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IDENTIDADES CULTURAIS URBANAS

EM ÉPOCA DE GLOBALIZAÇÃO*

António Firmino da Costa

Um paradoxo identitário? intensificam e se alargam, envolvendo poderosís-


simas dinâmicas de interligação e intercâmbio, de
As breves reflexões que se seguem, sobre o comunicação e difusão em termos mundiais, as
nosso mundo atual e sobre algumas experiências identidades culturais diferenciadas, específicas,
de exercício nele realizadas da investigação em fragmentadas, ou mesmo marcadamente particula-
ciências sociais, têm como objeto de partida o que ristas, em vez de se esbaterem ou desintegrarem,
se poderia designar por paradoxo das identidades parecem tender a proliferar, a multiplicar-se e a
culturais em contexto de globalização. acentuar-se.
Paradoxo por quê? Uma resposta habitual é Às vezes isso se manifesta de maneira bas-
bastante simples, talvez até algo simplista. Estar- tante sedutora e criativa. Outras, ocorre com fei-
se-ia perante um paradoxo porque, à medida que ções mais ameaçadoras, podendo chegar a tradu-
os processos contemporâneos de globalização se zir-se no que, num belíssimo ensaio, cheio de
atualidade, Amin Maalouf (1999) chamou de “as
identidades assassinas”. Exemplos de ambos os ti-
* Conferência proferida no XXV Encontro Anual da pos – isto é, simplificando, de fenômenos identi-
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa tários “sedutores” ou “ameaçadores” – são referen-
em Ciências Sociais – Anpocs, realizado em Caxam- ciáveis com facilidade. Alguns têm tido grande
bu (Brasil), em outubro de 2001. Gostaria de deixar destaque mediático e forte impacto na consciên-
expresso o meu agradecimento à Anpocs, pelo con-
vite para participar neste encontro, e ao Professor cia pública, nos últimos tempos.
Gilberto Velho, a quem muito devo em termos de Porém, mais exatamente, se olharmos com
referência intelectual e amizade pessoal. um pouco mais de atenção, damo-nos conta de

