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 Jornal de Debates

Comunicação líquida
 Edição 835
 por Nara Almeida
 27 de janeiro de 2015

O polonês Zygmunt Bauman é hoje um dos mais celebrados


pensadores sociais. Seu olhar atento e seu fértil interesse em um
mundo sob constantes mudanças são representados na metáfora da
modernidade líquida, que explica as relações e a fluidez
contemporâneas causadas pela globalização. Hoje professor emérito
das universidades de Leeds (Inglaterra) e Varsóvia (Polônia), o
sociólogo enfrentou a censura em seu país na década de 1960, quando
teve proibidas suas obras e foi afastado da universidade, emigrando
para países como Canadá, Estados Unidos e Austrália, antes de
estabelecer-se na Grã-Bretanha.

Consagrado com os prêmios Amalfi e Adorno, o intelectual tem 33


obras publicadas no Brasil desde 1998, todas pela Editora Zahar – que
lança em janeiro sua mais recente obra, Para que serve a sociologia?.
Seus títulos tratam da fluidez do amor, do medo, da vigilância, do
tempo, refletindo uma sociedade que se transmuta em uma velocidade
muito superior à qual se questiona.

Uma semana após completar 89 anos, Bauman abriu as portas da casa


em que vive há quase cinquenta, carregando o icônico cachimbo frente
aos 2oC do outono de Leeds. A sala de leitura apinhada de livros,
fotografias e poltronas revela a personalidade do senhor conversador,
que evoca livros como velhos amigos e memórias como anedotas. Ao
redor de uma mesa de iguarias preparadas pessoalmente,
desencadearam-se quase duas horas de uma prosa amigável sobre
como vai o mundo, sem indicar que se tratava de uma entrevista,
agendada ao longo de dois meses. Dedicadamente atento ao que
acontece no Brasil, Bauman ponderou o contexto contemporâneo da
sociedade de consumo, da democracia, as relações de poder e
interdependência e os desafios cotidianos. Sorridente e otimista,
embora crítico, defendeu ao longo da entrevista exclusiva o
desenvolvimento de competências para a interação social, cruciais para
uma civilização que enfrenta uma “cultura agorista”, enclausurando-se
em fuga da diversidade, e fragmentando sua existência ao substituir
habilidades por mercadorias que as tornam obsoletas.

Sereno e preciso, Bauman oferece aos profissionais de comunicação


uma perspectiva crítica da atualidade e reflexões positivas sobre a
construção de um futuro menos hostil, orientadores para um mundo
de mudanças que não se anunciam, senão sobrepõem-se.

O papel do tempo

Eu não acredito em autobiografias. Porque, provavelmente, em algum


momento da sua vida você vai se sentir impelido a reescrever a sua
história e se verá tentado a preencher as lacunas em sua memória.

A memória não é um bom guia para seguir porque cada memória é


seletiva. Não há dúvidas de que não podemos lembrar de tudo, nossos
cérebros não são feitos para isso, apesar de termos agora a
computação em nuvem e, com isso, podermos guardar as nossas
memórias em outro lugar, distante, sem mantê-las em nossos cérebros.
No entanto, há uma abundância de espaços em branco que você tem
que preencher para dar sentido aos eventos, e você os preenche pela
imaginação. Assim, o que se diz pode ser verdade, mas talvez não.
Talvez houvesse uma tal relação causal entre o evento A e o evento B,
mas apenas eventualmente.

Tenho tido uma vida incrivelmente longa. Atravessei uma enorme


quantidade de mudanças, o que se poderia chamar de “a conversa
mais antiga da cidade”. Ou, em uma linguagem mais politicamente
correta, poderíamos chamar de uma “mudança de modas” – a moda,
quando eu era jovem, mudava a cada dez anos, agora muda a cada
dez dias; apenas isso já é uma diferença. Além disso, diferentes
regimes, diferentes programas políticos, todos os tipos de coisas. Por
isso, estou dolorosamente consciente, em primeiro lugar, do papel do
tempo na vida individual. Não só na história, mas na vida individual, na
biografia. Mas, também, do transitório e temporário caráter da
realidade.

