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Minha vida.

Voltei a ser apenas a espera que não crê


em si mesma. Aqui, diante do computador, a
madrugada lá fora, o amanhã pelas ruas, antes e
depois do escritório. Às vezes um avião fretado sobre
as nuvens. Quem diria. E todavia nada mudou em
relação à morte, ao desejo de um fim, sim, que não
tarde. As pessoas parecem satisfeitas ao redor.
Vivem e se apegam. Minha vida, não a vivo. É espera.

Foi bom quando encontrei esse trabalho ligado a


games. Eu próprio não gosto de games, de jogar,
todavia a arquitetura deles me fascina, faz menor a
opressão dos dias maus e menos tresloucados os
bons, os bons demais, a euforia. Deve haver aqui um
sentido oculto. A alegria ser mórbida, o trabalho
destinar-se a algo que não gosto. Como subsistisse
da plantação de couve-flor, ou trabalhar feliz
construindo violinos que detesto ouvir.

O quarto. Aqui passo essa parte do dia em que a


escuridão me abriga ao mesmo tempo em que sonho
com a luz de um dia que provavelmente não existe.
Aqui. Onde ontem tive com alguém uma conversa
sobre solidão, sobre o que é a solidão chique das
letras e a nua e crua do cotidiano. É uma moça
especial. Gosta das músicas que ouço, gosta dos
livros que leio. Especial afinidade – existe outra
forma? Ao longo da tarde esteve aqui, pela fibra
ótica. Isso é chique. A verdade nua e crua, com ela
mal tenho contato. Feliz ou infeliz, sou comigo
mesmo.

Quem mais há de saber a esse respeito? Cada um é


sozinho, de um jeito ou de outro. Menos talvez
quando se assume. Solidão é quase ser – nascer, ter
orgasmo e morrer, eis o resumo da existência que
não se compartilha. Os detalhes talvez. Na família,
no casamento, nas festas, nos finais de ano, nos
shoppings. Talvez a idade, talvez o deserto, talvez a
consciência que acovarda, não sei. Dou por mim
assim elevado, assim dignificado, e para quê?
Ninguém se lembrará de mim exceto quando não
fizer qualquer diferença para mim, para meu corpo,
essa angústia ambulante, onde cheguei a pensar um
dia que houvesse algo que eu não poderia
dissimular. Mas tudo é dissimulável e sobretudo a
angústia.

Estou me acostumando a não viver. Ou talvez a essa


outra dimensão de vida, além da vida. Como tudo, é
questão de ponto de vista. Não nado mais no imenso
mar como na adolescência, não tenho mais olhos
para toda e qualquer mulher como se fosse a
perfeita, derradeira. Nem mesmo caminho como
antes, com a inspiração que enche o peito e dá
postura. Mas tudo relacionado com essas coisas e
todas as demais ainda capto, como matéria-prima. O
que quer esse homem que chegou no apartamento
vizinho? Por que as pessoas são tão rumorosas?
Vivem talvez?

Silêncio. Os sons que o dia oculta. O computador, o


ventilador, e um silêncio ainda mais profundo, em
que todo som foi tragado e talvez os pensamentos.
Uma rua deserta depois da chuva da madrugada.

Não sei mais expressar com palavras. Talvez o que


sinta não seja uma coisa má. Essa segurança. Esse
desapego. Foi com a cabeleireira que tive uma das
conversas mais marcantes deste ano. Ano que
termina. Em geral é assim, me dou bem com as
pessoas do comércio, os prestadores de serviço, em
geral pessoas muito mais jovens e quase sempre de
outro nível cultural. Com ela, com Jane, deixei
escapar um “perfeccionista” bem vadio, e recebi
uma resposta adequada. Você não me acha relaxada,
espero. Isso foi na quinta-feira, há três dias. Desde
então não me atenho mais às palavras, sou como a
maldição de Cassandra ao inverso, todos acreditam
em mim, no sentido mais amplo – entendem e
confiam. Gostam de mim. Sentimento leve e bizarro.
Não quero mais grandes coisas, penosas demais para
meu intelecto. Não cria possível mas agora ao menos
tentarei, sim, tentarei construir uma confiança que
se assemelhe à da criança para com a mãe ou dói cão
para com seu dono. Há cerca de três dias portanto
experimento uma vida diferente. Sintomático que é
um período do ano para o qual eu esperava
pequeninos desastres. Trovões inquietando o cão – e
quando digo “inquietando” uso de um eufemismo -,
enchentes na cidade, tempo abafado, suor sem
banhos que me valham, e sobretudo um tempo sem
criatividade, sem ânimo para fazer as coisas. Todavia
não tem sido assim, quero dizer, as coisas em si são
essas mas há motivações inesperadas, o que me faz
pensar que me saboto, o que não deveria ser uma
surpresa para mim. O cão não vai morrer por mais
que treslouque, ao contrário, pode aprender com o
mesmo raio que o desnorteia.

