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DO TRABALHO
DUAS DÉCADAS DE HISTÓRIA
1° EDIÇÃO
Fortaleza
Nutra
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas
N879
Núcleo de Psicologia do Trabalho: duas décadas de história / Organizado por Cássio Adriano
Braz de Aquino [et al.] – Fortaleza: Núcleo de Psicologia do Trabalho, 2017.
253 p.
ISBN 978-85-99578-02-5
Inclui bibliografia.
CDD 158.7
Diretores Editoriais
CÁSSIO ADRIANO BRAZ DE AQUINO
RAQUEL NASCIMENTO COELHO
Coordenação Editorial
EVELINE NOGUEIRA PINHEIRO DE OLIVEIRA
Conselho Editorial
CELINA AMÁLIA RAMALHO GALVÃO LIMA (UFC)
IZABEL CRISTINA FERREIRA BORSOI (UFES)
JOSÉ CÉLIO FREIRE (UFC)
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MARIA DE FÁTIMA VIEIRA SEVERIANO (UFC)
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VERÔNICA MORAIS XIMENES (UFC)
VERÔNICA SIQUEIRA ARAÚJO (UFC)
WALBERTO SILVA DOS SANTOS (UFC)
Revisão
ADELENA LEITÃO SILVA
Diagramação
GUSTAVO TELES RESIO
Capa
GUSTAVO TELES RESIO
PREFÁCIO
A máxima de que “a primeira impressão é a que fica” parece ser eficiente para des-
crever o impacto que esse início trouxe à POT. Até hoje, como discutem Bastos, Yamamoto
e Rodrigues (2013), parece quase consenso a ideia de que uma Psicologia atuante no mundo
do trabalho é descompromissada socialmente — ou pior, compromissada com o apoio a uma
visão desumanizante e exploradora do trabalhador. Dizem os críticos que a Psicologia do Tra-
balho ignora a subjetividade, colocando homens e mulheres a serviço do capital; desconsidera
necessidades de mudança organizacionais, servindo para reproduzir o status quo; surge como
alienante e alienadora no processo de exploração; ou mesmo que se confunde com a adminis-
tração, haja vista que se resume a processos burocráticos como recrutamento e seleção. Como
discutido por Codo (1985), dentro deste pensamento, a POT é representada como “O Lobo Mau
da Psicologia” (ou outros termos menos alegóricos e mais pejorativos).
Podemos destacar algumas questões frente a essas críticas. Primeiramente, cabe desta-
car a importância do trabalho no mundo contemporâneo, que não pode ser ignorado. A ativida-
de desenvolvida por um indivíduo em nossa sociedade é determinante na sua função social e
na sua própria identidade: apresentamo-nos, com frequência, acompanhando nosso nome com
nossa profissão ou, no caso de estudantes (que não deixa de ser também um trabalho), pergun-
ta-se o que ele estuda, ou, quando ainda mais jovem, o que ele “quer ser quando crescer”.
Na mesma linha de raciocínio, podemos ainda ressaltar que parte significativa da vida
do indivíduo na sociedade contemporânea está relacionada ao trabalho. Não apenas na constru-
ção da identidade social, como já mencionado, mas em um sentido literal: o tempo que um su-
jeito em uma sociedade capitalista contemporânea passa no ambiente de trabalho é uma grande
parte de seu dia — no Brasil, provavelmente cerca de um terço dele. Ele impacta suas relações
de amizade, familiares e até românticas. O trabalho impacta diretamente na saúde mental do
indivíduo, para bem ou para o mal (Borges, Guimarães e Silva, 2013). Ao mencionar especi-
ficamente as organizações, portanto, torna-se claro seu impacto na vida cotidiana. Estamos
imersos em diversos grupos sociais, muito deles sistemáticos e com objetivos definidos, dentro
dos quais: empresas, instituições públicas, universidades, hospitais, escolas, clubes esportivos,
e assim por diante.
Outro motivo pelo qual a POT não deve ser ignorada é o impacto e tamanho da área. No
Brasil, a Psicologia Organizacional absorve um grande número de profissionais e estudantes.
Bastos e Gondim (2009), por exemplo, apontaram que 25,1% dos psicólogos apresentavam in-
serção na área — a maior após a clínica (ainda que, segundo a mesma pesquisa, frequentemente
esteja associada a outras inserções profissionais).
Por fim, e talvez mais importante, aquelas críticas a respeito do objetivo e compromisso
das intervenções em POT parece datada a um estudioso da área. Ainda que o (des)compromisso
para com o indivíduo e sua saúde mental possa ser questionado no primeiro momento da ad-
ministração científica — e da própria Psicologia Industrial, como foi então chamada (Zanelli,
Bastos e Rodrigues, 2014) —, dificilmente tais críticas são capazes de descrever os cerca de 120
anos de desenvolvimento da área. Muitas transformações — teóricas, metodológicas e mesmo
éticas — separam a origem da área ao nosso momento atual. Em uma linha semelhante, a iden-
tificação da Psicologia Organizacional e do Trabalho apenas com a área de gestão de pessoas
em geral — e o subsistema de Recrutamento e Seleção em particular — também demonstra
desconhecimento de todo seu desenvolvimento, sua variedade e abrangência das discussões.
Natália Brito e Eveline Oliveira aprofundam, no penúltimo capítulo desta primeira parte
A Psicologia Social do Trabalho nas organizações: relatos de experiências, as reflexões que fiz
anteriormente a respeito da visão e da prática da psicologia no campo organizacional. Para isso,
discutem as experiências de estágio que tiveram em dois contextos tradicionais de intervenção
no campo do trabalho: uma indústria e uma consultoria.
Para encerrar a seção acerca de reflexões e pesquisas de campo, Cássio Aquino, Dímitre
Moita e Karlinne Souza discutem a questão da precarização laboral, privilegiando as categorias
de temporalidade e flexibilidade ao examinar o trabalho dos professores substitutos da própria
UFC no capítulo A trajetória da pesquisa em iniciação científica: reflexões sobre o fenômeno da
precarização laboral e flexibilização dos professores substitutos da UFC.
Por fim, Camilla Sampaio e Khalina Bezerra discutem pesquisas empíricas que lidaram
com o tema do Tempo e suas relações com o mundo do trabalho no capítulo Tempo de trabalho:
considerações e perspectivas de pesquisa. O tempo, nessa perspectiva, surge como uma cate-
goria norteadora do funcionamento social da sociedade contemporânea, e impactando relações
de trabalho.
Como pode ser visto, o livro se insere em um campo de discussão acerca de questões
sociais amplas. Percorrendo desde transformações econômicas, políticas e históricas, até o im-
pacto de todas essas mudanças na práxis psicológica. Para além das contribuições de cada um
dos capítulos às discussões específicas com o qual dialogam, o livro tem o mérito de demonstrar
a abrangência da Psicologia Organizacional e do Trabalho e seu compromisso social.
O presente livro tem a função de olhar para os mais de vinte anos de estrada do NU-
TRA e permite refletir sobre seu papel. Claramente, o Núcleo marca sua importância na pro-
dução de conhecimento a respeito do mundo do trabalho; demonstra qualidade nas discussões
e privilegia temas importantes. Devo apontar, ainda, o que acredito ser a maior contribuição:
demonstrar o papel do NUTRA como fundamental na formação de psicólogas e psicólogos
comprometidos socialmente, capazes de refletir sobre o impacto de suas práticas na sociedade
e na subjetividade do trabalhador.
Tive a oportunidade de ter sido parte dessa história como estagiário do Núcleo entre
2003 e 2005, onde pude ter meus primeiros contatos com organizações, ao me inserir no setor
de gestão de pessoal do Hospital Universitário Walter Cantídio; atuar junto ao planejamen-
to estratégico de diferentes órgãos parceiros — e do próprio NUTRA; desenvolver pesquisas
de clima organizacional e refletir o impacto das condições socioculturais nas organizações; e
participar da organização e realização do I Encontro Cearense em Psicologia do Trabalho, o
ECEPOT. Cada uma dessas experiências hoje reverbera em minhas pesquisas, orientações, e
atuação profissional e científica.
Em outras palavras, ao ler esse livro, é impossível não perceber as sementes plantadas,
frutificadas e colhidas do que aprendi junto ao Núcleo de Psicologia do Trabalho. Em particu-
lar, tenho grande débito com a Profa. Fátima Sena (Fatinha, que nos deixou saudades demais) e
Prof. Cássio (orientador, supervisor, professor, modelo e amigo). Ao receber o honroso convite
de prefaciar esse livro, posso dizer que ele reflete a importância e o valor do NUTRA para a dis-
seminação do conhecimento e experiência lá produzido e, certamente, contribui para a forma-
ção daqueles que podem dizer com orgulho “sou um psicólogo organizacional e do trabalho”.
REFERÊNCIAS
(Orgs). Psicologia, organizações e trabalho no Brasil. 2a (pp. 549-582). Porto Alegre: Artmed.
SUMÁRIO
Prefácio........................................................................................................................................5
Sobre os autores......................................................................................................................247
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 13
INTRODUÇÃO
O mundo do trabalho e suas metamorfoses têm revelado, cada vez mais, sua influência
na produção da subjetividade, nos processos de saúde e adoeciXmento do trabalhador. A cate-
goria trabalho permanece central em nossa sociedade e carece de uma investigação aprofunda-
da em todas as suas nuances, indo além de sua perspectiva mercadológica e alienante (Antunes,
2010; Borsoi, 2007).
A polissemia desta categoria vem suscitando que várias áreas do conhecimento possam
se debruçar sobre suas complexas temáticas, e propor diversos olhares capazes de ampliar seu
escopo, expondo sua relevância.
O NUTRA atua ainda hoje como um canal de comunicação com a sociedade, contribuin-
do através de seus estudos e pesquisas para a formação de alunos e profissionais em Psicologia
Social do Trabalho, suscitando discussões a respeito das relações laborais que se estabelecem
na realidade atual (Souza, Fraga, Sampaio, Gomes e Aquino, 2011).
Neste contexto, o objetivo geral deste trabalho foi realizar um relato de experiência
acadêmica-profissional desenvolvida no NUTRA durante o período de sua criação, até o ano
de 1998. Tem como objetivos específicos: contextualizar o cenário econômico-político, orga-
nizacional e universitário do Brasil da década de 1990; contribuir na construção da memória
enquanto dispositivo histórico-cultural do NUTRA e do curso de Psicologia da Universidade
Federal do Ceará – UFC e realizar uma reflexão sobre uma práxis em psicologia do trabalho a
partir dessa experiência matricial.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 14
METODOLOGIA
A relação entre sujeito-objeto de pesquisa deve ser compreendida como uma relação
dialógica, que aponta para o caminho do estranhamento, capaz de evocar um sentimento de
perplexidade e de interrogação acerca do objeto pesquisado, mesmo que este também lhe seja
familiar. A constituição de um dispositivo teórico que possa efetuar o desvio necessário para
uma análise crítica da experiência é salutar em ciências humanas (Costa, 2007).
