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A compreensão do princípio da incerteza

e suas implicações no processo de


educação escolar
Understanding the uncertainty principle and its implications
in the process of school education
Resumo Com esta pesquisa, buscamos compreender o sentido
do princípio da incerteza e suas implicações na dimensão do
conhecimento escolar com base na teoria da complexidade. De
forma mais específica, objetivamos investigar o significado que
Morin atribui ao princípio da incerteza quando o situa como um
buraco negro e uma lacuna na educação escolar. Para isso, é
fundamental analisar, desde a origem, os caminhos que apon-
tam para a gênese, a natureza e as consequências da incerteza.
Os movimentos da ordem e da desordem são variáveis ineren-
tes a todo e qualquer fenômeno social e da natureza em si e,
portanto, causadores da incerteza. O homem tem dificuldade
em compreender a incerteza que flui do movimento e da de-
sordem como uma propriedade-força inerente aos fenômenos Celso José Martinazzo
naturais e sociais e, por não compreender essa dimensão, sua Universidade Regional do
tendência é ignorá-la ou negá-la. A compreensão complexa do Noroeste do Estado do Rio
mundo real que revela a incerteza produz consequências pro- Grande do Sul (UNIJUÍ)
martinazzo@unijui.edu.br
fundas para o campo epistemológico e, por decorrência, para
todo o processo de educação escolar. Óberson Isac Dresc
Palavras-chave complexidade; conhecimento; incerteza; edu- Universidade Regional do
cação escolar. Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul (UNIJUÍ)
Abstract This research aims at understanding the meaning of
obersac@yahoo.com.br
the uncertainty principle and its implications on the dimension
of school knowledge based on the complexity theory. More
specifically, we aimed at investigating the meaning attributed
by Morin to the uncertainty principle when defining it as a black
hole and a gap in education. To do so, it is essential to analyze,
from its origin, the paths that point to the genesis, the nature
and the consequences of uncertainty. The movements of order
and disorder are inherent variables to any social phenomenon
and to nature itself, thus causing uncertainty. Individuals have
difficulty understanding the uncertainty that flows from move-
ment and disorder as a strength-property inherent to the natu-
ral and social phenomena, and due to not understanding such
dimension, their tendency is to ignore or deny it. A complex un-
derstanding of the real world that reveals the uncertainty pro-
duces profound consequences to the epistemological field and,
consequently, to the whole process of school education.
Keywords: complexity; knowledge; uncertainty; school edu-
cation.
Considerações iniciais ser organizacionalmente complexo” (MORIN,

O
objetivo desta pesquisa é compreen- 1996, p. 217). Ele dedica grande parte de suas
der a gênese, o lugar e o sentido do pesquisas, ao longo de vários anos, a investigar
princípio da incerteza como uma vari- as questões implicadas no processo cognitivo.
ável significativa no campo da epistemologia Esta problemática atravessa todo o arcabou-
com desdobramentos significativos no pro- ço do edifício da complexidade construído
cesso cognitivo e na educação escolar. Procu- em seis volumes de sua obra O método. Morin
ramos desvelar como a questão da incerteza,1 escreve dois volumes específicos do método3
com recorte nas ciências da complexidade, sobre a teoria da complexidade para explicitar
pode permear e orientar o campo da educação e analisar a questão do conhecimento, procu-
escolar em sua ampla e difícil tarefa de cons- rando respostas para questões como: Quais
truir conhecimentos pertinentes.2 Buscamos, os princípios que sustentam o paradigma sim-
nesse sentido, analisar as possibilidades de plificador e o pensamento complexo? Em que
transformar e validar o princípio epistemológi- consiste um pensamento complexo? Quais os
co da incerteza em uma estratégia pedagógica. vícios e erros cometidos ao longo da história
A incerteza do conhecimento está no no que se refere às possibilidades e limites do
âmago da questão epistemológica. Desde os pensamento e do conhecimento?
tempos mais remotos o homem pergunta-se O foco da epistemologia formulada por
pelo ato de conhecer, pela forma como se Morin procura captar e compreender a com-
processa o conhecimento, pelo grau de certe- plexidade inerente à realidade em si. O mun-
za e de objetividade, enfim, pelas potenciali- do físico e cultural, incluindo o homem, é um
dades e limites do conhecimento. todo complexo e não pode ser compreendido
Morin, um pensador contemporâneo, de forma apropriada por meio de regras e mo-
destaca a importância e a centralidade da delos simplificadores. Necessitamos de um
questão do conhecimento em toda a sua obra: pensamento complexo para compreender
“O problema cognitivo é o problema quotidia- aquilo que, por natureza, é algo complexo. Se
no de cada um e de todos. A sua importância o real é complexo, alerta Morin, não se pode
política, social e histórica torna-se decisiva” descrevê-lo, analisá-lo e explicá-lo com base
(MORIN, 1991, p. 221). Nesse sentido, uma de em modelos simplificadores, analisando cada
suas grandes metas, como mentor e artífice parte sem descrever o todo, e vice-versa.
da teoria da complexidade, é desenvolver Com esse ponto de partida, Morin vai
um pensamento complexo como antídoto e, procurar, em primeiro lugar, compreender o
sobretudo, como superação do pensamento modelo lógico do pensamento simplificador,
simplificado e simplificador do nosso tempo. que é um tipo de pensamento que disjunta,
A complexidade, no entendimento de fragmenta e reduz o sentido do real e, em um
Morin, é uma exigência e um pressuposto de segundo momento, estabelecer os princípios
todo conhecimento, a ponto de o autor afir- organizadores de um pensamento complexo.
mar que: “Se o conhecimento existe, é por Critica a fragmentação do conhecimento dis-
ciplinar no qual cada disciplina cria seu pró-