Quero pensar que a vida feita de esquetes trágicos


não seja no todo trágica, sempre há como inserir um
toque de arte onde há dor e beleza onde nada
aparentemente escapa da miséria. Então, se a
espera não se crê, que haja vida. Se esse pássaro
matinal augura, por que não estará louvando no
mesmo canto? O avião que me deixou na ilha é um
de uma insuportável acepção de pessoas, mas não as
nuvens que abaixo dele flutuavam. Beleza. E daí?
Digo a ela: De que me serve?
Ah, rejubilem porque a vida é de vocês, normais –
essa que de mim apenas se aproxima nas horas
vagas e jamais chega.

Ninguém os matará, nem mesmo a inevitável morte,


ainda que para alguns loucos mortos já estejam.
Que me importa. Morreram de qualquer modo. Sirva-
me de consolo. Não. Não sou assim. Não sou um
assassino. Então vivam. Dá no mesmo.

Às vezes um avião fretado. Está acima de minha


compreensão. Mais real é a menina que levei para o
hospital e com quem lá fiquei até que recebesse alta
da cirurgia. Minha menina. Sei que tenho esse
impulso de amar as mulheres como uma só, até já
escrevi um livro sobre isso, mas essa é a mulher que
sei me foi destinada. E isso é o destino. Algo que se
apresenta como opção, uma encruzilhada que
devemos tomar à direita e, se não tomarmos, não
deixará por isso de ser nosso destino, ainda que
nesse caso não cumprido. Agora ela dorme. Tomou
mais um analgésico e dorme. Nasci para cuidar de
outros. Não sei cuidar de mim mesmo.

Calmo. Porque cansado. Deitei mas não é cansaço de


sono. Não sei direito o que é. Sei que na cama não
durmo e fora dela, exceto escrever, tudo é ânsia.
Mas talvez meus sonos em momentos e lugares
alternativos – nas conduções, depois do almoço
recostado em mesas – recobrem minha força, até
porque não é tanta. Quando calmo, a música é bem-
vinda. Fora disso, só o silêncio dá alguma sensação
que da paz se aproxime. Tenho andado com essa
espécie de síndrome, embora há muito, muito tempo
eu me abstenha de tudo. É talvez a memória de meu
corpo. Acho que Proust falou sobre isso.

Vi um filme estranho, Capitão Corelli (O bandolim do


Capitão Corelli, na verdade). É sempre estranho para
mim tudo que diga respeito a política, especialmente
à política de guerra, da qual a guerra mesma é um
retrato fiel. Se a política na paz não é muito
diferente, há essa diferença, seu resultado não é tão
visível e o que se vê só parece tenebroso aos que
são diretamente afetados (no fim quase todo mundo,
mas é como o imposto embutido nos produtos. Mas
aí os países com sistemas perfeitos deveriam ser
perfeitos e não são. No fim, esses paraísos na terra
são mais perversos porque dão uma ilusão de
felicidade na organização política que a vida
simplesmente rejeita. Já por aqui, no nosso terceiro-
mundinho, as mazelas sem fim sempre encontram
pessoas esperançosas – e essa é a única esperança
que conta, a que ajuda a viver agora, não a que
vislumbra realmente uma vida melhor onde aí, só aí,
seremos felizes.