Para isso, esse texto está alinhado com a perspectiva da psicologia histórico-cultural de
Vygotsky como inspiradora da psicologia social do trabalho de vertente crítica, que, por sua
vez, se assenta sob as bases do materialismo histórico dialético.
O ano de 1994 foi caracterizado pelo surgimento institucional do NUTRA, que atuou
primordialmente como um espaço de estudos e de referência aos alunos estagiários da área de
psicologia organizacional e do trabalho (Silva, Aquino, Feitosa, 2002).
O ano de 1995 foi marcado por iniciativas de ampliação na atuação e maior divulgação
do NUTRA na Universidade com o intuito de viabilizar um espaço maior na área de psicologia
do trabalho. Através do núcleo, foram retomados os seminários de psicologia organizacional,
que não eram realizados desde 1990 (Souza et al, 2011).
No final de 1995, a professora Fátima Sena afastou-se para cursar doutorado na Espa-
nha, o que gerou uma desaceleração no projeto expansionista do Núcleo, contudo um número
cada vez maior de estagiários e voluntários se engajou e passou a ter uma colaboração marcante
no NUTRA (Nutra, 2015).
Sob a coordenação do professor Cássio Adriano Braz de Aquino e com uma maior ma-
turidade, o Núcleo pôde desempenhar sua vocação de extensão. O reflexo desse direcionamento
fez-se sentir nas atividades futuras que passaram a ser empreendidas pelo NUTRA (Souza et
al, 2011).
Nos anos de 1996 e 1997, o NUTRA passou a ter a responsabilidade pelo processo de
seleção de todo o corpo discente do Instituto Dragão do Mar de Arte e Indústria Audiovisual,
através de um convênio com a Secretaria de Cultura do Estado, no intuito de garantir a idonei-
dade emblemática da Universidade Federal do Ceará e do Núcleo perante a sociedade. Ainda
nesse período, foi realizado o II Seminário Interno de Planejamento Estratégico, onde foram
redefinidos seus objetivos e identidade organizacional (Souza et al, 2011).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 17
A procura pelo Núcleo, por parte das instituições públicas, ampliou-se e esta procura
dava-se, em parte, por sua marca de idoneidade, herdada do curso e da universidade e referen-
dada em sua atuação, e também pela busca de um conhecimento mais especializado e crítico
que pudesse fazer frente às demandas de competitividade aliadas ao temor da privatização.
Assim, o Núcleo também colaborou no processo de resistência das instituições, formação de
excelência de seus trabalhadores e ressignificação do sentido do trabalho de servidores de di-
versas instituições.
Atuou na Receita Federal em seus diversos setores com processos de integração, análise
comportamental do trabalho e auxílio em seu planejamento estratégico participativo.
No decorrer do ano de 1998, foi elaborado o Regimento Interno do NUTRA, que re-
presentou uma oportunidade de reflexão acerca das atividades desenvolvidas até o momento,
apontando para esclarecer as expertises e limitações do Núcleo. Neste documento, elaborado de
forma participativa pelos professores e alunos, definiu-se sua missão:
Esse período também foi marcado pelo afastamento do professor Cássio Braz para rea-
lizar seu curso de doutorado (Souza et al, 2011).
Em relação aos integrantes que participaram do NUTRA e colaboraram com seus pro-
jetos durante algum tempo no período de 1994 a 1998, é digno de nota citar a contribuição dos
autores deste trabalho, Hercílio Brito e Mariana Alcântara, que estiveram presentes durante
esses 4 anos, inicialmente, enquanto estagiários e, posteriormente, como profissionais membros
do Núcleo (Silva et al, 2002).
Hercílio Brito é psicólogo graduado pela Universidade Federal do Ceará – UFC (1997),
mestre em Administração pela Universidade Estadual do Ceará – UECE (2000), coordenador
dos cursos de graduação em Administração e pós-graduação em gestão estratégica e liderança
avançada de pessoas da Faculdade 7 de setembro – FA7, sócio-diretor da Ethos Empresarial
criada em 1997, empresa de consultoria na área de gestão de pessoas e psicologia do trabalho
e doutorando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza –
Unifor, desenvolvendo tese relativa à carga de trabalho docente.
Além dos autores deste trabalho, é possível fazer referência a Renata Carvalho, psicólo-
ga graduada pela Universidade Federal do Ceará – UFC (1996), mestra em Administração pela
Universidade Estadual do Ceará – UECE (2001), professora do curso de Psicologia da Univer-
sidade Federal do Ceará – UFC, Campus de Sobral e Doutora pelo programa de pós-graduação
em Psicologia da Universidade de Fortaleza – Unifor, com tema de pesquisa voltado para os
estudos de autonomia e mercado de trabalho informal dentro de uma perspectiva crítica.
Maria Lucimeyre Rabelo que possui graduação em Psicologia pela Universidade Fe-
deral do Ceará (1996), licenciatura em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (1997),
mestrado em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2000) e doutorado em Educação
pela Universidade Federal do Ceará (2012). Atualmente é técnica em educação da Prefeitura
Municipal de Fortaleza e psicóloga da Universidade Federal de Ceará. Tem experiência na área
de Educação, com ênfase em fundamentos da educação, atuando principalmente nos seguintes
temas: psicologia, autonomia, leitura, escrita, educação especial e educação infantil.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 19
Vládia Jamile dos Santos Jucá possui graduação em Psicologia pela Universidade Fede-
ral do Ceará (1996), mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade
Federal da Bahia (1999) e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia
(2003). Atualmente é professora adjunta III do Instituto de Psicologia da Universidade Federal
da Bahia e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Saúde Mental do Instituto
de Saúde Coletiva. Realiza estudos na interface de três campos de saber: psicanálise, saúde
pública e saúde mental.
Esses profissionais, todos oriundos da graduação em psicologia pela UFC, foram super-
visionados durante o citado período pelos professores Cássio Braz de Aquino e Lúcia Siebra e
todas as informações citadas acima foram publicadas pelos próprios autores em seus currículos
Lattes.
2003, desenvolve estudos nesta área, especialmente sobre temas relacionados à apropriação e
qualidade de vida na cidade, tendo sido uma das fundadoras do LOCUS - Laboratório de Pes-
quisa em Psicologia Ambiental da Universidade Federal do Ceará. Doutora pela Universidade
de Barcelona - UB (2012) no Programa de Doutorado Interdepartamental, Espaço Público e
Regeneração Urbana: Arte, Teoria e Conservação do Patrimônio, promovido pelas Faculdades
de Belas Artes e de Psicologia.
Mesmo estando de licença para seu doutoramento na época, é digno de nota citar a traje-
tória profissional da professora Maria de Fátima Sena e Silva, posto ter sido a grande inspirado-
ra, junto aos professores acima citados, da fundação do NUTRA. Fazer referência ao seu nome
e à sua contribuição representa uma pequena homenagem, visto que, por conta de um câncer,
Fátima nos deixou precocemente, falecendo em setembro de 2013.
Fátima Sena era graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (1982),
mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília (1993) e doutora em Psicologia Social pela
Universidade Complutense de Madrid (2011). Desde 2007, compunha a equipe gestora da Pró-
-Reitoria de Extensão, onde foi Coordenadora de Extensão do Campus do Benfica. Coordenou
ainda os núcleos de Psicologia do Trabalho (NUTRA) e de Estudos sobre Drogas (NUCESD),
vinculados ao Departamento de Psicologia da UFC. Tinha experiência na área de psicologia,
com ênfase em psicologia social do trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: tra-
balho, psicologia social do trabalho, drogas, cidadania e redução de danos.
Além dos profissionais acima citados, é importante demarcar a contribuição dos profes-
sores Cezar Wagner, Caubi Tupinambá e Isabel Borsoi que compunham a área de psicologia
organizacional e do trabalho da época citada e que colaboraram, seja como incentivadores, seja
com projetos pontuais e participação nas reuniões de planejamento, e se fizeram presentes no
processo de construção do NUTRA (Silva et al, 2002).
Lá é primavera
A relação das pessoas com os lugares é repleta de significados e sentidos que vão sendo
construídos ao longo de uma trajetória. Um espaço pode se tornar um lugar simbólico a partir
do processo de apropriação e significação da realidade, podendo tornar-se identitário, relacional
e histórico (Ponte, Bomfim e Pascual, 2009).
O espaço, transformado em lugar, representa signo, por conta de seu caráter semiótico.
Neste sentido, o lugar, assume papel preponderante na construção da subjetividade, visto que o
signo funciona como um mediador da interação humana (Vigotski, 2000).
A identidade de lugar é construída em uma relação afetiva e política que envolve a apro-
priação e significação do espaço (Sawaia, 2014). Essa dimensão afetiva é vista como uma força
transformadora da realidade e a dimensão política como compromisso do homem com o que é
comum, o que permeia a dimensão da ética.
Neste sentido, é possível destacar que o NUTRA nasce de uma demanda e contexto neo-
liberal de sucateamento das instituições públicas, no entanto, desde seu início se posiciona não
de forma reativa e submissa, mas através de uma resistência ativa, movido pela potência do co-
natus, que para Spinoza (2014), representa um esforço de preservação e de resistência humana
que pode ser ampliado quando nos unimos a outras pessoas, através dos afetos que incentivam a
amizade e a solidariedade, vitalizando o poder de agir em comum e a vivência com a alteridade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fruto dessa experiência aponta ainda hoje para a necessidade da contínua reinvenção
da psicologia frente às transformações do mundo do trabalho, tendo em vista os cenários cada
vez mais instáveis e a predominância da ordem individual e subjetiva em detrimento do coletivo
e do político.
dorismo, inteligência emocional, que corroboram com a perspectiva individualista, tão nefasta
para as formas de resistência do trabalhador (Jaramillo, 2013).
A psicologia do trabalho deve continuar a propor, como tem feito o NUTRA desde a
sua origem, caminhos teóricos e interventivos próprios que priorizem a perspectiva crítica e
coerente com sua visão de homem, de trabalho e de mundo, afastando-se dos ideais de adapta-
ção e controle próprios do discurso consolidado da psicologia organizacional legitimada pelo
mercado.
Por fim, sugere-se o cultivo permanente da dimensão do u-topos como espaço aberto,
ainda não preenchido, mas repleto de possibilidades de vir a ser na perspectiva perene da psi-
cologia do trabalho e deixa-se como legado para os que estão e os que virão formar o NUTRA,
essa centelha de elpis grego, ou seja, esperança, na condução de cada passo e de cada trabalho
realizado.
REFERÊNCIAS
Souza, K.O., Fraga, C.R.A., Sampaio, C.R.F.D., Gomes, M.S., Aquino, C.A.B. (2011). Nú-
cleo de Psicologia do Trabalho – NUTRA 16 anos de atuação. Extensão em ação. v.1, n.1.