1
No capítulo V – “Enfrentar as incertezas”, do livro Os prio território de saber e poder, bem como
sete saberes necessários à educação do futuro (MORIN, a generalização e a hiperespecialização dos
2000b) o autor aborda como a questão da incerteza
está sendo e/ou poderia ser pauta no currículo escolar.
2
A expressão “conhecimento pertinente” é 3
Trata-se de O método III. O conhecimento do
empregada por Morin (2004) para designar aquele conhecimento (MORIN, 1996), que comporta, nas
saber resultante de uma reforma paradigmática do palavras de Morin (2008, p. 169), uma antropologia
pensamento que permite operar com os princípios do conhecimento. E do Método IV. As idéias: a sua
organizadores do conhecimento complexo, e que natureza, vida, habitat e organização (MORIN, 1991) em
nos torna aptos a compreender a complexidade das que ele aborda a cultura, a linguagem, a racionalidade
informações no contexto em que elas se processam. e as questões de paradigmatologia.

Impulso, Piracicaba • 23(58), 45-57, out.dez. 2013 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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saberes. Aponta para o perigo das generaliza- O exercício e a adoção do pensamento
ções e universalismos de toda ordem. Assim, complexo, posto como um desafio metodo-
de forma simultânea à compreensão do mo- lógico e estratégico para a educação escolar,
delo linear, quantitativo, hiperespecializado e só podem resultar de uma reforma do pensa-
fragmentado de conhecimento, expõe, anali- mento vigente, de uma nova postura episte-
sa e formula alguns princípios do pensamento mológica, de um modelo original de exercer
complexo. Este é movido pela dinâmica da a racionalidade de forma a promover um di-
incompletude e da incerteza e, muitas vezes, álogo mais próximo com o mundo real. Esse
é entendido como antídoto ao pensamento espírito leva Morin a afirmar:
simplificador e, em outras, como seu comple-
mento e superação. O desafio da complexidade nos faz
Pensar de forma complexa é, por isso renunciar para sempre ao mito da
mesmo, estar apto a compreender o mundo elucidação total do universo, mas
do qual fazemos parte e que, desde a gênese nos encoraja a prosseguir na aven-
do universo, foi algo complexo e, portanto, tura do conhecimento que é o diálo-
incerto e caótico. Todos os organismos são go com o universo. O diálogo com o
complexos e resultantes de um processo de universo é a própria racionalidade.
complexificação que culmina no homem, que (MORIN, 2000c, p. 190-191).
seria o exemplo mais perfeito de complexida-
de. A complexidade revela-se na dinâmica da A gênese da certeza-incerteza
evolução do universo e da vida. Para captar Analisar e compreender a gênese da cer-
essa rede complexa inerente à lógica da reali- teza e da incerteza já se revela um caminho in-
dade, necessitamos de um pensamento com- certo. Assim como a ênfase secularmente atri-
plexo. As leis e categorias da complexidade, buída à certeza revelou ser incerta, também é
portanto, pretendem perceber e apreender uma tarefa difícil precisar a origem do princípio
as próprias leis da vida. da incerteza. As descobertas científicas que
Na interpretação de Mariotti (2010a), ocorrem a partir da década de 70 do século XX
o pensamento complexo resulta da comple- em áreas como da física, cibernética, biologia,
mentaridade das visões de mundo linear e ecologia, antropologia e sociologia, entre ou-
sistêmica. Procura integrar componentes do tras, apontam para esse fenômeno, embora a
pensamento linear-cartesiano e do pensa- questão também tenha sido alvo de alguns tra-
mento sistêmico que, embora necessários tados filosóficos ao longo da história.
isoladamente, não são suficientes para lidar De qualquer forma, é nas últimas déca-
com a complexidade, a diversidade e a impre- das do século passado que emerge um modo
visibilidade do mundo. diferente de entendimento da realidade e que
As ciências que constituem a matriz do indica a necessidade de levar a sério princípios
pensamento complexo, portanto, levam em emergentes até então ignorados ou deixados
conta, embora o superem, o pressuposto da em um plano secundário pela ciência clássica.
simplicidade, da estabilidade e da ordem e, Trata-se de uma novidade que não nega as
por conseguinte, reconhecem a não lineari- descobertas e avanços do campo epistemoló-
dade e circularidade dos fenômenos. Consi- gico, mas que, pelo contrário, visa enriquecê-
deram as emergências inscritas na natureza -lo ainda mais.
como produto do acaso e ruído das desor- Desde meados do século XX, os pilares
dens e bifurcações. As emergências de ordem básicos da ciência clássica que deram origem
física, e mesmo socioculturais, são sempre à constituição do princípio da simplificação, da
inesperadas e incertas. A incerteza, portanto, ordem, da redução, da separação e da coerên-
é decorrência lógica do movimento da ordem- cia formal da lógica encontram-se abalados.
-desordem e das emergências que dele fluem. Com a chamada revolução científica e outras

