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1905: ENSAIO GERAL DA REVOLUÇÃO DE OUTUBRO DE 1917

José Eudes Baima Bezerra1

1. A PRIMEIRA REVOLUÇÃO RUSSA – BREVES CONSIDERAÇÕES


1.1 O DOMINGO SANGRENTO
Em 9 de janeiro de 1905, em São Petersburgo, na Rússia, uma miserável
procissão em andrajos marchou rumo ao Palácio do Czar Nicolau II, sob a direção de
uma figura messiânica notória, o Padre Gapone (depois identificado como membro do
aparato policial do Estado russo), foi alvo da artilharia da guarda imperial, configurando
um genocídio.
A manifestação pacífica visava a entregar ao Imperador uma carta de
reivindicações, entre elas a convocação de uma Assembleia Constituinte eleita por
sufrágio universal, a reforma agrária, a tolerância religiosa, o fim da censura e a
participação de representantes do povo no governo. Em larga escala espontânea, a
manifestações não era uma obra do acaso, mas expressava uma situação de profunda
opressão e marginalização das massas trabalhadoras que vinha, nos meses anteriores,
provocando uma maré montante de greves operárias e revoltas camponesas. Em seu
Relatório Sobre a Revolução de 1905, lido no exílio, em 22 de janeiro de 1917, V. I.
Lênin resgata os termos da petição dos manifestantes:
Nós, operários, habitantes de Petersburgo, dirigimo-nos a Ti. Somos
escravos miseráveis, humilhados; somos subjugados pelo despotismo
e o arbítrio. Com a paciência esgotada, cessámos o trabalho e pedimos
aos nossos patrões que nos dessem pelo menos aquilo sem o qual a
vida não passa de uma tortura. Mas isso foi-nos recusado; dizem os
industriais que não está conforme com a lei. Somos milhares e, tal
como todo o povo russo, estamos privados de todos os direitos
humanos. Os Teus funcionários reduziram-nos à escravatura (...)
Senhor! Não recuses ajudar o Teu povo! Derruba a muralha que Te
separa do Teu povo! Ordena que seja dada satisfação aos nossos
pedidos, ordena-o publicamente e tornarás a Rússia feliz; se não,
estamos prontos a morrer aqui mesmo. Só temos dois caminhos: a
liberdade e a felicidade ou o túmulo.

1
Professor do Curso de Pedagogia da FAFIDAM/UECE e do Mestrado em Educação e Ensino da
FAFIDAM-FECLESC-UECE.
O massacre perpetrado pela guarda imperial provoca uma reação incontrolável,
com uma sucessão de greves parciais e levantes regionais que culmina com a uma greve
geral que paralisa os centros nervosos da economia e da política russas. Tudo isso no
quadro de uma nação esgotada pela aventura imperialista do Czarismo numa guerra
impopular contra o Japão desde 1904.
Lênin é categórico em caracterizar o massacre e os episódios de reação
tipicamente operária que se seguiram como “o começo da revolução russa”.