83-92. Disponível em: 23 de setembro de 2015.http://www.revistaprex.ufc.br/index.php/
EXTA/article/view/17
Spinoza, B. (2014). Ética. (2ªed.). Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica edi-
tora.
Titãs. (2005). Lugar nenhum. In: MTV ao vivo. (Cd). Rio de Janeiro, Sony BMG Brasil.
Vigotski, L. S. (2000). Pensamento e linguagem (2 ed.). São Paulo: Martins Fontes.
Vygotsky, L.S. (2007). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psico-
lógicos superiores. Trad. José Cipolla Neto.São Paulo: Martins Fontes.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 26
INTRODUÇÃO
A partir da articulação entre o NUTRA e o NUCESD, o Projeto Kara a kara foi pensado
como uma proposta de atuação acadêmico/comunitária frente a dados da realidade que apontam
para a preocupação contemporânea com o uso e abuso de substâncias psicoativas. O Kara a kara
foi um projeto de educação sobre drogas desenvolvido nas escolas da rede municipal de ensino
de Fortaleza e que foi realizado entre 2007 e 2010, através de uma parceria com a Secretaria
Municipal de Educação de Fortaleza (SME) e com a Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura
(FCPC).
Apresentou como objetivo promover junto aos estudantes do ensino fundamental maior
espaços de discussão sobre trabalho, sexualidade, drogas e identidade, configurando-se como
uma estratégia de educação e promoção da saúde, voltada para prevenir e minimizar o uso
e abuso das substâncias psicoativas. Nessa perspectiva, constituiu-se como uma proposta de
‘educação sobre drogas’, por acreditar que a redução do desconhecimento pode gerar formas
mais eficazes de enfrentamento a essa questão, bem como de outras que podem a isso estar re-
lacionadas, como violência, gravidez na adolescência, evasão escolar, entre tantas outras.
O público-alvo do projeto foi composto por estudantes a partir de 12 anos de idade que
estavam devidamente matriculados nas escolas atendidas. Junto a esse público, a equipe do
projeto desenvolveu oficinas e rodas de conversas temáticas, pautadas no método psicossocial.
Segundo Sena e Silva (2004), esse método prevê um protagonismo dos saberes no qual, a partir
de um compromisso reforçado pela vinculação afetiva do grupo, há a possibilidade de cons-
trução de espaços de aprendizado e troca de informações, com a ampliação dos conceitos para
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 27
O consumo de drogas faz parte de nosso cotidiano e a história mostra que a humanidade
tem utilizado as drogas com as mais diversas finalidades, como associadas à música, à dança,
às meditações, aos jejuns, às curas medicinais e espirituais, entre tantos os usos já registrados.
O uso de substâncias psicoativas pode ser curativo ou adoecedor, como também lícito ou ilícito,
sendo, portanto, historicamente variáveis as atribuições de valor que recebem. O ópio, por
exemplo, de remédio milagroso, passou, no último século, a ser utilizado como um perigoso
entorpecente.
Hoje, muitos desses hábitos individuais e coletivos viraram ‘big business’ e as estratégias
libertárias de afirmações de identidades se transformaram em espaços de ‘marketing’. A produção
e distribuição das drogas lícitas e ilícitas, neste tempo de globalização, são coordenadas por
grandes corporações transnacionais (Carlini-Marlatt, 2001).
buscam nas drogas lícitas e ilícitas, nas tecnologias diet e light, nos dispositivos midiáticos e no
consumo generalizado ou ainda nas patologias lugar de ancorar sentidos sobre si.
Vivemos uma cultura da medicalização. As crianças, ainda em idade escolar ou até antes
disso, já são inseridas como consumidoras de medicamentos para dormir, acalmar, controlar
comportamentos e resolver problemas das mais distintas ordens, como os famosos problemas
de aprendizagem. O Ministério da Saúde (2015), indica que o “Brasil se tornou o segundo
mercado mundial no consumo do metilfenidato, com cerca de 2.000.000 de caixas vendidas no
ano de 2010, e apontam para um aumento de consumo de 775% nos últimos 10 anos no Brasil”
(p.9).
Cada vez mais cedo os jovens vêm fazendo uso de ansiolíticos e outros medicamentos de
uso contínuo. Os benzodiazepínicos são conhecidos ‘companheiros de cabeceira’, mostrando
que a questão do uso e abuso de substâncias psicoativas é muito mais ampla que o uso das
drogas ilícitas.
A realidade tem apontado para a fragilidade e a ineficácia das ações políticas e acadêmicas
no manejo deste fenômeno. Nesta época de desconstruções, reconstruções e de reinvenções, é
preciso rever o caminho e desenvolver, neste caminhar, novas estratégias de enfrentamento ao
uso e abuso de substâncias psicoativas.
Os fatos cotidianos têm mostrado que nenhuma abordagem está obtendo sucesso nesta
tarefa e as estratégias de combate e controle, muitas vezes numa perspectiva jurídica que se
sobrepõe às ações educativas, se mostram insuficientes e/ou ineficazes. Isso nos faz atentar
para a necessidade de olhares múltiplos e transversais acerca da questão, olhares que envolvam
diferentes campos de saberes, desde os saberes acadêmicos, até os saberes do senso comum, das
ruas, dos usuários, dos familiares e de pessoas que têm suas vidas atravessadas pelas drogas e
os malefícios por elas provocados.
Foi nesta perspectiva que o projeto Kara a kara se instaurou, com a finalidade de construir
um espaço de aproximação, reconhecendo a complexidade deste fenômeno multifacetado em
seus aspectos contraditórios e irregulares. Como alternativa de enfrentamento da questão,
o projeto se edifica como uma estratégia de prevenção e promoção da saúde, voltada para
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 29
minimizar o uso e abuso das substâncias psicoativas, bem como seus desdobramentos.
É uma proposta de ‘educação sobre drogas’, pois acredita que a ampliação da informação
por meio da educação pode gerar formas mais eficazes de enfrentamento desse fenômeno, o que
a ‘educação anti-drogas’ não tem conseguido apresentar.
A perspectiva da “educação sobre drogas” que subsidiou o projeto Kara a kara parte da
compreensão de que pensar em um projeto de prevenção e promoção da saúde, voltado para
prevenir e minimizar o uso e abuso de drogas, é pensar obrigatoriamente em educação (Fuente,
2003; Escohotado,1996). Acrescido a isso, cremos também que é através da educação e da
atividade – no sentido de trabalho e não de emprego – que as pessoas podem se construir como
sujeitos de direitos e deveres comprometidos com sua realidade.
As ações de ‘educação anti-drogas’ não têm conseguido obter os resultados que prometem.
Apesar de todos os esforços e das grandes campanhas, o uso e abuso de drogas continua se
acentuando. Os discursos combativos e proibicionistas não estão dando conta da redução de uso
e abuso de substâncias psicoativas, que cada vez mais se intensificam, considerando somente a
droga como substância, esquecendo a multiplicidade de questões que atravessam o uso e abuso.
As ditas estratégias de prevenção muitas vezes se pautam em coação, busca por culpados,
classificação e punição dos usuários e, assim, esquecem o viés educativo que precisa pautar a
construção de estratégias eficazes de ação sobre a questão. Tais estratégias devem levar em
consideração o sujeito, os determinantes sociais, os sentidos em torno do uso, os discursos
circulantes na sociedade, entre tantos outros fatores relevantes ao problema.
Na ação educativa se fala de formar sujeitos para a tomada de decisões, para assumir
responsabilidades, para evitar dependências, quando, na prática, as intervenções estão se
construindo em sentido contrário, ao dominar a desinformação, a ameaça e o recurso da punição
como estratégias básicas.
A educação precisa recobrar seu sentido mais profundo, não como mecanismo de
controle, mas como meio de formação de pessoas críticas e comprometidas com a saúde
individual e coletiva, fortalecendo no indivíduo a possibilidade de dirigir seu destino em um
mundo acelerado e globalizado. As pessoas precisam compreender a questão das drogas e
desenvolver atitudes saudáveis diante das substâncias que podem criar dependência. Em alguns
casos para prevenir o uso e, em outros, para reduzir ao máximo os danos causados pelo consumo.
Diante desse cenário, o projeto Kara a kara se pautou na busca pela garantia ao direito à
‘educação sobre as drogas’, já que a ‘educação contra as drogas’ não tem conseguido oferecer
os resultados esperados. Educação como um processo para garantir a fundamentação da
democracia, o desenvolvimento do sujeito, a difusão e o incremento do conhecimento e da
cultura em geral e a inserção dos sujeitos no mundo.
As políticas voltadas para uma educação sobre drogas precisam oferecer informação
objetiva, científica, relacionada com as drogas e seu consumo; estimular a procura de informações
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 30
Portanto uma educação sobre drogas deve levar em conta a relação pessoa-substância,
procurando construir a possibilidade de uma vivência saudável ao meio de cultura de drogas,
compreendendo droga, igualmente a Hipócrates e Galeno, pais da medicina científica, como
sendo uma substância que mesmo consumida em doses muito pequenas provocam significativas
mudanças orgânicas, anímicas ou ambas.
Como uma ação de extensão, o projeto Kara a kara se constituiu na interface entre
objetivos acadêmicos e objetivos sociais. Academicamente intentou ampliar o debate sobre o
uso e abuso de drogas lícitas e ilícitas; aprimorar a metodologia psicossocial para o trabalho de
grupos; problematizar o conceito de ‘redução de danos biopsicossociais’, compreendendo-o a
partir de uma articulação teórico-prática; e ainda realizar pesquisas sobre a realidade educacional
e de saúde dos participantes, além de elaborar publicações científicas a partir dos resultados do
projeto.
Como objetivos sociais, assumiu: construir espaços de discussão sobre drogas, de forma
clara, científica e acessível ao público trabalhado; ampliar o conhecimento do sujeito sobre si
mesmo no papel de ‘sujeito consumidor’ em suas relações sociais; diminuir a vulnerabilidade
dos participantes frente à atual sociedade de consumo; aperfeiçoar as competências intra e
interpessoais dos participantes; trabalhar a auto-estima e o exercício da cidadania dos
participantes; conhecer e sistematizar dados da realidade dos participantes (pesquisa);
contribuir para construção de novas formas de enfrentamento do uso e abuso de drogas lícitas e
ilícitas; contribuir para uma re-significação da relação dos participantes com o mundo laboral;
promover o desenvolvimento de ações de integração da escola com a comunidade; garantir
ações integradas de educação e saúde; fornecer elementos para a promoção de saúde nas
escolas; capacitar multiplicadores da proposta do projeto; iniciar um movimento de integração
das atividades desenvolvidas pelas escolas, CAPS e comunidade, de modo a articular a rede
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 31
de atenção; bem como contribuir para a construção e manutenção de uma cultura de paz na
sociedade.
