Você está na página 1de 8

“A gestão otimizada de si próprio na cultura do consumo”

Prof.ª Maria Cláudia Tardin Pinheiro *


Introdução
Este trabalho tem por objetivo repensar os ideais da sociedade iluminista na cultura de consumo
contemporânea, com seus específicos padrões de gratificação e as proporções desencadeadas pelo
pensamento de que o homem é um ser independente do social. Nas palavras do diplomata Sergio Paulo
Rouanet com o Iluminismo, “... o homem deixa de ser seu clã, sua cidade, sua nação e passa a existir por
si mesmo, com suas exigências próprias, com seus direitos intransferíveis à felicidade e à auto-
realização” (Rouanet, 2001 p. 35).
A violência contra a vontade das pessoas na democracia se dá de forma sutil, sem que se
percebam os condicionamentos culturais, impedindo, em conseqüência, a contestação do poder invisível
existente.
Outro objetivo deste estudo é refletir sobre alguns imperativos culturais da época da
autonomização do sujeito e o surgimento de costumes de um consumo exagerado de si mesmo, em que
chamo de gestão otimizada de si próprio, que mais parece uma depreciação da razão, da inteligência
com a homogeneização do pensamento.
A cultura pós-moralista e a ética indolor
A partir do século XVIII (Século das Luzes), nasceu nos modernos a intenção de organizar uma
moral independente dos dogmas religiosos e longe dos valores de sacrifício. Surge uma sociedade que
não exalta ou reverencia os mandamentos superiores (de Deus), nem os ideais de abnegação e, muito
pelo contrário, os desacredita. Dá-se início a uma cultura com ética fraca e mínima em relação aos
deveres sociais, a qual estimula os desejos imediatos, a liberdade de escolha, a qualidade de vida, as
normas do bem-estar, a paixão do ego, a felicidade intimista e materialista e a dinâmica dos direitos
subjetivos, e não permite às pessoas ligarem-se a algo para além si mesmas. Na visão do filósofo
contemporâneo Gilles Lipovetsky (1994, p.17), instauram-se as sociedades pós-moralistas com uma ética
“sem obrigação nem sanção”. Segundo o autor, a ética é uma das manifestações exemplares desta
cultura democrática, só que com normas indolores, que não exigem sacrifícios do indivíduo, nem deveres
heróicos, mas reconciliam coração com prazer, virtude com interesse e qualidade de vida presente com
os imperativos do futuro.
Isso não significa que a cultura pós-moralista fez desaparecer o espírito absolutista e extremista
em relação às virtudes. Para Lipovetsky, desenvolvem-se paralelamente duas formas opostas de
considerar os valores e de organizar o estado social individualista.
De um lado, uma lógica flexível e dialogada, liberal e pragmática, apostada
na construção gradual de limites, definindo princípios, integrando critérios múltiplos,
instituindo derrogações e exceções. Do outro, dispositivos maniqueístas, lógicas
estritamente binárias, argumentações mais doutrinais do que realistas, mais
preocupadas com o rigorismo ostensivo do que com progressos humanistas, com a
repressão do que com a prevenção (Lipovetsky, 1994, p.18-19).
Ao se extinguir a religião do dever, o individualismo assume duas formas e lógicas antagônicas:
o gerenciamento integrado, flexível e autônomo para a grande maioria (ligado às regras morais, à
eqüidade e ao futuro, isto é, individualismo responsável) e para as minorias excluídas, a sensação de
cada um por si, uma vez que estão perdidas e sem futuro (individualismo irresponsável). A partir desta
cultura, diversos problemas sociais crescem, tais como os roubos, os atentados contra os bens, a
especulação que se adianta à produção, a corrupção, a fraude fiscal além de outros que aumentam a
pobreza e a marginalização social.
Diversos fatores atuaram no processo histórico de desvalorização da ética do dever: fatores
econômicos tais como a política neoliberal que divide a sociedade e assegura a lei do mais rico; fatores
intelectuais e filosóficos como, por exemplo, nos anos 1960-1970, as idéias freudianas e as marxistas que
tornam sagrados os desejos de realização individual, de revolução e de uma vida em liberdade; fatores
*
Mestra e Doutoranda em Psicologia Social, Professora Assistente do curso de Administração da FMJ
socioculturais como, por exemplo, o advento do marketing e da propaganda na era do consumo,
incitando, cada vez mais, valores de bem-estar individual, uma cultura materialista e hedonista e a
indústria da moda, que objetiva homogeneizar os pensamentos e os costumes sociais, dentre outros.