1.2 A GREVE DE MASSAS


De fato, a partir da greve geral que cobriu os meses de janeiro e fevereiro de
1905, a atividade das massas foi incessante. Apenas nestes meses, o número de
grevistas decuplicou em relação ao total de grevistas nos dez anos anteriores, passando
de 43 mil entre 1995 e 1905, para 440 mil apenas nos primeiros meses deste último ano.
Sendo que o número de grevistas ao longo de todo o ano revolucionário alcançou quase
3 milhões, segundo Lênin, o dobro do número do total de operários indústrias na Rússia
de então.
A eclosão da Revolução de 1905 traz então no seu bojo este fenômeno das
formas de luta tipicamente operárias, atestando, por outro lado, que o lugar decisivo da
classe operária no processo decorria muito mais de sua posição no coração da
integração da Rússia no mercado mundial capitalista (a importação de capitais
canalizada para o empreendimento industrial privado) do que de seu peso numérico
relativo, menos de dois milhões de trabalhadores industriais num país de 130 milhões de
habitantes. Ademais, a expressão da insurreição popular na sua forma central, mas não
obviamente exclusiva, da greve política de massas, situava o jovem proletariado russo
nas tradições e na dinâmica do proletariado mundial, ligado a ele por vários laços,
inclusive nas contradições que opunham as massas operárias ao Estado-Maior do
capitalismo mundial.
O outro aspecto central da greve de massas na Revolução de 1905 é a afirmação
deste instrumento como distinto dos conflitos grevistas parciais, ainda que estivesse
fundada nestas manifestações mais limitadas de luta. A greve surge, sem deixar de ser
forma elementar de luta econômica, como greve política, confrontando diretamente o
Estado, como expressão da organização operária na arena da luta pelo poder.
Simultaneamente, é pela via da luta direta que o proletariado das grandes cidades
do império Russo, não apenas de São Petersburgo, mas também de Riga e Varsóvia,
penetram no mundo moderno e na era das aspirações democráticas. Ainda no Relatório
de 1907, de Lênin, que vimos citando, se pode ler, com itálicos nossos:
O entrelaçamento das greves económicas com as greves
políticas desempenhou um papel extremamente original durante
a revolução. Não há dúvidas de que apenas a mais estreita
ligação entre estas duas formas de greve poderia garantir uma
grande força ao movimento. A massa dos explorados nunca
poderia ter sido arrastada para o movimento revolucionário se
não tivesse sob os olhos exemplos diários a mostrar-lhe como os
operários assalariados de diversos ramos da indústria obrigavam
os capitalistas a melhorar, imediatamente, na hora, a sua
situação. Graças a esta luta, um espírito novo soprou por toda a
massa do povo russo. Foi só então que a Rússia da servidão,
tolhida no seu torpor, a Rússia patriarcal, pia e submissa,
despiu a pele do homem velho, foi só então que o povo russo
recebeu uma educação verdadeiramente democrática,
verdadeiramente revolucionária.

O lugar ocupado pela greve de massas no processo revolucionário volta a


aparecer na apreciação de Lênin em mais uma passagem do Relatório de janeiro de
1917 e que mencionamos acima: “(...) a revolução russa é a primeira (...) onde a greve
política de massas desempenhou um papel extremamente importante (...) as peripécias
de revolução russa e a sucessão das suas formas políticas só se compreendem se se
estudar a sua base, segundo a estatística das greves”.
Mercê destas circunstâncias, o frágil movimento socialdemocrata russo,
dilacerado nos anos precedentes por graves crises, deu um salto de seus parcos círculos
de algumas centenas de militantes para uma organização de superfície nacional,
recrutando em poucos meses milhares de novos militantes, advindos diretamente dos
enfrentamentos revolucionários que se abriram a partir do 9 de janeiro de 1905.
Não por acaso, é da observação da Revolução Russa de 1905 que Rosa
Luxemburgo concluirá que a greve geral, greve política não é a causa, mas é, ao
contrário, produto da revolução.