Václav Havel, um homem tcheco muito corajoso, passou anos e anos


de sua vida em prisões políticas, e a outra parte em palácios
presidenciais. Conheceu, portanto, a política por dentro e por fora. Para
resumir sua experiência, ele disse que, a fim de influenciar o futuro,
você precisa saber quais músicas a nação está disposta a cantar. Mas,
imediatamente em seguida, ele acrescentou que a grande questão é
que não há maneira de prever que tipo de músicas a nação estará
disposta a cantar no próximo ano.

Eu acho que faz sentido, que é de fato o que está acontecendo. Nós
estamos vivendo uma vida fragmentada; um dos meus livros se chama
Vida em fragmentos. Fragmentos são período de tempo com um
começo e um fim, de modo que um fragmento pode ser separado do
outro. O que é uma ilusão, claro, porque não funciona assim. Mas
tornou-se nossa política de vida: terminar algo e começar uma coisa
diferente.

Interdependência global

Dentro de suas próprias fronteiras, cada país deveria ser capaz de arcar
com as suas contas, de ser autossuficiente. Militar, econômica e
culturalmente, eram requisitos muito elevados. É preciso ser grande,
rico em recursos, ser capaz de fortalecer a estrutura e a economia
nacional, assegurar a sobrevivência social, biológica e legal, e afirmar a
independência cultural. O que significa fornecer todos os parâmetros
de vida, todos os valores necessários para o funcionamento de uma
sociedade. Sem esses elementos, qualquer país, mesmo um país
grande como o Brasil ou os Estados Unidos da América, não poderia
reivindicar a autossuficiência real.

A questão da cultura nacional hoje é muito mais a questão sobre como


estamos conectados com todo o resto do planeta. Você pode chegar à
Nova Zelândia ou a Leeds com a mesma facilidade com que pode
alcançar seu vizinho de porta, em São Paulo. Demora menos tempo
ainda porque, antes, tínhamos que ir a algum lugar para encontrar
nosso vizinho. Mas agora não temos que ir a qualquer lugar. Em um
segundo, ao toque de uma tecla, encontra-se alguém. Enviar um tweet,
receber um tweet, responder a um tweet, tudo leva apenas alguns
segundos. De fato, pertencemos todos à circulação de grupos culturais
ao redor do mundo. O mesmo se aplica, por exemplo, às questões
militares. Mesmo os Estados Unidos da América chegaram à conclusão
de que eles não podem se defender sozinhos, eles precisam de
alianças, precisam de aliados. E, finalmente, a economia. Sem a
importação e a exportação de produtos, você será muito pobre. Além
da Coreia do Norte e Cuba – em parte, não pela sua própria escolha –
não há outros países que ainda sonham ser autossuficientes dentro
dos seus próprios limites econômicos.

Com isso, os testes nos quais um grupo de pessoas deve passar com
sucesso para ser reconhecido como uma entidade política
independente foram reduzidos. Você não precisa ser realmente
poderoso, rico e muito criativo culturalmente para merecer ser
reconhecido como um país independente. Pessoas da Lombardia,
catalães, escoceses ou mesmo brasileiros reivindicam a independência
de Brasília, de Roma, de Londres, de Madri, perguntando- -se por que
eles deveriam ter este mediador, este intermediário. Tendências
separatistas são um fenômeno geral hoje em dia e são um produto da
globalização. Estamos todos sujeitos a este mesmo processo. A nossa
interdependência já é global e, portanto, as subdivisões são
negociáveis. Não é um veredicto da natureza, ou da história, é apenas
um acordo. E todo acordo é, por definição, renegociável.

Democracia no Brasil

Bem, se você quer saber a minha avaliação pessoal, o meu ponto de


vista, eu sou cheio de admiração pelo tanto que tem sido feito nos
últimos anos no Brasil. Um exemplo: a guerra declarada contra a
pobreza. O salto para uma maior igualdade, permitindo que mais
pessoas assumissem verdadeiramente um papel genuíno na vida
política do País. Isso é um exemplo para todo o mundo e eu acho que
o Brasil foi muito bem-sucedido na implementação deste plano. O País
tirou milhões de pessoas da pobreza real e elas se sentem confiantes
agora. Elas estão vigorosas, corajosas e se sentem capazes o suficiente
para realmente serem uma força política em seu país. Eu sinto que os
programas de melhoria social e para trazer mais igualdade realmente
funcionaram.