RBCS Vol. 17 no 48 fevereiro/2002


o
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uma inesgotável diversidade de modalidades in- Isso permite recolocar a questão, mas já de
termédias ou ambivalentes, em que aquelas atri- outro modo. Por que é, então, que as concepções
buições polarizadas se revelam, afinal, grande correntes das identidades culturais tendem a sur-
parte das vezes, muito menos evidentes e unívo- gir, na vida social, de formas redutoras e polariza-
cas do que poderia parecer à primeira vista. das, nomeadamente quando se manifestam na es-
Vale a pena sublinhar este ponto. Se quiser- fera pública e nos processos de ação coletiva? Por
mos levar em consideração os resultados de um que, grande parte das vezes, as identidades cultu-
conjunto significativo de trabalhos de pesquisa e rais são entendidas e expressas, socialmente, de
análise em ciências sociais, é a essa multiplicida- maneira essencialista e reificante?
de, entrecruzada e dinâmica, das identidades cul- Mais ainda. Por que isto acontece quando,
turais, que somos conduzidos. Tais pesquisas e justamente, os novos contextos urbanos e os pro-
análises permitem perceber bem o caráter plural e cessos de globalização alargam e potenciam toda
plástico, contextual e interativo, mutável e entre- a sorte de contatos e interconexões, de sincretis-
laçado das identidades culturais, e as profundas mos e multiparticipações – numa versão exacer-
ambigüidades de que muitas vezes se revestem bada do cruzamento de círculos sociais e dos efei-
nas suas manifestações simbólicas e nas suas di- tos potenciais da metrópole nas experiências de
nâmicas relacionais. vida, de que Simmel (1986, 1997) já falava há cer-
Assim sendo, uma hipótese conceitual que ca de um século? Ou, o que os conceitos, hoje em
proporia, desde o início, é a da pertinência de dia tão glosados, de redes, fluxos e hibridações,
uma conceitualização não essencialista das tal como surgem, por exemplo, em Castells (1996,
identidades culturais. E, em conseqüência, das 1997, 1998) ou em Appadurai (1990), entre muitos
identidades culturais contemporâneas. Esta hipó- outros, pretendem exprimir teoricamente? Ou,
tese, é claro, não tem nada de particularmente ainda, o que conceitos, como os de campos de
original ou inovador. De certo modo, poder-se-ia possibilidades e mundos sociais urbanos, de meta-
mesmo dizer que a rejeição das concepções es- morfose e mediação, tal como teorizados e utiliza-
sencialistas dos fenômenos identitários é hoje, dos analiticamente por Gilberto Velho (1981,
em larga medida, um adquirido das ciências so- 1994, 1999, 2001), permitem captar de maneira
ciais (Pinto, 1991; Calhoun, 1994; Silva, 1996; tão cognitivamente produtiva?
Costa, 1999; Brubaker, 2001). Na verdade, talvez Sendo as identidades culturais socialmente
não seja bem assim, talvez o adquirido não seja construídas, e, portanto, múltiplas e contingentes,
tão vasto ou tão inequívoco. Mas deixo este as- mutáveis e contextuais, por que as concepções
pecto da discussão para o final. hoje mais difundidas e socialmente atuantes de-
De momento, para prosseguir, basta conce- mostram uma forte propensão para entendê-las
der que tal conceitualização não essencialista es- como essências, sejam essas “sociais”, “meta-so-
teja suficientemente bem alicerçada nas ciências ciais”, sejam mesmo “metafísicas”? Por que se ten-
sociais atuais. Partindo dessa base, é possível de a conceber as identidades culturais como rígi-
avançar mais um passo. Quando examinados de das e estanques, projetando-as, com esta configu-
perto, com algum cuidado observacional e algu- ração de sentido, na própria dinâmica social?
ma lucidez analítica, os referidos fenômenos de Esta é, então, não só uma segunda questão,
identidade cultural evidenciam, em regra, contor- mas uma questão, digamos assim, de “segundo
nos muito menos nítidos, permanentes e unívocos grau”. Creio ser possível propor a hipótese analí-
do que aqueles com que, pelo contrário, tendem tica – esta talvez já menos corrente – de que, hoje,
a surgir no debate público – seja no discurso me- não se pode analisar bem uma sem a outra. Isto é,
diático, seja nos enunciados programáticos da atualmente, o estado dos processos sociais e o
ação coletiva politizada, seja nas categorizações “estado da arte” das ciências sociais parecem re-
culturais utilizadas em muitas das situações rela- querer que se trate de forma integrada: a) a aná-
cionais do cotidiano. lise das identidades culturais; e b) a análise das
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concepções socialmente prevalecentes sobre iden- que se aceite a factualidade das premissas. Impli-
tidades culturais, incluindo concepções de fundo ca, ainda, aceitar a caracterização analítica da re-
erudito, e mesmo, até, as que circulam no campo lação entre elas como uma relação paradoxal.
das ciências sociais. Ora, aqui, o problema não é de pertinência
Na medida em que essas últimas estão en- empírica mas de referência teórica. Uma consta-
volvidas, a articulação iniludível entre os dois pla- tação factual só se constitui como surpresa – e,
nos referidos – o das identidades culturais e o das mais ainda, só adquire o estatuto de paradoxo –
concepções sobre as identidades culturais – cons- perante uma teoria prévia ou, pelo menos, peran-
titui, ela própria, uma manifestação da reflexivi- te uma convicção cognitiva até então implicita-
dade social contemporânea e dos processos de mente partilhada (Gil, 1984). A simultaneidade –
“dupla hermenêutica” que a percorrem, para usar e, mais do que a simultaneidade, a interligação –
uma expressão de Giddens (2000). Mas, de forma entre os processos de globalização e os processos
mais abrangente, essa articulação remete para a de proliferação de identidades culturais só pode
especificidade relacional e simbólica dos fenôme- ser considerada paradoxal do ponto de vista de
nos identitários, como tal, aspecto decisivo a que uma teoria pré-constituída que assuma, como
regresso adiante. efeito previsível dos processos de globalização,
Comecei por mencionar um paradoxo con- uma tendência mais ou menos inexorável para a
temporâneo. Convém ver melhor, porém, se há indiferenciação cultural.
mesmo paradoxo. Por um lado, isso implica aceitar De novo, neste ponto, a questão não é sim-
as premissas: a de que estamos diante de podero- ples. As teorias que se podem encontrar nas ciên-
sos e abrangentes processos de globalização; e a cias sociais, de algum modo relativas ao tema,
de que se assiste a uma proliferação de identidades apontam em diversas direções. Há importantes fi-
culturais segmentadas e diferenciais. Não vou dis- lões teóricos que alicerçam, desde há muito, a hi-
cutir muito essas premissas. Limito-me a reconhe- pótese de indiferenciação, ou, noutros termos, de
cer que as análises das ciências sociais a respeito massificação. Isso acontece pelo menos desde
de tais tópicos não estão estabilizadas, longe disso. Tocqueville (2001), com a sua célebre Da Demo-
Há quem argumente que não se verificam, cracia na América. Ou, noutra época e noutro
em nível societal, processos tão inclusivos, tão he- quadrante teórico-ideológico, com figuras de refe-
gemônicos ou tão novos que justifiquem o concei- rência da Escola de Frankfurt como Adorno e
to de globalização, pelo menos em sentido teóri- Horkheimer (1972), ou como Marcuse (1964),
co forte, ou que justifiquem uma utilização tão com o seu “homem unidimensional”. Ou ainda,
onipresente dele como a que hoje em dia se cons- para dar apenas mais um exemplo, este mais re-
tata. Há também quem atribua mais importância cente e com orientação paradigmática ainda de
atual aos processos de homogeneização cultural outro tipo, com as teses de Ritzer (2000) sobre a
massificada, ou de atomização individualista ge- “macdonaldização” da sociedade.
neralizada, do que às segmentações identitárias. Mas há também um conjunto crescente e va-
Estes argumentos têm, muitas vezes, boa riado de autores que ilustram e teorizam tendên-
dose de pertinência. Mas, em si mesma, uma face cias de concomitância entre globalização e locali-
da moeda não anula a outra. Mais consubstancia- zação, e entre homogeneização e heterogeneiza-
da pelo conhecimento disponível nas ciências so- ção, nomeadamente em domínios como os das
ciais é a coexistência e a interligação de processos criações artísticas, dos estilos de vida ou das iden-
de globalização, diferenciação e contextualização tidades culturais. Entre muitos outros, é o caso de
social, bem como de identidade, homogeneização autores tão variados como Robertson (1995), Cas-
e hibridação cultural. tells (1996, 1997, 1998), Chaney (1997), Giddens
Por outro lado, a formulação, como parado- (1997), Touraine (1998) ou Beck (2000).
xo do enunciado que serviu de ponto de partida Perante questões de grande generalidade, há
a esta partilha de reflexões, não requer apenas um momento em que a simples discussão teórica
o
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se torna cada vez mais inconclusiva. É um mo- com bastante força no mercado de trabalho, o nú-
mento em que se sente necessidade de avançar mero de filhos por família caiu drasticamente, e a
para além do confronto relativamente estéril, ree- escolarização tornou-se parâmetro fundamental das
ditado à exaustão, entre enunciados assertivos de estratégias de mobilidade social. Em termos de
caráter apriorístico, enredados sobre si próprios composição social passou-se, em pouco tempo, de
numa teia circular de afirmações repetidas, com um grande peso do campesinato e proletariado ru-
freqüência em tom muito convicto. Nessa altura, a ral para o seu quase desaparecimento, substituído,
combinação da dúvida racional e do ceticismo primeiro, por um crescimento acentuado do opera-
metodológico com o apelo ao caso concreto e à riado industrial e, logo depois, por uma forte pre-
investigação empírica, pode ser muito útil, em ter- dominância dos empregados do setor terciário e
mos de potencialidade heurística e elucidação das novas classes médias qualificadas escolar e
analítica. Retomo aqui ideias como as de Glaser e profissionalmente (Costa et al., 2000). Os modos de
Strauss (1967) sobre a produção de “teoria enrai- vida urbanos tornaram-se padrões de existência so-
zada” (grounded theory) através da investigação cial largamente partilhados. Sem que a emigração
empírica, ou como as reflexões clássicas de Mer- tenha desaparecido, a dinâmica principal é hoje de
ton (1970) sobre as influências recíprocas entre imigração, designadamente a partir da África, do
teoria sociológica e pesquisa empírica. Brasil e do Leste europeu.
Recorro então, na seqüência, muito em sín- Pode parecer algo estranho que o primeiro
tese, a três casos sobre os quais me foi possível caso se reporte a uma pequena povoação cha-
realizar alguma investigação. São casos de confi- mada Barrancos, hoje em dia com cerca de duas
guração empírica bastante diferente entre si, a mil pessoas, situada no interior sul de Portugal,
partir dos quais se podem repensar diversos as- numa região chamada Alentejo. Segundo os seus
pectos do tema em causa: as identidades culturais próprios habitantes, era, até há pouco, e ainda é,