1.2 O SURGIMENTO DO SOVIETE


Contudo, é provável que nada tenha sido mais original e decisivo para o futuro
da Rússia e para o futuro do movimento operário revolucionário mundial do que o
surgimento desta verdadeira protoforma do poder operário e camponês que foi o
Soviete de São Petersburgo e, a seguir, de uma rede de organizações semelhantes que
cobriram o território do Império.
Como dito, as lutas e mobilizações não deixaram de suceder-se a partir da greve
geral de janeiro. Em 14 de julho, eclode a insurreição no Encouraçado Potemkin, uma
espécie de orgulho da Frota Imperial, a partir, de um lado, do impulso das lutas
operárias que ecoavam e, de outro, das condições desumanas em que se mantinham os
marinheiros. A revolta dos marinheiros do Potemkin, um aspecto da revolução no
meio militar, confrontava abertamente o Estado e deixava claro que a luta em curso
era a luta pelo poder, vale dizer, pela derrocada da autocracia dos Romanov.
Entre outubro e dezembro de 1905, a atividade revolucionária das massas chega
ao ponto de fervura. Já desde o início das mobilizações de caráter insurrecional, o
movimento levara o aparelho de Estado à paralisia. No interior da própria ordem
czarista, na altura da greve geral de outubro, por exemplo, os elementos liberais,
inclusive o Partido Cadete, parecem preponderar, uma expressão refratada da crise de
dominação, que Trotsky (S/D, p. 260) caracterizará como um tipo de “abdicação” do
absolutismo, mas observando que “organização material do Estado – a hierarquia do
serviço civil, a polícia, os tribunais, o exército – continuava sendo propriedade
indivisível da monarquia”.
Produzia-se, assim, um tipo de vazio de poder relativo, que, em sua covardia, a
ala liberal da democracia revolucionária não podia ocupar. Ao contrário, como o
Manifesto de 17 de outubro, em que o Czar prometia a eleição de uma Duma de
Estado (parlamento outorgado que regularmente apareceu no quadro da autocracia
russa, em períodos de crise) num futuro próximo, depois de tentativa semelhante, em
agosto, que se revelara um blefe de Nicolau II, os liberais depuseram as armas. Nos
estertores da revolução, em fevereiro de 1906, o mesmo Partido Cadete toma seu lugar
na Primeira Duma (a “Duma da raiva pública") até a sua dissolução e prisão de muitos
de seus membros, inclusive dos liberais. Esta Duma (boicotada pelo POSDR) era
simbolicamente a marca do sufocamento da Revolução.
Foi assim que, ao longo de 50 dias, entre 13 de outubro e 3 de dezembro de
1905, se instalou o que chamamos mais acima de protoforma do poder operário, o
Soviete de São Petersburgo, órgão aparentado da Comuna de 1871, mas produto
profundamente original do movimento das massas russas num quadro de crise
revolucionária, de paralisia relativa do Estado, confusão nas cúpulas e de um
igualmente relativo vazio de poder.
Pela primeira vez no curso que chegaria ao outubro de 1917, se configurava uma
situação de duplo poder no país. Muitas vezes, mesmo no curso dos acontecimentos de
1905, se produziram organismos que se encarregaram da organização das greves, da
mobilização, das redes de contato entre os trabalhadores. O Soviete, contudo, surgido
espontaneamente do movimento das massas, ultrapassava estas funções, embora as
incorporasse. Primeiro porque se constituiu num forte concentrado de todos estes
movimentos e organizações menores, centralizando-as e lhes dando direção. Segundo
porque passou ajudar o conjunto das mobilizações, dando a elas um sentido preciso em
termos de demandas democráticas dirigidas ao estado. Terceira porque assumiu, no
cenário de duplo poder, o papel de “governo dos trabalhadores”, dotado de poder
justamente porque apoiado nas organizações que impunham pela força popular as
medidas revolucionárias. É assim que a greve geral de outubro, o auge da ofensiva do
Soviete contra o Estado czarista, assegurou, por meio do soviete, um conjunto de
normas democráticas, como a liberdade de imprensa que, embora tenha sido suprimida
posteriormente, colocou para sempre as demandas da democracia política no programa
do processo revolucionário que culminou em 1917. Pela primeira vez, caíra,
literalmente na ponta do fuzil, a proibição à imprensa revolucionária, por exemplo. Em
quarto lugar, o Soviete de Deputados Operários e Camponeses consagrou o modelo de
parlamento revolucionário: um poder unicameral, de mandatos revogáveis a qualquer
tempo pelos eleitores, com funções legislativas e executivas ao mesmo tempo.
Inaugurado em 13 de outubro, com Trotsky eleito presidente, o Soviete
congregou representações de praticamente todas as plantas industriais de São
Petersburgo, se expandindo para as profissões do comércio e dos serviços e, a seguir,
impulsionando centenas de organismos mais ou menos do mesmo caráter em todo o
Império.
Num primeiro momento, o POSDR deu pouca importância ao fenômeno, mas
depois, se jogou com todas as forças em sua organização, obtendo em pouco tempo,
através de suas duas principais frações (bolchevistas e menchevistas) 2/3 dos votos.
A ofensiva grevista de outubro, malgrado ter assegurado liberdades
democráticas desconhecidas na Rússia, e inclusive ter obrigado Nicolau II a conceder
a Duma que se reuniria em 1906, foi também o início de um duelo com o Poder
constituído do Czar. Duelo, na opinião de Trotsky (Idem, p.265-268), inevitável e de
resultados imprevisíveis, mas que provavelmente se dava sem que as condições de
enfrentamento da parte dos trabalhadores estivessem dadas.
Em 3 de dezembro, o Soviete se reúne pela última vez até seu ressurgimento em
1917, sendo seus deputados presos e processados pelo Estado czarista. No início de
1906, a Primeira Duma, com hegemonia liberal, se reúne sobre os escombros da
revolução, para ser, sem o impulso popular, dissolvida pelo mesmo Czar que a
concedeu.
A derrota da Primeira Revolução Russa é relativa. Se a ela se seguiu um longo
período de refluxo e reação política, ficaram também a experiência e a tradição
organizativa corporificada no Soviete de São Petersburgo que estariam na base da
organização do proletariado russo na tomada do poder em 1917.
Da mesma maneira, a Revolução definiu as grandes linhas teóricas e políticas
acerca da concepção da luta pelo poder no país que iriam estar no fundo dos
alinhamentos e realinhamentos das forças políticas revolucionárias no caminho do
outubro de 1917, e que apresentaremos de forma sumária a seguir.
Nesse sentido, é adequado qualificar 1905 como o grande Ensaio Geral da
Revolução de Outubro.