METODOLOGIA
Como estratégia de trabalho foi utilizado o método psicossocial. Esse modelo é consoli-
dado a partir do desenvolvimento da participação, da organização grupal e do exercício de uma
consciência crítica (Sena e Silva, 2004). Dessa forma, surge um movimento de investigação
constante e coletiva, cujos membros são do lugar onde o grupo se estabelece e da academia
(profissionais e estudantes comprometidos), havendo a promoção de uma participação que se
instala em todos os segmentos participantes. Vale ressaltar que o método psicossocial não é só
mais uma elaboração teórica a ser somada a outras tantas, é um movimento de aproximação de
dois polos que, por muito tempo, estiveram separados, com a valorização de ambos indistin-
tamente. É um movimento que se funda não mais na construção de teorias, mas na certeza de
que a humanidade merece ser exaltada e defendida em sua dignidade e em seus direitos, além
de estar sendo compreendida como dona e construtora de sua própria história, de sua vida e das
formas de superar os obstáculos (Sena e Silva, 2004).
Além das oficinas, foi realizada em cada escola uma pesquisa com a aplicação de ques-
tionários que continham perguntas sobre as temáticas do projeto, o que trazia uma leitura da
realidade nas escolas participantes acerca dos assuntos abordados. Os questionários eram apli-
cados, tabulados e discutidos pelos próprios alunos participantes das oficinas, bem como expos-
tos para a comunidade escolar.
Em cada escola foi realizada: uma reunião de apresentação do projeto, de seis a oito
oficinas, a aplicação do questionário da pesquisa sobre as temáticas do projeto, um encontro
para tabulação, análise e discussão dos dados da pesquisa e uma devolutiva dos estudantes par-
ticipantes das oficinas para a escola.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 32
O conteúdo trabalhado nas oficinas envolveu quatro grandes eixos norteadores: 1- abor-
dagens psicossociais sobre o sujeito; 2- as substâncias psicoativas; 3- sexualidade e; 4- trabalho
e cidadania. Esses eixos pautaram as discussões construídas com os estudantes e ainda o ques-
tionário da pesquisa, que serviu de instrumento de avaliação do conhecimento dos estudantes
não participantes das oficinas sobre as temáticas trabalhadas, bem como instrumento diagnós-
tico da realidade e de orientação para a produção de material informativo e delineamento das
ações no grupo.
Foram ainda realizados fóruns semestrais com as escolas participantes, de modo a pro-
mover um espaço de interação e trocas entre estudantes de diferentes escolas. Nos fóruns, a
equipe de estudantes de cada escola apresentava uma produção decorrente da participação do
projeto. A produção apresentada era de livre escolha dos estudantes, sendo elas desde cartazes
produzidos e expostos nos corredores da escola, a peças de teatro e confecção de fanzines.
Houve ainda a elaboração, pela equipe acadêmica do projeto (professor (a) coordenador (a),
profissionais e bolsistas), de uma cartilha informativa sobre as temáticas discutidas, a qual foi
distribuída nos diversos espaços de atuação do projeto.
Aproximadamente oitenta e nove escolas foram atendidas pelo Kara a kara e partici-
param diretamente das atividades aproximadamente 1800 estudantes. As atividades realizadas
funcionaram como espaço de promoção de saúde e cidadania, na medida em que se pautaram na
reflexão e fortalecimento da consciência crítica dos adolescentes, a partir de problematizações
contextualizadas na realidade social em que eles vivem.
SME de Fortaleza. A seleção das escolas atendidas pelo projeto seguiu indicação das Secre-
tarias Executivas Regionais, de acordo com as vulnerabilidades apresentadas nas escolas que
fossem relacionadas aos eixos norteadores do projeto.
A palestra inicial de apresentação do projeto Kara a kara tinha como objetivo apresentar
a proposta de trabalho, informando detalhadamente aos estudantes sobre cada tema tratado e, ao
mesmo tempo, incitar o interesse dos alunos em participar das oficinas, convidando-os. Após a
identificação dos interessados, era compactuado um horário semanal de encontro.
Essas representações muitas vezes eram assumidas como significativos referentes iden-
titários por esses jovens, que findavam por reproduzir concepções preconceituosas acerca do
seu meio, de seu modo de vida e das possibilidades vislumbradas para o futuro.
Por ser o primeiro contato mais próximo com o grupo formado, essa oficina também
trabalhava o fortalecimento de vínculos, a contextualização na realidade social do grupo, o
contrato de funcionamento e os princípios norteadores do método psicossocial, com seus pres-
supostos teóricos orientando já a discussão sobre identidade, implicação, compromisso social
e transformação da realidade. No estabelecimento do contrato eram discutidos pontos, trazidos
pelos próprios membros, necessários ao funcionamento do grupo, como sigilo e assiduidade,
com o objetivo de trabalhar a responsabilização e a construção coletiva.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 34
A segunda oficina tratava da questão das drogas e apresentava como objetivo esclarecer,
debater, informar sobre os diversos tipos de substâncias psicoativas, seus efeitos e causas, tanto
físicos como psicossociais. Abordava a classificação dessas substâncias (lícitas e ilícitas, natu-
rais ou sintéticas etc.), os preconceitos existentes sobre quem usa e os fatores envolvidos no uso
ou abuso das substâncias psicoativas.
A oficina sobre drogas primava por dar voz aos estudantes, de modo a por em discussão
seus conhecimentos e vivências em torno das drogas, os sentidos a elas atribuídos e as questões
transversais ao uso e abuso. Pautada no cuidado em desconstruir juízos de valor e preconcei-
tos, buscava entender os múltiplos olhares sobre a questão e respeitar a condução dada pelos
próprios jovens – alguns já usuários e/ou ‘aviõezinhos’ – à discussão. Em um segundo momen-
to, priorizava passar informações e apresentar as diretrizes nacionais para a redução de danos
(Brasil, 2003).
Um instrumento que funcionou de forma bem interessante foi a criação de um jogo so-
bre drogas, no qual os jovens competiam entre si sobre conhecimentos a respeito das substân-
cias psicoativas, do uso e abuso, efeitos, estratégias de combate e tratamento, redução de danos,
etc. Além disso, algumas tarefas do jogo eram a encenação, imitação e outros desafios.
O jogo se mostrou uma forma interessante de conferir voz aos estudantes, minimizando
aspectos como a timidez, a vergonha de falar, o resguardo de informações e ainda incentivan-
do-os a buscar conhecer mais a respeito do uso e abuso de substâncias psicoativas. O aspecto
lúdico também funcionou como importante promotor de integração do grupo e de construção
coletiva de estratégias e de superação de desafios.
Na semana seguinte, o tema da oficina era sexualidade e apresentava como objetivo dis-
cutir questões que atravessam a sexualidade dos adolescentes, como, por exemplo, mudanças
corporais, namoro, virgindade e iniciação sexual, sexo e tabus na sociedade, gravidez, doenças
sexualmente transmissíveis, proteção sexual, métodos anticoncepcionais, questões de gênero e
de orientação sexual, cuidados com o corpo, preconceitos e estereótipos, entre outras questões
demandadas por cada grupo em particular.
A sexualidade é uma questão que atravessa a adolescência, porém, embora seja assunto
comum aos jovens, essa temática costumava causar timidez e silenciamento quando de sua
abordagem. Por isso, algumas estratégias foram importantes para que a discussão atendesse ao
objetivo de dar voz aos estudantes, de modo que a oficina funcionasse como espaço de fala e
tira dúvidas. Para isso, foi criado o ‘quiz da sexualidade’, outro jogo adaptado às demandas de
cada um dos grupos e que envolveu atividades como ‘batata quente’, ‘dança’, entre outras.
De início difícil, as oficinas sobre sexualidade costumavam ser as mais intensas e parti-
cipativas. Os estudantes usavam o espaço para tirar dúvidas, pediam dicas e indicações de lei-
tura, mostravam bastante curiosidade e interesse para entender as informações e participavam
ativamente do ‘quiz’. Traziam histórias de vida como exemplo, falando sobre si e comumente
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 35
faziam uma devolutiva afirmando a importância da informação nas suas vidas. Alguns falavam
que desconheciam métodos contraceptivos além da camisinha e tinham muitas dúvidas sobre
a iniciação sexual. Relatavam ainda que a oficina facilitou o diálogo com pais e irmãos sobre
sexualidade e comumente algumas mães e outros alunos não participantes do projeto pediam
informações e preservativos.
A oficina sobre sexualidade mostrou a importância do trabalho das equipes de saúde nas
escolas, pois muitas dúvidas poderiam ser esclarecidas, prevenindo assim gravidez na adoles-
cência e doenças sexualmente transmissíveis, de modo a promover saúde e bem-estar psicos-
social.
Nessa oficina também era discutido sobre participação social, formação política dos jo-
vens e compromisso com a transformação social, de modo a empoderar os estudantes e promo-
ver uma consciência crítica frente à realidade social mais ampla. Nesse ínterim, a capacitação
dos mesmos como multiplicadores do projeto era discutida e apresentada como uma estratégia
de participação social e cidadã na escola do qual faziam parte.
O encontro seguinte era para apresentar aos participantes a pesquisa, explicar o questio-
nário e ensinar a tabulação dos dados, além de falar sobre a importância do sigilo e capacitá-los
para aplicar o mesmo com os demais alunos da escola. A participação dos alunos como pesqui-
sadores se mostrou produtiva, despertando o interesse de outros estudantes para o projeto.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 36
Também foi destaque o modo como os participantes se sentiram valorizados pela opor-
tunidade de eles mesmos realizarem a pesquisa e, conforme relatavam, “contribuir com a uni-
versidade”, que alguns julgavam a princípio um mundo bem distante de suas realidades.
Tal fato nos fez perceber um deslocamento de lugar desses sujeitos nas práticas escola-
res, na medida em que muitos dos alunos participantes das oficinas eram considerados ‘maus’
alunos, com baixo rendimento escolar, histórico de reprovação e/ou evasão, queixas de indisci-
plina, entre outras.
A esse respeito, Patto (2000) nos fala sobre os diferentes modos que os alunos “proble-
ma” são rotulados e as implicações disso para o próprio processo de aprendizagem, na medida
em que geram insatisfação nos alunos em frequentar a escola e a opção desses alunos por inves-
tir em outros espaços. Nas palavras da autora (Patto, 2000):
A oficina de encerramento teve como função promover junto aos participantes uma re-
flexão a respeito da conexão entre os temas discutidos durante o projeto e a vida prática deles;
fazer uma avaliação do projeto e dos bolsistas, além de realizar uma confraternização final por
meio de dinâmica(s) de fechamento. Na ocasião também ocorreu a apresentação e discussão
dos dados da pesquisa. A partir desses dados, os estudantes tinham a tarefa de construir formas
de intervenção na escola para transformar a realidade retratada na pesquisa. O resultado desse
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 37
trabalho foi apresentado nos fóruns semestrais, que reuniam todas as escolas atendidas.