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viradas epistemológicas,4 são formulados no- turas dissipativas, que são hoje am-
vos princípios e leis que revelam a complexi- plamente utilizados em áreas que
dade da realidade e, por conseguinte, reque- vão da cosmologia até a ecologia e
rem outros operadores cognitivos para poder as Ciências Sociais, passando pela
captar e compreender a complexidade do Química e pela Biologia. (PRIGOGI-
real. Os avanços do conhecimento científico e NE, 1996, p. 11).
filosófico desnudam a crise dos fundamentos
da certeza e apontam para a emergência de A nova ciência que nos põe diante da
ciências sistêmicas e complexas que operam complexidade do mundo real a que Prigogine
com recomposições transdisciplinares e inter- refere é a ciência da complexidade, que “não
complementares. mais se limita a situações simplificadas” (PRI-
Ilya Prigogine, em importante obra, O GOGINE, 1996, p. 14).
fim das certezas: tempo, caos e as leis da na- Balandier (1997), por sua vez, analisa e
tureza (1996), expõe e analisa uma nova ra- reconstitui o legado científico do período da
cionalidade filosófica e científica que aponta modernidade com base em uma nova fórmula:
para o fim das certezas. Daí para a afirmação o movimento mais a incerteza. Quanto ao mo-
do princípio da incerteza foi um passo muito vimento, o autor demonstra as várias passa-
curto. A ciência, até a modernidade, afirmava gens que reúnem aparências, ilusões, imagens
a certeza das leis físicas e garantia, desta for- e outros tantos fenômenos que são elementos
ma, a possibilidade da previsibilidade do futu- constitutivos de um real que não é uno, mas
ro e do conhecimento certo. que é percebido, aceito e proclamado enquan-
O pressuposto do princípio da certeza to tal. Segundo o autor, é necessário visuali-
começa a ruir a partir da descrição evolucio- zar o movimento e a desordem que estão no
nária dos fenômenos físicos na biologia com âmago dos fenômenos físicos, das guerras, das
Charles Darwin. Prigogine, com base em da- grandes migrações campo-cidade, nas (des)
dos da física quântica, conclui que as leis e construções dos sistemas vivos e sociais, nas
princípios fundamentais agora já não mais (de)composições ideológicas, enfim, em todos
afirmam certezas, mas exprimem possibilida- os fenômenos físicos e culturais. Por sua vez,
des. Escreve: “A ciência clássica privilegiava a a incerteza, como segundo termo da fórmula,
ordem, a estabilidade, ao passo que em todos exprime o surgimento do inédito e do inespe-
os níveis de observação reconhecemos agora rado. Ela pressupõe e requer o reconhecimen-
o papel primordial das flutuações e da insta- to do lugar do movimento e da desordem. A
bilidade” (PRIGOGINE, 1996, p. 12). De forma ordem deve pressupor a desordem e, por
ainda mais clara, acrescenta: conseguinte, a incerteza, pois está sempre a
refazer-se em novos patamares. O que existe,
ao longo das últimas décadas, nas- portanto, é um constante movimento que se
ceu uma nova ciência, a física dos recusa a permanecer nas ilusões do caminho
processos de não-equilíbrio. Esta da ordem e gera improbabilidades e incerte-
ciência revelou conceitos novos, zas. O movimento e os estágios de desordem
como a auto-organização e as estru- são portadores de incertezas.
Analisando alguns dos princípios da
4
O filósofo René Descartes (1596-1650) é considerado o
epistemologia mais recente, Maria C. B. Ab-
pai da modernidade filosófica ao colocar como ponto
de partida para encontrar a certeza o seu famoso dala destaca que, por meio do princípio da
cogito ergo sum. Escreve o Discurso do método incerteza descoberto em 1927, Heisenberg
(DESCARTES, 1985) com a finalidade de mostrar um conseguiu demonstrar que “para medir uma
caminho certo e seguro para alcançar a certeza do
variável, isto é, para observar uma partícula,
conhecimento. No campo das ciências, tendo como
modelo a física de Newton (1643-1727), a pesquisa das é preciso iluminá-la, e a incidência de luz nas
certezas teve como referência as leis da natureza. partículas observadas é equivalente a fótons