Na cultura moralista antes do Século das Luzes, os imperativos valorizados eram a entrega do
indivíduo ao social através das práticas do dever. Reinava a idéia da crença num deus que
recompensava as virtudes e punia os erros, para desestimular a prática dos crimes. Já a época pós-
moralista, que tem a tendência de considerar o prazer imediato a finalidade da vida, coloca outros
imperativos à sociedade, tais como juventude, felicidade, saúde, eficácia, autonomia e narcisismo. O
imperativo narcísico é constantemente reforçado por uma cultura higiênica, erótica, desportiva, estética e
dietética. No lugar dos mandamentos severos da moral, temos o psicologismo e a euforia do bem-estar
(Lipovetsky, 1994, p.62). O mundo moderno consegue a emancipação do poder religioso através da
legitimação das ações individuais, da crença na sua auto-suficiência, uma vez que a razão de uma
pessoa pode observar muito bem os seus deveres sociais.
Parece que os modernos definem a moral como deveres categóricos que retiram do indivíduo
autônomo todos os benefícios e colocam a felicidade como direito natural do ser humano e reivindicação
legítima perante Deus. Só que os efeitos dessa reivindicação não são muito claramente observados,
como, por exemplo, o desenvolvimento do pensamento econômico liberal, que propaga a procura da
felicidade material infinitamente, não impõe limites ao lucro e relativiza as obrigações morais com o outro.
A moral parece ser um caminho, uma indicação àqueles que querem ser felizes e que têm interesses nas
virtudes.
O fato de os direitos subjetivos organizarem nossa cultura não significa que tudo seja permitido.
As transgressões libertinas não são bem vistas pela maioria. A vida erótica, por exemplo, é sempre
exibida na mídia, mas parece ser praticada dentro de certos limites. Existe uma regulação e ordenação
dos prazeres sem sermões, nem obrigações. O hedonismo do neo-individualismo é ordenado. A cultura
da felicidade é concebida através de normas e informações científicas que estimulam o autocontrole e a
vigilância de si mesmo, ou seja, uma ação contínua em busca de uma otimização dos próprios potenciais.
A propagação do consumo de si e os direitos individuais
Os meios de comunicação de massa ajudam a propagar a autonomia da moral individual ao
legitimar tudo que aparece, ao dispersar os critérios morais e os diferentes juízos, sem apresentar
nenhum dever como hegemônico. Eles trabalham o consumo sob o primado dos fatos sobre os valores
sociais. Tudo que é exposto funciona como uma mercadoria que se vende de maneira objetiva, com
sensacionalismo e com imagens novas e espetaculares.
O consumo não é apenas de objetos e de filmes, mas também da atualidade
levada à cena, do catastrófico, do real à distância (Lipovetsky, 1994, p.64).
A publicidade, por exemplo, quase não representa e valoriza as relações entre as pessoas e
enfoca muito mais as relações dos homens com os objetos. Ao esquecer as diferenças sociais e propagar
e vender status, ela incita o direito individualista à indiferença em relação aos outros, aos problemas ou à
violência social, sem perceber as possíveis conseqüências dos atos que ostentam segregação social,
minimizando as culpas dos indivíduos.
Os noticiários de TV, como outro exemplo, apresentam as notícias sem preocupação com o bem
e com o mal exposto e o que podem refletir. Eles colocam um desfile de informações sem comentários,
sem julgamentos e sem discussões sobre os temas.