Assim, é de se esperar o mesmo impulso pós-prosperidade, pós-social,


a mesma reação da sociedade que aconteceu aqui na Europa. Ou, por
exemplo, depois do Presidente [Lyndon Baines] Johnson, na América,
que declarou guerra contra a pobreza após o New Deal de Franklin
Delano Roosevelt. Aquelas pessoas que, de outro modo, ainda
estariam na parte inferior da sociedade – desabilitados, efetivamente
fora de ação, privados de educação, tolhidos de competências e
incapazes de subir na hierarquia social –, essas pessoas tornaram-se
médicos, advogados, professores universitários. E a reação normal é
que os indivíduos que ascenderam porque foram ajudados por
decretos, por leis, pelos subsídios especiais não querem ser lembradas
do fato de que foi por causa da assistência que chegaram aonde
chegaram. Eles querem ver a si mesmos como self-made, repetindo
“foi o meu trabalho árduo que criou isso”.

Essas pessoas ficam tentadas por uma espécie de ideologia, algo como
“se eu pude chegar aqui, por que os do norte não o fazem com seu
trabalho duro? Eles são preguiçosos demais”. Há cerca de vinte anos,
nos Estados Unidos, havia algo chamado ação afirmativa. As
universidades foram instruídas a dar pontos extras para as pessoas que
vinham de áreas carentes, partes até então desfavorecidas da
sociedade. Essas pessoas deveriam ser admitidas mesmo que não
passassem nos exames. Graças a isso, os Estados Unidos têm centenas
de milhares de políticos de pele negra, advogados, membros do
governo, senadores e assim por diante. Eles não conseguiriam isso se
não fosse pela ação afirmativa. Mas esses indivíduos que foram os
primeiros a se beneficiar dela foram também os primeiros a exigir que
a mesma fosse abolida.

Eles já subiram a escada e agora querem chutá-la para longe, deixando


que as outras pessoas usem suas próprias pernas, em vez de ter uma
escada. Infelizmente, com certa regularidade, isso é o que acontece. E
essa é uma das razões – não a única – pelas quais esses tipos de
programas sociais que ajudam as pessoas a saírem de sua miséria não
são populares hoje em dia. Mesmo as pessoas que deviam estar
interessadas, a partir de suas próprias experiências, em manter vivas
essas políticas são, ao contrário, suas detratoras, não acreditam que
seja a coisa certa a fazer. Eu acho que a democracia no Brasil passou
por um teste muito difícil, não somente na questão de eleger o seu
presidente de tempos em tempos. Democracia é sobre habilitar os
cidadãos a exercerem a cidadania de fato, não apenas pela lei. Somos
todos cidadãos por decreto, porque temos documentos, mas isso não
significa que todos sejamos capazes de nos envolver nas atividades em
que os cidadãos devem ser envolvidos. É sobre habilitar as pessoas a
participarem da condução dos assuntos do Estado. Assim, democracia
é sobre cuidar não só da opinião da maioria, mas também ajudar as
minorias a terem suas vozes ouvidas. Ter algo a dizer, em primeiro
lugar, e tornar-se interessante de ser envolvido, ser engajado. Se
avaliarmos não pelo número de eleições, mas pelo efeito sobre
quantos reais cidadãos verdadeiramente existem agora no Brasil – em
comparação com, digamos, 1970 –, se usarmos essa métrica, veremos
que é uma das melhores democracias do mundo.

Desafios democráticos
Eu acho que o Brasil é um país grande o suficiente a ponto de sentir o
divórcio entre o poder e o Estado menos intensamente que os países
menores. Os governos destes ficam realmente em apuros porque,
mesmo que sejam bem intencionados, incorruptíveis e realmente
queiram servir seu país, enfrentam dificuldades. Se eles seguirem a
vontade de seus eleitores, ignorando a vontade da Bolsa de Valores e
dos investidores estrangeiros, estarão em apuros. Esses governos não
ajudarão a sua nação, o capital vai fugir e o único efeito que se
conseguirá será o aumento do desemprego e a redução dos padrões
de vida.