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colidindo contra elas: muda-lhes, portanto, a ao mesmo tempo, antagônicas. Não se trata,
posição” (ABDALA, 2006, p. 62). Morin amplia por essa razão, de um processo linear, no qual
e transpõe esse princípio da física, aplicando- os elementos que compõem o mundo estão
-o, igualmente, aos fenômenos sociais e cultu- dispostos e estruturados de forma estável e
rais. Ressalta: ordenada. De acordo com Morin: “Um antigo
real, que acreditávamos seguro, verificável,
Tal como o calor se tornou racional, está agonizando. De fato, ele conti-
uma noção fundamental ao nha sonho, era alucinatório e histérico” (MO-
devir físico, também se lhe RIN, 1986, p. 88).
deve dar um lugar de desta- Ao questionar-se acerca de um hori-
que no devir social e cultural, zonte de compreensão epistemológica da
o que nos leva a considerar realidade, Morin conclui que o conhecimento
que, onde há “calor cultural”, o navega em um oceano de incertezas entre ar-
que existe não é um determinismo quipélagos de certezas. Com a frase, ele está
rígido, mas condições instá- anunciando que
veis e movediças. (MORIN,
1991, p. 29). qualquer saber complexo comporta
uma parte de incerteza irremediá-
O princípio da incerteza tornou-se um vel que é preciso saber reconhecer
postulado orientador de muitas teorias cien- e admitir. O pensamento complexo
tíficas contemporâneas, dentre elas, a teoria comporta a tomada de consciência
autopoiética5 de Maturana e Varela. Estes pen- de uma falta de acabamento do sa-
sadores, por coerência ao princípio, tornaram- ber e, fundamentalmente, de uma
-se críticos da noção de objetividade e da pos- limitação das possibilidades do es-
sibilidade de um conhecimento objetivo acerca pírito humano. Será vão procurar
da realidade. Não há, segundo os autores, um um fundamento absoluto e indubi-
conhecimento objetivo no sentido que muitos tável. (MORIN, 2008, p. 177).
filósofos da modernidade entendiam e que, a
exemplo do espelho, possa refletir com fide- O autor chega a esta conclusão após
dignidade o mundo ao nosso redor. analisar o desmoronamento dos fundamen-
A concepção complexa procura per- tos sólidos da realidade biofísica sobre os
ceber o mundo em sua forma ontológica, e quais os fundadores da modernidade filosófi-
não apenas fenomênica, portanto em holo- ca e científica pretenderam construir o edifí-
movimento, como um fluir de relações inter- cio do conhecimento. Na concepção moder-
dependentes, recursivas, complementares e, na, o princípio da ordem e, por consequência,
a estabilidade e a objetividade, adquirem so-
5
Autopoiese significa autoprodução por um processo berania como modelo e critério de explicação
de auto-organização. O conceito começou a ser
formulado no final do século XX para expressar uma
do real, estabelecendo, assim, um determinis-
característica dos seres vivos como sistemas que mo universal e necessário que exclui a possi-
se produzem continuamente a si mesmos, ou seja, bilidade do acaso, das emergências e da incer-
os seres vivos formam sistemas autoprodutores. A teza. Os princípios da redução e disjunção que
teoria da autopoiese (MATURANA; VARELA, 2001,
p. 40-61) sustenta que todos os sistemas vivos são
constituem o paradigma da simplificação são
autopoiéticos, pois, para existirem, dependem formulados com base nessa visão científica
de contínuas mudanças estruturais pelas quais de uma natureza sólida, governada pelo prin-
conservam sua organização, mediante processos cípio da estabilidade e da ordem.
de autorregeneração, de autoprodução e de
automanutenção da vida. Um sistema autopoiético,
O paradigma da simplificação da ciência
portanto, é, ao mesmo tempo, causa e efeito, clássica moderna, denominado o grande pa-
produtor e produto de si mesmo. radigma do Ocidente, no intuito de conhecer

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e estabelecer a verdade sobre o mundo físico, chamada causalidade circular recursiva, que
e até mesmo social, consagra alguns princí- nos ajuda a compreender um processo infla-
pios como: a ordem, a separação, a redução e a cionário, educativo ou um fenômeno físico,
validade absoluta da lógica clássica. O princípio como o redemoinho, em que cada momento
da ordem estabelece que a natureza e o mun- é, ao mesmo tempo, produto e produtor do
do são regidos por leis estáveis, constantes e momento seguinte.
regulares; o princípio da separação considera Essas considerações sobre os princípios
ser necessário analisar cada parte em sepa- organizadores do conhecimento no modelo
rado para melhor conhecê-la e, deste modo, clássico da modernidade e no modelo recen-
estabelece o chamado princípio da disjunção, te da complexidade possibilitam-nos concluir
que separa as matérias umas das outras, con- que a revelação das fronteiras ou limites do
duzindo o conhecimento para o âmbito da conhecimento foi uma das grandes descober-
hiperespecialização; pela redução busca o co- tas no campo epistemológico. Nossos fun-
nhecimento das unidades elementares para damentos do conhecimento passaram a ser
entender o conjunto do qual elas fazem par- revisados e reavaliados. Talvez a maior cer-
te; por fim, pelo estabelecimento da validade teza dessa transformação científica seja a da
absoluta da lógica clássica, atribui um valor de intransponibilidade das incertezas, tanto no
verdade e certeza a um processo lógico de de- campo da ação quanto no do conhecimento.
dução, indução e identidade binária, eliminan- A incerteza, sob o olhar da complexidade, é
do toda e qualquer contradição. uma variável a ser ponderada no processo de
Os operadores cognitivos da complexi- construção do conhecimento. Ela é produto
dade impõem alguns princípios inovadores da compreensão complexa, ou seja, a dimen-
para a compreensão do real, como o ope- são/compreensão da complexidade apresen-
rador dialógico, que reúne noções que se ta-se em forma de uma dialogia entre incer-
repelem entre si e, embora antagônicas e teza e compreensão complexa. A percepção
contraditórias são necessariamente comple- poliscópica e multiplural de um fenômeno
mentares no ato de conceber o universo, seus está na base de um conhecimento incerto.
fenômenos organizados, e ao mesmo tempo O conhecimento resulta de um exercício
destruidores, como explosões de estrelas, reflexivo e recorrente que requer como coro-
colisões de galáxias, formação de buracos ne- lário afirmações provisórias e contrastáveis e
gros e outros que contemplam a dialógica da que, portanto, não permite posição dogmáti-
ordem e da desordem; a hologramaticidade, ca, finalista e conclusiva.
que revela que a(s) parte(s) necessita(m) ser
entendida(s) em função do todo e vice-versa. Fundamentalmente, creio que há
Para compreender a tessitura de algo, bem menos materialidade no real do que
como o significado de um fato ou de um fenô- parece e mais realidade no imaginá-
meno, é necessário situá-lo em seu contexto. rio do que se crê. O real está ensan-
O conceito de conhecimento como uma rede duichado entre dois imaginários. A
de múltiplas articulações implica o cuidado recordação e a imaginação. Quanto
com a dimensão histórica, poética, mítica, à realidade humana, ela não é nem
empírica, filosófica e científica; e o anel recur- o real nem o imaginário, mas um
sivo ou recorrente, que é uma noção explica- dentro do outro. Em suma, há sem-
tiva dos processos de auto-organização e de pre uma parte de imaginário de que
autoprodução. Nesses processos, os efeitos precisamos para viver. (MORIN,
retroagem sobre as causas, determinando 2008, p. 177).
que os produtos sejam produtores daquilo
que os produz. O produto é produtor do pró- Parafraseando Morin (2008), em relação
prio processo que o produz. Esse fato gera a ao conhecimento, precisamos da interrogação