Quanto ao resultado das pesquisas, eles apontaram dados significativos e que justificam
e corroboram a importância de inserção de projetos que abordem temas como os propostos –
identidade, drogas, sexualidade, trabalho e cidadania – no contexto escolar. Muitos diretores
ressaltaram a necessidade de abordagem dos temas nas escolas, visto que eles são recorrentes
nas discussões de sala de aula e, apesar da relevância, há pouco espaço para serem abordados
no ensino formal ou mesmo com a família.
Alguns setores das comunidades passaram a demandar que os temas fossem debatidos
não apenas no espaço escolar, o que levou o Kara a kara a atuar também em Organizações Não
Governamentais (ONG) – Água de Beber – e em grupos mistos de alunos e demais membros da
comunidade, bem como propor ações pontuais em alguns grupos comunitários.
O sucesso dos resultados alcançados fizeram com que o projeto fosse renovado por dois
anos seguintes – 2008 e 2009, levando o Kara a kara até a terceira fase, na qual foi ampliado
para atuar também em dispositivos psicossociais e comunitários, a exemplo do CAPS e dos
grupos comunitários e ONGs.
Outro fator que impactou prejuízos foi a dificuldade de apoio e interlocução com a Se-
cretaria Municipal de Educação, o que dificultou o contato com as Secretarias Executivas Re-
gionais e as escolas, bem como interferiu na credibilidade conferida ao projeto por diretores de
algumas escolas. Esse empecilho foi minimizado com o grande apoio e receptividade recebidos
dos chefes de distrito de Educação de algumas regionais.
Os diretores de algumas escolas indicadas afirmaram não ter interesse no projeto e ou-
tros aceitavam o projeto mas não repassavam as informações aos vice-diretores, professores,
alunos, porteiros, o que resultava em idas consecutivas à escola seguidas pelo impedimento
de realização das atividades planejadas. Também alguns diretores afirmavam desconhecer
o projeto e que não haviam sido comunicados pela SME da indicação da escola e, por isso, se
mostravam relutantes quanto à aceitação do projeto nas escolas sob suas responsabilidades. O
apoio da SME era imprescindível para a oficialização e bom funcionamento do projeto.
Outra situação enfrentada foi a ocorrência de muitos projetos simultâneos numa mes-
ma escola, pois boa parte do tempo de contra-turno dos alunos era dedicada a esses projetos.
Dentre eles, podemos citar o ‘Segundo Tempo’. As atividades desenvolvidas pelo ‘Segundo
Tempo’ impediram a realização de oficinas em alguns horários por duas razões: a primeira é
que o projeto Kara a Kara não apresentava recusa por tirar alunos de sala de aula e de atividades
complementares à sala de aula; a segunda era que, no caso dos jovens, as atividades desportivas
são, geralmente, mais atrativas.
Para lidar com essa situação, foi apresentada à SME a proposta de inserção do Projeto
Kara a Kara na programação do ‘Mais Educação’ e/ou do Programa “Segundo Tempo na esco-
la”. Não houve, porém, tempo hábil para a efetivação dessa proposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
com os jovens sobre essa questão, o Projeto Kara a kara se configurou como uma estratégia
de educação sobre drogas contextualizada à realidade e ao público atendido e que se mostrou
efetiva por ‘falar a língua’ dos jovens e, mais que isso, escutá-los, dando-lhes espaços de pro-
dução autônoma de sentidos sobre a questão e oportunizando a esses jovens levar aos demais
suas ideias.
O método psicossocial adotado como diretriz de trabalho foi responsável pelo dialogis-
mo e sentimentos de protagonismo emergentes nas oficinas, que foi capaz de implicar os estu-
dantes com as questões que lhes rodeiam, assim como mobilizá-los na criação de insurgentes
práticas que façam frente ao uso e abuso de substâncias psicoativas.
Através do projeto Kara a kara, cremos ter contribuído para a redução no uso e abuso de
drogas, além de ações pontuais de redução de danos, e na prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis e gravidez na adolescência, bem como com o bem-estar psicossocial, em defesa
da vida e contra a cultura de violência da população atendida pelo projeto.
Por fim, como elemento mais significativo, o projeto semeou a participação social, o
empoderamento e a autonomia dos atores escolares na condução de outros projetos e ações
capazes de dar conta das demandas de cada escola em particular, bem como das comunidades
nas quais estão inseridas.
REFERÊNCIAS
Sena e Silva, M.F. (Coord.). (2004). Psicologia e redução de danos: reflexões preliminares a
partir de uma perspectiva biopsicossocial. São Paulo, SP: Ed. do Autor.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 41
INTRODUÇÃO
Como resultado dessas transformações, Antunes (1998) aponta como sendo o mais bru-
tal o crescimento do contingente de pessoas em busca de inserção no mercado de trabalho, ou
seja, a expansão do desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global.
As bases dessa nova política pública estão em consonância com as discussões interna-
cionais no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que entende a qualificação
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 42
social e profissional como direito e condição indispensável para a garantia do trabalho decente
para homens e mulheres. Tal qualificação é entendida como sendo aquela que permite a inser-
ção e atuação cidadã no mundo do trabalho, com efetivo impacto para a vida e o trabalho das
pessoas.
Borsoi (2005) afirma que o que parece ocorrer em regiões de recente industrialização,
como o município de Horizonte-Ceará, “é também um processo de ‘reeducação’ dos traba-
lhadores, de seus ritmos de trabalho e de vida, formas de consumo, hábitos, modos de pensar
e agir” (p. 32). Segundo a autora, a partir do momento em que iniciam suas atividades nas
indústrias, os trabalhadores, e às vezes seus familiares também, precisam aprender, inclusive,
determinados hábitos, como postura durante as refeições e cuidados higiênicos com o próprio
corpo.
Dentre os objetivos específicos, foram traçados para o projeto (BRASIL, 2006): sensi-
bilização e instrumentalização da clientela assistida para o mercado de trabalho e para a res-
posta social; aperfeiçoamento das competências intra e interpessoais; trabalho com autoestima
e exercício de cidadania; facilitação de um posicionamento mais consciente frente às opções
profissionais; contribuição para a apropriação da noção de trabalho como uma categoria mais
ampla do que a ideia de emprego formal; incentivo ao engajamento e utilização das forças gru-
pais como estratégias de enfrentamento das adversidades do mundo do trabalho; facilitação da
construção/resgate da cidadania e da independência financeira das mulheres envolvidas; reali-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 43
METODOLOGIA
propostas do projeto.
A seleção de seis dentre as 25 mulheres participantes se deu por conveniência, pela fa-
cilidade de acesso e pela disponibilidade em participar da pesquisa. Todas assinaram o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADO / DISCUSSÃO
Expectativas e Seleção das participantes
A média de idade das mulheres selecionadas foi de 28 anos, tendo 12 delas mais de 30
anos. Analisamos também aspectos sociais e econômicos, como configuração e renda familiar,
o que originou essas exceções. Somente uma das mulheres ainda não era mãe. As outras tinham
dois ou três filhos cada e apenas quatro estavam separadas do marido ou do pai de seus filhos.
O nível e a situação escolar do grupo eram bastante diversificados: somente cinco mu-
lheres afirmaram estar estudando naquele período; apenas seis haviam concluído o Ensino Mé-
dio e outras seis o Ensino Fundamental. O último ano de frequência à escola foi 1999 para 15
das mulheres.
Quanto à situação ocupacional, duas mulheres apontaram que trabalhavam por conta
própria sem carteira assinada (lavando roupas, fazendo faxinas em residências, fabricando e
vendendo artesanato), 11 disseram não trabalhar e 12 afirmaram estar desempregadas. Contu-
do, a vivência no projeto mostrou que essas mulheres eram donas-de-casa e responsáveis pelos
filhos, além de realizarem atividades adicionais para aumentar a renda familiar (bolos e doces
por encomenda, cuidado dos filhos de amigos etc), o que não é apontado por elas, de imediato,
como atividade laboral.
Metade do grupo (12 mulheres) revelou não possuir renda individual fixa alguma, pois,
embora todas as famílias fossem cadastradas no Programa Bolsa Família, nem sempre eram
as titulares do benefício, bem como o município não recebia, no período, verba suficiente para
contemplar todos os indivíduos cadastrados. Quanto à renda familiar, cinco mulheres disseram
receber menos de R$ 100,002 por mês, dezoito até R$ 400,00 e somente duas afirmaram que o
valor total recebido por sua família estava acima de R$ 700,00. Vale ressaltar que cada domicí-
lio contava em média com quatro ou cinco moradores.
estavam disponíveis para o grupo, como pode ser observado no registro fotográfico abaixo:
Críticas nenhuma. Vamos consegui acasar no hobigetivos. Sugestões ter mais hunião entre o grupo.
Apesar de ter tão pouco tem po até agora deu tempo para aprendermos várias coisas interessantes isso nos
mostra que daqui pra frente temos muita capacidade para aprendermos mais e mais durante este projeto.
Sugestões para que nois continue quada vez mais desenpenhada nas participação do nosu curso. Que nuca
desista desa grandi oportunidadi.
Tá tudo maravilhoso.
O curço foi muito bom é um sonho realizado. Esperamos que continuem dezevolvendo cada veis mais.
Eu aprendi muito durante as oficinas e eu quero parabenizar a todas.
Gostei muito do projeto porque mostrou que nois pordemos fazer com nossa criatividade.
Nunca pensei que fosse capaz. Não costurava nem mesmo as roupas do meu marido e consegui produzir.
É muito bom trabalhar em equipe, uma ensinando às outras.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 47
A exposição das peças produzidas no mencionado evento municipal parece ter sido
de extrema importância para o pontapé inicial de formação daquele grupo, tendo em vista os
elogios tecidos pelos frequentadores da feira e a visibilidade proporcionada ao trabalho e à co-
munidade das artesãs.
A atividade seguinte foi conduzida por uma artesã horizontina, que ensinou às mulheres
a confeccionar peças de “fuxicos”3. O fato de a facilitadora ser uma pessoa do convívio das
mulheres e de utilizar uma linguagem simples foram relevantes para o aprendizado, no sentido
de proporcionarem uma troca de experiências interessantes para todas. Enquanto profissional
do artesanato, a instrutora pôde repassar informações não somente acerca da criação dos pro-
dutos, mas também sobre a sua profissão, os benefícios e dificuldades de se trabalhar por conta
própria. Vale a pena transcrever alguns manuscritos da avaliação dessa oficina:
Quadro: Observações da Avaliação da Oficina de Fuxicos.
A instrutora foi muito legal com todos nós. Eu acho que seria muito bom se for possível ter mais aulas
com ela.
A estrutora é muito legal, mais durou muito pouco.
A oficina foi ótima, a capacitadora e muito legal, mas que pena que durou pouco.