2. AS POSIÇÕES FRENTE AO “ENSAIO GERAL”


2.1 A FRAÇÃO MENCHEVIQUE DO POSDR E A HEGEMONIA
BURGUESA NA REVOLUÇÃO
O velho esquema teórico do marxismo russo aparece no debate, desenvolvido no
momento mesmo do “ensaio geral”, defendido de forma acabada pelos mencheviques
(incluindo os mais prestigiados marxistas da aurora do movimento operário russo, como
Pliekhanov e Mártov) numa construção puramente lógico-formal, incapaz de integrar os
desenvolvimentos mundiais e nacionais do capitalismo. Este esquema deduzia, num
plano puramente lógico, do caráter democrático da revolução russa o papel dirigente da
burguesia, encarregada, por assim dizer, por direito natural, de conduzir a construção da
república democrática.
Assim, para estes marxistas, a Rússia estava condenada a repetir mecanicamente
as etapas que grosso modo marcaram a passagem do feudalismo ao capitalismo nos
países da Europa Ocidental.
A constituição do mercado mundial, o advento da divisão internacional do
trabalho, a emersão do imperialismo, cuja manifestação se afirmava com a I Grande
Guerra, o lugar subordinado das burguesias dos países atrasados e as consequências
disso para o desenvolvimento do modo de produção capitalista nesses países, bem como
a situação complexa, brutalmente contraditória deste desenvolvimento, não entrava na
elaboração teórica do menchevismo.
Eis porque TROTSKY (1984, p. 18) enxergava nesse gênero de marxismo uma
atitude “escolástica e dogmática”, impermeável ao desenrolar concreto da realidade
mundial e preso a um modelo nacional justamente por importar acrítica e formalmente a
experiência histórica de outros países e épocas. Um internacionalismo abstrato que seria
retomado pela fração de Stálin em outras circunstâncias, mas com o mesmo resultado de
ficar preso ao marco nacional.
Esta concepção se via desconcertada em face da própria realidade empírica da
Rússia no curso da Revolução de 1905. Primeiro porque na Rússia, como explica Lenin
em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, a grande indústria não se desdobrou
de um desenvolvimento autônomo da economia artesanal e, depois, das plantas
manufatureiras. Assim, o capitalismo Russo não teve seu parto na liquidação das
relações feudais tipicamente agrárias.
Na Rússia, a indústria se ergueu, precária e desigualmente, da pressão direta do
capital internacional, que fluiu para o país sobretudo na forma de empréstimos ao
Estado e, por essa via, canalizado à esfera privada. Quer dizer, a burguesia Russa tem
perfil bastardo, ligada que é na sua origem à própria manutenção do Estado autocrático.
O que não quer dizer que pelas artes mesmas da economia de mercado não tenham se
desenvolvido contradições de interesses entre ela e o regime monárquico assentado nos
interesses do latifúndio. Tais contradições foram a base para o surgimento de uma
representação política liberal, ainda que de um liberalismo sempre prisioneiro da
sobrevivência econômica ainda ligada ao Estado autocrático.
A fórmula menchevique de uma vitória da classe operária na Revolução de 1905
que resultasse na tomada do poder pelos liberais era assim carente de uma base social
burguesa a altura desta tarefa. O curso dos liberais ao longo do ano revolucionário
mostrou que os acontecimentos, longe de empurra-los à esquerda, os levou
progressivamente à defesa das instituições. De força social simpática às demandas
populares após o Domingo Sangrento, o principal partido da burguesia liberal, o Partido
Democrático Constitucionalista (Cadete) desempenhou, a partir da constituição do
Soviete de São Petersburgo, a cada momento, o papel de uma força dedicada à
recomposição da normalidade institucional, para isso, recuando ele mesmo do programa
liberal burguês, sempre em nome dos interesses da revolução.
Ao final, a posição menchevique chegava a um impasse que Trotsky sintetiza
assim:
O ponto de vista menchevique sobre a revolução russa nuca se
distinguiu por uma grande clareza. Junto com os bolcheviques
falavam em “levar a revolução até o final” (...) isto é, no sentido de
que devíamos obter nosso programa mínimo depois do que viria uma
era de capitalismo “normal”, num palco democrático (...) No entanto
“levar a revolução até o final” pressupunha a destituição do czarismo
e a transferência do poder estatal para as mãos de uma força pública
revolucionária. Que força? ” (Itálicos no original).