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permanente e da recusa em aceitar verdades a realidade é um tecido complexo e o segun-
absolutas e fossilizadas, pois o saber é históri- do que este tecido comporta a incerteza.
co e biodegradável. O fanatismo e o dogmatis- Morin situa o princípio da incerteza
mo, portanto, são atitudes que não combinam como um dos sete saberes necessários à
com uma postura do pensamento complexo. educação do futuro, tendo em vista que ele
se constitui em um buraco negro6 do atual
A incerteza e suas implicações processo escolar. A incerteza, portanto, pode
no processo da educação escolar tornar-se um eixo temático a ser levado em
A incerteza diz respeito, dessa forma, conta, transversalizando todo o currículo es-
às características dinâmicas dos seres vivos, colar, desde que se conceda a ela o rico senti-
da vida humana e das organizações sociais. do que adquiriu a partir das descobertas cien-
Olhando particularmente para as instituições tíficas e dos estudos da complexidade.
escolares, ouvimos com frequência análises Organizar um processo de conheci-
e comentários que reconhecem o cenário mento que contemple a complexidade será
de constantes mudanças, inovações, infor- sempre um desafio, pois “implica abertura
matização, descobertas científicas e avanços epistemológica que leve em conta o papel
tecnológicos, ao mesmo tempo em que se das incertezas e dos diálogos, o desafio da de-
constatam muitas indagações e incertezas sordem em seu diálogo com a ordem” (MO-
em relação a esse cenário. Como conduzir, RAES, 2010, p. 17). E, nas palavras de Morin,
ou conduzirmo-nos, em meio a esse processo compreender a incerteza do real é, “saber
complexo se nós também somos condiciona- que há algo possível ainda invisível no real”
dos e guiados por ele? Que comportamentos (MORIN, 2000b, p. 85) e, portanto, “o pen-
adotar para que não sejamos meros reféns da samento deve, então, armar-se e aguerrir-se
história que está sendo pensada e executada? para enfrentar a incerteza” (MORIN, 2000b,
De modo mais pontual, quais implicações a p. 91). Neste viés, o conhecimento é sempre
compreensão do princípio da incerteza pode uma aventura que comporta, em si, o risco do
trazer para o contexto da educação escolar? erro e da ilusão: “o conhecimento é a navega-
O grau de desordem implícito na natu- ção em um oceano de incertezas, entre arqui-
reza e nos fenômenos sociais acarreta tam- pélagos de certezas” (MORIN, 2000b, p. 86).
bém uma grande parcela de imprecisão e de Nas tentativas em que a humanidade
incerteza em relação ao conhecimento. Essa pretendeu encontrar a ordem e a inteligibilida-
percepção da realidade como algo complexo de do universo, a ciência clássica encarregou-
é responsável pelo fim das certezas, das ver- -se de convencer-nos sobre a morte do mito,
dades, enfim, do saber absoluto e total. Morin bem como sobre o triunfo da razão pela su-
afirma de forma clara: pressão do irracional, das crenças sobre a ex-
plicação dos mistérios. A seu tempo, contudo,
Como a complexidade reconhece a a incerteza, o inesperado e o inefável sempre
parcela inevitável de desordem e de afloram, fazendo com que muitos cientistas
eventualidade em todas as coisas, tenham de rever sua concepção de universo e
ela reconhece a parcela inevitável de refazer a trajetória do conhecimento.
incerteza no conhecimento. É o fim Muitas instituições, inclusive a escolar,
do saber absoluto e total. A comple- foram, e ainda hoje estão sendo concebidas
xidade repousa ao mesmo tempo e organizadas em termos e a partir dos prin-
sobre o caráter de ‘tecido’ e sobre a cípios da ciência clássica moderna, e isto se
incerteza. (MORIN, 2001, p. 564).
6
Ver o capítulo 3, “A propósito dos sete saberes”, do
Aí estão, portanto, dois grandes desa- livro Educação e complexidade: os sete saberes e outros
fios da complexidade: o primeiro informa que ensaios (MORIN, 2004).

