –
“dupla hermenêutica” que a percorrem, para usar e, mais do que a simultaneidade, a interligação –
uma expressão de Giddens (2000). Mas, de forma entre os processos de globalização e os processos
mais abrangente, essa articulação remete para a de proliferação de identidades culturais só pode
especificidade relacional e simbólica dos fenôme- ser considerada paradoxal do ponto de vista de
nos identitários, como tal, aspecto decisivo a que uma teoria pré-constituída que assuma, como
regresso adiante. efeito previsível dos processos de globalização,
Comecei por mencionar um paradoxo con- uma tendência mais ou menos inexorável para a
temporâneo. Convém ver melhor, porém, se há indiferenciação cultural.
mesmo paradoxo. Por um lado, isso implica aceitar De novo, neste ponto, a questão não é sim-
as premissas: a de que estamos diante de podero- ples. As teorias que se podem encontrar nas ciên-
sos e abrangentes processos de globalização; e a cias sociais, de algum modo relativas ao tema,
de que se assiste a uma proliferação de identidades apontam em diversas direções. Há importantes fi-
culturais segmentadas e diferenciais. Não vou dis- lões teóricos que alicerçam, desde há muito, a hi-
cutir muito essas premissas. Limito-me a reconhe- pótese de indiferenciação, ou, noutros termos, de
cer que as análises das ciências sociais a respeito massificação. Isso acontece pelo menos desde
de tais tópicos não estão estabilizadas, longe disso. Tocqueville (2001), com a sua célebre Da Demo-
Há quem argumente que não se verificam, cracia na América. Ou, noutra época e noutro
em nível societal, processos tão inclusivos, tão he- quadrante teórico-ideológico, com figuras de refe-
gemônicos ou tão novos que justifiquem o concei- rência da Escola de Frankfurt como Adorno e
to de globalização, pelo menos em sentido teóri- Horkheimer (1972), ou como Marcuse (1964),
co forte, ou que justifiquem uma utilização tão com o seu “homem unidimensional”. Ou ainda,
onipresente dele como a que hoje em dia se cons- para dar apenas mais um exemplo, este mais re-
tata. Há também quem atribua mais importância cente e com orientação paradigmática ainda de
atual aos processos de homogeneização cultural outro tipo, com as teses de Ritzer (2000) sobre a
massificada, ou de atomização individualista ge- “macdonaldização” da sociedade.
neralizada, do que às segmentações identitárias. Mas há também um conjunto crescente e va-
Estes argumentos têm, muitas vezes, boa riado de autores que ilustram e teorizam tendên-
dose de pertinência. Mas, em si mesma, uma face cias de concomitância entre globalização e locali-
da moeda não anula a outra. Mais consubstancia- zação, e entre homogeneização e heterogeneiza-
da pelo conhecimento disponível nas ciências so- ção, nomeadamente em domínios como os das
ciais é a coexistência e a interligação de processos criações artísticas, dos estilos de vida ou das iden-
de globalização, diferenciação e contextualização tidades culturais. Entre muitos outros, é o caso de
social, bem como de identidade, homogeneização autores tão variados como Robertson (1995), Cas-
e hibridação cultural. tells (1996, 1997, 1998), Chaney (1997), Giddens
Por outro lado, a formulação, como parado- (1997), Touraine (1998) ou Beck (2000).
xo do enunciado que serviu de ponto de partida Perante questões de grande generalidade, há
a esta partilha de reflexões, não requer apenas um momento em que a simples discussão teórica
o
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se torna cada vez mais inconclusiva. É um mo- com bastante força no mercado de trabalho, o nú-
mento em que se sente necessidade de avançar mero de filhos por família caiu drasticamente, e a
para além do confronto relativamente estéril, ree- escolarização tornou-se parâmetro fundamental das
ditado à exaustão, entre enunciados assertivos de estratégias de mobilidade social. Em termos de
caráter apriorístico, enredados sobre si próprios composição social passou-se, em pouco tempo, de
numa teia circular de afirmações repetidas, com um grande peso do campesinato e proletariado ru-
freqüência em tom muito convicto. Nessa altura, a ral para o seu quase desaparecimento, substituído,
combinação da dúvida racional e do ceticismo primeiro, por um crescimento acentuado do opera-
metodológico com o apelo ao caso concreto e à riado industrial e, logo depois, por uma forte pre-
investigação empírica, pode ser muito útil, em ter- dominância dos empregados do setor terciário e
mos de potencialidade heurística e elucidação das novas classes médias qualificadas escolar e
analítica. Retomo aqui ideias como as de Glaser e profissionalmente (Costa et al., 2000). Os modos de
Strauss (1967) sobre a produção de “teoria enrai- vida urbanos tornaram-se padrões de existência so-
zada” (grounded theory) através da investigação cial largamente partilhados. Sem que a emigração
empírica, ou como as reflexões clássicas de Mer- tenha desaparecido, a dinâmica principal é hoje de
ton (1970) sobre as influências recíprocas entre imigração, designadamente a partir da África, do
teoria sociológica e pesquisa empírica. Brasil e do Leste europeu.