Não gostei de algumas pessoas que não fazia nada, mais a instrutora foi maravilhosa.
Pra me so teve pontos positivos foi tudo de bom.
Foi bom porque nós aprendemos mais um trabalho.
O aprendizado de fuchicos como fazer cortinas, flores, enfeites etc. O modo da professora nos tratar
muito bem...
Fonte: Silva, 2007, p. 3.
Outro grande momento para o grupo de mulheres ocorreu durante as primeiras aulas
do tão aguardado Curso de Costura, pois, conforme relatos, a maioria nunca havia manuseado
uma máquina elétrica para este fim. O aprendizado dessa capacitação consistiu em um aumento
das possibilidades de concepção de peças, já que, até ali, as aprendizes dispunham apenas de
agulhas para a junção dos cortes de tecido.
As mulheres demonstraram estar orgulhosas por aquilo que produziram, já que foi feita
uma mostra da produção para a comunidade acadêmica. Na ocasião, elas tiveram contato, pela
primeira vez, com as companheiras do outro núcleo e seus trabalhos. O seguinte trecho de uma
avaliação resume o evento: “Palestras bastante esclarecedoras, onde aprendemos muito mais
com relação ao projeto como um todo e como ele funciona em outros lugares, enfim foi bem
produtivo”.
O contato inicial do grupo com o núcleo de Fortaleza do projeto serviu para estimular
a produção das mulheres, pois, como as fortalezenses haviam iniciado suas atividades semanas
antes, o arsenal produzido foi superior ao das horizontinas, como pôde ser constatado na se-
guinte opinião de uma integrante: “Creio que a mostra de produtos foi boa, porém poderíamos
melhorar na produção para termos mais a apresentar”. Além disso, o projeto foi divulgado nas
mídias televisiva e impressa, através de matérias nas quais integrantes deram seus depoimentos
sobre a vivência no projeto.
FIGURA 8 - Fotografia da Oficina de Crescimento e Desenvolvimento Pessoal. Fonte: Elaborado pelo autor, 2007.
FIGURA 9 - Fotografia da Roda de Conversa sobre Trabalho. Fonte: Elaborado pelo autor, 2007.
O trabalho é um dom de Deus que nus deu cada um di nois para sermos sidadao (Luzirene).
Trabalho nem sempre quer dizer emprego, muitas vezes trabalho é produzir algo sem ter remuneração.
Trabalhar é você sentir útil, produtivo e capaz de com o seu trabalho, seja ele qual for sentir-se realizado,
como profissional e pessoa. Trabalho dignifica, dá auto-estima e é algo de suma importância na vida do
ser humano. (Virgínia).
Trabalho para min e uma fonti que quada um di nos dependi deli porque sem trabalho nos não somos
nada. Dependemos deli para todas as coisas di nossas sobrivivencia. Trabalho e uma coisa muito inpor-
tanti não so di pão vivi o homem mais di toda palavra da boca di Deus (Lucimar).
Trabalho e tudo aquilo que faz parte da nossa vida, principalmente quando se faz com amor carinho e
dedicação, paciência. (Letícia).
No meu ponto de vista trabalhar e senpre ter auqela tarefa a fazer todos os dias e fazer co carinho porque
trabalhar e lida do dia-a-dia. Todo dia estamos trabalhando, fazendo uma coisa ou outra (Valquíria).
Trabalhar pra mim significa tudo porque através do trabalho nós temos tudo que sonhamos e se inda
não temos com certeza algum dia da vida teremos, pois quem espera por Deus não cansa. Temos que ter
nosso próprio trabalho pra que nós possamos se alto sustentar comer do próprio suor do nosso rosto por
que mente vazia é oficina do diabo e também eu gostaria de trabalhar para ajudar meu marido e pagar
a faculdade do meu filho. Trabalho que eu amo fazer é costurar. Peço muitas forças a Deus pra que eu
possa alcançar esse objetivo (Marília)
Fonte: Material interno do projeto “Alinhavando Sonhos / Construindo Realidades”.
FIGURA 10 - Fotografia da Oficina de Bonecas de Pano. Fonte: Elaborado pelo autor, 2007.
O intercâmbio proporcionado por essa experiência foi importante para a ampliação dos
conhecimentos das mulheres acerca da situação do artesanato na cidade de Fortaleza. Igual-
mente significativa foi a fabricação de produtos ainda não encontrados na comunidade, como
bolsas infantis em formato de bonecas, enfeites de sapos e outros bichos, o que resultou em
inúmeras encomendas por parte de vizinhas e colegas das mulheres.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 52
O passo seguinte ocorreu com outra oficina, ministrada pela mesma professora de Esti-
lismo e Moda, para a elaboração de uma coleção de roupas, segundo a criatividade das alunas,
para apresentação durante a I Feira de Integração Universidade-Movimentos Sociais da UFC. A
interface com outros grupos produtivos, de outras cidades e com produtos variados, proporcio-
nada por essa feira, permitiu uma comparação entre estilos e trouxe novas expectativas e opções
para os núcleos.
Esta ocasião constituiu-se em outro marco nas atividades do projeto, pois foi a primeira
vez que os grupos puderam vender seus produtos. Assim, o aprendizado ultrapassou os aspectos
da técnica e da concepção, uma vez que as mulheres tiveram a oportunidade de lidar diretamen-
te com o cliente, na relação do comércio daquilo que elas próprias haviam elaborado.
Outra questão importante ocorrida a partir dessa feira se deu com a divisão do dinheiro
arrecadado entre as mulheres, cujos critérios utilizados foram definidos por elas mesmas. Para
a realização daquela feira, houve maior engajamento na produção e/ou na venda por parte de
algumas. Outras haviam desistido, se afastado temporariamente por doença ou algum outro mo-
tivo. Assim, o valor, embora não fosse alto, foi bastante representativo por consistir no primeiro
fruto financeiro do processo. A fotografia seguinte ilustra a ocasião em que foi definida a forma
de divisão do dinheiro arrecadado.
FIGURA 11 - Fotografia de Reunião Interna do Grupo de Mulheres. Fonte: Elaborado pelo autor, 2007.
A essa altura do projeto, alguns aspectos foram se evidenciando, tais como a diminuição
do interesse de algumas mulheres, concomitantemente a um maior engajamento de outras inte-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 53
grantes e a aptidão de determinadas mulheres para a divulgação e venda dos produtos, enquanto
outras se destacavam na produção e criação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estávamos enfrentando uma gama de interferências que versavam para o lado oposto,
para a submissão ao emprego e à prestação de serviços que oferecem condições precárias de
trabalho e recompensas financeiras irrisórias, mas que realizam esse pagamento no dia estabe-
lecido.
A tais interferências, no caso abordado, são forças que estão longe de serem enfrentadas
de igual para igual, às quais se somam: os valores e pressupostos difundidos pela sociedade sa-
larial, que ainda estão altamente presentes no imaginário dessas mulheres; o poder de consumo
proporcionado pelo emprego com carteira assinada; o status social proporcionado pelo uso do
fardamento de uma grande empresa.
Contudo, inúmeros outros frutos foram colhidos desse período de trabalho, como pôde
ser observado na história de cada mulher entrevistada. A busca do conhecimento da história
da comunidade proporcionada pelo projeto “Alinhavando Sonhos / Construindo Realidades”
constitui motivo de orgulho por parte da coordenação. A participação no projeto, ação direcio-
nada para a comunidade em razão das raízes quilombolas desta, constituiu uma oportunidade
de qualificação profissional abraçada pelas mulheres. O acesso ao conhecimento das origens da
comunidade, bem como a aproximação afetiva a pessoas antes desconhecidas, foram aspectos
importantes apontados pelas mulheres como resultados do projeto.
por parte delas dessa centralidade. Elas falaram das consequências de suas experiências ante-
riores de trabalho em seu cotidiano familiar e social, das conquistas efetivadas a partir delas,
bem como dos sonhos que queriam realizar. Mostraram que sabiam o que gostariam de ter e/
ou fazer para si e para os filhos. Suas falas revelaram também, que elas tinham consciência das
dificuldades e impossibilidades de pôr seus projetos e sonhos em prática.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Entre os anos de 1995 e 2000, o NUTRA firmou e consolidou várias parcerias importan-
tes em seu percurso, além de promover e desenvolver diversos eventos, tais como seminários
e palestras. Por meio do convênio com a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, o Núcleo
se responsabilizou por todo processo seletivo do corpo discente do Instituto Dragão do Mar,
local de referência para promoção de cultura no estado. Ainda neste período, o Núcleo realizou
o II Segundo Seminário Interno de Planejamento Estratégico, redefinindo, nesse encontro, os
objetivos do grupo.
Já entre os anos de 2001 e 2010, o NUTRA sofreu uma reestruturação, revendo seus
objetivos de trabalho e colocando como central o estudo da categoria “trabalho”, de uma for-
ma mais ampla. O núcleo passou a desenvolver diversos seminários, tais como Seminário de
Introdução ao Curso de Psicologia; Seminário de Teorias e Práticas Psicológicas, entre outros.
Entre os anos de 2006 a 2009, volta-se para os projetos de extensão, quais sejam: “Alinhavando
Sonhos, Construindo Realidades”, “Movimento A” e “Kara a Kara”.
Nos anos de 2010 a 2015, o núcleo novamente reformula-se, com a continuação de di-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 57
versas atividades e início de outras. Entre estas, referentes a esse período, podem ser elencados
o Cinema e Trabalho, os grupos de estudos em Introdução à Psicologia Social e do Trabalho,
Saúde do Trabalhador em Debate: a Clínica da Atividade de Yves Clot e em Psicologia Orga-
nizacional, além dos Seminários Integrados de Trabalho; das parcerias com a Justiça Federal,
com o Curso Paulo Freire, com a Fábrica Escola, com o Programa de Educação Tutorial (PET)
e com a PROGEP, contextos em que se desenvolveram pesquisas e intervenção, bem como di-
versas outras ações que foram desenvolvidos pelo núcleo durante esses anos.
Seus objetivos têm sido uma pauta constantemente renovada, de forma a sempre esta-
rem atualizados e confluentes com sua forma de conceber o homem, a sociedade e a construção
da subjetividade de uma forma global e crítica. Os seguintes objetivos foram debatidos e cons-
truídos coletivamente pelos membros do NUTRA no último ano: formar profissionais críticos
através de estudos e intervenções na área de Psicologia Social do Trabalho; realizar projetos de
pesquisas e extensão visando à produção do conhecimento e atendimento de demandas internas
e externas; estabelecer convênios, intercâmbios e parcerias, visando à troca de experiências, de
recursos e a produção de conhecimentos; estimular a formação de grupos de estudos de Psico-
logia Social do Trabalho e áreas correlatas; servir de campo de estágio para a Psicologia Social
do Trabalho tanto no núcleo como na inserção e acompanhamento de alunos nas organizações
e estimular e abrigar projetos de extensão, de iniciação à docência e de iniciação à pesquisa que
contribuam na operacionalização de nossos princípios.