Ao mesmo tempo em que busca divertir e gratificar, a cultura pós-moralista produz novos
imperativos ao indivíduo. Inicialmente, a imagem de si tem de ser muito bem cuidada e veiculada. É
importante manter a forma do corpo, lutar contra os sinais de envelhecimento, bronzear-se, divertir-se, ser
saudável, elegante, ter parceiros sexuais, demonstrar continuamente a felicidade estampada no rosto
(mas sem exageros – externar uma leve felicidade), ter profissionalismo e obsessão pela excelência em
tudo. Todos esses cuidados simbolizam que a pessoa sabe fazer uma gestão otimizada de si mesma e
será bem vista socialmente, isto é, ser considerada eficaz, ou ter uma vida com eficácia. Mas, em
contrapartida, essa dinâmica de preocupações narcísicas no presente gera muita ansiedade e
desqualifica o valor do trabalho das minorias desfavorecidas socialmente, marginalizando-as ainda mais.
Na visão de Lipovetsky, o hedonismo contemporâneo é gerido de forma light. Os trabalhos e a
procura de qualidade de vida e de saúde, em geral, são mais valorizados socialmente do que os
consumos voluptuosos. Os prazeres passam a ser objetos de informações (normalizações disfarçadas) e
estimulações. Por outro lado, a busca dessa felicidade leve e gerenciada socialmente conduz a um
conformismo e a uma indiferença nas pessoas, além de, em paralelo, minimizar a preocupação e
percepção de responsabilidade social com seus atos.
Quanto mais a cultura intensifica a liberdade dos direitos individuais, tanto mais parece aumentar
a insegurança nas pessoas em relação às suas vulnerabilidades e limites. Como é possível ser
vulnerável, feliz dentro dos moldes sociais e eficaz simultaneamente?
O receio de se perceber em contradição pode gerar desconfiança que usualmente é projetada
nos relacionamentos sociais. Relacionar-se com alguém implica querer rever seus posicionamentos,
emoções, interesses e lidar com as próprias suscetibilidades e frustrações. Não é nada fácil. Há muita
tensão envolvida. Parece ser menos dolorido desconfiar do outro, ter menos cuidado no trato com ele,
não dar intimidade ou ainda descartar a relação criando novas necessidades. A relação com o outro gera
muita angústia, pois não se pode controlar sua reação e muito menos se conhece com exatidão o que
motiva os atos das pessoas. Além disso, esse relacionamento gera ansiedade narcísica. Não se pode
controlar a imagem pessoal. O relacionamento com os outros indivíduos produz a transformação de si
mesmo e, com isso, as reações imprevisíveis dentro de cada um são externadas em comportamentos
que nem sempre são muito bem compreendidos e desejados pelas pessoas.
O direito de escolher livremente o que se quer diante de tantas ofertas sem um amadurecimento
interno conduz a um recuo na aproximação com o outro e um refúgio narcísico que parece diminuir o
hiato entre a vida imaginada e a real.
Conflitos da autonomia subjetiva
As sociedades democráticas contemporâneas estão cada vez mais competitivas e sem
referências fixas. Segundo Lipovetsky, esta época dos direitos e da autonomia subjetiva é de
desestabilização generalizada, além de gerar muito estresse e ansiedade. Até porque o modo de
navegação social implica uma lógica pluralista em que cada um pode usar o seu corpo e a sua vida,
desde que não prejudique ou faça imposições aos outros.
As identidades sociais, políticas, familiares, sexuais, profissionais são
flutuantes, os grandes mitos científicos e ideológicos estão caducos, o futuro está
carregado de ameaças de desemprego, é necessária uma formação permanente, é
preciso tomar decisões importantes sobre todas as coisas (Lipovetsky, 1994, p.81).
Por outro lado, existe uma contradição no consumo da performance de si que demonstra o
quanto é frágil o narcisismo das pessoas. Apesar de elas seguirem suas idéias, absorverem-se nos
planos que criam para sua vida e darem prioridades a eles, sonham com relações sociais, inclusive
amorosas, transparentes e mais duradouras. Sonham com relações que quebrem a solidão e a sensação
de incompreensão nas comunicações intersubjetivas.
O período moderno deposita a esperança de felicidade, da liberdade de expressão em que se
podem suspender as máscaras das identidades socialmente construídas e de realização, na idéia do
amor. O romantismo moderno cria a ficção de que é possível desapossar-se das barreiras sociais
construídas pela cultura individualista e entregar-se a um outro amorosamente escolhido que retribuirá
esse amor confirmando a imagem que o indivíduo faz de si mesmo.