Recorro então, na seqüência, muito em sín- Pode parecer algo estranho que o primeiro
tese, a três casos sobre os quais me foi possível caso se reporte a uma pequena povoação cha-
realizar alguma investigação. São casos de confi- mada Barrancos, hoje em dia com cerca de duas
guração empírica bastante diferente entre si, a mil pessoas, situada no interior sul de Portugal,
partir dos quais se podem repensar diversos as- numa região chamada Alentejo. Segundo os seus
pectos do tema em causa: as identidades culturais próprios habitantes, era, até há pouco, e ainda é,
urbanas no atual quadro de globalização. Por ve- em alguns aspectos, uma “terra esquecida”. À
zes, um pequeno contexto, ou um episódio efê- primeira vista, então, dir-se-ia ter o caso muito
mero, revelam-se plataformas de observação pouco a ver com a atualidade da sociedade por-
(Costa, 1986) susceptíveis de conduzirem a análi- tuguesa e, menos ainda, com o urbano e com a
ses com implicações bastante vastas. É o que globalização. Mas, como se poderá verificar rapi-
acontece, creio, com os casos seguintes. damente, tem tudo a ver.
A região alentejana cobre grande parte do
sul de Portugal. É uma região pobre e pouco po-
Conflitos identitários e direitos culturais voada. As sucessivas invasões e colonizações, no-
– O “caso” de Barrancos meadamente romana, muçulmana e cristã, bem
como todas as mudanças históricas posteriores,
Portugal é um país que, nas últimas décadas, acrescentando e remodelando elementos, prolon-
vem passando por significativos processos de garam até ao limiar da atualidade lógicas de po-
transformação social modernizadora. As duas datas voamento concentrado e estratificação social po-
mais marcantes são 1974, com a queda do regime larizada (Ribeiro, 1986; Cutileiro, 1977). A vila de
ditatorial que abafou o país durante quase cinqüen- Barrancos fica aí, mas na parte mais a sul, mais
ta anos, e 1986, com a integração no espaço supra- deserta, mais interior, na fronteira com Espanha.
nacional da atual União Européia. Representam Ora, de repente, há bem poucos anos, sem
episódios de aceleração de processos sociais envol- que nada o fizesse prever, Barrancos tornou-se
vendo mudanças de fundo, em níveis estrutural, uma das povoações mais mediáticas e mais discu-
institucional e cultural (Viegas e Costa, 1998). Re- tidas em Portugal, pretexto recorrente de acesa
cusando situações anteriores de pobreza e atraso, a controvérsia pública, objeto de reportagens televi-
população migrou para o estrangeiro, para o litoral sivas e colunas de jornais, de debates parlamenta-
e para as principais cidades. As mulheres entraram res e decisões de tribunais, de manifestações pú-
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blicas e intervenções policiais, alvo de estratégias fim de cada dia, são mortos na praça, como se dá
partidárias, de acusações culturais e de discussões habitualmente na chamada “corrida à espanhola”.
populares acaloradas. E, até, de algumas análises Ora, em Portugal, os “touros de morte” são proibi-
sociológicas (Costa, 2000; Capucha, 2001). dos por lei. Em Barrancos, no entanto, terra recôn-
Num dia de fim do verão de 1995, um dos dita do interior sul, as festas locais sempre incluí-
canais de televisão, na procura de temas para ram a morte dos touros, e também nunca ninguém
conquista de audiências, coloca, em pleno noti- se tinha incomodado com isso. Tudo mudou de fi-
ciário televisivo nacional, uma reportagem sobre gura, é claro, quando a televisão, transmitindo o
esse lugar discreto. O que é que suscitava o in- episódio em âmbito nacional, modificou-lhe irre-
teresse comunicacional? À primeira vista, tratava- mediavelmente o contexto e o significado.