De fato, em janeiro de 1906, o Partido Cadete como “força pública


revolucionária” tinha virado uma mera construção lógico-ideal.

2.2 LÊNIN E A DITADURA DEMOCRÁTICA DO PROLETARIDADO E


DOS CAMPONESES
Lênin não nos deixou vastos estudos posteriores aos acontecimentos de 1905,
não foi seu historiador nem tirou grandes generalizações dos acontecimentos nos anos
da reação que se seguiram ao “ensaio geral”. Contudo, no transcorrer da revolução,
entre janeiro de 1905 e fevereiro de 1906, produziu o grosso dos escritos marxistas
sobre estratégia e tática da revolução, além de pioneiramente desenvolver, à luz dos
acontecimentos, sua concepção do partido revolucionário (iniciada em 1902 em Quer
Fazer?) e de seu lugar na crise revolucionária. Obras como Duas Táticas da
Socialdemocracia na Revolução Democrática, em que apresenta suas diferenças com a
fração menchevique do POSDR acerca da questão decisiva do caráter da revolução e A
Organização do Partido e a Literatura de Partido, ambas escritas no calor dos combates,
atestam esta atividade.
Lênin, no período da Revolução de 1905 e nos anos imediatamente seguintes
combateu a visão menchevique, sobretudo na forma exposta por Pliekhanov. Ao
mecanicismo lógico do esquema menchevique “revolução burguesa, portanto
hegemonia burguesa na revolução democrática”, Lênin contrapunha a ideia de união
entre o proletariado e o campesinato, vislumbrando uma ditadura democrática do
proletariado e dos camponeses.
A fórmula de Lenin, como observa Trotsky (1985, p. 18-19), deixava em aberto
a preponderância social na “ditadura democrática”, mas descartava, na base da própria
experiência da luta em curso, a possibilidade da burguesia russa de cumprir a tarefa
limpar a Rússia da herança feudal, e, assim, de criar uma camada livre de camponeses,
na via de um desenvolvimento do capitalismo segundo o modelo americano e não no
molde prussiano).
Assim, Lênin não podia conceber a revolução democrática (isto é, a derrocada
do czarismo) desassociada da revolução agrária que sacudisse radicalmente a estrutura
latifundiária em que se apoiava fundamentalmente o regime autocrático (LÊNIN, 1984,
232-243. Portanto, para Lênin, tomando o problema desta maneira, também não estava
resolvido por “repetição histórica” a questão de em que mãos o poder político cairia no
decurso da revolução. Lênin sintetizava sua fórmula de maneira, segundo Trotsky e
como já assinalamos, algébrica com a palavra-de-ordem “ditadura democrática do
proletariado e do campesinato”, sem resolver diante mão qual das classes seria
hegemônica no processo.
Toda a preocupação de Lênin estava ligada ao papel independente do
proletariado na revolução, o que explica porque atava a discussão tática e estratégica aos
problemas da construção do partido revolucionário. Isto o distinguia radicalmente dos
menchevismo que, ao contrário, ao reduzir o proletariado a força opositora, mas
impulsionadora das vertentes políticas capitalistas, no quadro de uma república
democrática, reduziam também a necessidade de um partido revolucionário rigidamente
organizado.
A concepção de um governo expressivo de uma ditadura social dos operários
camponeses respondia ao fato de que as demandas intrinsicamente marcadas pela
revolução agrária só poderiam ser respondidas
(...) através de uma ditadura, porque a realização das mudanças
imediata e incondicionalmente necessárias ao proletariado e ao
campesinato provocará a resistência desesperada dos nobres, da
grande burguesia e do czarismo. Sem ditadura, seria impossível a
derrota dos esforços contrarrevolucionários. Seria escusado dizer, não
uma ditadura socialista, mas uma ditadura democrática. Ela não
poderia desfazer-se (sem toda uma série de fases intermediárias de
desenvolvimento) dos alicerces do capitalismo. Mas introduzira uma
redistribuição radical da propriedade territorial em benefício do
campesinato, levaria a efeito uma democratização consciente e
completa, inclusive uma república; desarraigaria todos os
característicos de opressão asiática na vida fabril, como na vida da
aldeia; iniciaria importantes melhoramentos na concisão dos
operários; elevaria o seu padrão de vida; e, finalmente, o que muito
importa, atearia a conflagração revolucionária na Europa (LENIN
apud TROTSKY, 2012, p. 839-840).