O psicanalista Sigmund Freud, em seu artigo Sobre o narcisismo: uma introdução, demonstra
claramente essa idéia de que a meta e a satisfação em uma escolha objetal residem em ser amado.
Quando a pessoa, numa relação amorosa, não é amada, os sentimentos de auto-estima são reduzidos,
enquanto o fato de ser amada os aumenta.
Um indivíduo que ama priva-se, por assim dizer, de uma parte de seu
narcisismo, que só pode ser substituída pelo amor da outra pessoa por ele. (...) O
amar em si, à medida que envolva anelo e privação, reduz a auto-estima, ao passo
que ser amado, ser correspondido no amor, e possuir o objeto amado, eleva-a mais
uma vez” (Freud, 1914, p.116, 117).
Desta forma, o relacionamento amoroso é uma oportunidade de se buscar no outro a validação
da auto-identidade e construir, em conjunto, uma narrativa romântica, que é também espaço
intersubjetivo de projeções dos respectivos sonhos narcisísticos.
Em seu livro Amor: do mito ao mercado (1996), André Lázaro cita que a formação da indústria da
cultura se dá simultaneamente com o desenvolvimento da sociedade burguesa e da cultura individualista
que deposita no amor romântico a promessa para encontrar um lugar distante da compulsão à
diferenciação desta sociedade. O consumo de si mesmo é uma obrigação e, através da prática amorosa,
é possível diferenciar-se e legitimar na sociedade a singularidade da diferença. Para o autor, não parece
haver felicidade aceita socialmente fora desse raciocínio.
Para as massas que, a custos elevados, adaptam-se ao novo modo de
vida, a indústria oferece narrativas amorosas em que as possibilidades de felicidade
se refugiam no esperado encontro do par apaixonado... O amor torna-se, mais uma
vez, um método, desta vez incumbido de oferecer a todos a passagem para um
mundo ideal onde os interesses, as lutas, o jogo sujo e perverso da engrenagem
social não funcionam (Lázaro, 1996, p.223).
O historiador Christopher Lasch, em seu livro O mínimo eu, diz que a sociedade pós-industrial
apresenta diversos desastres que promovem a sensação de nostalgia do passado nas pessoas e temor
ao futuro, tais como aumento da criminalidade, a corrida armamentista, o terrorismo, a deterioração do
meio ambiente, o declínio econômico, etc. Logo, qualquer ato de investimento social ganha dimensões de
um exercício de sobrevivência diante do naufrágio geral. O refúgio das pessoas encontra-se no
narcisismo, uma prática para a sobrevivência psíquica do homem. Esse narcisismo é um recuo ou
contração defensiva do eu que não deixa claras as fronteiras entre o indivíduo e o seu meio. Na visão de
Lasch, a preocupação contemporânea com a identidade denota o desconforto em delimitar as fronteiras
da individualidade:
O eu mínimo ou narcisista é, antes de tudo, um eu inseguro de seus
próprios limites, que ora almeja reconstruir o mundo à sua própria imagem, ora
anseia fundir-se em seu ambiente numa extasiada união (Lasch, 1987, p. 12).
Esse mínimo eu não se organiza como resposta defensiva aos perigos e ameaças sociais, mas
se origina de uma mudança social mais profunda:
... a substituição de um mundo confiável de objetos duráveis por um mundo de
imagens oscilantes que torna cada vez mais difícil a distinção entre a realidade e a
fantasia (Lasch, 1987, p.13).
O narcisismo rejeita toda a diferença entre o eu e o mundo ao seu redor. É um retorno a um
estágio infantil de desenvolvimento emocional em que a pessoa não reconhece a existência do mundo e
dos outros de forma objetiva nem a independência das suas fantasias, mas acredita que existem para
gratificá-la ou contrariá-la.
A produção de mercadorias, a cultura do consumo e o consumismo exagerado da sociedade
estimulam, nos indivíduos, uma posição emocional fraca e dependente dos outros. O narcisismo, ou seja,
a tendência de enxergar o mundo como um espelho dos desejos, ilusões como também dos próprios
medos, é reflexo dessa cultura do consumo, em que as pessoas têm a enorme tendência de perceber o
meio como extensão de suas fantasias frustrantes e gratificadoras e assim explicam os fatos ao seu
redor.