se apenas de mais uma simpática festa anual de Vale a pena assinalar que o quadro vivido
uma pequena povoação, como tantas outras que no local é de festa popular e não de espectáculo
ocorrem aos milhares por todo o país. Em Bar- comercial. Há, como é habitual nesses casos, uma
rancos são as festas de Nossa Senhora da Concei- “comissão de festas”, cujos elementos, recrutados
ção, que têm lugar entre 28 e 31 de agosto. Nada entre a população da terra, são renovados anual-
que, em princípio, fosse notícia para os meios de mente. O local das corridas é “a praça”, o espaço
comunicação nacionais. público central da povoação. A participação po-
Por quê, então, o inusitado destaque? O que pular é intensa, de homens e mulheres de todas
tinha captado a atenção televisiva era, afinal, o se- as idades. Além disso, o ritual festivo tem a parti-
guinte. Para além da procissão, dos espectáculos cularidade de incluir, após a corrida, já fora da
musicais, dos bailes, das comidas e bebidas pela praça, a distribuição da carne dos bovinos, me-
noite a fora, as gentes de Barrancos – como mui- mória dos tempos de carência em que só por
tas outras do país – incluem, como elemento im- ocasião da festa os trabalhadores rurais tinham
portante das festas, um conjunto de atividades oportunidade de a comer.
tauromáquicas. Em Barrancos, como em vários Perante a reportagem televisiva inicial, e as
outros locais, as “festas de touros” têm mesmo outras que se lhe seguiram, o que aconteceu? Es-
uma presença central, consistindo, basicamente, sas reportagens sublinhavam dois aspectos. Por
nos “encerros” e nas “novilhadas”. um lado, apontavam a curiosidade exótica, o re-
Durante o período da festa, em cada dia, de gisto etnográfico, a singularidade identitária das
manhã, são largados dois touros pelas ruas. As festas de Barrancos. Por outro, questionavam o
pessoas da terra, sobretudo homens jovens, cor- sofrimento dos animais, o caráter agressivo do es-
rem junto deles, desafiando-os, e conduzindo-os pectáculo e a ilegalidade da prática, criticando a
aos “curros”, onde ficam encerrados à espera da falta de intervenção das autoridades estatais. Da-
corrida da tarde. São os “encerros” – dos quais, é qui surgiu toda a polêmica.
claro, os participantes se arriscam a sair com o cor- Como se vê, o caso de Barrancos, como
po mais dorido, mas também mais satisfeitos con- questão pública controversa, começou por ser, an-
sigo próprios. Aos fins de tarde, na praça principal tes de mais nada, uma manifestação dos modos
da terra, onde é erguida uma estrutura de madeira como os meios de comunicação contribuem hoje,
especial, com tecnologia tradicional própria (o “ta- de maneira decisiva, para a construção social da
buado”), onde se aglomera a população entusias- realidade (Stevenson, 1995; Matellart, 1997; Poster,
mada, os animais são lidados, numa “novilhada 2000; Sartori, 2000). Os media modernos são ele-
popular”, segundo a designação ultimamente mais mentos centralmente constituintes das formas atuais
adotada. Não entro em pormenores, muito interes- de organização social e de configuração cultural,
santes do ponto de vista etnográfico, mas que são caracteristicamente urbanas, e dos fluxos globali-
dispensáveis para a presente discussão. zadores que as atravessam. Os canais de televisão
Acontece que – e foi isto que a televisão quis que desencadearam a questão de Barrancos têm
mostrar – nas festas de Barrancos, os novilhos, no sede urbana, dirigem-se sobretudo a públicos ur-
o
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banos, constituem e interpelam, de maneira focal, ção ideológica ecologista e estilo sociocultural
as sensibilidades, os modos de vida, as formas de pós-modernista, assentam a sua campanha no que
expressão e as identidades culturais urbanas con- designam por valores de “defesa dos direitos dos
temporâneas (Crane, 1992; Ferreira, 2000). animais”. Tanto uns como outros, para além dos
Como controvérsia pública, pois, o caso de argumentos anteriores, de ordem cultural, chama-
Barrancos não teve tanto a ver com um costume ram em seu apoio um argumento de ordem jurí-
local, em si mesmo. O costume local já lá estava. dica, exigindo o cumprimento da lei que interdita
Passou a ser uma questão controversa quando foi os touros de morte. O não cumprimento da lei
alvo de reportagem televisiva, a qual o selecionou tornou-se, aliás, para muitas outras pessoas, o ele-
de entre muitos outros, lhe sublinhou certos as- mento problemático decisivo.