Os governos, em todos os lugares, têm um duplo vínculo, como eles


chamam. De um lado, eles são eleitos democraticamente e têm que
escutar atentamente o que seu país quer e precisa ou, pelo menos,
tentar atender suas demandas. Por outro lado, há forças que são
realmente decisivas para o padrão de vida e para a perspectiva de seus
filhos, netos e dos bisnetos que ainda nem nasceram. Eles já estão
decidindo sobre suas perspectivas. Tais forças são completamente
incontroláveis por parte dos governos nacionais. No mundo
contemporâneo, há uma livre circulação de capitais de investimento,
de capital financeiro, do tráfico de armas, de drogas, ignorando as
fronteiras nacionais. Todas as tentativas de controlar essa circulação, se
alguma vez foram adotadas, falharam e ainda estão falhando. Portanto,
é uma faca de dois gumes: duas forças independentes, com propósitos
contraditórios e o governo está no meio.

O Brasil, como eu disse, pertence junto com a Índia, a China e a África


do Sul, ao grupo de países que são ricos o bastante em recursos e
suficientemente grandes e populosos para resistirem um pouco mais a
essa pressão. Até certo ponto; não totalmente. Nem mesmo a China é
completamente independente das pressões globais e tem que levá-las
em conta – e tem quase 2 bilhões de pessoas lá. O Brasil está em uma
posição um pouco melhor. A única coisa que o governo pode fazer é
manobrar para encontrar o caminho menos perigoso entre os riscos.
Mas o risco está lá, o tempo todo.

Classe média

Há dois fenômenos diferentes: a classe média, de um lado, e os


consumidores, de outro. Quando falamos classe média, ainda estamos,
por inércia, lembrando da classe média clássica que se estabeleceu
após a Revolução Francesa, por ter adquirido uma grande quantidade
de energia, autoconfiança e coragem. Eles realmente se sentiam em
casa no país, na política e assim por diante. Não eram,
necessariamente, os consumidores. Max Weber escreveu um livro
sobre ética protestante e o capitalismo moderno, no qual conta que a
classe média realmente fez o que fez e se tornou uma parte
tremendamente rica e poderosa da sociedade porque seus membros
consideravam o consumo como um mal necessário: você tem que
comer para ter energia para trabalhar, aprender e viver. Mas o
desperdício é um pecado. Isso era simples. A ética protestante
considerava um pecado mortal qualquer ostentação, qualquer gasto
em coisas que não são essenciais para a sobrevivência. Você só precisa
do tanto necessário para ser capaz de trabalhar mais. Do contrário,
está pagando tributo ao diabo e não seguindo o mandamento divino.
Isso foi o que fez da classe média uma força tão poderosa na
sociedade.

A característica que define essa classe média é a autoconfiança. Eram


pessoas que realmente acreditavam em sua própria capacidade de agir
e a colocavam à prova diariamente. O que emerge agora, infelizmente,
nas condições da crônica e incurável incerteza do mundo, é o
sentimento geral de insegurança, a falta de bases sólidas sob os pés e,
também, o sentimento de um tipo de impotência. Mesmo que eu não
seja ignorante sobre o que o dia seguinte trará, mesmo assim, eu não
seria capaz de evitar que um desastre aconteça. Há uma atmosfera
geral na qual estamos sendo constantemente tomados por surpresas
desagradáveis, que nos pegam despreparados. E nos sentimos muito
desconfortáveis por simplesmente não estarmos à altura da tarefa.
Agora, sob essas condições, as antigas classes médias estão caindo aos
pedaços, elas estão perdendo seu caráter na Europa e nos Estados
Unidos, por exemplo. E, mesmo durante a recuperação pós-crise no
País, a renda da classe média americana continua a cair. Os benefícios
da recuperação são tomados por 1% das pessoas mais ricas dos
Estados Unidos. Todo o resto da classe média, ou quase todo ele, não
vive sob autoconfiança, mas, pelo contrário, sob o medo de perderem
seus empregos, suas posições, suas casas.