A fantasia parece ser o escape psíquico perfeito à manutenção da liberdade em relação à
realidade, pois projeta o sonho no mundo real. Mas, em contrapartida, esse movimento de fuga da
realidade e projeção narcisística de seus anseios coisifica o homem.
O efeito especular faz do sujeito um objeto; ao mesmo tempo transforma o
mundo dos objetos numa extensão ou projeção do eu (Lasch, 1987, p.22).
Uma das formas da dominação do capital na contemporaneidade se dá pela redução do homem à
condição de coisa, conferindo-lhe valor comercial. Até o seu conhecimento é categorizado como capital
intelectual. Atualmente, a economia determina e contamina todas as dimensões da existência: a política, a
cultura, o social e a mentalidade individual. Esse movimento é chamado pelo filósofo Herbert Marcuse de
pensamento unidimensional típico dos tempos democráticos em que não se percebe que a “liberdade”
conferida às pessoas para pensarem, externarem os sentimentos, escolherem e agirem é, na realidade,
uma pseudoliberdade de fazer como todos fazem.
Esta é a forma pura de servidão: existir como um instrumento, como uma
coisa. (Marcuse, 1979, p.49).
Para Lasch, o homem contemporâneo paga um preço caro por sua liberdade. Primeiro, confunde
sua identidade com os papéis sociais que desempenha. Segundo, tem, à sua escolha de consumo de si,
do outro e do mundo, uma gama infinita de opções, o que lhe origina um descontentamento e o leva a
abster-se da escolha e a deixar suas opções em aberto, uma vez que pode tudo o que quiser. Terceiro,
os contínuos avanços tecnológicos impossíveis de ser plenamente compreendidos e controlados minam a
autoconfiança e a autonomia dos trabalhadores e consumidores, gerando-lhes um sentimento de
impotência e vitimação e uma passividade no planejamento e execução da produção.
Outro fator que acirra esse descontentamento do homem moderno é o estímulo incessante ao
consumo de imagens fantasiosas de si, do mundo e dos modos possíveis de se relacionar neste mundo,
o que amplia o abismo ou hiato entre a realidade e a fantasia. As publicidades funcionam nesse sentido,
como um artefato tecnológico desta época que restaura constantemente a ilusão da auto-suficiência,
criando uma dificuldade ainda maior para que se possa viver e aceitar uma existência com menos
fantasia, percebendo a tensão criativa entre os inúmeros desejos e a limitada compreensão do que se
vive e se entende. Se não se pode suportar enxergar essa tensão consciente de refletir o mundo em
constante não-entendimento e em contínua falta, a imaturidade e a irracionalidade se apoderam das
subjetividades, levando-as a crer que são livres ao escolher o que todos escolhem e compreender o
mundo como todos compreendem.
O hedonismo imaginativo moderno
O hedonismo moderno surge com a elaboração de uma cultura que prioriza determinadas
habilidades psicológicas individuais como o fantasiar e o sonhar acordado diante das diversas frustrações
diárias. Essa cultura significa o ato de compra, conferindo diferentes sentidos às mercadorias e diferentes
processos de fruição de prazer que os bens de consumo podem proporcionar.
O hedonismo tradicional envolvia uma valorização das experiências e estímulos externos reais
que podiam conferir sensações prazerosas às pessoas. Uma série de atividades poderia dar prazeres,
tais como alimentar-se, beber, ter relações sexuais, estabelecer relações sociais, cantar, dançar, jogar
etc. O hedonista tradicional buscava ficar cada vez mais tempo nessas atividades comendo, bebendo,
dançando e fazendo sexo.
Já o hedonismo moderno é baseado em emoções controladas pela imaginação. Há uma
mudança no padrão de gratificação, sai-se da busca das sensações experimentadas com a estimulação
do meio para as emoções sentidas pela condução imaginativa de cada um em suas trocas com o mundo.
O indivíduo decide a natureza e a força dos estímulos que quer experimentar e, conseqüentemente, de
seus próprios sentimentos através da imaginação. É um hedonismo racionalizado, auto-ilusório, que
caracteriza a moderna busca de prazer. As pessoas podem evocar estímulos gratificadores mesmo na
ausência exterior deles.
