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08/04/2020 Há relação entre coronavírus, ganhadeiras da viradouro, domésticas e trabalhadores de app?

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DIREITO DO TRABALHO

Há relação entre coronavírus, ganhadeiras da viradouro,


domésticas e trabalhadores de app?
O Coronavírus demonstrou que existe sim essa coisa chamada sociedade e visibilizou os trabalhadores
informais

RODRIGO DE LACERDA CARELLI

08/04/2020 10:35
Atualizado em 08/04/2020 às 13:49

Crédito: Documentário "As Ganhadeiras de Itapuã"/ TV UFBA/ Reprodução (Youtube)

As ganhadeiras da Viradouro tomaram o Brasil um pouco antes do Coronavírus. A


Escola de Samba Viradouro, ganhadora da competição de Carnaval mais
importante do mundo, des lou na Marquês de Sapucaí no dia 23 de fevereiro de
2020, no domingo de Carnaval, enquanto que o Covid-19 teve o primeiro caso
con rmado no país no último dia de Momo, dois dias depois.

O des le deslumbrante da Escola de Samba de Niterói mostrou a história das


ganhadeiras de Itapuã, um grupo de mulheres negras escravizadas ou libertas que,
no século XIX, lavava roupa cantando belas canções junto à lagoa de Abaeté, em
Salvador. As ganhadeiras, em boa parte, prestavam os serviços de lavagem de
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roupas e com o “ganho” poderiam um dia adquirir a alforria. Aquelas que já estavam
alforriadas realizam o trabalho para ganhar a sobrevivência por mais um dia.

Esse relato de luta por liberdade e sobrevivência conta, no entanto, somente uma
parte do enredo maior. As ganhadeiras, e os ganhadores, eram negras e negros que
formavam um mercado de trabalho que existia paralela e simultaneamente à
escravidão nas grandes cidades brasileiras do século XIX, como Salvador e Rio de
Janeiro. Os escravocratas urbanos utilizavam os cativos para realizar pequenos
serviços ou comércio ambulante, cando estes últimos com parte do “ganho”. Por
isso esses trabalhadores eram chamados, além de ganhadores e ganhadeiras, de
“escravos de ganho”. As mulheres, além de lavar roupas, vendiam quitutes ou
bugigangas, costuravam, cozinhavam, serviam de ama de leite, trabalhavam como
pedreira ou mesmo mendigavam. Já os homens tinham como principais atividades
o transporte de pessoas e de mercadorias.[1]

Enquanto os proprietários dos negros lucravam com as vendas e serviços, havendo


relatos inclusive que com sua parte poderiam passar anos sustentados só com essa
renda, os trabalhadores tentavam ganhar a liberdade, quando cativos, e a vida
quando “libertos”. O negócio era tão bom – para os proprietários, é claro – que
alguns chegaram a manter, no Rio de Janeiro, empresas de aluguel de cadeirinha,
nas quais negros de ganho realizavam o transporte, pela cidade afora, de brancos
clientes da empresa. Deixe-se bem claro que o aluguel não era bem das cadeirinhas,
mas das pessoas negras que carregavam o peso das cadeirinhas – e dos clientes
transportados. Os relatos de europeus que visitavam nossas terras eram de horror e

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estupefação pela acintosa cena de folgados seres humanos brancos sendo


literalmente carregados nos ombros por seres humanos de pele mais escura.[2]

Já a história do Coronavírus todo mundo conhece. No entanto, o vírus que assola o


mundo revelou outra até então mais escondida: que os trabalhadores de plataforma
e outros diaristas, como ganhadores do século XXI, são trabalhadores que arriscam
suas vidas para ganhar o pão, a vida e a liberdade a cada dia, e estão
completamente desprotegidos na falta de trabalho, ou no próprio trabalho, em
relação à proteção em face da doença.   Agora abundam reportagens, aqui e no
exterior, mostrando o absurdo da situação quando por redução da circulação esses
trabalhadores cam praticamente sem ganho algum, em situação de miséria. As
domésticas diaristas, que por conta de injusta, preconceituosa e ilógica exclusão
prevista em lei cam, de um dia para o outro, sem nenhuma proteção. Todos sabem
quem são os patrões dos trabalhadores de plataforma e todos sabem quem são os
patrões das diaristas domésticas: tanto em um caso como noutro, os empregadores
de fato logo surgem para tentar de alguma forma mínima – e insu ciente –
remediar a situação.