Guy Standing, um sociólogo político muito sábio, deu um novo nome


para a classe média: “precariado”. Em francês, há o termo precaritèe,
que significa incerteza, vulnerabilidade, não saber o que está
acontecendo, pender entre a ascensão e queda o tempo todo.
Precariado é uma mudança a partir da palavra proletariado. O que
resta do antigo operário e crescente parte do que resta da classe
média tradicional vive a incerteza do futuro e a sensação de que eles
podem fazer muito pouco. A ideia de um engraxate se tornar, pelo
trabalho duro e luta, um milionário é o conto de fadas, não funciona
mais, são milagres. Há muitos e muitos anos, todos nós acreditávamos
na chamada meritocracia. O que significa que nem todas as pessoas
são iguais – isso é impossível, é inalcançável –, mas quem quer que
esteja indevidamente abaixo na hierarquia social pode, estudando
muito e trabalhando penosamente, tirar a si mesmo da miséria e
prosperar, conseguir uma promoção e assim por diante. Não é mais o
caso. Na Espanha, por exemplo, 50% dos graduados nas universidades
estão desempregados, ainda à procura de emprego e não o
encontram. Talvez seja um caso extremo, mas em toda a Europa temos
o mesmo fenômeno, as pessoas que acreditaram nessa história de
meritocracia realmente se esforçaram, foram para as universidades,
trabalharam duramente, por vezes utilizando o crédito acima das suas
possibilidades. E essas pessoas estão endividadas porque precisaram
pagar por essa educação e têm que quitar esses empréstimos. Todos
esses indivíduos estão frustrados porque pouquíssimos dentre eles
começam em trabalhos que estejam de acordo com as suas
competências. Eles adquiriram habilidades, trabalharam muito para
isso, mas agora não há demanda para eles. Esses jovens estão
desempregados ou, então, são forçados a aceitar alguns trabalhos
péssimos, que não têm segurança, sem perspectivas de carreira e,
acima de tudo, sem qualquer relação com as habilidades que eles se
esforçaram tanto para adquirir.

Nessas condições, é muito difícil falar sobre a classe média. Uma de


suas características era que essa classe média economizava dinheiro,
eles estavam satisfeitos em dedicar a vida a garantir uma boa educação
para seus filhos. Mesmo que eles não tivessem frequentado a escola,
seus filhos disporiam de boa educação, que abriria um caminho, um
bom e agradável caminho para uma vida prazerosa e gratificante. Não
é mais o caso. Mesmo indo além das suas possibilidades para ofertar
aos filhos uma boa educação, não há nenhuma garantia que lhes
assegure o sucesso na vida. E é por isso que o termo precariado é
muito mais aconselhável para ser usado, em vez de falar de classes
médias. Estamos puxando as pessoas para fora de sua miséria no Brasil
e colocando-as na classe média. Mas não é a classe média que elas
sonhavam, é uma espécie de classe média que já é precária. Um dos
efeitos dessa situação precária é que a classe média torna-se, antes de
tudo, consumidora. Seus integrantes não veem muitas perspectivas
para si próprios como criadores ativos, porque dependem do nível do
mercado, que é algo muito oscilante, como sabemos. Dessa forma, eles
estão vivendo no momento, o que é um aspecto muito importante e
que define os consumidores. Consumidores em primeiro lugar,
produtores em segundo e cidadãos em terceiro. Acima de tudo,
consumidores.

Cultura agorista

Bem, é um tipo de vida em que se compensa a falta de segurança, ou a


falta de perspectivas, pela tentativa de desfrutar o máximo do
presente, vivendo para o presente. Sociólogos dão nomes diferentes
para esse fenômeno, alguns falam sobre a “tirania do momento”,
outros falam sobre uma “cultura agorista”. Quando o agora é imediato
e “não venha me falar de longo prazo, eu não quero saber o que o
‘longo prazo’ vai trazer”, o agora é que é importante. Antes, era preciso
trabalhar muito para adquirir aquilo que se queria. Era preciso
economizar por muitos e muitos anos para se obter algo, sacrificando
seu tempo de lazer ou tempo livre para estudar e trabalhar, até
conseguir. Agora as pessoas não gostam disso, qualquer que seja o
prazer ou experiência possível, nós queremos agora.