O sociólogo Colin Campbell (2001) considera o hedonista moderno um artista do sonho, com sua
aptidão de inventar uma ilusão que se reconhece falsa, mas que se sente verdadeira:
O indivíduo é tanto o autor como a platéia no seu próprio drama”
(Campbell, 2001, p.115).
O impulso de fantasiar sem o limite dos dados reais está associado à fuga da realidade que pode
ser vivida com tédio, frustração ou fracasso. Busca-se um prazer recluso, vivido em toda intensidade nos
sonhos, tratado como se fosse real, buscado, desta forma, incessantemente na realidade. Com isso, é
muito comum a insatisfação com a vida e a enorme ansiedade para agarrar todos os novos prazeres que
são criados e prometidos. Acredita-se que a ilusão pode ser experimentada no mundo, que, em geral, nos
proporciona prazeres inferiores.
Campbell comenta que a frustração com a vida e a busca da realização dos prazeres pela ilusão
geram anseio contínuo nas pessoas, desencadeando um consumo de relacionamentos assim como de
bens e serviços que se renovam a partir de sucessivas decepções.
O ciclo de desejo-aquisição-desilusão-desejo renovado é um aspecto geral
do hedonismo moderno e se aplica tanto às relações interpessoais românticas
quanto ao consumo de produtos culturais, como roupas e discos. (Campbell, 2001,
p.132-133).
Os produtos culturais oferecidos na indústria de consumo, inclusive as propagandas, apóiam e
alimentam a elaboração de sonhos acordados. Os produtos e serviços são mais consumidos pelo que
eles podem representar nas imaginações dos consumidores. Em geral, representam uma imediata
satisfação dos desejos ou dos sonhos que nem sempre podem ser satisfeitos alegremente na realidade.
O consumo tem grande importância na construção das sociedades modernas e permeia a maior
parte das atividades humanas, pois, usualmente, as pessoas procuram consumir coisas diferentes,
seguindo o padrão de gratificação das emoções através da imaginação que ocorreu a partir do século
XVIII, tão estimulado pelas publicidades.
Segundo o psicanalista Renato Mezan (2002), as peças publicitárias apresentam a possibilidade
de realização dos desejos infantis contidos nos sonhos adultos:
Nesse plano, ela seduz e excita a criança que existe em nós, e isso em
todos os aspectos relevantes do funcionamento psíquico: o desejo sexual em suas
várias formas, os anseios narcísícos e a vontade de superar os limites impostos
pelas normas sociais sem por isso ser castigado. (Mezan, 2002, p.316).
O cultivo da imagem própria com a mercadoria no monopólio da aparência
Segundo o filósofo Wolfgang Fritz Haug (1997), na cultura capitalista, a apresentação estética
de si mesmo se faz através das mercadorias compradas. As propagandas têm a função de lançar olhares
de valorização amorosos às mercadorias. Elas impressionam os consumidores vendendo a ideologia da
felicidade.
Um gênero inteiro de mercadorias lança olhares amorosos aos
compradores imitando e oferecendo nada mais que os mesmos olhares amorosos,
com os quais os compradores tentam cortejar os seus objetos humanos do desejo.
Quem busca o amor faz-se bonito e amável. (Haug, 1997, p.30).
O capitalismo precisa do mundo das aparências e exerce um domínio sobre as pessoas ao
fasciná-las com as aparências artificiais produzidas tecnicamente nas mercadorias, nas publicidades e
nos vendedores. Vende-se muito mais imagem do produto e da marca, além de sonhos e promessas de
reconhecimento social, do que fins utilitários dos bens de consumo.
Segundo Haug, o capitalismo em geral domina a consciência das pessoas ao oferecer o que
mais lhes agrada e o que elas procuram e não esquecem. Só que a apresentação estética da mercadoria
provoca uma ambigüidade no consumidor, pois parece satisfazê-lo com todo o aparato imagético criado
ao redor do produto, mas, ao mesmo tempo, dispara um desejo de consumo contínuo, até porque a
utilização de um produto geralmente vem associada a outros para formar e vender uma imagem
otimizada do consumidor.