Foi numa hora dessas, num domingo da infância. O


colégio interno. Pavor. A separação de minha mãe,
uma dor indizível em meio a outros alunos,
tranqüilos, como se fosse a coisa mais comum do
mundo. Mas foi apenas dia desses que relacionei
essa angústia com hora marcada e esse fato infantil.
Passei anos sem saber. Entardece o domingo e cá
estou eu, sufocado em minha quase sensual
depressão. Deve ter alguma coisa a ver, mas de que
adianta saber? Desde que soube, ou achei que sim,
nada mudou. Crepúsculo de domingo é igual a terror.
Essa sufocação. Essa respiração consciente. A morte
do mundo que todavia me espreita como a mão do
assaltante pronta a esganar o morador
desprevenido.

Os vizinhos fazem parte de que civilização? Num dia


assim, ao medo adequado, tento pensar nas
obrigações de amanhã para me acalmar. Tenho de
estar no banco às 10 para resolver a questão de meu
abono, depositado indevidamente numa conta
inativa à qual não consigo ter acesso nem
transferem o dinheiro. Faz mais de seis meses. O
Estado gera dúzias de K. por dia. Quero lá saber de
Concursos como todo mundo está fazendo, para
servidor público. Não hei de dedicar meu mistério a
tal sobrevivência. Prefiro os games. É certo que hoje
ando de avião fretado e amanhã poderei estar falido.
Faz mais sentido do que estabilidade no emprego. O
que por Deus tem estabilidade na existência. Então
me dêem meu dinheiro e não mexam com quem está
quieto.

Os dias vão ficando mais difíceis à medida que se


aproxima o natal. Hoje enfim caiu a tempestade que
todos sabem que cairá, causando os danos que todos
sabem que causarão, e todos sabem que ninguém
soube o que fazer para prevenir, desde as pessoas
que não descartam o lixo devidamente, à autoridade
que promete sabendo que não fará. Também hoje,
serviços de banco, numa pet-shop, numa loja de
quinquilharias – simpáticos comerciantes faltam com
as palavras e trazem transtornos a planos que eu
havia feito. Mas que esperar de comerciantes
quando é regra não ter palavra, de coisas banais a
importantes, mesmo entre parentes e amigos – ou
deveria dizer apenas amigos, porque parentes são
bacanas apenas nas fotografias de família.

Não honrar a palavra se tornou de resto uma coisa


banal.

Com o mundo desabando na tempestade e tanta


gente perdendo tudo o que conseguiu ao longo da
vida (mas não a vida, para permanecerem sabendo
que perderam), é de se pensar que Deus também
não está fazendo a menor força para reduzir a
tragédia das pessoas. Se restar apenas o mundo por
vir, que seja tão perfeito em seus efeitos de
harmonia e beleza como este é em suas mazelas e
miséria e dor.

Então escrevo, escrevo vorazmente, e dessa escrita


me embriago, como se a lucidez viesse após esse
êxtase, e não o inverso, passo a saber de mim pela
palavra, e passo a viver. Então o que escrevo e como
o faço não tem tanta importância, não pelo menos a
importância de me conhecer que alcancei pela
escrita. Deveria ser de se questionar o valor de se
conhecer, uma vez que pouco muda ao redor, ou
esse valor existe exatamente porque nada muda ao
redor, porque dentro é o único lugar onde as coisas
precisam ser aperfeiçoadas, e o redor é só um pano
de fundo, como o silêncio terrível dos espaços
infinitos, de Pascal, que aliás se mudou algo com
seus pensamentos mudou a si mesmo e se sua
escrita mudou, não foi, definitivamente, pela
qualidade formal.
Não quero todavia mais me conhecer. Queria a paz
da ignorância. A isso devo chamar de paradoxo, eu, o
superautoconsciente. Morro e deixei de tentar
acreditar num resgate, que possa a escrita ensinar o
prisma da posteridade, não me interessa mais minha
posteridade de ninguém. E se não me interessa
mais, a quem interessaria, quero dizer, a quem
dentre os que não pertençam a essa posteridade?
Tudo o que quero são objetivos seculares – manter
meu bom emprego e meu vínculo afetivo estável. Se
no meio do caminho a grandeza da literatura e a
miséria insistem, isso se deve à vaidade da qual de
há muito deveria ter escapado.