Há, inclusive, agências de viagens que anunciam “experiências


imortais”, basta pagar pelas férias. É muito interessante. Viagens para
ambientes exóticos que serão uma experiência imortal. Com isso,
mesmo a imortalidade se torna algo para uso imediato. Torna-se algo
como o café instantâneo, sabe? Você apenas derrama o pó na água e,
imediatamente, pode desfrutar de um café fresco, previamente
preparado. Estamos vivendo em uma sociedade de consumidores – o
que é verdadeiro – e todos participam dessa sociedade. E o que é mais
notável, na minha opinião, o impacto mais criminoso da cultura
consumista é que cada loja, independentemente do que está em suas
prateleiras, do que anuncia e dos objetos que vende, todas essas lojas
são farmácias. Elas vendem medicamentos para problemas da vida. E
todos os tipos de problemas da vida, todos os caminhos para a
felicidade, todos eles passam pelas lojas. O que, naturalmente, leva à
desqualificação social dos indivíduos contemporâneos. As pessoas
costumavam ter habilidades para lutarem contra os problemas da vida
real por conta própria. Bem ou malsucedidas no risco de combater
seus problemas, havia um risco e as pessoas desenvolviam as
habilidades para enfrentá-lo. Agora, essas habilidades foram
substituídas por compras.

Se, em algum momento, você tiver filhos, como uma mãe amorosa,
buscará dar o seu amor a seus filhos. De que as crianças precisam? Elas
precisam de amor. Mas o amor para as crianças significa a mamãe ou o
papai passando muito tempo com elas, ouvindo atentamente o que
está acontecendo na escola, que tipo de lição de casa foi passada para
hoje, se há um valentão tornando suas vidas desagradáveis. Significa
partilhar a vida e receber aconselhamento, sentir que alguém se
importa.

Certo, mas assim como na sociedade, nas escolas há símbolos. As


crianças olham umas para as outras e são ridicularizadas por seus
colegas se usam o tênis do ano passado, em vez da última edição, por
exemplo. Então, temos de supri-las para torná-las felizes: eles precisam
do iPhone 6 em vez do iPhone 5 e assim por diante. Por isso, é uma
relação muito dispendiosa. Você ama seus filhos, então quer dar-lhes
todas essas coisas porque ele ou ela tem medo de voltar à escola e
ouvir toda essa crítica. Mas, a fim de fazer isso você tem que trabalhar
duro, certo?

E a divisão entre tempo de trabalho e tempo pessoal foi abolida. A


divisão entre o tempo no escritório e o tempo em casa também. A
qualquer momento seu chefe pode te ligar e você não tem desculpa de
que estava fora e, portanto, o telefone estava fora de alcance. É preciso
levar o telefone com você aonde quer que você vá – ao banheiro ou a
um passeio em um bosque. E não é permitido descartá-lo, se você se
esqueceu de pegá-lo, é uma tragedia. Em alguns casos, você pode
trabalhar não sete ou oito horas, mas 24 horas. E, então, você promete
a seus filhos que irá levá-los ao zoológico no domingo. Mas no sábado
você tem que dizer-lhes que o seu chefe quer aquele relatório em sua
mesa na segunda-feira de manhã. Agora as crianças estão frustadas.
“Mãmãe não me ama, papai não me ama, eu estou sozinho e
abandonado”.

Portanto, é um mecanismo de autopropulsão, a fim de satisfazer e


fazer felizes as pessoas que você ama, sob as condições de uma
sociedade de consumo. Você tem que satisfazer a sua própria
liberdade pessoal, dedicar-se a trazer mais dinheiro para sua família.
Isso se você tiver sorte o suficiente de ter um bom emprego, que
pague bem; muitas pessoas não têm, e elas têm dificuldades maiores.
Portanto, você precisa fazer isso. Só que, aí, você passa a ter uma
consciência culpada porque não demonstra o seu amor, você não
compartilha a sua vida; você sabe que deveria fazer isso, mas não pode
fazê-lo. E, então, você tem que comprar presentes ainda maiores e
mais caros para os seus filhos, a fim de compensar e de acalmar sua
consciência. Por isso é um círculo vicioso. O maior sucesso do
mercado, por assim dizer, consiste precisamente em suas farmácias
estarem fornecendo remédios, oferecendo promessas para problemas
reais que a sociedade contemporânea cria.