pectos, o desinseriu do seu quadro de existência Pelo seu lado, a população de Barrancos ar-
habitual e o transportou para âmbitos de visibili- gumenta que não percebe nem aceita que nunca
dade pública de escala completamente diferente ninguém se tenha preocupado com as suas enor-
da do seu contexto de produção próprio. Os sig- mes e persistentes carências – em estradas, esco-
nificados de que se revestiu nesse novo âmbito las, equipamentos, empregos – e que só agora se
passaram a ser, necessariamente, outros. tenham lembrado deles, mas para lhes quererem
Mas o caso de Barrancos não se ficou por negar a sua maneira de fazer a festa, as suas tra-
esta dimensão de comunicação de massas. Com dições, a sua dignidade. Salientam que não an-
ela surgiu logo outra dimensão, a das relações in- dam a fazer proselitismo dos seus costumes, nem
terculturais, nas formas ambivalentes em que elas, foram eles a procurar interferir com a vida dos
muitas vezes, têm tendência a ocorrer hoje em dia. outros. Relembram que se trata de uma festa
Para além das televisões e dos jornais, assu- anual e não de espetáculos comerciais de toura-
miram a curto prazo intervenção muito ativa al- da, aos quais a lei se destina. Chamam a atenção
gumas associações de proteção dos animais, no- para a prioridade de que seria lógico terem, em
meadamente das duas principais cidades portu- termos de preocupação pública, inúmeras situa-
guesas, Lisboa e Porto. Por solicitação destas, um ções de sofrimento animal em larga escala: in-
tribunal de Lisboa emitiu, em 1997, uma “provi- dustriais, desportivas, domésticas e outras. Por
dência cautelar”, com vista a obrigar as autorida- último, consideram que a lei em causa, datando
des administrativas e policiais a não deixarem de 1928, do início do longo período ditatorial vi-
realizar a festa de Barrancos nos seus moldes ha- gente em Portugal até 1974, não é satisfatória, e
bituais, isto é, com morte dos touros na praça. requerem legislação atualizada contemplando
Daí para cá, a escalada da questão, em termos casos de especificidade cultural.
públicos, foi enorme. Com estes argumentos, e uma fortíssima ade-
Na oposição às festas de Barrancos conver- são local, as gentes de Barrancos continuam a fa-
gem diversos argumentos e agentes sociais. Al- zer a festa à sua maneira. Para os barranquenhos,
guns citadinos abastados, de meia idade e ideolo- o que está agora em causa é a defesa do direito
gia conservadora, adotam uma posição que se po- não só aos seus próprios gostos e práticas, mas
deria designar de “higienismo civilizador”. Acham também, perante o modo como a questão foi de-
que as práticas da população da vila alentejana sencadeada contra eles, o direito a serem tratados
são primitivas, bárbaras, inaceitáveis por uma sen- como portadores de igual dignidade humana e
sibilidade bem formada, incompatíveis com as so- igual estatuto de cidadania cultural.
ciedades evoluídas, e que, portanto, deveriam ser A situação tem-se repetido anualmente, mas
impedidas a todo o custo, cabendo ao Estado, e com desenvolvimentos adicionais. Foram emitidas
em última instância à polícia, obrigar as pessoas novas providências cautelares, solicitadas pelas
de Barrancos a comportarem-se de maneira civili- referidas associações. Estas chegaram a promover
zada. Outros, jovens urbanos escolarizados, tam- uma manifestação às portas da vila, protagoniza-
bém e sobretudo das grandes cidades, de orienta- da sobretudo por algumas dezenas de jovens es-
IDENTIDADES CULTURAIS URBANAS EM ÉPOCA DE GLOBALIZAÇÃO 21
dãos portadores do direito a opções identitárias rais da Expo’98, antes, durante e depois da res-
culturalmente plurais. Isto, note-se bem, numa si- pectiva realização (Santos e Costa, 1999). Dessa
tuação que já não é a do relativo confinamento investigação é possível destacar um conjunto de
prévio, mas a de inscrição tendencial num quadro aspectos a respeito do tema aqui em discussão –
de urbanidade abrangente e interdependências ainda que tenha de o fazer, como é óbvio, de for-
globalizadas, ele próprio arena reconfigurada de ma muito sintética e seletiva.
interpelações identitárias recíprocas. A Exposição Mundial de Lisboa ocorreu en-
Terá ficado claro, pois, que o objeto de aná- tre maio e setembro de 1998. Estiveram presentes
lise e reflexão, aqui, não é tanto a população de cerca de 150 países, além de um conjunto diversi-
Barrancos e a festa local. Consiste, sim, no inter- ficado de organizações internacionais. A progra-
relacionamento alargado, potencial ou efetiva- mação cultural contou com muitas centenas de
mente conflitual, de identidades culturais em con- projetos e atividades. Teve mais de 10 milhões de
texto de urbanidade globalizada, com intervenção visitantes, isto é, mais do que a população do país
de alguns dos mecanismos mais específicos desta: de acolhimento (que pouco ultrapassa, precisa-
meios de comunicação, espaço público, modos mente, os 10 milhões de pessoas). Vem a propó-
de vida diversificados, movimentos sociais. sito referir que, entre os países estrangeiros, o
Brasil foi o terceiro em número de visitantes, depois
das geograficamente vizinhas Espanha e França, e
Uma síntese global localizada – o segundo país com maior número de projetos
A “Expo’98” culturais, logo depois da Espanha.