urbanas no atual quadro de globalização. Por ve- em alguns aspectos, uma “terra esquecida”. À
zes, um pequeno contexto, ou um episódio efê- primeira vista, então, dir-se-ia ter o caso muito
mero, revelam-se plataformas de observação pouco a ver com a atualidade da sociedade por-
(Costa, 1986) susceptíveis de conduzirem a análi- tuguesa e, menos ainda, com o urbano e com a
ses com implicações bastante vastas. É o que globalização. Mas, como se poderá verificar rapi-
acontece, creio, com os casos seguintes. damente, tem tudo a ver.
A região alentejana cobre grande parte do
sul de Portugal. É uma região pobre e pouco po-
Conflitos identitários e direitos culturais voada. As sucessivas invasões e colonizações, no-
– O “caso” de Barrancos meadamente romana, muçulmana e cristã, bem
como todas as mudanças históricas posteriores,
Portugal é um país que, nas últimas décadas, acrescentando e remodelando elementos, prolon-
vem passando por significativos processos de garam até ao limiar da atualidade lógicas de po-
transformação social modernizadora. As duas datas voamento concentrado e estratificação social po-
mais marcantes são 1974, com a queda do regime larizada (Ribeiro, 1986; Cutileiro, 1977). A vila de
ditatorial que abafou o país durante quase cinqüen- Barrancos fica aí, mas na parte mais a sul, mais
ta anos, e 1986, com a integração no espaço supra- deserta, mais interior, na fronteira com Espanha.
nacional da atual União Européia. Representam Ora, de repente, há bem poucos anos, sem
episódios de aceleração de processos sociais envol- que nada o fizesse prever, Barrancos tornou-se
vendo mudanças de fundo, em níveis estrutural, uma das povoações mais mediáticas e mais discu-
institucional e cultural (Viegas e Costa, 1998). Re- tidas em Portugal, pretexto recorrente de acesa
cusando situações anteriores de pobreza e atraso, a controvérsia pública, objeto de reportagens televi-
população migrou para o estrangeiro, para o litoral sivas e colunas de jornais, de debates parlamenta-
e para as principais cidades. As mulheres entraram res e decisões de tribunais, de manifestações pú-
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blicas e intervenções policiais, alvo de estratégias fim de cada dia, são mortos na praça, como se dá
partidárias, de acusações culturais e de discussões habitualmente na chamada “corrida à espanhola”.
populares acaloradas. E, até, de algumas análises Ora, em Portugal, os “touros de morte” são proibi-
sociológicas (Costa, 2000; Capucha, 2001). dos por lei. Em Barrancos, no entanto, terra recôn-
Num dia de fim do verão de 1995, um dos dita do interior sul, as festas locais sempre incluí-
canais de televisão, na procura de temas para ram a morte dos touros, e também nunca ninguém
conquista de audiências, coloca, em pleno noti- se tinha incomodado com isso. Tudo mudou de fi-
ciário televisivo nacional, uma reportagem sobre gura, é claro, quando a televisão, transmitindo o
esse lugar discreto. O que é que suscitava o in- episódio em âmbito nacional, modificou-lhe irre-
teresse comunicacional? À primeira vista, tratava- mediavelmente o contexto e o significado.
se apenas de mais uma simpática festa anual de Vale a pena assinalar que o quadro vivido
uma pequena povoação, como tantas outras que no local é de festa popular e não de espectáculo
ocorrem aos milhares por todo o país. Em Bar- comercial. Há, como é habitual nesses casos, uma
rancos são as festas de Nossa Senhora da Concei- “comissão de festas”, cujos elementos, recrutados
ção, que têm lugar entre 28 e 31 de agosto. Nada entre a população da terra, são renovados anual-
que, em princípio, fosse notícia para os meios de mente. O local das corridas é “a praça”, o espaço
comunicação nacionais. público central da povoação. A participação po-
Por quê, então, o inusitado destaque? O que pular é intensa, de homens e mulheres de todas
tinha captado a atenção televisiva era, afinal, o se- as idades. Além disso, o ritual festivo tem a parti-
guinte. Para além da procissão, dos espectáculos cularidade de incluir, após a corrida, já fora da
musicais, dos bailes, das comidas e bebidas pela praça, a distribuição da carne dos bovinos, me-
noite a fora, as gentes de Barrancos – como mui- mória dos tempos de carência em que só por
tas outras do país – incluem, como elemento im- ocasião da festa os trabalhadores rurais tinham
portante das festas, um conjunto de atividades oportunidade de a comer.
tauromáquicas. Em Barrancos, como em vários Perante a reportagem televisiva inicial, e as
outros locais, as “festas de touros” têm mesmo outras que se lhe seguiram, o que aconteceu? Es-
uma presença central, consistindo, basicamente, sas reportagens sublinhavam dois aspectos. Por
nos “encerros” e nas “novilhadas”. um lado, apontavam a curiosidade exótica, o re-
Durante o período da festa, em cada dia, de gisto etnográfico, a singularidade identitária das
manhã, são largados dois touros pelas ruas. As festas de Barrancos. Por outro, questionavam o
pessoas da terra, sobretudo homens jovens, cor- sofrimento dos animais, o caráter agressivo do es-
rem junto deles, desafiando-os, e conduzindo-os pectáculo e a ilegalidade da prática, criticando a
aos “curros”, onde ficam encerrados à espera da falta de intervenção das autoridades estatais. Da-
corrida da tarde. São os “encerros” – dos quais, é qui surgiu toda a polêmica.
claro, os participantes se arriscam a sair com o cor- Como se vê, o caso de Barrancos, como
po mais dorido, mas também mais satisfeitos con- questão pública controversa, começou por ser, an-
sigo próprios. Aos fins de tarde, na praça principal tes de mais nada, uma manifestação dos modos
da terra, onde é erguida uma estrutura de madeira como os meios de comunicação contribuem hoje,
especial, com tecnologia tradicional própria (o “ta- de maneira decisiva, para a construção social da
buado”), onde se aglomera a população entusias- realidade (Stevenson, 1995; Matellart, 1997; Poster,
mada, os animais são lidados, numa “novilhada 2000; Sartori, 2000). Os media modernos são ele-
popular”, segundo a designação ultimamente mais mentos centralmente constituintes das formas atuais
adotada. Não entro em pormenores, muito interes- de organização social e de configuração cultural,
santes do ponto de vista etnográfico, mas que são caracteristicamente urbanas, e dos fluxos globali-
dispensáveis para a presente discussão. zadores que as atravessam. Os canais de televisão
Acontece que – e foi isto que a televisão quis que desencadearam a questão de Barrancos têm
mostrar – nas festas de Barrancos, os novilhos, no sede urbana, dirigem-se sobretudo a públicos ur-
o
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banos, constituem e interpelam, de maneira focal, ção ideológica ecologista e estilo sociocultural
as sensibilidades, os modos de vida, as formas de pós-modernista, assentam a sua campanha no que
expressão e as identidades culturais urbanas con- designam por valores de “defesa dos direitos dos
temporâneas (Crane, 1992; Ferreira, 2000). animais”. Tanto uns como outros, para além dos
Como controvérsia pública, pois, o caso de argumentos anteriores, de ordem cultural, chama-
Barrancos não teve tanto a ver com um costume ram em seu apoio um argumento de ordem jurí-
local, em si mesmo. O costume local já lá estava. dica, exigindo o cumprimento da lei que interdita
Passou a ser uma questão controversa quando foi os touros de morte. O não cumprimento da lei
alvo de reportagem televisiva, a qual o selecionou tornou-se, aliás, para muitas outras pessoas, o ele-
de entre muitos outros, lhe sublinhou certos as- mento problemático decisivo.
pectos, o desinseriu do seu quadro de existência Pelo seu lado, a população de Barrancos ar-
habitual e o transportou para âmbitos de visibili- gumenta que não percebe nem aceita que nunca
dade pública de escala completamente diferente ninguém se tenha preocupado com as suas enor-
da do seu contexto de produção próprio. Os sig- mes e persistentes carências – em estradas, esco-
nificados de que se revestiu nesse novo âmbito las, equipamentos, empregos – e que só agora se
passaram a ser, necessariamente, outros. tenham lembrado deles, mas para lhes quererem
Mas o caso de Barrancos não se ficou por negar a sua maneira de fazer a festa, as suas tra-
esta dimensão de comunicação de massas. Com dições, a sua dignidade. Salientam que não an-
ela surgiu logo outra dimensão, a das relações in- dam a fazer proselitismo dos seus costumes, nem
terculturais, nas formas ambivalentes em que elas, foram eles a procurar interferir com a vida dos
muitas vezes, têm tendência a ocorrer hoje em dia. outros. Relembram que se trata de uma festa
Para além das televisões e dos jornais, assu- anual e não de espetáculos comerciais de toura-
miram a curto prazo intervenção muito ativa al- da, aos quais a lei se destina. Chamam a atenção
gumas associações de proteção dos animais, no- para a prioridade de que seria lógico terem, em
meadamente das duas principais cidades portu- termos de preocupação pública, inúmeras situa-
guesas, Lisboa e Porto. Por solicitação destas, um ções de sofrimento animal em larga escala: in-
tribunal de Lisboa emitiu, em 1997, uma “provi- dustriais, desportivas, domésticas e outras. Por
dência cautelar”, com vista a obrigar as autorida- último, consideram que a lei em causa, datando
des administrativas e policiais a não deixarem de 1928, do início do longo período ditatorial vi-
realizar a festa de Barrancos nos seus moldes ha- gente em Portugal até 1974, não é satisfatória, e
bituais, isto é, com morte dos touros na praça. requerem legislação atualizada contemplando
Daí para cá, a escalada da questão, em termos casos de especificidade cultural.
públicos, foi enorme. Com estes argumentos, e uma fortíssima ade-
Na oposição às festas de Barrancos conver- são local, as gentes de Barrancos continuam a fa-
gem diversos argumentos e agentes sociais. Al- zer a festa à sua maneira. Para os barranquenhos,
guns citadinos abastados, de meia idade e ideolo- o que está agora em causa é a defesa do direito
gia conservadora, adotam uma posição que se po- não só aos seus próprios gostos e práticas, mas
deria designar de “higienismo civilizador”. Acham também, perante o modo como a questão foi de-
que as práticas da população da vila alentejana sencadeada contra eles, o direito a serem tratados
são primitivas, bárbaras, inaceitáveis por uma sen- como portadores de igual dignidade humana e
sibilidade bem formada, incompatíveis com as so- igual estatuto de cidadania cultural.
ciedades evoluídas, e que, portanto, deveriam ser A situação tem-se repetido anualmente, mas
impedidas a todo o custo, cabendo ao Estado, e com desenvolvimentos adicionais. Foram emitidas
em última instância à polícia, obrigar as pessoas novas providências cautelares, solicitadas pelas
de Barrancos a comportarem-se de maneira civili- referidas associações. Estas chegaram a promover
zada. Outros, jovens urbanos escolarizados, tam- uma manifestação às portas da vila, protagoniza-
bém e sobretudo das grandes cidades, de orienta- da sobretudo por algumas dezenas de jovens es-
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tudantes e por algumas personalidades do mundo drões de comportamento e entendimento, de


