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Aranha do meu destino

A aranha do meu destino


Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.

É que a teia, de espalhada


Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.

Aqui na orla da praia

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,


Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio


Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,


Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quasi já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,


Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar


Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
Boiam leves, desatentos
Boiam leves, desatentos,
Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das águas.

Boiam como folhas mortas


À tona de águas paradas.
São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remédio,


Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se para, se flui;
Não sei se existe ou se dói.

Contemplo o que não vejo


Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quasi escuro,
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;


Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,


No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe


Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste,
Mas triste é o que estou.
Não sei ser triste a valer
Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma


E a mentira da emoção
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.


Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,


Quando o Fado os faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E a ambos nos vêm calcar.

‘Stá bem, enquanto não vêm,


Vamos florir ou pensar.

Tudo o que faço ou medito


Tudo que faço ou medito 
Fica sempre pela metade, 
Querendo, quero o infinito. 
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica 


Ao olhar para o que faço! 
Minha alma é lúcida e rica, 
E eu sou um mar de sargaço —

Um mar onde bóiam lentos 


Fragmentos de um mar de além... 
Vontades ou pensamentos? 
Não o sei e sei-o bem.
O menino da sua mãe

No plaino abandonado 
Que a morna brisa aquece, 
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.
 
Raia-lhe a farda o sangue. 
De braços estendidos, 
Alvo, louro, exangue, 
Fita com olhar langue 
E cego os céus perdidos.
 
Tão jovem! que jovem era! 
(Agora que idade tem?) 
Filho único, a mãe lhe dera 
Um nome e o mantivera: 
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira 
A cigarreira breve. 
Dera-lhe a mãe. Está inteira 
E boa a cigarreira. 
Ele é que já não serve.
 
De outra algibeira, alada 
Ponta a roçar o solo, 
A brancura embainhada 
De um lenço... Deu-lho a criada 
Velha que o trouxe ao colo.
 
Lá longe, em casa, há a prece: 
"Que volte cedo, e bem!" 
(Malhas que o Império tece!) 
Jaz morto, e apodrece, 
O menino da sua mãe.
E há poetas que são artistas
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!


Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
   
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos,
E não termos sonhos no nosso sono.

O que nós vemos das coisas são as coisas


O que nós vemos das coisas são as coisas.
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),


Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
Eu nunca guardei rebanhos
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estacões
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do Sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego


Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Com um ruído de chocalhos


Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva


Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos.


Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr-do-sol
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos


Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Eu nunca guardei rebanhos (cont.)
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me veem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
Não tenhas nada nas maõs
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem


Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que trono te querem dar


Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem


Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem


Da estatura da sombra

Que serás quando fores


Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,


Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica


E sê rei de ti próprio.
O que há em mim é sobretudo cansaço
O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,


As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,


Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

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