A realização de uma exposição destas não é
Um segundo caso, com o qual se podem fácil. Os responsáveis pelo projeto começaram a
ilustrar algumas das principais questões que têm trabalhar na candidatura junto do BIE com anos
vindo a despertar interesse analítico nas ciências de antecedência, em concorrência forte com can-
sociais a respeito das identidades culturais urba- didaturas de outros países. A vitória da candidatu-
nas em época de globalização, remete para um ra deveu-se a um conjunto de fatores, nomeada-
contexto e uma situação que parecem, à primeira mente a uma concepção que se propunha integrar
vista, situar-se num universo diametralmente à exposição, como lugar de encontro entre países,
oposto ao anterior. Acontece que não é bem as- povos e culturas, com um tema universal de atua-
sim, ou é apenas em parte. lidade (“Os Oceanos, um Patrimônio para o Futu-
O caso, aqui, é o da Expo’98 – Exposição ro”), com uma forte dimensão de novidade tecno-
Mundial de Lisboa de 1998. Como se sabe, as gran- lógica (nas mostras e nos espetáculos), e, ainda,
des exposições internacionais, realizadas sob os com um plano ambicioso de reconversão urbanís-
auspícios do Bureau International des Expositions – tica de uma importante faixa ribeirinha da zona
BIE, têm já uma história longa, remontando a mea- oriental da cidade, junto à parte mais larga do
dos do século XIX. Essa série de exposições inter- grande estuário do rio Tejo, antiga área industrial
nacionais, universais ou mundiais – a terminologia e portuária em decadência, muito degradada.
tem variado e não cabe aqui examinar as diferentes Desde o início, a dimensão de projeto identi-
possibilidades (Galopin, 1997) – teve início com a tário esteve presente na Expo’98. Tratava-se, antes
Exposição de Londres, de 1851, e incluiu muitas ou- de mais nada, de projetar no mundo, mas também
tras, das quais basta referir, a título de exemplo, a junto da própria população nacional, uma imagem
Exposição de Paris de 1889, de que ficou a célebre de modernidade recém-alcançada. Pretendia-se,
Torre Eiffel, e, mais perto da atualidade, a Exposi- deste modo, atualizar, no plano simbólico, as ima-
ção de Sevilha de 1992 (Harvey, 1996). gens identitárias (imagens externas e auto-ima-
Tive oportunidade de realizar, com uma gens) da cidade e do país, de maneira a torná-las
equipe de colegas sociólogos, uma investigação mais correspondentes à realidade emergente das
relativamente minuciosa sobre os aspectos cultu- intensas transformações estruturais, de moderniza-
IDENTIDADES CULTURAIS URBANAS EM ÉPOCA DE GLOBALIZAÇÃO 23
ção institucional, econômica e social, que, se bem ção, de visibilidade simultânea de diferentes for-
que com ritmos diferenciados e contradições não mas de cultura, de encontro entre artistas, de hi-
menosprezáveis, se vinham acentuando, como re- bridação de gêneros, de experimentação de fór-
ferido, desde a queda da ditadura em 1974 e, mais mulas. E, ao mesmo tempo, a disponibilização de
ainda, desde a integração na atual União Européia, tudo isto, em espaço e tempo concentrados, a pú-
em 1986. E pretendia-se também, num mesmo mo- blicos muito mais vastos e diversificados do que
vimento, fazer dessa realização uma alavanca adi- os anteriormente constituídos.
cional de modernização, em diversos domínios, A Expo’98 produziu, ainda, em versão am-
desde os científico, tecnológico e ambiental, até, pliada, a aglomeração festiva, a recontextualiza-
muito em especial, aos que tinham a ver com a ção de sociabilidades, a intensificação relacional,
promoção de um cosmopolitismo cultural atualiza- assim como gerou nos visitantes um invulgar cui-
do e de um ambiente urbano renovado. Pode-se, dado cívico com espaços de apropriação coletiva.
assim, tomar a Expo’98 como ilustração concreta E suscitou fluxos populacionais de ruptura com os
de processos sociais a que vários autores, com va- percursos diários e as rotinas do cotidiano, fluxos
riantes de sentido, têm chamado de “moderniza- esses que assumiram o caráter de peregrinações
ção reflexiva” (Beck, Giddens e Lash, 2000). modernas ao palco, ali montado, de uma repre-
A Expo’98, como megaevento contemporâ- sentação-síntese da diversidade cultural mundial.