No convívio social organizado a partir dos imperativos da eficácia, não há espaço para
expressão de tristeza, medo, insegurança, inveja, dúvida, entre outras manifestações humanas tidas
como inferiores, rebaixando, na hierarquização social, aquele que a expressa. Os produtos são, então,
ofertados pelas publicidades como meios de acabar com o medo, a insegurança ou, quem sabe, um
desejo instintivo insatisfeito (de fome, sexo etc.).
A nossa cultura da eficácia impôs novos padrões para se obter sucesso na vida, na profissão, na
conquista sexual e no amor: a aparência. Os consumidores compram diversos produtos que compõem as
“embalagens” que desejam para si mesmos como meio para se tornarem vendáveis a maior parte do
tempo. São diversos cuidados e setores industriais que trabalham em conjunto para formar a melhor
embalagem ou imagem de consumo de apresentação de cada um. Tanto que para Haug:
Enquanto um setor comercializa a embalagem das pessoas, o outro
comercializa o seu simbolismo amoroso, um terceiro a sua aparência física, a
textura e o odor da pele, a apresentação do rosto, a cor, o brilho e o penteado.
Agentes especiais – chamados ‘visagistas’, ou seja, ‘fazedores de rosto’ –
intermedeiam a apresentação do rosto feminino. ‘Qual o rosto’, escreve a
correspondente de moda do Frankfurter Rundschau, ‘a ser utilizado pelas senhoras
no inverno de 1971/1972? ’ De modo algum os visagistas ambicionam obter mais
naturalidade – pelo contrário: a mais extrema artificialidade. (Haug, 1997, p.107-
108).
A sensibilidade humana é moldada de maneira invisível e indolor pela indústria cultural. Invisível
porque são diversas necessidades criadas culturalmente sem imposições. Não há obrigações. Mas existe
moda para tudo que é consumível e eventos sociais em que ela é divulgada. Existe também discriminação
social daqueles que não se apresentam na imagem como a elite da sociedade determina. Com a
globalização, o cliente ideal (o adolescente) torna-se o ideal de consumo universal. Indolor, porque as
constantes inovações estéticas transformam o valor de uso deixando o consumidor atordoado para se
atualizar e ansioso com sua apresentação e aceitação social, sem que perceba sua ânsia de consumo.
Muito pelo contrário, em geral os consumidores compulsivos acham que obtêm satisfação com suas
compras e não percebem sua ansiedade.
Os processos de padronização da sensualidade são invisíveis e indolores, porque também
parecem naturais aos consumidores.
O que atrai os indivíduos na estética das mercadorias reside em sua
sensualidade e é considerado agora como impulso primitivo, individual e
espontâneo. Enquanto esses processos, nos quais se padroniza a sua
sensualidade, ocorrerem à sua revelia, eles parecerão naturais e caracterizarão a
história natural, enquanto pré-história anacrônica ainda presente na sociedade
humana. (Haug, 1997, p.134).
O psicólogo Jorge Coelho Soares, em seu livro “Marcuse: uma trajetória” (1999), analisa como a
ideologia totalitária da sociedade de consumo apresenta disfarces na repressão e manipulação das
pessoas, divulgando sua produção em prol da melhoria de vida dos indivíduos. Desta maneira, inibe a
percepção da opressão social e, conseqüentemente, a raiva que poderia ser disparada a esse sistema.
Como se conhece, na visão psicanalítica, raiva que se volta ao interior da pessoa torna-se culpa e depois
depressão.
Da impossibilidade de exprimir agressividade contra um sistema opressor –
que deixa de ser percebido como tal, e de onde o indivíduo aufere uma existência
material cada vez melhor – introjeta-se esta mesma agressividade, e o impulso
agressivo mergulha no vácuo. Descaracterizando, ao mesmo tempo, a repressão
como um ato de violência contra o indivíduo, responsabiliza-se este mesmo
indivíduo pelo seu próprio mal-estar, instalando nele a culpa, que inibe e imobiliza
(Soares, 1999, p.98-99).
Como se pode observar nas palavras de Soares, a dificuldade de raciocínio crítico sobre a
engrenagem manipulatória do sistema totalitário impede que os indivíduos identifiquem que não são os
únicos responsáveis pela dor que carregam. Se essas questões fossem mais discutidas e
problematizadas no convívio social, muitas depressões poderiam ser evitadas.