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reflete em um tipo de organização que proce- que buscamos compreender o real por meio
de de maneira disjuntiva, redutiva, excluden- da construção de um conhecimento perti-
te, enfim, simplificadora. Morin e Le Moigne nente e multidimensional. O fato é que “a um
advertem que “a incapacidade de reconhecer, antigo regime de idéias afirmativas, mesmo
tratar e pensar a complexidade é um resulta- quando o pensamento se queria crítico, pare-
do do nosso sistema educativo. Ele ensina a ce suceder um novo regime onde a argumen-
validar toda percepção, toda descrição, toda tação se faz mais livre e variável, na medida
explicação pela clareza e distinção” (MORIN; em que não mais está alimentada de certe-
LE MOIGNE, 2000, p. 90). Revela-se, pois, im- zas” (BALANDIER, 1997, p. 253).
provável, no momento atual, um aprendizado Isso os remete a pensar com base nos
da e na complexidade, uma vez que o próprio operadores cognitivos da complexidade,
sistema educacional não está preparado para ou seja, na ideia da hologramaticidade que
lidar com tal propósito. concebe a relação entre as partes e o todo
A lógica do pensamento simplificador até – e vice-versa – e a mútua dependência en-
pode ser um momento provisório para pensar tre as partes e a totalidade, na composição
e agir de forma complexa, ou seja, de maneira dialógica dos fenômenos e no elo recorren-
integrada, transversal, inter/transdisciplinar. te em que o conhecimento é compreendido
O que não é possível é permanecer apenas em contexto, nas ideias que circulam inter-
no nível da simplificação. Sendo assim, a orga- -relacionadas, do movimento entre sujeitos
nização de uma instituição escolar não pode e saberes superando a cisão entre sujeito e
depender, tanto ou apenas, de uma estrutura objeto. Na medida em que temos visibilida-
constituída e consolidada, mas deve procurar de e compreensão de que o conhecimento é
levar em conta as interações que ocorrem em algo histórico, multifocal, multidimensional
seu interior e em seu entorno. Para isso, a esco- e recorrente, e que o sentido dele não está
la precisa assimilar os princípios das novas ciên- posto a priori, podemos repensar os proces-
cias complexas e levá-los em conta, tanto em sos escolares em outros níveis de compreen-
sua estrutura e organização quanto nas formas são e operacionalidade.
de composição curricular. Se o mundo é um todo em holomovi-
O princípio da incerteza apresenta-se mento contínuo, multifacetado e diversifica-
imprescindível para a tarefa de conceber e do, então se torna possível concluir que a in-
operacionalizar a educação escolar a partir da certeza e a imprevisibilidade são suas marcas
perspectiva da complexidade. No contexto que devem ser levadas em conta em qualquer
contemporâneo, parece cada vez mais difí- tentativa de decifrá-lo. Para Mariotti, “Essas
cil obter êxito em um modelo que se orien- características fazem com que não seja pos-
te exclusivamente nos princípios da ciência sível lidar adequadamente com ele por meio
clássica, que firma seus pilares unicamente de um modo de pensar simplificador” (MA-
nas certezas do conhecimento e na tradição RIOTTI, 2010a, p. 6). O exercício, bem como
histórica. Os anunciadores da nova ciência en- a aquisição de um pensamento complexo,
tendem que “após as experiências realizadas requer uma reforma do pensamento que pro-
pelas ciências e pela filosofia no século XX, duza uma cabeça benfeita7 para compreender
ninguém pode basear um projeto de aprendi- e enfrentar o mundo incerto.
zagem e conhecimento num saber definitiva- Aprender a pensar complexamente exi-
mente verificado e edificado sobre a certeza” ge a inserção prévia das instituições de ensino
(MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 19). nesse paradigma. A cabeça benfeita só é pos-
O pano de fundo da incerteza, sem dú-
vida, leva-nos a refletir sobre quais ideias de
7
Uma cabeça benfeita é aquela que dispõe de “uma
aptidão geral para colocar e tratar os problemas” e
proposição e mediação são coerentes com de “princípios organizadores que permitam ligar os
concepções de ensino e aprendizagem em saberes e lhes dar sentido” (MORIN, 2000a, p. 21).