A concepção de Lênin, portanto, rejeitava a via das reformas constitucionais no


quadro das instituições autocráticas (ainda que “democratizadas”) e se assentava na
dinâmica da luta de classes, particularmente, da transformação agrária, como tarefa
central da Revolução, indicando a combinação de forças sociais capaz de levá-la a cabo.
Lênin mesmo assinalava os limites históricos da ditadura, tanto que a chamava
de burguesa. Esta perspectiva estratégica reconhecia por sua vez o limite imposto pela
maioria camponesa na Rússia em face das tarefas de uma revolução agrária que não se
efetivou na abolição do regime servil na década de 1860. Assim para desencadear as
consequências francamente revolucionárias do cumprimento da transformação no
campo (recordemos, questão umbilicalmente ligada à derrocada da monarquia dos
Romanov), seria necessário privilegiar a emancipação dos camponeses pobres em
detrimento da apresentação direta da tarefa socialista durante a revolução então em
curso.
Seria precipitado entendermos desta posição que a ditadura operária e
camponesa estaria destinada, por forças da decisiva questão agrária na luta contra a
autocracia, ao cumprimento essencialmente do programa camponês?
De qualquer forma, Lênin se afastava da posição dominante no marxismo
predominante de então, privilegiando o desenvolvimento concreto da situação em
detrimento da petrificação de uma fórmula teórica. Não assumia, bem entendido, o
prognóstico de Trotsky sobre o caráter permanente da revolução, ou seja, dos processos
de transição entre revolução democrática e revolução proletária que se operavam, para
este, não numa linha de tempo, mas como momentos de um mesmo processo
revolucionário.
De todo modo, Lênin se opunha à ideia abstrata da revolução burguesa, tal como
os mencheviques a apresentavam, como se deduz desta passagem do Relatório proferido
em janeiro de 1917 e já citado:
Mas a revolução russa foi em simultâneo uma revolução proletária,
não só porque o proletariado era então a força dirigente, a vanguarda
do movimento, mas também porque o instrumento de luta específico
do proletariado, a greve, constituiu a alavanca principal para pôr em
movimento as massas e o facto mais característico da vaga crescente
dos acontecimentos decisivos.

2.3 TROTSKY E A TEORIA DA REVOLUÇÃO PERMANENTE2

Trotsky se referiu pela primeira vez à revolução permanente justamente em seu


balanço da revolução russa de 1905, em Balanço e Perspectivas (que integrava a obra
Nossa Revolução) e num conjunto de artigos polêmicos publicados durante a reação

2
Esta passagem é um extrato de um trabalho mais largo intitulado “Trotsky e Gramsci às vésperas da
meia-noite do século: caminhos cruzados?”, inédito.
russa, entre 1906 e 1910 e enfeixados entre nós no volume intitulado A Revolução de
1905 (TROTSKY, s/d). Nesta obra, a noção aparece em traços gerais no artigo Nossas
Diferenças.
Na Introdução de A Revolução Permanente, Trotsky nota que:
Entre os sociais-democratas da época3 (trazíamos todos, então, o nome
de sociais-democratas), ninguém duvidava de que marchávamos
precisamente para uma revolução burguesa, isto é, para uma revolução
provocada pela contradição entre o desenvolvimento das forças
produtivas da sociedade capitalista e as anacrônicas relações de classe e
de condições legadas pela época da servidão e da Idade média
(TROTSKY, 1985, p. 18).