Tendo em vista os objetivos deste capítulo, faz-se necessária uma breve apresentação da
Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (PROGEP, antiga Superintendência de Recursos Humanos)
da UFC. Esta é uma instância da Universidade que se destina a
De início, essa noção de saúde era reduzida à Medicina do Trabalho, surgindo no con-
texto da revolução industrial, em que o trabalhador era visto como ponto central para o aumento
de produtividade da empresa, de forma que as modificações do ambiente de trabalho visavam
a este propósito e não a promover um espaço mais saudável ao trabalhador, configurando uma
lógica adaptacionista. Além disso, acidentes de trabalho eram de responsabilidade dos empre-
gados.
Dentro deste processo, a parceria entre NUTRA e PROGEP, teve início em 2010, devido
ao desejo da Pró-Reitoria de reavaliar as práticas em psicologia, de modo a estar em consonân-
cia com os preceitos da PASS, às necessidades e demandas por parte dos trabalhadores. Cons-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 59
No que diz respeito à extensão, surgiram projetos como ELABORar, Saúde do Tra-
balhador em Debate, Mediação de Conflitos e Projeto de Prevenção e Acompanhamento dos
Servidores com Problemas decorrentes do Uso/Abuso do Álcool e/ou Outras Drogas (PPAD/
UFC). Esses projetos, a serem apresentados a seguir, situam-se na Coordenadoria da Qualidade
de Vida no Trabalho (COQVT) e são executados pela equipe multiprofissional da Divisão de
Apoio Psicossocial (DIAPS), por integrantes do NUTRA e até por estudantes de outras Institui-
ções ou de outros cursos. Onze membros do Núcleo, entre estagiários e bolsistas, fizeram parte
do desenvolvimento e execução dessas ações.
4 Para mais informações, ver Capítulo deste livro sobre o Censo Penitenciário.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 60
ELABORar
Este projeto tem como objetivo realizar intervenções em espaços da Universidade, com
a finalidade de engendrar transformações nos contextos de trabalho que prezem tanto pela saú-
de dos trabalhadores quanto pela qualidade dos serviços prestados. Apoia-se na teoria da Clíni-
ca da Atividade (Clot, 2007), proposta pelo francês Yves Clot, que se constitui como abordagem
teórica, metodológica e prática que visa a uma análise psicológica do trabalho (Santos, 2006)
cujo objetivo é “compreender para transformar” (Clot, 2007) os contextos de trabalho.
para uma compreensão ampla do contexto e dos processos, como a relação com os colegas e
chefias, o ambiente físico e o ritmo de trabalho, as condições materiais etc. Também são feitas
visitas aos contextos de trabalho. Esta etapa é gravada e em seguida realizada transcrição que é
devolvida ao trabalhador que irá lê-la e discutir com o mediador alguns aspectos do seu relato.
se aproprie do trabalho de seus companheiros como uma ferramenta para enriquecer as dis-
crepâncias. Os desacordos surgidos na fase anterior adquirem novas significações, inclusive para seus
autores [...] forma de ajudar os esforços dos trabalhadores para ampliar seu poder de ação sobre as coisas
e sobre o mundo, com o objetivo de fazer um trabalho eficiente e de qualidade (Fernandez & Clot, 2010,
p. 15, tradução nossa).
O desenvolvimento das ações aconteceu tendo em vista o alcance comunicativo das fer-
ramentas, bem como sua interatividade, fluidez e fácil acesso. Essas ações justificam-se como
ações de promoção à saúde, e, através delas, objetiva-se trazer e difundir informações e debates
que possam promover impactos positivos na qualidade de vida dos trabalhadores.
As ações realizadas no que diz respeito ao blog, que se tornou o foco do projeto, mos-
tram-se efetivas ao passo em que se constata um aumento no número de acessos: até setembro
de 2015, houve mais de 20.800 acessos. A interação com o público que o acompanha é garan-
tida por meio da ferramenta que permite realização de comentários em cada post, assim como
pela possibilidade de compartilhamento nas principais redes sociais.
O processo de mediação não tinha a pretensão de encontrar a verdade a respeito dos fatos
que levaram ao conflito, nem quais envolvidos o geraram. O objetivo “era recuperar os sentidos
que os sujeitos atribuíam ao seu próprio trabalho, agora permeado por uma situação para a qual
não dispuseram de ferramentas institucionais e simbólicas para lidar” (Pinheiro, 2014). Para
tanto, eram realizadas entrevistas com cada um dos trabalhadores ou com os grupos envolvidos
e com as chefias; visitas aos locais de trabalho, reuniões com todas as pessoas envolvidas para
mediar o diálogo e, quando possível, facilitar a criação e o desenvolvimento de novas formas
de convivência. Todas estas ações eram realizadas no intuito de, através de um aprofundamento
no contexto de trabalho dos sujeitos, elaborarem um canal de diálogo entre estes a fim de de-
senvolver soluções compartilhadas para o conflito, e, concomitantemente, analisar que aspectos
da organização do trabalho colaboraram para o surgimento do impasse. Em vários dos campos
citados acima, foi possível engendrar ações que recriassem o convívio nos contextos laborais.
Faz-se necessário apresentar o contexto mais amplo de surgimento deste projeto, a co-
meçar pela implementação de políticas públicas nacionais sobre drogas, processo recente no
Brasil. A Política Nacional Antidrogas (PNAD), foi instaurada através do Decreto nº 4.345
de 26 de agosto de 2002, sendo criadas a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) e, poste-
riormente, em 2006, houve a criação do Sistema de Políticas Públicas sobre Drogas, os quais
tinham, dentre outros objetivos, promover a integração entre as políticas públicas de prevenção
do uso indevido, atenção e reinserção social Secretaria Nacional Antidrogas [SENAD] (2008).
É importante pontuar também a instauração da Política Nacional sobre o Álcool, através Decre-
to Presidencial nº 6.117/2007, de 22 de maio de 2007, que regulamenta medidas para diminui-
ção do uso inadequado do álcool e suas relações com a violência e o crime.
Uma preocupação decorrente de todas as discussões e avanços das Políticas Públicas so-
bre Drogas foi a influência que o uso indevido ou abuso trariam para a vida do trabalhador, en-
tendendo assim que o “desenvolvimento de um programa de prevenção ao uso de drogas pelos
locais de trabalho está diretamente ligado não só à integridade dos funcionários, mas também à
saúde da própria organização’’ [SENAD] (2008, p. 165).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 64
Além de ações com caráter instrutivo, o projeto também realiza atendimento aos servi-
dores, prestado tanto por psicólogos quanto por assistentes sociais, auxiliando nos problemas
decorrentes do uso abusivo de substâncias e encaminhando para serviços especializados como
CAPS/AD, além de fazer acolhimento, entrevista com o trabalhador e levantamento da deman-
da, inclusive em caso de afastamento temporário, desde o distanciamento da instituição, garan-
tindo todos os direitos do trabalhador, e posteriormente auxiliando na volta e na reinserção no
ambiente de trabalho. Além disso, o projeto mantém campanhas realizadas por outros órgãos e
em datas especiais, como o Dia Mundial contra o Tabaco, realizado pela OMS.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Outra ação efetiva, realizada em conjunto, foi o Projeto de Mediação de Conflitos. Atra-
vés desse, pôde-se, em conjunto com os trabalhadores, pensar alternativas para problemáticas
encontradas no ambiente de trabalho, buscando formas para que esses recuperassem sentido
no seu próprio trabalho e, assim, modificar a estrutura da organização laboral que colaboravam
para tais dificuldades de relacionamento.
REFERÊNCIAS
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Santos, M. (2006). Análise psicológica do trabalho: dos conceitos aos métodos. Laboreal, 2,
34-41.
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas - SENAD (2008). Prevenção do uso do álcool e
outras drogas no ambiente de trabalho: conhecer para ajudar. Brasília, DF: Brasil. Serviço
Social da Indústria. Recuperado de http://www.crruece.woese.com/upload/ca2411c631dd-
856f9d35eae6537d59e3.pdf.
Secretaria Nacional de Assistência à Saúde (1990). ABC do Sistema Único de Saúde: Doutrinas
e Princípios. Brasília, DF: Brasil. Editora do Ministério da Saúde.
Souza, K. de O., Fraga, C. R. A., Sampaio, C. R. de F. D., Gomes, M. F., & Aquino, C. A. B.
(2011). Núcleo de Psicologia do Trabalho - NUTRA: 16 anos de atuação. Revista Extensão
em Ação, 1(1), 83-92. Recuperado de http://www.revistaprex.ufc.br/index.php/EXTA/arti-
cle/view/17/32.
Tómas, Jean-Luc (2010). Desenvolvimento da experiência e desenvolvimento dos conceitos:
da atividade sindical à produção de um referencial da atividade. Trabalho & educação,
19(3), 49-63.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 68
INTRODUÇÃO
Entre os anos de 2013 e 2014, foi realizado o primeiro Censo Penitenciário do Estado do
Ceará, através de uma parceria entre a Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado (SEJUS) e a
Universidade Federal do Ceará (UFC). O projeto foi executado por pesquisadores da UFC, por
meio do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), do Laboratório Cearense de Psicometria
(LACEP) e do Núcleo de Psicologia do Trabalho (NUTRA), com o apoio da Fundação Cearense
de Pesquisa e Cultura (FCPC). Os pesquisadores contaram com a supervisão de profissionais da
SEJUS e com a coordenação dos professores Dra. Celina Amália Ramalho Galvão Lima (LEV),
Dr. Walberto Silva dos Santos (LACEP) e Dr. Cássio Adriano Braz de Aquino (NUTRA).
de ser preso, as atividades dentro da unidade prisional e os planos de trabalho após a saída
do sistema carcerário. Após analisarmos as tabelas resultantes do Censo, discutiremos sobre
desdobramentos teóricos e práticos desses resultados, bem como destacaremos algumas
impressões gerais do processo das entrevistas.
De acordo com a tabela, as unidades prisionais do Ceará de maior porte, com exceção da
PIRC e PIRS, se localizam na Região Metropolitana de Fortaleza. As cadeias públicas perfazem
um total de 134 e estão distribuídas nas macrorregiões. De forma notória, as casas de privação
provisória de liberdade detêm o maior número de detentos do Estado.
A coleta dos dados do Censo Penitenciário do Ceará foi realizada entre abril de 2013 e
abril de 2014 e contou com uma equipe de 40 pessoas, entre professores universitários, alunos
de graduação e pós-graduação (Psicologia, Ciências Sociais, História, Serviço Social, Direito e
Economia), equipe de apoio e funcionários da SEJUS. Todo recenseador passou por uma série
de treinamentos para familiarizar-se com o questionário, bem como tentar aprimorá-lo após a
realização do projeto-piloto (fase de testes). As alterações realizadas foram, em sua maioria, no
sentido de tornar o instrumento o mais claro possível, com perguntas que usassem palavras de
simples compreensão para todos os níveis de escolaridade, facilitando a interação entre sujeito
pesquisado/pesquisador.