Foi um ano difícil, um ano produtivo e difícil. Nunca


estive tão bem, nunca tão realizado, nunca chorei
tanto. Minha mulher me repreende. O que você quer
afinal? Ela tem razão mas não dou ouvidos. Quando
der ouvidos a alguém que tenha razão em relação ao
erro de minhas razões, o mundo não me caberá mais
e preciso dele para seguir vivendo. Eu não quero
nada. Quem pode imaginar o quanto se exige de
esforço para conseguir não querer com tamanha
intensidade?

O quarto. De novo. No fundo nem preciso do mundo,


não enquanto tiver esse quarto e esse computador.

O açougue aqui embaixo do prédio, ouço-os agora,


acordaram. Vendem na quantidade presumida da
procura. Miguel e sua mulher, meus vizinhos do lado,
são seus melhores fregueses mas estão ainda
restritos às necessidades das pessoas cujos calçados
conserta. Ele se aproxima agora da loja de
ferramentas de Oliver, cujos rendimentos crescem ou
diminuem na proporção das idas lá do açougueiro.
Sônia costura para fora, vive disso. Todos comem
carne. Nem todos substituem ou afiam regulamente
suas pás e enxadas e uma boa e definida parte das
pessoas costura as próprias roupas. Isso é vida. O
quanto a internet está mudando isso e é para melhor
ou pior?
Porque há um outro ciclo além do econômico. As
pessoas vivem suas vidas dependentes de como vive
o resto do mundo. A aspiração moral estagna na
pressão coletiva, e todos são doces carneirinhos
(mas se acham únicos). Outrora isso se resolvia no
surgimento de um alguém cujas idéias
revolucionárias induzissem ao Bem de tal modo que
seu estado de alma se propagasse, mais ou menos
como teria pregado Shumpeter se fosse Bérgson.
Mas uma ruptura não parece mais possível no novo
milênio porque no hábito acostuma-se a toda sorte
de necessidade e torna-se fácil não pensar à frente,
e torna-se fácil esquecer. Somos reféns da
tecnologia: destrói-nos como indivíduos.

Hoje entrou no ar o Google Book. O livro entrando


enfim na era digital. Ainda bem que não ganho a vida
com literatura. Na imaginação as coisas estão mais
seguras para os fracos. Não o mar mas um livro nas
mãos. Crédito ou débito, senhor? Caminhos do
milênio.

Houve esse instante em que a vida se desligou do


mundo e perdi as estrelas do céu. Quando começou a
azáfama dos passarinhos, o espaço entre os galos,
que se houvera comprimido, voltou a se deslocar no
tempo. A proximidade do sol deixa a Natureza em
frenesi, introdução do rei no salão de festas após
algumas danças. Uma e outra revoada. E outra mais.

Fez-se uma daquelas ocasiões especiais em que o


minuto que passou pouco apresenta em comum com
o atual e o seguinte terá igualmente atributos
peculiares, distando uns dos outros não o período de
tempo que os separa mas todos os séculos
culminantes no Juízo. As melhores idéias da Filosofia
e da Religião estão contaminadas pela mentira de
que tudo depende de um sistema, de que, bem
dirigidos, os homens externarão sua bondade, seu
espírito nobre, sua generosidade, sua inteligência e
desprendimento. Que nada. São todos poços sem fim
de egoísmo, vaidade, estupidez. O gato se agita,
ergue os olhos para o teto como se visse os
pássaros, suas garras chegam a se vergar. Talvez o
fantasma de meu amor esteja inquieto. Que tristeza!
– exceto por ela estar livre. Meu espírito é levado
para um canto mais sombrio do muro onde se
erguera o fícus no quintal agora no arrebol imerso.
Logo ensaiarei um sorriso, tocado pela súbita
expectativa traduzida pelas primeiras luzes do dia a
tangenciar o monte diante do qual o mar brame seu
misterioso refrão de louvores metálicos.

Hoje é a final do mundial de clubes, Internacionale


de Milão e Mazembe do Congo. Futebol. Alguém
ainda consegue se enganar com isso? Que, por
exemplo, a Copa do Mundo no Brasil será um grande
negócio? Será...

Está passando nos cinemas A rede social, a


“verdade” por detrás dos sites de relacionamento.
Um serviço gratuito, que demanda investimento
pesado, é tão somente para que as pessoas
interajam e se divirtam? Mas você e eu demos
nossos nomezinhos e tudo a nós referente. Nem em
1984 se pensou tal Big Brother.

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