neo (Santos e Costa, 1999), apresenta um vasto Porventura, um dos aspectos mais importan-
conjunto de dimensões com incidência identitária tes a sublinhar é, justamente, o cruzamento de di-
significativa. Destaca-se, desde logo, o caráter de- nâmicas identitárias que este tipo de contexto ur-
cisivo da dimensão comunicacional, com a pre- bano cosmopolita proporciona. Cruzamento que
sença esmagadora que a realização teve na im- se estabeleceu entre cada uma das representações
prensa, rádio e televisão, onde se processou, em de identidade cultural nacional ali presentes e a
larga medida, a tematização de questões mais ou representação de uma “síntese global” da multipli-
menos controversas, como as relativas às repre- cidade cultural planetária; síntese global essa, por
sentações identitárias da cidade e do país suscita- sua vez, “localizada” num espaço de representa-
das pela exposição, e onde essa tematização se ção que se constituiu como referente identitário
amplificou muito para além dos freqüentadores privilegiado da cidade e da sociedade promotoras.
diretos. É uma dimensão com grande importância Aliás, o investimento urbanístico feito no lo-
no caso anterior, e que aqui reencontramos como cal da exposição prolongou-se bem para além do
componente central das dinâmicas de identidade acontecimento efêmero, quer na vertente de espa-
cultural em contexto de globalização. ço edificado habitacional e comercial, quer na
Pode-se registar, além disso, um conjunto de vertente de espaço público de utilização coletiva,
processos e efeitos identitários especificamente li- de cultura e lazer. Apesar das contradições do
gados às formas de expressão artísticas e culturais: processo urbanístico (Ferreira e Indovina, 1999), o
uma amplificação pública sem precedentes destas espaço da exposição, rebatizado de Parque das
obras e práticas, através, precisamente, da esfera Nações, tornou-se, de maneira duradoura, um dos
comunicacional; a colocação de Lisboa, muito referentes identitários mais salientes da Lisboa
mais do que dantes, nas rotas das programações atual, além de um elemento fundamental da ima-
culturais globalizadas; a inserção reforçada de gem renovada da cidade.
criadores e produtores artísticos em circuitos cul- Os megaeventos contemporâneos, como é o
turais de âmbito internacional; uma produção caso da Expo’98, envolvem grandes aglomerações
muito maior do que o habitual de obras de arqui- de pessoas, com uma gama vastíssima de agentes
tetura, de artes plásticas, musicais e do espectácu- profissionalizados e com uma quantidade ainda
lo, suscitada por encomendas para a exposição, e maior de públicos, em concentração densa, em
o estímulo alargado à formação de jovens artistas; períodos bem delimitados, em espaços circunscri-
as dinâmicas, igualmente suscitadas pela exposi- tos preparados para o efeito. Ora, isto ocorre no
o
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O bairro de Alfama situa-se na colina onde O outro argumento tinha a ver com a recu-
começou Lisboa, hoje conhecida por Colina do sa, por parte dos moradores, de que tal interven-
Castelo. Mais precisamente, estende-se ao longo ção se traduzisse numa subida tal dos custos de
da encosta dessa colina até ao rio Tejo. É um lo- aluguel ou compra das habitações que redundas-
cal de povoamento muito antigo, retém o nome se, na prática, na sua expulsão para qualquer pe-
que lhe vem da época de dominação muçulma- riferia da cidade, substituídos pela entrada de no-
na, e permaneceu com um traçado urbano me- vos residentes com um perfil social majoritário de
dieval, estreito e labiríntico. É habitado por uma classes médias e altas, interessados em usufruir do
população em que os contrastes de classe social valor simbólico do local e, ao mesmo tempo, com
estão presentes, mas a maioria dos moradores afluência econômica suficiente para pagar as ca-
tem perfil social popular e o tecido relacional lo- sas recuperadas em regime de puros preços de
cal é bastante denso. mercado. Assistir-se-ia, assim, a uma versão local
Acontece que, naquela altura, por um conjun- dos chamados processos de “gentrificação”, os
to de razões que é dispensável aqui pormenorizar, quais têm vindo a ocorrer, ao longo das últimas
as casas pequenas e antigas onde mora essa popu- décadas, em diversos centros históricos urbanos
lação tinham atingido um elevado estado de degra- de várias cidades do mundo.