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sível quando o próprio ensino coloca-se em
um processo de ampliação e aprofundamen- Esse pensamento da complexida-
to do seu pensar, passando a incorporar e va- de não é absolutamente um pensa-
lorizar outras dimensões cognitivas; quando mento que expulsa a certeza para
o processo de ensino, de forma ainda mais colocar a incerteza, que expulsa a
radical, dispõe-se a reaprender, a reensinar, separação para colocá-la no lugar
enfim, a se reformar. Assim, ele alarga sua da inseparabilidade, que expulsa
missão, que, de mera transmissão de saberes a lógica para autorizar todas as
já formulados, passa a buscar constituir “uma transgressões.
cultura que permita compreender nossa con- A caminhada consiste, ao contrá-
dição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao rio, em fazer um ir e vir incessante
mesmo tempo, um modo de pensar aberto e entre certezas e incertezas, entre
livre” (MORIN, 2000a, p.11). o elementar e o global, entre o se-
De acordo com Mariotti, parável e o inseparável. (MORIN; LE
MOIGNE, 2000, p. 205).
para lidar com problemas comple-
xos, é preciso pensar de modo com- Certeza e incerteza mantêm um mo-
plexo; para pensar em problemas vimento dialógico em que cada termo “ali-
sem fronteiras, é necessário um pen- menta-se” do outro. As certezas, por um
samento sem fronteiras, isto é, que lado, impedem que se instaure uma onda de
não esteja fragmentado e suas par- relativização do conhecimento, fazendo das
tes fechadas em compartimentos incertezas uma espécie de válvula de esca-
estanques. (MARIOTTI, 2010a, p. 14). pe para o incompreendido, o inexplicável, o
não conhecido. Tal postura poderia implicar
Há certa circularidade entre pensamento a acomodação daquele que procura conhecer
simplificador e conhecimento fragmentado: fechando-se em seu mundo de relatividades
assim, o pensamento simplificador promove e indisponibilizando-se para o diálogo, o de-
um conhecimento fragmentado que, por sua bate, a confrontação e complementação dos
vez, alimenta um pensamento simplificador. saberes. Por outro lado, as incertezas possi-
Pensar e conhecer não são dois procedi- bilitam pensar complexamente os fatos, as
mentos automáticos que conduzem a um fim ideias, as diferentes realidades; provocam os
e um horizonte de antemão definidos. Não indivíduos a ampliarem seus conhecimentos,
correspondem unicamente a um desenvolvi- evitando, assim, reduzir seu pensar a verda-
mento linear que ruma em um sentido ascen- des, a concepções acabadas. Em suma, o ca-
dente de descoberta e afirmação das certe- ráter incerto do conhecimento aparece como
zas. Diferentemente, ambos apresentam-se um forte antídoto contra problemas episte-
como possibilidades de acolhimento do in- mológicos como o preconceito, o dogmatis-
certo, do contraditório, do desconhecido, do mo e o racionalismo.
encoberto, do nebuloso, que se encontram Deduz-se, a partir do que escrevemos
escondidos atrás de todas as aparentes e ex- anteriormente, o papel decisivo que as incer-
clusivas certezas. tezas assumem no processo de pensar. Ao
Tratar do princípio da incerteza não sig- mesmo tempo em que irrompem como limite
nifica ignorar a existência e importância das do conhecimento, mostram ser um indicador
certezas do conhecimento. Pelo contrário, adequado para continuarmos a conhecer.
falar do incerto só faz sentido na insepará- Revelam a incompletude e a provisorieda-
vel implicação com o que se tem descoberto de daquilo que sabemos, mas sem negar a
como certo. Morin e Le Moigne sustentam importância desse já sabido. Desta forma, o
isso ao explicitar: princípio da incerteza coloca-se como um li-

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mite repleto de potencialidades de aproxima- um todo sem ressignificarmos os paradigmas
ção ao complexo. Na compreensão de Morin que inspiram, orientam e dominam a práxis pe-
e Le Moigne “toda descoberta de um limite dagógica e educacional?
ao conhecimento é ela própria um progresso Um pensamento deste nosso novo tem-
de conhecimento. Toda introdução de contra- po exige vigilância e reflexividade de modo
dição e de incerteza pode-se transformar em a contemplar as incertezas que emergem da
ganho de complexidade” (MORIN; LE MOIG- realidade complexa. Para isso, não há receitas
NE, 2000, p. 122). prontas nem aplicação prática e muito menos
um programa instituído. Há, sim, método e es-
Considerações finais tratégias para pensar e compreender a com-
Os processos e formas como nós, hu- plexidade do mundo com um conhecimento
manos, pensamos e construímos o conhe- pertinente. Mais do que uma solução, por-
cimento ainda continuam sendo um campo tanto, o pensamento complexo apresenta-se
pouco explorado pelas pesquisas científicas. como um desafio e um caminho aberto que
Sabemos, no entanto, que o conhecimento não está traçado ainda, mas que pode orien-
é sempre algo resultante de uma forma pa- tar estratégias paradigmáticas e programá-
radigmática de pensamento. Ele é resultado ticas de ação mais compatíveis com o nosso
de modelos inscritos em nossas mentes. Nós tempo nas nossas instituições escolares.
produzimos conhecimento por intermédio de Refletir sobre o sentido pedagógico e
nossa forma de operar o pensamento. epistemológico da incerteza como uma va-
O fato é que a sociedade e as instituições riável a ser considerada no processo escolar
que a compõem, dentre elas a escola, sentem- significa adotar uma postura condizente com
-se bem acolhidas pela visão científica clássica as lições que emergem dos avanços dos estu-
e, portanto, ainda preferem se orientar por dos e das pesquisas sobre o nosso modo de
esse paradigma. E a educação escolar e for- pensar, de produzir o conhecimento e formas
mal, historicamente, tende a permanecer na de organizar as condições estruturais para tal.
retaguarda em relação aos avanços da ciência. Balandier, ao redigir a fórmula indicativa
Por inércia, ou por desconhecimento teórico de que “a modernidade é o movimento mais a
e operacional, prefere continuar trilhando os incerteza” (BALANDIER, 1997, p. 167), aponta-
caminhos já conhecidos, mesmo que em des- -nos que o real zomba do pensamento, e que a
compasso com a realidade dos fatos. Esse compreensão do real está cada vez mais cercada
conservadorismo, em geral, é decorrente de de/pela incerteza. A propósito, escreve Mariotti:
muitos fatores, a exemplo dos vínculos a que “quanto mais esforços fizermos para tentar ne-
ela está subordinada e, sobretudo, pelo receio gar a realidade, mais ela se mostrará tal como
de enfrentamento de algo novo. Entre a conti- é” (MARIOTTI, 2010a, p. 50). A humanidade,
nuidade e ruptura, a opção tende sempre mais portanto, precisa repensar e reformar o pensa-
para a continuidade dos processos. mento, buscando novos modelos de produção
A compreensão da realidade, hoje, está do conhecimento que levem em conta as incer-
a exigir uma racionalidade complexa que tezas resultantes das variações e emergências
transcenda as aprendizagens rotineiras, tri- do real. Estamos sendo desafiados a encontrar
viais e descontextualizadas e que permita ao um caminho epistemológico condizente com
aluno religar os saberes e captar as conexões os novos tempos, que nos aproxime do real. As
complexas e ocultas que constituem o tecido perspectivas paradigmáticas da complexidade
real. Por isso, aprender na e pela complexida- são alvissareiras, pois se assentam sobre leis,
de tornou-se um imperativo que emerge do princípios e categorias das novas ciências com
real. A questão que se impõe neste momento, aplicação a toda realidade e com potencial para
como um desafio, é: Será possível repensar o reformar nossas mentes em relação à aprendi-
panorama atual do processo educacional como zagem e produção de conhecimentos.