Segundo Trotsky, não estavam nesse diagnóstico as diferenças entre sua opinião
e aquelas defendidas pelos mencheviques e pelos bolcheviques4. Toda a questão se
concentrava em se esse caráter burguês da revolução daria lugar à burguesia ou ao
proletariado como classe que tomaria para si a realização das tarefas da revolução
democrática e sob que forma tomaria, então, a relação entre as classes. Para Trotsky, era
este o ponto de partida para todos as questões importantes da estratégia (idem, p. 19).
Imediatamente aos acontecimentos de 1905, Trotsky escreveria:
No que diz respeito às suas tarefas diretas e indiretas, a revolução russa
é uma revolução “burguesa” porque se propõe a libertar a sociedade
burguesa dos grilhões do absolutismo e da propriedade feudal. Mas a
principal força condutora da revolução russa é a classe operária e por
isso é uma revolução proletária no que diz respeito a seu método
(TROTSKY, idem, p. 66).

Na concepção de Trotsky, o caráter burguês da revolução (isto é, de suas tarefas


democrático-burguesas) não resultava em que a burguesia seria obrigatoriamente
hegemônica no curso dos acontecimentos. A coincidência parcial de objetivos entre
burguesia, proletariado urbano e campesinato não significava necessariamente a cessão
por parte destes últimos do poder resultante da revolução à primeira. Para ele, no curso
mesmo da luta, em parte comum, se desenvolvia uma disputa entre as classes que se
opunham ao czarismo pela hegemonia no processo revolucionário, luta cujo desenlace
não estava dado por nenhuma norma escolástica ou dogmática.

3
Trotsky se refere ao ano de 1905 e ao período de reação que lhe sucedeu.
4
As duas principais facções em que se dividia o Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR) em
princípios do século XX. Trotsky se manteve à parte das facções, até 1917, quando se tornou
bolchevique.
Este desenlace estava completamente subordinado à capacidade de cada uma das
classes de responder de maneira consequente às demandas situadas na base do processo
revolucionário.
Sob outro e, para Trotsky, decisivo ângulo, esta questão não poderia ser
abordada senão à luz dos desenvolvimentos do capitalismo que deixara de se deter no
terreno nacional e, já no início do século passado, se lançava a uma divisão do trabalho
internacional que acarretava uma repartição do globo entre os poucos capitalismos
dominantes, ditando um desenvolvimento que, em cada país, sobretudo naqueles
subordinados às maiores potências, retirava das burguesias locais o que ainda lhes
restava de autonomia nacional, atrelando-as, tanto à modernidade mais alta quanto à
sobrevivência de modalidades atrasadas de sociabilidade, conforme o interesse da
potência capitalista dominante.
Esta dimensão seria desenvolvida plenamente no ensaio de Lênin, O
Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (2007), publicado em 1916, onde o
dirigente bolchevique expunha os traços fundamentais da época capitalista cuja abertura
fora assinalada pelo estalar da I Grande Guerra.
Na Rússia de então, por exemplo, o ardor anticzarista da burguesia era mediado
diretamente pelo interesse do capital britânico no enfraquecimento ou não do regime
czarista, assim como seu sentimento progressista e industrial, também oscilava de
acordo com as necessidades de mercado do grande pai inglês. Isso para não falar dos
laços sociais que prendiam esta burguesia à oligarquia rural, pedra fundamental da
persistência anacrônica do czarismo.