dação (Costa, 1999). O referido movimento, surgido Mas isso significaria, não só um atentado
depois de muitas diligências de caráter mais indivi- aos direitos culturais da atual população residen-
dual, reivindicava dos poderes públicos, municipais te ao local de identificação residencial, mas tam-
e estatais, a recuperação das casas degradadas, com bém uma destruição do potencial criativo de for-
vista a que os residentes pudessem usufruir de con- mas de cultura popular urbana lisboeta, como o
dições de habitação minimamente aceitáveis pelos fado amador, as festas da cidade, as marchas
padrões atuais de conforto urbano, vigentes em bairristas, as sociabilidades intensas, as associa-
grande parte da cidade-metrópole. Sendo pessoas ções de bairro (Costa, 1999). Práticas sociais e
de rendimentos relativamente baixos, os moradores formas simbólicas estas que são particularmente
locais dificilmente poderiam suportar sozinhos os emblemáticas da identidade cultural de Lisboa,
custos econômicos de uma tal operação. sendo produzidas, aliás, não só neste, como nou-
Além deste, o movimento social local esgri- tros dos chamados “bairros populares” da cidade
mia outros dois argumentos, nos quais estavam (Cordeiro, 1997, Cordeiro e Costa, 1999). Tal po-
implicadas diretamente questões de identidade tencial de criatividade cultural era, assim, consi-
cultural urbana, nos termos de algumas das tema- derado uma resultante da confluência entre um
tizações que estas mais caracteristicamente ten- quadro urbano de características muito específi-
dem a assumir na atualidade. cas – designadamente: malha urbana densa e la-
Um desses argumentos chamava a atenção biríntica, situação central na cidade, vizinhança
para a reabilitação urbana de um bairro como Al- do rio e da faixa portuária – e uma população de
fama, local de acumulação de um patrimônio his- perfil social popular, se bem que ela própria em
tórico único, de valor universal, espaço de suces- constante recomposição, em sintonia com as mu-
sivas vagas de construção sobrepostas ao longo danças de fundo da sociedade (Machado e Cos-
dos milênios. O intuito social de modernizar as ta, 1998; Costa et al., 2000).
condições de habitação não poderia deixar de ser Como se vê, estes argumentos remetem a dois
acompanhado pela preocupação de preservar a dos modos mais freqüentes de atribuição de iden-
marca histórica do conjunto urbano em causa, o tidade cultural a contextos sociais urbanos: o pri-
que, associado às dificuldades colocadas por um meiro, de tom histórico-patrimonial; o segundo, de
terreno íngreme e por materiais de construção an- caráter sociocultural. Acontece que, relativamente
tigos, implicava, para a intervenção nos edifícios e a Alfama, a primeira versão da identidade cultural
nos espaços públicos, recursos técnicos e finan- do bairro é construída fundamentalmente a partir
ceiros bastante elevados. do exterior, por discursos de natureza erudita e co-
o
26 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 48
mais precisamente, construções sociais relacionais esta assumiu o caráter de dispositivo de amplifica-
e simbólicas (Costa, 2001). Simplificando: relacio- ção e intensificação, precisamente, de experiên-
nais, porque sempre produzidas em relação social cias identitárias – citadinas, nacionais e globais.
e porque sempre relativas a outras; simbólicas, As identidades designadas, ou atribuídas,
porque envolvem sempre categorizações culturais por seu turno, reportam-se a construções discursi-
e porque significam sempre o destaque simbólico vas ou icônicas de entidades coletivas, com as
seletivo de algum ou alguns atributos sociais. As quais aqueles que as produzem não têm relação
“identidades culturais” implicam um tipo específi- subjetiva de pertença. Ou, pelo menos, não é a
co de redobramento simbólico das “propriedades esse título nem sobre essa base que tais formas de
sociais”, requerem a seleção e evidenciação ativa identidade cultural são elaboradas simbolicamen-
de alguma ou algumas delas, simbólica e relacio- te como unidades de mapeamento da paisagem
nalmente realizada. Identidade cultural é sempre, social. São ilustrativas desta modalidade de cons-
nesse sentido, reflexividade e reconhecimento. tituição de identidades culturais: as imagens fol-
À luz da observação e análise cuidadosa- clorizadas ou estigmatizadas de Barrancos feitas
mente conduzidas, as identidades culturais reve- pelas reportagens televisivas; ou a reificação his-
lam, além disso, uma permanente ambivalência tórico-patrimonialista de Alfama induzida pela ge-
de conotações valorativas, de sentido positivo ou neralidade das abordagens técnicas, artísticas, di-
negativo, um freqüente entrelaçamento de dinâ- dáticas, jornalísticas ou turísticas; ou, ainda, as im-
micas de ostentação e ocultação, um caráter sem- putações de caráter emblemático feitas em relação
pre situacional, contextualizado, interativo e estra- à Expo’98 pelos discursos político e mediático.
tégico no seu acionamento. Como muito outros, Um dos aspectos importantes a destacar nas
os casos analisados anteriormente dão bem conta dinâmicas identitárias observáveis é o dos fre-
de tudo isto, mesmo não tendo sido possível ilus- qüentes efeitos de sobreposição desfocada entre
trá-lo aqui em pormenor. essas duas formas-tipo de identidades culturais.
