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4 | LURA A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS

Toda a criação
é local
Em véspera de nova Capital Europeia bino; como compreender Bertolt Brecht e o da Sophia ou da Fiama sem a geometria
da Cultura em terras portuguesas, é-me teatro épico sem a experiência repetida da das linhas de sombra desenhadas pelo sol
pedido um breve texto sobre « a inscrição guerra na Alemanha?; e, entre nós e mais do Sul?
cultural e social do acto de criação » para a próximas, o que seria das obras poéticas Aquilo a que, sobretudo desde a
Lura, publicação vimaranense que conheço modernidade e incentivado pelos regimes
desde o primeiro número e acompanho com democráticos, se tem chamado, de modo
interesse. Parece ser um tema complexo e O velho ofício das substantivo, “Arte” (antiga, moderna ou
talvez seja. Pessoalmente, parece-me uma artes realiza contemporânea), antes de integrar o campo
questão quase de óbvia resposta: todo o cordato das actividades pedagógicas e
trabalho de criação nasce de uma relação o trabalho culturais de uma sociedade em tempos
atenta com a realidade imediata. Basta extraordinário de paz e se constituir num bem colectivo
revermos a história da arte e isso salta de libertação de – garantindo a mesma coesão social
à vista: o drapejamento das túnicas, ora que, durante séculos, foi salvaguardada
coladas ora libertas dos corpos, descrito uma energia latente pela religião – ou antes ainda de se
num baixo relevo de Fídias interpreta a que (…) se encontra mostrar como um produto exportável,
trivialidade do movimento ondulatório das contida nas coisas é, no fundamento, a expressão visível de
vestes leves num país quente e marítimo; a um trabalho moroso de observação e a
janela aberta sobre o mundo que foi, para que se apresentam reinterpretação exigente da experiência
Leon Battista Alberti, a pintura do Quat- diante de nós e nas do real.
trocento italiano localiza cenas idealiza- gentes com quem
das através da concretude dos objectos, da O velho ofício das artes realiza o trabalho
luz e das paisagens povoadas de ciprestes vivemos lado extraordinário de libertação de uma ener-
que, com facilidade, ainda hoje encontra- a lado. gia latente que espreita constantemente
mos nos arredores de Florença ou em Ur- pelas fendas da ordem social e se encontra

contida nas coisas que se apresentam dian- A memória de uma vida experimentada inteira e que continuam hoje a atravessar,
te de nós e nas gentes com quem vivemos num universo particular é, quase na sua vitalidade, as obras que nos lega-
lado a lado. A chamada “arte” sempre sempre, indissociável da génese duma ram. Serão estes os “lugares santos” das
nasceu do trivial e do imediato (não é, pois, manifestação artística. O lugar e as suas artes? Talvez sejam e nos auxiliem.
uma invenção burguesa da pintura holan- qualidades orientam a descoberta das
desa seiscentista nem da Pop britânica ou formas. Quem partilha um património Haverá obras onde essa relação é
americana), como as “mãos negativas” do geográfico e cultural com um autor, decantada e outras onde essa relação
Paleolítico nasceram do descanso da mão dispõe da possibilidade de um horizonte é manifesta, mas tenho para mim que
pousada na rocha. A singularidade de toda mais generoso de comunhão com as a ligação ao lugar é invariavelmente
a actividade dita artística é justamente o virtualidades da sua obra, do que quem a estrutural na realização artística mais
trabalho de transfiguração daquilo que se ela chega munido de instrumentos teóricos elevada e de vocação universal. Mas,
julgava estar visto e ser conhecido na sua mas desconhecendo a natureza do lugar lembremos que, no início do século
utilidade e no seu valor, num fenómeno que a incentivou a nascer para o mundo. passado, foi precisa uma Sónia Delaunay,
outro, que havendo lá existido sempre, ucraniana vinda de Paris e seduzida pela
em potência, só o labor do artista revela luz meridional, para ajudar o Eduardo
afinal em toda a novidade, inteligência e Viana e o Amadeo de Souza-Cardoso a
actualidade. O trabalho artístico ocupa-se abrirem os olhos para a matéria visual
da descoberta desta pulsão perigosa nos de impressionante colorido que as feiras,
elementos familiares. os brinquedos populares e a louçaria
tradicional do Minho ofereciam ao
Toda a criação é, pois e antes de trabalho dos artistas modernos. Muitas
outras qualidades, contextual; isto é, vezes, é assim: precisamos do ânimo
estreitamente associada a um tempo descomplexado de quem chega de longe.
histórico, a uma comunidade local e a uma Sabemos, há muito, desde “O caso mental
topografia. Não tenhamos a pretensão de português”, que o nosso problema é o
julgar compreender o Rossellini ou o Fellini provincianismo. Que é o mesmo que
ou o Pasolini ou mesmo o Moretti tão longe uma ansiedade em fugir do lugar por
quanto só os italianos são capazes de os Por outro lado, e pela mesma razão, é sinal falta de instrução e de imaginação. O
acompanhar. Do mesmo modo, muitos de uma intimidade conquistada com a obra cosmopolitismo, como o bilingue Fernando
equívocos culturais ressaltam das análises de um artista que há muito frequentamos, Pessoa concluía em 1932, está em nós (para
avançadas sobre as obras de João César quando – depois de a termos visto, escuta- que outra coisa serviriam as bibliotecas,
Monteiro ou de Manoel de Oliveira, pela do ou lido, estudado, revisitado, compara- as viagens e os museus senão para sermos
crítica francesa. Ou, pelo mesmo motivo, do com outras obras longínquas... enfim, mais justos observadores das coisas
a obra da Agustina Bessa-Luís resiste de a termos verdadeiramente presente –, presentes e do espaço onde vivemos?) ou
tão duramente à tradução. Os leitores experimentamos o sentimento da neces- não o encontraremos em lugar algum. As
que conhecem bem a história e a intriga sidade de nos encontrarmos nos lugares formas artísticas que atravessaram os
do Porto, como a necessária explicação onde aquela obra tomou forma e procurar- tempos e a violência política das fronteiras
da cidade à luz do Douro vinhateiro, mos compreendê-la in loco, na relação chã nacionais sempre souberam disto. E
estão naturalmente melhor habilitados que manteve ou mantém com uma localida- quem naquelas artes compreende alguma
para compreender o engenho literário de. Muitos de nós conhecem a experiência coisa, conhece com elas o testemunho da
da “amarantina” e a mordacidade do reveladora em que pode constituir-se a liberdade encontrada num lugar confinado
comentário social, político e cultural que visita aos lugares que determinados artis- e em pessoas pouco exemplares.
nele se espraia e o faz mover. tas habitaram, onde trabalharam uma vida

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