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Devemos estar vigilantes e atentos para medida lidar com a complexidade
não adotarmos uma postura que resulte em inclui lidar com o erro, a incerteza
uma ruptura radical com o passado e com e a ilusão. (MARIOTTI, 2010b, p. 2).
tudo aquilo que a humanidade já produziu e
vem produzindo, a exemplo de muitos pós- A interrogação, já muitas vezes formu-
-modernos adeptos de teorias anarquistas lada em relação a outros modelos de conhe-
do conhecimento que destroem e relativizam cimento, cabe, igualmente, para o paradigma
qualquer tentativa de aproximação do real. da complexidade: Que pretensões de validez
Por outro lado, não podemos continuar apos- podemos reivindicar para o paradigma da
tando nossos esforços em concepções unívo- complexidade que o torne imprescindível
cas do mundo, em metanarrativas, em visões para os tempos atuais? Devemos iniciar tendo
totalizantes e universalizantes que brotam de consciência de que, mesmo à luz do pensa-
sistemas de significação e de paradigmas em mento complexo, não há um caminho seguro
desconstrução. que nos garanta uma leitura e compreensão
Sobre as precauções que devemos to- do mundo. Por isso, é importante levar a sério
mar em relação à compreensão da incerte- o alerta que Costa nos faz com a afirmação:
za do real, são válidas as palavras de Morin:
“Dessa forma, a realidade não é facilmente Não há etiquetas, não há informa-
legível. As idéias e teorias não refletem, mas ções para explicar o mundo que
traduzem a realidade, que podem traduzir de estejam no mundo; é o sujeito
maneira errônea. Nossa realidade não é ou- complexo, que incorpora as antino-
tra senão nossa idéia da realidade” (MORIN, mias, razão e desejo, e que traduz
2000b, p. 85). Se a realidade não é percebida as mensagens do mundo exterior,
de imediato e não pode ser legível de maneira filtrando-as pela emoção e afetivi-
evidente, é urgente repensar nossos paradig- dade. (COSTA, 2003, p. 270).
mas com os quais analisamos e pretendemos
compreendê-la. Com base nesses argumentos, defen-
Conceber a incerteza de forma pedagó- demos que é uma tarefa imprescindível, em
gica requer assumir o desafio de reinterpre- todo o processo de educação escolar, repen-
tar as antigas cosmovisões e concepções de sar a estrutura paradigmática responsável
mundo e reaprender a compreender a realida- pela assimilação, apropriação e produção de
de da forma como ela está constituída, com conhecimentos e que determina, igualmente,
suas infinitas explosões, transformações, mo- a própria compreensão da realidade.
vimentos de ordem-desordem que parecem A educação escolar é desafiada a consti-
não se deixar aprisionar pelo pensamento. É tuir-se em um processo capaz de gerar um ser
fundamental levar em conta o que Mariotti humano em sintonia com sua época, atento
escreve na introdução de sua obra Pensando aos diferentes saberes que se colocam lado a
diferente: para lidar com a complexidade, a in- lado diariamente. Educar para a vivência em
certeza e a ilusão: meio a esse contexto complexo implica um
forte questionamento ao conhecimento fe-
Nossa percepção da realidade e de chado, estanque, padronizado, desconectado
sua complexidade nunca está isen- do todo, que impossibilita um diálogo enri-
ta de erro, incerteza e ilusão. Não quecedor e construtivo nos ambientes edu-
devemos fazer de conta que esses cativos. Cremos ser conveniente pensarmos
fenômenos não existem, mas tam- e organizarmos a educação escolar como um
bém não podemos nos limitar a rico espaço de valorização das certezas e in-
aceitá-los passivamente. Em conse- certezas, de problematização, de questiona-
quência, é possível dizer que em boa mento, de reconhecimento e de construção

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das possibilidades do pensamento complexo. Nosso objetivo com este estudo foi
Assim, ela se disponibiliza a aprender a com- demonstrar os avanços das ciências da com-
preender e ensinar a complexidade da vida, plexidade, bem como a pertinência do pensa-
do ser humano, do conhecimento. Aceitar mento complexo como um caminho possível
isso envolve ter presente, em primeiro lugar, de pensar bem para promover a apropriação,
que as certezas, por mais convincentes que assimilação e produção de conhecimento em
aparentem ser, não são absolutas, pois sem- relação a uma realidade que se apresenta
pre carregam consigo a incerteza, semente cada vez mais complexa, e, por isso mesmo,
de um novo saber. com a marca da incerteza.

Referências
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Estadual Paulista, 1996.

Dados autorais:

Celso José Martinazzo


Graduado em Filosofia e Pedagogia. Mestre em
Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
É Professor Titular do Departamento de Humanidades e Educação (DHS)
e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação nas Ciências da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ).

Óberson Isac Dresc


Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ).
Professor da Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul.

Recebido: 23/02/2013
Aprovado: 29/08/2013

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