Conclusão
Este trabalho pretendeu refletir um pouco sobre a falta de consciência de servidão em que a
sociedade contemporânea se encontra, ou seja, a sua irracionalidade. Vivemos o sonho da liberdade,
acreditando que ele é real. Não é possível resistir à alienação se não conhecermos os mecanismos de
controle social.
A indústria cultural transforma o mundo objetivo dos bens de consumo numa extensão da mente e
do corpo. Os consumidores se reconhecem naquilo que compram. Alguns produtos parecem retratar as
suas “essências” e “almas”. Segundo Marcuse, a disponibilização dos produtos ao maior número de
indivíduos e de classes sociais em nome da propagação do bem-estar social retrata um bom estilo de vida:
a padronização do pensamento e do comportamento unidimensionais.
A preocupação excessiva com a imagem de si ao outro em nossa época, preocupação reforçada
pelas publicidades e indústria cultural em geral, retrata a dominação da razão. O incômodo e a atenção
excessiva com a administração de si, buscando a eficácia delimitada pelos padrões sociais, e a venda de
si ao outro como um produto indicam o quanto se deseja ser incluído no sistema. É muito difícil resistir ao
pensamento unidimensional e aos imperativos do consumo de si. Estimula-se a diferenciação contínua,
mas o caminho para a diferença é através da homogeneização, é buscar igualar-se a todos e seguir as
modas. E a globalização, com as suas determinações, vem a aprofundar o processo de
unidimensionalização do homem.
A cultura da felicidade propaga que divertir-se é estar de acordo com os jogos sociais e manter a
aparência otimizada sempre. Com isso, não há problematização nem reflexão sobre os imperativos do
viver e da diversão.
Ao procurarmos e consumirmos estilos de vida e imagens que não são produzidos por nós e que
não nos dão sentido, estaremos sempre com a sensação de ânsia para não perceber a falta constitutiva
da existência humana. Falta essa que, no mito de Narciso, o fez acreditar preencher através do duplo de
si mesmo, a imagem que viu refletida na água, imagem que idealizou e que amou. Mas de tanto amor por
essa imagem que preenchia seu vazio e que, portanto, nada mais despertava o seu interesse, acabou por
morrer.
A gestão otimizada que cada um é levado a fazer de si na cultura do consumo; e, às vezes,
necessária à sobrevivência, no sentido de pertencer à sociedade, parece estar seguindo os rumos de
Narciso. Parece estar fechada sobre si mesmo, com contradições que, se não forem percebidas e
questionadas, se tornam mais insolúveis, gerando mais e mais ansiedade. Torna-se necessário enxergar
que a imagem idealizada de si é, no fundo, momentaneamente, prazerosa e motivadora, quando há
esperanças de realizá-la, mas também é alta fonte de descontentamento e desprazer, quando não se
sabe como pô-la em prática. A esperança não torna a ilusão real, ainda mais se depender do desejo e da
ação de outrem. É emergente parar de só se buscar a imagem otimizada de si no espelho do olhar do
outro e aprender enxergar melhor a si e a esse outro, relacionar-se com ele e mergulhar nas mudanças
que esse envolvimento interpessoal imprevisível desperta. Mudanças que certamente conduzirão a outras
formas de relacionamento que envolvem menos consumo de si, do outro e do mundo. Mudanças que
serão descobertas pelo uso da razão sensível e do exercício de um espaço de racionalidade
intersubjetiva.
BIBLIOGRAFIA
CAMPBELL, C. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno . Rio de Janeiro, Rocco, 2001.
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. (1914). Obras Completas, v. XIV, Imago, Rio de Janeiro, 1974.
HAUG, W. F. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo, UNESP, 1997.
LASCH, C. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo, Brasiliense, 1987.
LÁZARO, A . Amor: do mito ao mercado. Rio de Janeiro, Vozes, 1996.
LIPOVETSKY, G. O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos . Lisboa, Publicações Dom
Quixote, 1994.
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
MEZAN, R. Interfaces da Psicanálise. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
ROUANET, S. P. Mal-estar na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
SOARES, J. C. Marcuse: uma trajetória. Londrina, Ed. UEL, 1999.

Você também pode gostar