artístico. Deslocaram-se a Barrancos, num dos dias sensibilidade e gosto.
da festa, transportando cartazes com críticas às O que é relativamente novo, em termos so-
práticas locais e recomendando às gentes da vila cietais, é a coexistência de múltiplas referências
outras atividades, mais “educativas”. Simultanea- culturais, em regime de entrecruzamento e sobre-
mente, o caso tornou-se uma “questão de Estado”. posição, num quadro de relacionamento social
Alguns partidos de oposição colocaram o assunto em que se tornou valor de referência a pretensão
na agenda política, acusando o governo de não de assegurar essa coexistência segundo uma ética
ser capaz de fazer cumprir a lei em todo o territó- da universalidade de direitos e dignidade – e,
rio nacional. Outros partidos de oposição, pelo portanto, de reconhecimento da idêntica dignida-
contrário, acentuaram a necessidade de o parla- de das diferenças, à exceção das que comprome-
mento criar um novo quadro legal que permita a tam, precisamente, aquela universalidade de direi-
realização da festa de Barrancos. O próprio parti- tos e dignidade. Esta configuração de padrões va-
do do governo dividiu-se a este respeito. lorativos e regras de relacionamento humano não
De ano para ano, a festa foi tendo mais pes- tem nada de estabilizado ou incontroverso. Pelo
soas, vindas de fora, atraídas pela repercussão pú- contrário, é uma configuração emergente e con-
blica do caso. Os barranquenhos vão tirando al- traditória. O caso de Barrancos é bem ilustrativo
gum proveito de toda esta nova visibilidade públi- das dinâmicas que atualmente agitam, neste pla-
ca da terra, mas, ao mesmo tempo, desejariam no, a constituição das sociedades.
voltar ao anonimato anterior. Entretanto, a ques- Numa formulação canônica, é corrente refe-
tão ultrapassou fronteiras. Barrancos só pertence rir-se, no processo de construção da modernida-
ao território português desde o século XIX. Antes de, a institucionalização progressiva de três gera-
fazia parte da Espanha. As características da sua ções de direitos: primeiro, os direitos cívicos, de-
festa também têm que ver com este fato. Ora, já pois, os direitos políticos e, mais tarde ainda, os
em 2001, a juíza de um tribunal do Porto pronun- direitos sociais. Este enunciado deve ser tomado
ciou-se formalmente sobre o caso afirmando que pelo que é, apenas um esquema simples que
as corridas de touros à espanhola são um “diver- pode ajudar a compreensão dos processos sociais.
timento bárbaro e impróprio de nações civiliza- A sucessão não foi exatamente essa por todo o
das”. Perante isto, alguns responsáveis autárqui- lado. Nenhum daqueles tipos de direitos está ne-
cos da Espanha, de regiões próximas, protestaram cessariamente consagrado na sua plenitude nem é
indignados, ameaçando transformar o caso num imune a regressões. O que importa aqui sublinhar,
conflito diplomático internacional. porém, é a emergência de uma quarta geração de
Como se pode depreender deste breve resu- direitos, designáveis por direitos culturais. O caso
mo, e necessariamente muito incompleto, o caso de Barrancos é, especificamente, um caso de di-
de Barrancos é um caso de identidades culturais reitos à identidade cultural.
e, mais especificamente, de conflitos identitários. O atual contexto relacional de urbanidade
Observa-se hoje uma tendência de valorização e globalizada conduz, assim, a um duplo processo.
de procura ativa alargada do diverso e do exóti- No âmbito dos protagonismos sociais, potencia a
co, materializada, por exemplo, no turismo de multiplicação de dinâmicas identitárias. Estas têm
massas ou nas reportagens sobre curiosidades evidenciado faces diversas e de sinal contrário,
geográficas e etnográficas. São processos alicer- podendo muito bem assumir caráter de agressão
çados nos modos de vida urbanos e nas dinâmi- ou convivência, de isolamento ou hibridação, de
cas de globalização. Mas não deixam igualmente cristalização ou inventividade, de sincretismo ou
de se observar, também com grande presença reformulação. Em um outro nível, coloca, de ma-
atual, tensões como as que desde sempre têm neira mais atual e decisiva do que nunca, o pro-
propensão a estabelecer-se, de maneira mais es- blema da constituição de meta-regulações institu-
batida ou mais exacerbada, entre diferentes pa- cionais, viabilizadoras da coexistência entre cida-
o
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dãos portadores do direito a opções identitárias rais da Expo’98, antes, durante e depois da res-
culturalmente plurais. Isto, note-se bem, numa si- pectiva realização (Santos e Costa, 1999). Dessa
tuação que já não é a do relativo confinamento investigação é possível destacar um conjunto de
prévio, mas a de inscrição tendencial num quadro aspectos a respeito do tema aqui em discussão –
de urbanidade abrangente e interdependências ainda que tenha de o fazer, como é óbvio, de for-
globalizadas, ele próprio arena reconfigurada de ma muito sintética e seletiva.
interpelações identitárias recíprocas. A Exposição Mundial de Lisboa ocorreu en-
Terá ficado claro, pois, que o objeto de aná- tre maio e setembro de 1998. Estiveram presentes
lise e reflexão, aqui, não é tanto a população de cerca de 150 países, além de um conjunto diversi-
Barrancos e a festa local. Consiste, sim, no inter- ficado de organizações internacionais. A progra-
relacionamento alargado, potencial ou efetiva- mação cultural contou com muitas centenas de
mente conflitual, de identidades culturais em con- projetos e atividades. Teve mais de 10 milhões de
texto de urbanidade globalizada, com intervenção visitantes, isto é, mais do que a população do país
de alguns dos mecanismos mais específicos desta: de acolhimento (que pouco ultrapassa, precisa-
meios de comunicação, espaço público, modos mente, os 10 milhões de pessoas). Vem a propó-
de vida diversificados, movimentos sociais. sito referir que, entre os países estrangeiros, o
Brasil foi o terceiro em número de visitantes, depois
das geograficamente vizinhas Espanha e França, e
Uma síntese global localizada – o segundo país com maior número de projetos
A “Expo’98” culturais, logo depois da Espanha.
A realização de uma exposição destas não é
Um segundo caso, com o qual se podem fácil. Os responsáveis pelo projeto começaram a
ilustrar algumas das principais questões que têm trabalhar na candidatura junto do BIE com anos
vindo a despertar interesse analítico nas ciências de antecedência, em concorrência forte com can-
sociais a respeito das identidades culturais urba- didaturas de outros países. A vitória da candidatu-
nas em época de globalização, remete para um ra deveu-se a um conjunto de fatores, nomeada-
contexto e uma situação que parecem, à primeira mente a uma concepção que se propunha integrar
vista, situar-se num universo diametralmente à exposição, como lugar de encontro entre países,
oposto ao anterior. Acontece que não é bem as- povos e culturas, com um tema universal de atua-
sim, ou é apenas em parte. lidade (“Os Oceanos, um Patrimônio para o Futu-
O caso, aqui, é o da Expo’98 – Exposição ro”), com uma forte dimensão de novidade tecno-
Mundial de Lisboa de 1998. Como se sabe, as gran- lógica (nas mostras e nos espetáculos), e, ainda,
des exposições internacionais, realizadas sob os com um plano ambicioso de reconversão urbanís-
auspícios do Bureau International des Expositions – tica de uma importante faixa ribeirinha da zona
BIE, têm já uma história longa, remontando a mea- oriental da cidade, junto à parte mais larga do
dos do século XIX. Essa série de exposições inter- grande estuário do rio Tejo, antiga área industrial
nacionais, universais ou mundiais – a terminologia e portuária em decadência, muito degradada.
tem variado e não cabe aqui examinar as diferentes Desde o início, a dimensão de projeto identi-
possibilidades (Galopin, 1997) – teve início com a tário esteve presente na Expo’98. Tratava-se, antes
Exposição de Londres, de 1851, e incluiu muitas ou- de mais nada, de projetar no mundo, mas também
tras, das quais basta referir, a título de exemplo, a junto da própria população nacional, uma imagem
Exposição de Paris de 1889, de que ficou a célebre de modernidade recém-alcançada. Pretendia-se,
Torre Eiffel, e, mais perto da atualidade, a Exposi- deste modo, atualizar, no plano simbólico, as ima-
ção de Sevilha de 1992 (Harvey, 1996). gens identitárias (imagens externas e auto-ima-
Tive oportunidade de realizar, com uma gens) da cidade e do país, de maneira a torná-las
equipe de colegas sociólogos, uma investigação mais correspondentes à realidade emergente das
relativamente minuciosa sobre os aspectos cultu- intensas transformações estruturais, de moderniza-
IDENTIDADES CULTURAIS URBANAS EM ÉPOCA DE GLOBALIZAÇÃO 23