Em síntese, terão ficado suficientemente elu- Mas não menos importantes, hoje em dia, são os
cidadas a coexistência e a sobreposição, em regime efeitos de reinvestimento simbólico que uma ter-
de entrelaçamento complexo, de três modos princi- ceira modalidade típica de identidades culturais, a
pais de manifestação contemporânea das identida- das identidades tematizadas, exerce cada vez mais
des culturais. Na proposta de um esboço de mode- sobre as duas anteriores.
lo teórico de caráter ideal-típico, podemos chamar- As identidades tematizadas, ou políticas de
lhes “identidades experimentadas”, “identidades identidade, são estratégias deliberadas e reflexi-
designadas” e “identidades tematizadas”. vas de colocação pública de uma situação social
Tendo presente os casos analisados, tornam- qualquer sob a égide explícita da problemática
se dispensáveis extensas explicações. As identida- identitária, em geral com vistas à constituição ou
des experimentadas, ou vividas, têm a ver com as à potenciação de dinâmicas de ação social. Isso
representações cognitivas e os sentimentos de pode ser feito quer de maneira ofensiva, isto é,
pertença, reportados a coletivos de qualquer es- tomando a iniciativa, como no caso do movi-
pécie (categoriais, institucionais, grupais, territo- mento social de Alfama, ou no do projeto da
riais, ou outros), que um conjunto de pessoas par- Expo’98, quer de maneira defensiva, responden-
tilha, emergentes das suas experiências de vida e do a iniciativas de terceiros, como no caso da
situações de existência social. O cotidiano bairris- população de Barrancos.
ta da população de Alfama, a vivência festiva das Seja como for, num plano analítico de ordem
gentes de Barrancos, ou o tipo específico de sen- mais geral, as identidades tematizadas implicam
sibilidade de alguns grupos que se opõem a essas quase sempre dois mecanismos sociais, os quais
festividades, são bons exemplos. Assim como o é, assumem, com freqüência, relações recíprocas de
embora de forma talvez menos evidente, a expe- caráter contraditório. Um deles é um mecanismo
riência partilhada da Expo’98, na medida em que de potenciação da ação coletiva, por meio da
o
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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 223
Pretende-se examinar e debater The article intends to examine and Cet article propose un examen et un
criticamente um paradoxo contem- discuss critically a contemporary débat critique à propos d’un para-
porâneo: à medida que os atuais paradox: as the current globalization doxe contemporain : dans la mesure
processos de globalização se inten- process intensify, the manifestation où les procès actuels de globalisa-
sificam, a manifestação de identi- of cultural identities instead of dis- tion s’intensifient, la manifestation
dades culturais diferenciadas em vez appearing tends to be multiplied. d’identités culturelles différenciées
de se esbater parece tender a multi- The theme is still controversial in semble se multiplier au lieu de s’at-
plicar-se. O tema permanece polêmi- the social sciences concerning the ténuer. Le sujet demeure polémique
co nas ciências sociais, quanto aos facts observed and the interpretation au sein des sciences sociales, par
fatos observáveis e quanto à inter- of meanings. The article tries to con- rapport aux faits qui peuvent être
pretação do seu significado. Procura- tribute for the analysis departing observés ainsi que par rapport à l’in-
se contribuir para esta análise recor- from investigations related to identi- terprétation de leur signification.
rendo a alguns exemplos de investi- ty processes within the current Cette analyse a bénéficié du recours
gação sobre processos identitários urban enviromnent or related à certains exemples d’investigation
em meio urbano atual ou com este themes. With the support of the dis- sur les pocessus d’identité en milieu
relacionados. Com apoio nesses cussed cases, the article presents urbain actuel ou liés à ces pocessus.
casos, apresentam-se algumas pro- some sistematic theoretical propos- En nous appuyant sur ces cas, nous
postas de sistematização teórica als concerning different modalities présentons quelques propositions
sobre modalidades de constituição e of constitution and enunciation of de systématisation théorique des
de enunciação de identidades cul- urban cultural identities in the glob- modalités de constitution et d’énon-
turais urbanas em contexto de glo- alization context and, more general- ciation d’identités culturelles
balização e, de um modo mais geral, ly, concerning the social dynamics urbaines dans un contexte de glob-
sobre as dinâmicas sociais da identi- of cultural identity. alisation et, de façon plus générale,
dade cultural. sur les dynamiques sociales de l’i-
dentité culturelle.