Vidas fragmentadas

Pode-se ser humano de formas diferentes. Bem, em Londres, fala-se


cerca de 90 idiomas, você pode imaginar? Eu presumo que em São
Paulo exista a mesma quantidade. Tenho ouvido e lido sobre São
Paulo, que as pessoas que podem pagar tentam proteger-se contra a
cacofonia, contra o tumulto da rua, isolando-se em condomínios
fechados, cercadas apenas por pessoas como elas, onde estranhos não
são permitidos. Entretanto, quando elas saem, são novamente imersas
nesta realidade multicultural. Então, se torna dolorosamente consciente
que existem diferentes maneiras de ser humano. Diferentes
territorialmente, diferentes do ponto de vista da cultura e tradição e,
também, diferentes em termos de tempo, pois muda-se o tempo todo
o tipo de conjunto de valores que são considerados essencialmente
humanos.

Uma diferença da época em que eu tinha a sua idade para hoje, por
exemplo, é que o acesso à Internet faz parte do que é ser humano
agora. Se você não pode acessá-la, se você é privado disso, isso é uma
injustiça social. Isso não existia no meu tempo. Se você queria falar
com uma pessoa, precisava sair e encontrar os amigos, ir à casa do seu
vizinho ou convidá-lo à sua. Agora, é outra história.
De um modo geral, há sim algo que temos de possuir. Cada um de nós
precisa possuir habilidades sociais a fi m de viver em sociedade.
Aristóteles disse que fora das cidades, só os anjos e os animais podem
viver. Mas nós não somos anjos e nós não queremos ser animais, por
isso estamos condenados a sermos humanos, e o ser humano não
pode viver fora das cidades. A Sócrates foi dada uma escolha entre
ingerir veneno ou ser exilado de Atenas. Ele escolheu o veneno, porque
não poderia existir fora de Atenas. Temos mudado consideravelmente
em nossa essência, mas ainda precisamos de algo para funcionar no
mundo off -line. Ir para a rua, para o local de trabalho, atender aos
colegas de trabalho, levar os fi lhos à escola, ir a locais onde
encontraremos estranhos com os quais teremos que passar algum
tempo juntos, trocando pontos de vista e cooperando, colaborando.
Tudo isso requer habilidades sociais. E o que a sociedade consumista
está oferecendo é abrigo dessas habilidades, tornando-as redundantes.

As habilidades não são mais necessárias. Não é mais preciso estudar,


experimentar, expandir-se; basta comprar o produto certo. Para cada
problema, há algo esperando para fazer o trabalho por você, sem a sua
participação. Sua única função é alcançar um cartão de crédito ou
cheque.

Esse é um processo relativamente recente. Quais são suas


consequências a longo prazo? Nós ainda não estamos preparados para
avaliar, não sabemos. Uma quantidade crescente da população não
conhece por experiência pessoal um mundo sem televisão, telefone
celular, internet ou computador. Eles não podem imaginar que poderia
haver uma forma diferente de ser humano. É a única maneira que eles
conhecem.
Por enquanto, o mercado tem tido bastante sucesso na luta pelo
monopólio de lidar com essa questão. Portanto, repito, o que está
realmente em perigo é a nossa capacidade de interagir socialmente. Só
para dar um exemplo, ao trancar-se em um condomínio fechado, talvez
se tenha a ilusão de estar seguro em casa, certo? Mas o que estamos
perdendo é a capacidade de interagir com pessoas reais do lado de
fora, com estranhos. É a verdadeira e difícil arte que temos que
aprender. Conversar com pessoas parecidas conosco é fácil, elas estão
preparadas para aplaudir o que dizemos, são agradáveis e, antes de a
conversa começar, elas já nos entendem. Mas discutir assuntos com
pessoas que possuem diferentes pontos de vista, dos quais não
gostamos, negociar algum tipo de acordo e de compromisso, um
modus vivendi com essas outras pessoas, isso é uma habilidade. Mas,
simplesmente porque temos substitutos para essas habilidades, elas
estão se enfraquecendo e desaparecendo. Isso tem um impacto grande
e de longo alcance no modo pelo qual vivemos juntos em sociedade,
mas ainda é muito cedo para avaliar.

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Nara Almeida é editora da revista Comunicação Empresarial

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