ção institucional, econômica e social, que, se bem ção, de visibilidade simultânea de diferentes for-
que com ritmos diferenciados e contradições não mas de cultura, de encontro entre artistas, de hi-
menosprezáveis, se vinham acentuando, como re- bridação de gêneros, de experimentação de fór-
ferido, desde a queda da ditadura em 1974 e, mais mulas. E, ao mesmo tempo, a disponibilização de
ainda, desde a integração na atual União Européia, tudo isto, em espaço e tempo concentrados, a pú-
em 1986. E pretendia-se também, num mesmo mo- blicos muito mais vastos e diversificados do que
vimento, fazer dessa realização uma alavanca adi- os anteriormente constituídos.
cional de modernização, em diversos domínios, A Expo’98 produziu, ainda, em versão am-
desde os científico, tecnológico e ambiental, até, pliada, a aglomeração festiva, a recontextualiza-
muito em especial, aos que tinham a ver com a ção de sociabilidades, a intensificação relacional,
promoção de um cosmopolitismo cultural atualiza- assim como gerou nos visitantes um invulgar cui-
do e de um ambiente urbano renovado. Pode-se, dado cívico com espaços de apropriação coletiva.
assim, tomar a Expo’98 como ilustração concreta E suscitou fluxos populacionais de ruptura com os
de processos sociais a que vários autores, com va- percursos diários e as rotinas do cotidiano, fluxos
riantes de sentido, têm chamado de “moderniza- esses que assumiram o caráter de peregrinações
ção reflexiva” (Beck, Giddens e Lash, 2000). modernas ao palco, ali montado, de uma repre-
A Expo’98, como megaevento contemporâ- sentação-síntese da diversidade cultural mundial.
neo (Santos e Costa, 1999), apresenta um vasto Porventura, um dos aspectos mais importan-
conjunto de dimensões com incidência identitária tes a sublinhar é, justamente, o cruzamento de di-
significativa. Destaca-se, desde logo, o caráter de- nâmicas identitárias que este tipo de contexto ur-
cisivo da dimensão comunicacional, com a pre- bano cosmopolita proporciona. Cruzamento que
sença esmagadora que a realização teve na im- se estabeleceu entre cada uma das representações
prensa, rádio e televisão, onde se processou, em de identidade cultural nacional ali presentes e a
larga medida, a tematização de questões mais ou representação de uma “síntese global” da multipli-
menos controversas, como as relativas às repre- cidade cultural planetária; síntese global essa, por
sentações identitárias da cidade e do país suscita- sua vez, “localizada” num espaço de representa-
das pela exposição, e onde essa tematização se ção que se constituiu como referente identitário
amplificou muito para além dos freqüentadores privilegiado da cidade e da sociedade promotoras.
diretos. É uma dimensão com grande importância Aliás, o investimento urbanístico feito no lo-
no caso anterior, e que aqui reencontramos como cal da exposição prolongou-se bem para além do
componente central das dinâmicas de identidade acontecimento efêmero, quer na vertente de espa-
cultural em contexto de globalização. ço edificado habitacional e comercial, quer na
Pode-se registar, além disso, um conjunto de vertente de espaço público de utilização coletiva,
processos e efeitos identitários especificamente li- de cultura e lazer. Apesar das contradições do
gados às formas de expressão artísticas e culturais: processo urbanístico (Ferreira e Indovina, 1999), o
uma amplificação pública sem precedentes destas espaço da exposição, rebatizado de Parque das
obras e práticas, através, precisamente, da esfera Nações, tornou-se, de maneira duradoura, um dos
comunicacional; a colocação de Lisboa, muito referentes identitários mais salientes da Lisboa
mais do que dantes, nas rotas das programações atual, além de um elemento fundamental da ima-
culturais globalizadas; a inserção reforçada de gem renovada da cidade.
criadores e produtores artísticos em circuitos cul- Os megaeventos contemporâneos, como é o
turais de âmbito internacional; uma produção caso da Expo’98, envolvem grandes aglomerações
muito maior do que o habitual de obras de arqui- de pessoas, com uma gama vastíssima de agentes
tetura, de artes plásticas, musicais e do espectácu- profissionalizados e com uma quantidade ainda
lo, suscitada por encomendas para a exposição, e maior de públicos, em concentração densa, em
o estímulo alargado à formação de jovens artistas; períodos bem delimitados, em espaços circunscri-
as dinâmicas, igualmente suscitadas pela exposi- tos preparados para o efeito. Ora, isto ocorre no
o
24 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 48