2.3.1 TROTSKY EM FACE DOS BOLCHEVIQUES E MENCHEVIQUES


Na base desta dimensão internacional da revolução russa de 1905, com efeito, no
artigo Nossas Diferenças, Trotsky criticava mencheviques e bolcheviques, acerca da
revolução de 1905, nos seguintes termos:
Enquanto os mencheviques, partindo da noção abstrata de que “nossa
revolução é uma revolução burguesa”, chegam à ideia de que o
proletariado deve adaptar todas as suas táticas ao comportamento da
burguesia liberal (...) os bolcheviques partem de uma noção igualmente
abstrata – “ditadura democrática”, não ditadura socialista – e chegam à
ideia de um proletariado de posse de um poder estatal que se impõe a si
mesmo uma limitação democrática burguesa (TROTSKY, S/D, p. 317).
Essa crítica era válida mesmo se Trotsky, vinte e quatro anos depois da primeira
revolução russa, reconhecesse que Lênin formulava o problema já do ponto de vista das
tarefas políticas das classes em luta (op. cit., p.19)5.
Como assinalado acima, Lenin se distinguia da tradição “etapistas” do marxismo
russo do começo do Século XX, ao considerar o proletariado, ao lado dos camponeses
como força dirigente da revolução democrática, que estava na base de sua fórmula de
Ditadura Democrática do Proletariado e do Campesinato (LENIN, 1984, p. 160-168).
Assim, para Trotsky, a revolução de 1905 era o prólogo dos acontecimentos que
viriam a se suceder 12 anos depois, mesmo que separados por uma década da mais
rigorosa reação que praticamente impediu a manifestação legal do movimento operário
e camponês. O fevereiro e o outubro de 1917 e o riquíssimo interlúdio entre estes meses
vieram a demonstrar que a reação vitoriosa era apenas uma imagem aparente que
escondia sob si um profundo movimento revolucionário que nunca deixou de se
desenvolver e que se ligou à crise de monta internacional a que a Grande Guerra deu
corpo. Seguindo o raciocínio de Trotsky, o triunfo episódico da reação no pós-1905 não
resolvera nada nem do ponto de vista das tarefas da revolução democrática nem do
ponto de vista da relação entre as classes emergentes. A próxima crise certamente
recolocaria todos esses problemas e a luta de classes direta seria de novo a arena onde as
velhas controvérsias teóricas seriam postas à prova.
Não havia em Trotsky nenhum evolucionismo ou fatalismo. Daí ser para ele tão
decisivo e prioritário o lugar da luta teórica acerca da natureza da revolução. Uma
atitude teórica justa seria imprescindível para abordar a real situação social e política,
uma vez que se tratava de responder subjetivamente, pela organização, à realidade
objetiva, momentos concebidos numa totalidade. Toda a questão era: a ação consciente,
premeditada do partido teria legitimação na realidade, ou seja, na natureza concreta da
revolução russa?

COMO CONCLUSÃO
Estas breves notas têm como objetivo apenas retomar panoramicamente os fatos
que marcaram de forma mais geral o processo revolucionário de 1905 na Rússia e
retomar, de forma igualmente sumária, as principais linhas de força teóricas e políticas

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Numa nota a Nossas Diferenças, Trotsky lembrava que a autolimitação do proletariado no poder nunca
se concretizou pois “sob a liderança do camarada Lênin os bolcheviques mudaram sua linha política nessa
importante questão (não sem luta interna) na primavera de 1917, isto é, antes da tomada do poder”.
que derivaram do enfrentamento por parte das organizações socialistas e de seus
teóricos destes acontecimentos.
Este objetivo, nesse caso, está relacionado com a busca de refletir sobre o
conjunto do processo de que a Revolução de Outubro é uma culminância. A
rememoração dos fatos e, sobretudo, a continuidade do debate acerca do caráter de
classe revolução, como hoje sabemos, voltaram a ser um fator de enorme importância
na estratégia da tomada do poder em 1917, separando e reunindo partidos, frações de
partidos, homens e mulheres.
Estas perspectivas teóricas conflitantes e que tiveram origem na avaliação do
Ensaio Geral de 1905 tomaram importância geral e seguem sendo um dado fundamental
na compreensão das revoluções do século XX e na batalha pelas transformações
revolucionárias de hoje em dia.
Daí a importância de retomar o estudo desta experiência do proletariado russo e
das interpretações de seus dirigentes.

REFERÊCIAS

LÊNIN, V. I. A Organização do Partido e a Literatura de Partido. In: LÊNIN, V.


I. Obras Escolhidas, Vol. 1. Lisboa: Edições Avante, 1984.
____. Duas Táticas da Social Democracia na Revolução Democrática. In:
LÊNIN, V. I. Obras Escolhidas, Vol. 1. Lisboa: Edições Avante, 1984.
____. O Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Nova Palavra,
2007.
____. Relatório Sobre a Revolução de 1905. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/01/22.htm. Acesso em: 1º/05/2017.
TROTSKY, Leon. A Revolução de 1905. São Paulo: Global, S/D.
____. A Revolução Permanente. São Paulo: Kairós, 1985.
____. As Três Concepções da Revolução Russa. In: TROTSKY, Leon. Stalin.
São Paulo: Livraria da Física, 2012.

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