A injustiça é gritante com toda a economia parada, mas o que poucos conseguem
perceber é que, em um nível menor, essa injustiça que agora é patente ela ocorre
todos os dias e deriva das escolhas realizadas em relação à proteção desses
trabalhadores. Todos os dias esses trabalhadores correm para ganhar a vida e se,
por acaso, há alguma inviabilidade de poderem sair para trabalhar, como uma
doença, esse trabalhador perde: perde a vida, perde a casa, perde o carro, perde a
motocicleta, perde a família. O lme “Você não estava aqui”, de Ken Loach, mostra
maravilhosamente isso: um problema familiar, que pode ocorrer a todos e a qualquer
um de nós, leva a uma série de eventos trágicos para os chamados enganosamente
de “empreendedores de si mesmos” e seus familiares.

Hoje as mesmas atividades exercidas pelos ganhadores e ganhadeiras são


realizadas por esses trabalhadores desprotegidos. As plataformas organizam o
trabalho e retiram parte dos ganhos justamente desse tipo de trabalhador. É
perceptível que as plataformas de trabalho somente se disseminam na exploração
do trabalho desvalorizado que era realizado pelos escravos no século XIX. Como
aconteceu na Europa dos 1800, o marchandage acontece na exploração de
trabalhadores precários, retirando parte de seus ganhos. O ganho desses empresas
simplesmente é retirado da remuneração do trabalhador. As plataformas nada mais
são do que os novos mercadores de trabalhadores e estes se transformaram nos
novos ganhadores.

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Os ganhadores – seja no século XIX ou XXI – não


são empreendedores de si mesmos: eles são
trabalhadores, só têm o suor do seu rosto para dar e
a sua desproteção traz não somente nas pandemias
graves distúrbios para a vida em sociedade.

Sim, outra coisa que o Coronavírus nos ensinou foi mais profundo. O mote neoliberal
histórico de Margaret Thatcher, que negou a existência da sociedade, a rmando
que só existem indivíduos, caiu fragorosamente esta semana, conforme atestou o
também conservador e sucessor da carniceira dos trabalhadores Boris Johnson,
que, contaminado pelo vírus, a rmou com todas as linhas: “existe sim essa coisa
chamada sociedade!”  O atual primeiro-ministro inglês não decretou o m do
neoliberalismo, ele simplesmente o reconheceu. Essa declaração é histórica e marca
um ponto de virada. O Coronavírus mostrou que um doente em nossa sociedade
pode signi car a possibilidade de disseminação do agente causador a grande
número da nossa sociedade. Ele mostrou que se para conter uma pandemia as
pessoas devem car em casa e não trabalhar, há de se dar condições para que
todas as pessoas não sejam obrigadas a se arriscar e sair para matar o leão do dia.
Não basta ensinar a pescar e dizer vá lá: tem que ser realizada uma comunhão dos
peixes pescados para a distribuição a todos que contam. Ora, o que o vírus nos
ensinou é que todos contam, apesar da negação da realidade que fazem alguns
governantes, mas que logo cairão na real, como aconteceu com o número um do
Reino Unido.

O direito social, em especial o direito do trabalho, provam nesse momento difícil


serem indispensáveis para o bom funcionamento da sociedade. Sim, essa que
ressuscitou, e que, conforme já predizia Karl Polanyi,[3] ela sempre se reconhece
como tal nos momentos em que o fascismo e outras pestes, por ele chamados de
“moinhos satânicos”, ameaçam a sua sobrevivência.

————————————

[1] REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo:

Companhia das Letras, 2019.

[2] SOARES, Luís Carlos. O “povo de cam”na capital do Brasil: a escravidão urbana no

Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.


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[3] POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de

Janeiro: Campus, 1980.

RODRIGO DE LACERDA CARELLI – Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro e Professor de Direito do


Trabalho e Processo do Trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro

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buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a
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