contexto de um panorama societal globalizado e Movimentos sociais e identidades


mediatizado, no qual se poderia dizer que, com a culturais urbanas – Os “bairros
televisão e o vídeo, com os CDs e o computador, populares” de Lisboa
com a internet e os multimédia, os “acontecimen-
tos ao vivo” estariam em declínio. Um terceiro caso permite reexaminar, ainda
O que acontece, contudo, parece ser o inver- a uma outra luz, algumas das principais situações
so. As dinâmicas contemporâneas de globalização, e dinâmicas em que estão envolvidas identidades
profissionalização, mercadorização e mediatização culturais urbanas no atual contexto de globaliza-
da cultura, embora acentuem as possibilidades e ção. Há aqui um conjunto de aspectos adicionais,
as tendências de consumos culturais em regime relativamente aos casos anteriores, que merece
privado, doméstico e individualizado, parecem ser ser analisado. Mas há também uma grande zona
acompanhadas por outras, nas quais sobressai, de sobreposição, em que se reencontram aspectos
precisamente, a procura crescente de interação di- fundamentais já identificados.
reta intensificada, em espaços públicos de diferentes Em meados dos anos de 1980, surgiu num
configurações e a propósito de diversas modalida- bairro antigo de Lisboa, situado bem no núcleo
des de práticas e acontecimentos. histórico medieval da cidade, um forte movimen-
Uma das formas em que esta tendência se tra- to popular. Nesse movimento, a identidade cultu-
duz é na hipertrofia de certos eventos (megacon- ral do bairro constituía, a vários títulos, questão
certos, super-festivais, campeonatos mundiais, pe- central. Curiosamente, nesse contexto urbano an-
regrinações massificadas, desfiles gigantescos) e tigo, era o referido movimento de base popular
equipamentos (complexos olímpicos, parques de que inaugurava em Lisboa um tipo de processo
diversões industrializados, hipercentros culturais de grande atualidade: os processos de reatribui-
ou comerciais, recintos monumentais). Num con- ção de valor urbanístico, patrimonial e cultural
texto social de mediatização da cultura e dos laze- aos centros históricos; processos tendencialmente
res, mas também de estetização dos cotidianos, de protagonizados em muitas cidades, sobretudo da
opcionalidade crescente na adoção de estilos de Europa mas não apenas, principalmente por seto-
vida e de regulação reflexiva dos projetos identitá- res jovens das novas classes médias urbanas es-
rios (Crane, 1992; Featherstone, 1992; Chaney, colarizadas e profissionalmente qualificadas, e
1996; Giddens, 1997), tende a ser cada vez mais in- traduzidos em programas de reabilitação urba-
teressante a vivência de “ocasiões únicas” e de na, como se lhes veio a chamar tecnicamente.
“experiências diretas”, bem como a possibilidade Havia já alguns anos que vinha desenvol-
de testemunhar que “se esteve lá”. vendo ali, no bairro de Alfama, um trabalho de
Ao mesmo tempo, os megaeventos contem- investigação sobre as formas de cultura local, re-
porâneos adquiriram o estatuto de espetáculo me- correndo à pesquisa de terreno prolongada, en-
diático por excelência. Não apenas, porém, pelas volvendo contato direto informal com as pessoas
atividades que neles ocorrem, mas também, ou e as situações. Daí tinha já resultado, aliás, um
sobretudo, pelas multidões que se dão a ver, elas conjunto de publicações, em especial um livro,
próprias, como parte decisiva do espectáculo, em co-autoria com Maria das Dores Guerreiro
constituindo-se, do mesmo passo, como testemu- (que realizou comigo toda essa fase da pesquisa),
nhas de credibilização cognitiva e como referen- sobre o fado amador de caráter popular, que é
tes de emoções partilhadas. um elemento importantíssimo do cotidiano do
Neste segundo caso, pois, o que está em bairro e da sua configuração sociocultural (Costa
causa não são tanto os conflitos identitários, como e Guerreiro, 1984). Isso permitiu-me acompanhar
no primeiro, mas uma outra forma que as identi- desde o início todo o movimento, analisando-o à
dades culturais urbanas tendem a assumir no atual luz dos parâmetros sociais e culturais que carac-
contexto de globalização, a da identidade como terizam o bairro e a sua inserção em contextos e
objeto de ação institucional. processos mais amplos.
IDENTIDADES CULTURAIS URBANAS EM ÉPOCA DE GLOBALIZAÇÃO 25

O bairro de Alfama situa-se na colina onde O outro argumento tinha a ver com a recu-
começou Lisboa, hoje conhecida por Colina do sa, por parte dos moradores, de que tal interven-
Castelo. Mais precisamente, estende-se ao longo ção se traduzisse numa subida tal dos custos de
da encosta dessa colina até ao rio Tejo. É um lo- aluguel ou compra das habitações que redundas-
cal de povoamento muito antigo, retém o nome se, na prática, na sua expulsão para qualquer pe-
que lhe vem da época de dominação muçulma- riferia da cidade, substituídos pela entrada de no-
na, e permaneceu com um traçado urbano me- vos residentes com um perfil social majoritário de
dieval, estreito e labiríntico. É habitado por uma classes médias e altas, interessados em usufruir do
população em que os contrastes de classe social valor simbólico do local e, ao mesmo tempo, com
estão presentes, mas a maioria dos moradores afluência econômica suficiente para pagar as ca-
tem perfil social popular e o tecido relacional lo- sas recuperadas em regime de puros preços de
cal é bastante denso. mercado. Assistir-se-ia, assim, a uma versão local
Acontece que, naquela altura, por um conjun- dos chamados processos de “gentrificação”, os
to de razões que é dispensável aqui pormenorizar, quais têm vindo a ocorrer, ao longo das últimas
as casas pequenas e antigas onde mora essa popu- décadas, em diversos centros históricos urbanos
lação tinham atingido um elevado estado de degra- de várias cidades do mundo.
dação (Costa, 1999). O referido movimento, surgido Mas isso significaria, não só um atentado
depois de muitas diligências de caráter mais indivi- aos direitos culturais da atual população residen-
dual, reivindicava dos poderes públicos, municipais te ao local de identificação residencial, mas tam-
e estatais, a recuperação das casas degradadas, com bém uma destruição do potencial criativo de for-
vista a que os residentes pudessem usufruir de con- mas de cultura popular urbana lisboeta, como o
dições de habitação minimamente aceitáveis pelos fado amador, as festas da cidade, as marchas
padrões atuais de conforto urbano, vigentes em bairristas, as sociabilidades intensas, as associa-
grande parte da cidade-metrópole. Sendo pessoas ções de bairro (Costa, 1999). Práticas sociais e
de rendimentos relativamente baixos, os moradores formas simbólicas estas que são particularmente
locais dificilmente poderiam suportar sozinhos os emblemáticas da identidade cultural de Lisboa,
custos econômicos de uma tal operação. sendo produzidas, aliás, não só neste, como nou-
Além deste, o movimento social local esgri- tros dos chamados “bairros populares” da cidade
mia outros dois argumentos, nos quais estavam (Cordeiro, 1997, Cordeiro e Costa, 1999). Tal po-
implicadas diretamente questões de identidade tencial de criatividade cultural era, assim, consi-
cultural urbana, nos termos de algumas das tema- derado uma resultante da confluência entre um
tizações que estas mais caracteristicamente ten- quadro urbano de características muito específi-
dem a assumir na atualidade. cas – designadamente: malha urbana densa e la-
Um desses argumentos chamava a atenção biríntica, situação central na cidade, vizinhança
para a reabilitação urbana de um bairro como Al- do rio e da faixa portuária – e uma população de
fama, local de acumulação de um patrimônio his- perfil social popular, se bem que ela própria em
tórico único, de valor universal, espaço de suces- constante recomposição, em sintonia com as mu-
sivas vagas de construção sobrepostas ao longo danças de fundo da sociedade (Machado e Cos-
dos milênios. O intuito social de modernizar as ta, 1998; Costa et al., 2000).
condições de habitação não poderia deixar de ser Como se vê, estes argumentos remetem a dois
acompanhado pela preocupação de preservar a dos modos mais freqüentes de atribuição de iden-
marca histórica do conjunto urbano em causa, o tidade cultural a contextos sociais urbanos: o pri-
que, associado às dificuldades colocadas por um meiro, de tom histórico-patrimonial; o segundo, de
terreno íngreme e por materiais de construção an- caráter sociocultural. Acontece que, relativamente
tigos, implicava, para a intervenção nos edifícios e a Alfama, a primeira versão da identidade cultural
nos espaços públicos, recursos técnicos e finan- do bairro é construída fundamentalmente a partir
ceiros bastante elevados. do exterior, por discursos de natureza erudita e co-
o
26 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 48

mercial, em diversas modalidades: histórica, didáti- do essencialismo e da reificação, nomeadamente


ca, artística, jornalística e turística. São discursos em versões patrimonialistas, através de alguns dos
que transportam, em regra, concepções essencialis- novos protagonistas referidos.
tas e reificantes. A segunda versão é produzida so- Assim, neste último caso, para além de ou-
bretudo no interior do bairro, no decurso da vivên- tros aspectos, o que está sobretudo em causa são
cia cotidiana local. Acompanha a experiência dos as articulações complexas de diversos mecanis-
episódios de interação ali diariamente repetidos, a mos da identidade cultural como elemento estra-
inserção nas redes sociais que atravessam o bairro, tégico de constituição de um movimento social, tal
os modos de vida nele estabelecidos, as socializa- como movimentos deste tipo tendem a emergir
ções localmente experimentadas, as práticas cultu- nos atuais espaços sociais urbanos atravessados
rais produzidas e partilhadas nesse quadro especí- por dinâmicas de globalização.
fico de relacionamento social. Tudo isso redobrado
da geração continuada, entre a população local,
tanto de representações simbólicas do bairro como Identidades culturais:
entidade distinta, como de fortes sentimentos de uma tipologia analítica
pertencer a ele – isto é, de formas endógenas e vi-
vidas de identidade cultural. Para concluir, propomos a seguir uma breve
Essas duas modalidades de identidade cultu- sistematização do que foi dito até aqui, apoiada
ral, com o mesmo referente mas com protagonis- nos exemplos ilustrativos anteriores. Eles são pro-
mos e expressões diversas, coexistem no bairro, venientes de processos de pesquisa conduzidos
mas de maneiras parcialmente não coincidentes. numa perspectiva de análise próxima e minucio-
Isso conduz a diversos fenômenos, analiticamente sa, em contato direto com as pessoas e as situa-
muito interessantes, mas que não é possível aqui ções, mas, simultaneamente, atenta a vetores
desenvolver (Costa, 1999). Enfatize-se, apenas, transversais e translocais de estruturação social
que essas não coincidências podem conduzir a contemporânea. Poder-se-ia retomar, nesse senti-
efeitos práticos significativos. Por exemplo, quan- do, a expressão “etnografia global”, sem que se
do, no movimento pela reabilitação urbana, aos tenha de aderir a todas as conotações da utiliza-
ativistas das instituições representativas locais se ção que lhe tem vindo a ser dada por alguns au-
juntaram arquitetos e historiadores interessados tores (Burawoy et al., 2000).
no valor patrimonial do bairro, verificou-se que, Nas últimas décadas, o conceito de identida-
sob um aparente consenso de objetivos, se inter- de, e, mais especificamente, de identidade cultu-
pretava afinal o que estava em causa de maneira ral, tornou-se um conceito invasor, tanto das aná-
muito divergente. Os primeiros deram sempre lises produzidas em ciências sociais como, muito
prioridade à população local; os segundos tende- para além disso, da discussão pública e da ação
ram muitas vezes, em situações de difícil compa- coletiva. Nem sempre tem sido bem utilizado e,
tibilidade, a atribuí-la às edificações. com freqüência, tem-se tornado muito perigoso.
Se as duas modalidades de identidade cultu- Na base de muitos equívocos e efeitos perversos,
ral referidas já antes coexistiam implicitamente no estão concepções redutoras, essencialistas e reifi-
bairro, em regime de sobreposição desfocada, o cantes das identidades culturais. Essas concepções
movimento de reabilitação urbana trouxe consigo parecem estar inscritas em profundidade na lógi-
uma terceira modalidade identitária. A identidade ca de boa parte dos mais correntes processos so-
cultural de Alfama foi tematizada politicamente, ciocognitivos, sistemas de categorizações culturais
de forma explícita e reflexiva, como vetor decisi- e movimentos sociais (Costa, 1999).
vo de mobilização e reivindicação. Mas o poten- A pesquisa empírica e a análise teórica em
cial de reflexividade transportado por esta temati- ciências sociais têm mostrado, porém, que as
zação identitária explícita depressa se viu concor- identidades culturais são sempre socialmente
renciado por uma tendência para o ressurgimento construídas, e, por isso, múltiplas e mutáveis. São,
IDENTIDADES CULTURAIS URBANAS EM ÉPOCA DE GLOBALIZAÇÃO 27

mais precisamente, construções sociais relacionais esta assumiu o caráter de dispositivo de amplifica-
e simbólicas (Costa, 2001). Simplificando: relacio- ção e intensificação, precisamente, de experiên-
nais, porque sempre produzidas em relação social cias identitárias – citadinas, nacionais e globais.
e porque sempre relativas a outras; simbólicas, As identidades designadas, ou atribuídas,
porque envolvem sempre categorizações culturais por seu turno, reportam-se a construções discursi-
e porque significam sempre o destaque simbólico vas ou icônicas de entidades coletivas, com as
seletivo de algum ou alguns atributos sociais. As quais aqueles que as produzem não têm relação
“identidades culturais” implicam um tipo específi- subjetiva de pertença. Ou, pelo menos, não é a
co de redobramento simbólico das “propriedades esse título nem sobre essa base que tais formas de
sociais”, requerem a seleção e evidenciação ativa identidade cultural são elaboradas simbolicamen-
de alguma ou algumas delas, simbólica e relacio- te como unidades de mapeamento da paisagem
nalmente realizada. Identidade cultural é sempre, social. São ilustrativas desta modalidade de cons-
nesse sentido, reflexividade e reconhecimento. tituição de identidades culturais: as imagens fol-
À luz da observação e análise cuidadosa- clorizadas ou estigmatizadas de Barrancos feitas
mente conduzidas, as identidades culturais reve- pelas reportagens televisivas; ou a reificação his-
lam, além disso, uma permanente ambivalência tórico-patrimonialista de Alfama induzida pela ge-
de conotações valorativas, de sentido positivo ou neralidade das abordagens técnicas, artísticas, di-
negativo, um freqüente entrelaçamento de dinâ- dáticas, jornalísticas ou turísticas; ou, ainda, as im-
micas de ostentação e ocultação, um caráter sem- putações de caráter emblemático feitas em relação
pre situacional, contextualizado, interativo e estra- à Expo’98 pelos discursos político e mediático.
tégico no seu acionamento. Como muito outros, Um dos aspectos importantes a destacar nas
os casos analisados anteriormente dão bem conta dinâmicas identitárias observáveis é o dos fre-
de tudo isto, mesmo não tendo sido possível ilus- qüentes efeitos de sobreposição desfocada entre
trá-lo aqui em pormenor. essas duas formas-tipo de identidades culturais.
Em síntese, terão ficado suficientemente elu- Mas não menos importantes, hoje em dia, são os
cidadas a coexistência e a sobreposição, em regime efeitos de reinvestimento simbólico que uma ter-
de entrelaçamento complexo, de três modos princi- ceira modalidade típica de identidades culturais, a
pais de manifestação contemporânea das identida- das identidades tematizadas, exerce cada vez mais
des culturais. Na proposta de um esboço de mode- sobre as duas anteriores.
lo teórico de caráter ideal-típico, podemos chamar- As identidades tematizadas, ou políticas de
lhes “identidades experimentadas”, “identidades identidade, são estratégias deliberadas e reflexi-
designadas” e “identidades tematizadas”. vas de colocação pública de uma situação social
Tendo presente os casos analisados, tornam- qualquer sob a égide explícita da problemática
se dispensáveis extensas explicações. As identida- identitária, em geral com vistas à constituição ou
des experimentadas, ou vividas, têm a ver com as à potenciação de dinâmicas de ação social. Isso
representações cognitivas e os sentimentos de pode ser feito quer de maneira ofensiva, isto é,
pertença, reportados a coletivos de qualquer es- tomando a iniciativa, como no caso do movi-
pécie (categoriais, institucionais, grupais, territo- mento social de Alfama, ou no do projeto da
riais, ou outros), que um conjunto de pessoas par- Expo’98, quer de maneira defensiva, responden-
tilha, emergentes das suas experiências de vida e do a iniciativas de terceiros, como no caso da
situações de existência social. O cotidiano bairris- população de Barrancos.
ta da população de Alfama, a vivência festiva das Seja como for, num plano analítico de ordem
gentes de Barrancos, ou o tipo específico de sen- mais geral, as identidades tematizadas implicam
sibilidade de alguns grupos que se opõem a essas quase sempre dois mecanismos sociais, os quais
festividades, são bons exemplos. Assim como o é, assumem, com freqüência, relações recíprocas de
embora de forma talvez menos evidente, a expe- caráter contraditório. Um deles é um mecanismo
riência partilhada da Expo’98, na medida em que de potenciação da ação coletiva, por meio da
o
28 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 48

constituição de protagonismos sociais e da mobi- BIBLIOGRAFIA


lização extraordinária desses protagonismos. Esta
capacidade de mobilização é, muitas vezes, o úni- ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max.
co recurso estratégico a que os mais desmunidos (1972), Dialectic of enlightnment. Nova
conseguem deitar mão – embora nem sempre seja York, Herder and Herder (ed. orig. 1947).
esse o caso. Outro é o que se poderia chamar,
AGIER, Michel. (2001), “Distúrbios identitários em
apesar da aparente incongruência da expressão,
tempos de globalização”. Mana, 7 (2).
um mecanismo de reflexividade reificante. De
fato, o que tem acontecido nestes processos de te- APPADURAI, Arjun. (1990), “Disjuncture and diffe-
matização identitária é que os portadores de refle- rence in the global cultural economy”, in
xividade conceitual sofisticada, incluindo alguns Mike Featherstone (ed.), Global culture:
provenientes do próprio campo das ciências so- nationalism, globalization and moder-
ciais, mesmo quando contribuem para descons- nity, Londres, Sage Publications.
truir essencialismos prévios, acabam por, não ra- BECK, Ulrich. (2000), What is globalization?.
ramente, dar origem a uma legitimação erudita de Cambridge, Polity Press (ed. orig. 1997).
novas construções identitárias reificantes.
Os casos anteriormente citados ilustram sufi- BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony & LASH, Scott.
cientemente esse duplo aspecto que tendem a as- (2000), Modernização reflexiva: política,
sumir muitos dos mais relevantes processos atuais tradição e estética no mundo moderno.
de construção de identidades culturais em contex- Oeiras, Celta Editora (ed. orig. 1994).
to urbano e época de globalização. Outras análi- BRUBAKER, Rogers. (2001), “Au-delà de l’identité”.
ses recentes convergem no destaque de dinâmicas Actes de la Recherche en Sciences Sociales,
semelhantes de construção identitária e seus pro- 139.
tagonismos estratégicos (Agier, 2001).
Aparentemente, pois, pode-se talvez con- BURAWOY, Michael et al. (2000), Global ethno-
cluir que, em muitos desses processos identitá- graphy. Berkeley, University of California
rios, a eficácia da ação é conseguida à custa da Press.
lucidez de análise. Ser capaz de mobilizar para a CALHOUN, Craig (ed.) (1994), Social theory and
ação coletiva parece requerer o estímulo à cons- the politics of identity. Cambridge (Mass.),
tituição de identidades culturais redutoras e reifi- Blackwell Publishers.
cadas. Isso nunca seria satisfatório do ponto de
CAPUCHA, Luís. (2001), “A festa”, “Os animais”,
vista cognitivo, da procura exigente de esclareci-
“A lei”, “A mistificação”. Público, 29, 30 e
mento e inteligibilidade. Mas, mesmo do ponto
31 de agosto e 1 de setembro.
de vista da ação, resta ver se a eficácia é tão gran-
de como isso, ou, a sê-lo eventualmente, se não CASTELLS, Manuel. (1996, 1997, 1998), The infor-
o será apenas em primeira instância, comprome- mation age: economy, society and cultu-
tendo, pelo contrário, desenvolvimentos consis- re. Malden (Mass.), Blackwell Publishers,
tentes e sustentados. 3 vols.
Neste domínio, como é cada vez mais evi-
CHANEY, David. (1997), Lyfestiles. Londres, Open
dente, a responsabilidade das ciências sociais é
University.
particularmente grande. A questão é importante,
e atual, bem para além dos casos examinados, CORDEIRO, Graça Índias. (1997), Um lugar na ci-
pois os efeitos perversos da tematização identitá- dade: quotidiano, memória e representa-
ria essencialista não param de se manifestar por ção. Lisboa, Publicações Dom Quixote.
todo o lado. CORDEIRO, Graça Índias & COSTA, António
Firmino da. (1999), “Bairros: contexto e
intersecção”, in Gilberto Velho (org.),
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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 223

IDENTIDADES CULTURAIS URBAN CULTURAL IDENTITÉS CULTURELLES


URBANAS EM ÉPOCA DE IDENTITIES IN TIME OF URBAINES À UNE ÉPOQUE
GLOBALIZAÇÃO GLOBALIZATION DE GLOBABLISATION

António Firmino da Costa António Firmino da Costa António Firmino da Costa

Palavras-Chave Keywords: Mots-clés


Identidades culturais; Urbano; Cultural Identities; Urbanity; Identités culturelles; Urbain;
Globalização; Essencialismo; Política Globalization; Essentialism; Politics Globalisation; Essentialisme;
de identidades. of identities. Politique d’identités.

Pretende-se examinar e debater The article intends to examine and Cet article propose un examen et un
criticamente um paradoxo contem- discuss critically a contemporary débat critique à propos d’un para-
porâneo: à medida que os atuais paradox: as the current globalization doxe contemporain : dans la mesure
processos de globalização se inten- process intensify, the manifestation où les procès actuels de globalisa-
sificam, a manifestação de identi- of cultural identities instead of dis- tion s’intensifient, la manifestation
dades culturais diferenciadas em vez appearing tends to be multiplied. d’identités culturelles différenciées
de se esbater parece tender a multi- The theme is still controversial in semble se multiplier au lieu de s’at-
plicar-se. O tema permanece polêmi- the social sciences concerning the ténuer. Le sujet demeure polémique
co nas ciências sociais, quanto aos facts observed and the interpretation au sein des sciences sociales, par
fatos observáveis e quanto à inter- of meanings. The article tries to con- rapport aux faits qui peuvent être
pretação do seu significado. Procura- tribute for the analysis departing observés ainsi que par rapport à l’in-
se contribuir para esta análise recor- from investigations related to identi- terprétation de leur signification.
rendo a alguns exemplos de investi- ty processes within the current Cette analyse a bénéficié du recours
gação sobre processos identitários urban enviromnent or related à certains exemples d’investigation
em meio urbano atual ou com este themes. With the support of the dis- sur les pocessus d’identité en milieu
relacionados. Com apoio nesses cussed cases, the article presents urbain actuel ou liés à ces pocessus.
casos, apresentam-se algumas pro- some sistematic theoretical propos- En nous appuyant sur ces cas, nous
postas de sistematização teórica als concerning different modalities présentons quelques propositions
sobre modalidades de constituição e of constitution and enunciation of de systématisation théorique des
de enunciação de identidades cul- urban cultural identities in the glob- modalités de constitution et d’énon-
turais urbanas em contexto de glo- alization context and, more general- ciation d’identités culturelles
balização e, de um modo mais geral, ly, concerning the social dynamics urbaines dans un contexte de glob-
sobre as dinâmicas sociais da identi- of cultural identity. alisation et, de façon plus générale,
dade cultural. sur les dynamiques sociales de l’i-
dentité culturelle.

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