O primeiro questionário visava a obter dados mais objetivos, como idade, faixa de renda,
bairro onde residia o detento, idade com que se envolveu em conflito com a lei pela primeira
vez, se era reincidente no sistema carcerário, se era usuário de algum psicoativo, etc. A aplicação
durava um tempo médio de seis minutos, com perguntas objetivas e que não oportunizavam a
abertura de um diálogo.
dos encarcerados.
É preciso ressaltar que nem todos os detentos sentiam-se à vontade com os questionários,
em especial com o completo. Alguns (poucos) recusavam-se a responder determinados itens -
percentual aproximado de 4,7 % de desistências ou recusas - ou respondiam displicentemente,
como quem diz “qualquer coisa” para se livrar do momento. Na aplicação dos questionários
básicos, por vezes também surgia o interesse por parte do entrevistado de fornecer maiores
informações, narrar sua história, o que não ficava registrado formalmente, pois o modelo do
instrumento não permitia.
Para a amostra ser válida, foi feito um cálculo que determinou a proporção e ordem
aleatória para aplicação alternada dos questionários básico e completo, numa proporção de
17 x 1; e no presídio feminino, como a amostra da população era numericamente reduzida, a
proporção foi alterada para 3 x 1.
Esse dado, associado à baixa escolaridade, pode indicar uma alta incidência de vínculos
laborais precários.
Em relação ao trabalho dentro do sistema, a maioria (85,7%) dos detentos nunca reali-
zou nenhuma atividade laboral dentro do presídio.
Partindo de uma visão ampla da categoria trabalho e entendendo esta para além de
uma atividade instrumental, tentamos nos aproximar da visão marxista do trabalho, na qual o
homem constrói sua subjetividade pautada em sua atividade, ação esta que deve ser dotada de
consciência e plena de sentido. Assim, o trabalho deve ser entendido enquanto uma categoria
antropo-histórica (Aquino, 2003), ressaltando que o trabalho faz com que o homem se reconheça
enquanto tal na interação com seu meio, mas que esta interação deve necessariamente estar
situada em determinado recorte espaço-temporal. A categoria em questão é permeada, em
suas construções, por relações que envolvem uma multiplicidade de sentidos, que vão desde
o trabalho entendido enquanto pena, castigo, até sua valorização enquanto único meio para
salvação, incluindo aqui a dimensão da espiritualidade.
A partir dos dados coletados no Censo, ao analisarmos a situação laboral dos usuários
do sistema carcerário do Ceará, um dado relevante chama a atenção: a maioria dos detentos
ocupava-se com trabalhos considerados informais antes de ingressarem nas penitenciárias
(Tabela 3).
Pode-se, todavia, afirmar que o trabalho informal no Brasil sempre teve uma relação
com problemas estruturais como a desigualdade social e a inoperância do Estado, enquanto
provedor de políticas que assegurem, de maneira universal, o bem-estar da população, como
educação, trabalho, assistência social e saúde. Outro agravante é a submissão das questões
trabalhistas aos interesses do sistema capitalista, tornando-as, dessa forma, bastante suscetíveis.
Cabe salientar que é preciso ter certo cuidado ao tratar do tema da informalidade, pois
a própria conceituação da relação entre trabalho informal e marginalidade é bastante complexa
e dinâmica, acompanhando as constantes transformações que se dão no âmbito da atual
organização do trabalho em nível mundial. E quando trazido para o contexto do Brasil e da
América Latina, o conceito toma contornos bem mais específicos. De acordo com Costa (2010),
“em termos operacionais, o desafio de conceituar e categorizar o trabalho informal se torna
tanto maior porque os novos e diversificados arranjos produtivos tornam ainda mais complexas
as interconexões entre o formal e o informal, e isso quase põe por terra as abordagens dualistas”
(p. 182).
Pode-se verificar em Vianna (2006) que a produção de dados oficiais acaba por trazer
a ideia de um mundo modificado pelas atuais relações de trabalho, pautadas em um sistema
econômico cada vez mais globalizado e flexível. Tais características tornam difícil a construção
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 75
de instrumentos que façam possível uma interpretação mais fiel das modificações laborais.
Ainda que isso seja possível, haverá sempre lacunas nos dados empíricos, já que as relações
são envoltas na complexidade do contexto econômico pautado da reestruturação produtiva
(Antunes, 2000).
Ao falarmos sobre criminalidade no Brasil, podemos talvez inferir que esses índices
incidem consideravelmente sobre as camadas mais desfavorecidas da sociedade, e isso
diz respeito a problemas históricos e estruturais como a falta de oportunidades de trabalho
no setor formal, a baixa escolaridade, o amparo deficiente do Estado e de políticas públicas,
em geral, que venham dar suporte às populações mais carentes e necessitadas (Souza, 2006).
Segundo Costa (2010), “esse é o pano de fundo histórico-estrutural a subsidiar a construção
de uma noção de informalidade que mais fielmente explica as contradições de classe no país
e a origem mesma da informalidade; uma informalidade muitas vezes imiscuída nas redes da
criminalidade” (p.178).
O que acontece na realidade vivenciada, porém, é muito diferente, e isso foi retratado
nas entrevistas deste Censo. Dentro do ambiente carcerário a oferta de trabalho é mínima e,
quando existente, as atividades são desinteressantes, repetitivas e monótonas, voltadas a um
detento que apresenta um comportamento específico desejado e que não possui, via de regra,
autonomia sobre sua atividade. Talvez daí o dado de que a maioria nunca realizou nenhuma
atividade (Tabela 4). Se o trabalho que significa o homem é aquele que possibilita sua livre
expressão e criatividade, mantenedor de saúde no sentido de que bem estar é poder contar
com suas capacidades em plenitude e ser livre para vivenciá-las (Canguilhem, 1995), a oferta
laboral dentro dos presídios parece estar distante do que entendemos enquanto trabalho digno
e formador de subjetividade.
Não trabalhar, ser “vagabundo” no sentido de não realizar atividades laborais em condição
de encarceramento, comporta também uma certa resistência. “Mas se tivesse a oportunidade,
você gostaria de trabalhar aqui?” Alguns, sim. Outros, com ressalvas: “só se não fosse com
eles”; outros, ainda, “Não. Trabalhar é só lá fora.” Estes talvez sejam os que possuem a ideia
mais próxima de um trabalho tido como dignificante, porém ao mesmo tempo compõem o rótulo
do típico “vagabundo” que não trabalha por não querer. Partimos da ideia de que o trabalho
externo, livre, seja encarado como de maior valor devido à alguma possibilidade de autonomia,
não sendo uma imposição de um ambiente restritivo de liberdade. Triste e complicada análise,
que mereceria isoladamente um estudo aprofundado que melhor problematizasse tais questões.
Qual seria a forma, então, de motivar estes detentos? Que atividades, que remuneração, além da
monetária e diminuição da pena, tornariam o trabalho em ambiente carcerário algo interessante?
Alguns detentos realizavam, por conta e talento próprios, artesanatos com os materiais
disponíveis e classificavam esta atividade mais como passatempo que como trabalho. Eram
restos de quentinhas que muito bem torcidos e enrolados viravam automóveis acabados com
fita isolante, eram esculturas feitas com pedaços de fios e madeira, acabadas com restos de rolo
de papel higiênico que viravam enfeites e mimos para os recenseadores – os recenseadores, por
exemplo, ganhavam por vezes objetos feitos de alumínio de quentinha.
Vale ressaltar que a realidade do presídio feminino era bem diferente neste aspecto, pois
a maioria das mulheres era de alguma forma responsável pela higienização do espaço e muitas
ajudavam na cozinha. O trabalho doméstico, porém, é invisível e sempre diminuído, entendido
como atributo natural do gênero feminino e por isso esquecido enquanto atividade laboral.
Além dos citados afazeres, havia uma fábrica de jeans, que realizava a aplicação das etiquetas
dentro do presídio, e muitas mulheres eram envolvidas neste trabalho. Lá as atividades não
pareciam tão desinteressantes e os laços de solidariedade pareciam menos frouxos.
As principais impressões que tivemos durante as entrevistas, no que diz respeito aos
planos de trabalho ao sair da prisão, é que era quase unânime a resposta afirmativa de querer
voltar ao mundo laboral. Esse quadro percebido durante as entrevistas foi claramente refletido
nos resultados da pesquisa (Tabela 5).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 78
O trabalho é o cerne de como a sociedade vive e se organiza, e, portanto ele está também
no centro das discussões sobre inclusão e exclusão do sujeito. Miraglia (2010) defende que o
trabalho é o meio de garantir ao homem acesso a recursos para usufruir de uma vida digna.
Assim, o trabalho é compreendido como a condição de valorização e reconhecimento de
identidade do sujeito, ou como resgate de sua cidadania, na medida em que possibilita a sua
integração na sociedade e o recebimento de remuneração, permitindo-lhe realizar a aquisição
de bens, de modo que se integre ao funcionamento social e econômico. E aqui se concentra a
importância de repensarmos possibilidades de reinserção do egresso ao mercado de trabalho.
Isso porque,
Abandonados à própria sorte, sem possibilidade de exercer muitos de seus direitos individuais
por não estarem inseridos em nenhuma estrutura coletiva que os integre na dinâmica social, à maioria dos
egressos do sistema prisional brasileiro resta a alternativa de viver na condição em que o imperativo é
somente a sobrevivência e não o bem-estar social (Seron, 2009, p. 65).
O egresso do sistema prisional, por ter seus vínculos sociais profundamente deteriorados pela
experiência da prisão, pela exclusão do sistema produtivo e pela vulnerabilidade que o aproxima do crime,
necessita de amparo tanto por parte do Poder Público quanto da sociedade como um todo. Mas chama-se
a atenção aqui para um amparo que afete suas condições concretas de existência, sua condição objetiva
de vida. Não se consegue modificar um indivíduo, transformá-lo, desvinculando-o de seu contexto social,
como se ele fosse apenas sua subjetividade, sem materialidade. E o trabalho, por ser mediador entre
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 79
objetividade e subjetividade, entre ser e mundo que o cerca, deve estar na pauta dos debates e ser foco
das ações que se pretendem transformadoras e promotoras dos direitos do homem (Barbalhos & Barros,
2010, p 2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante as entrevistas deste Censo, não raro, histórias surpreendentes de vida vinham à
tona, algumas permeadas de muita dor e sofrimento, outras cheias de encanto e divertimentos,
o que fazia saltar à memória as instruções recebidas por parte dos agentes e policiais militares:
“preso é tudo cheio de história pra enganar vocês, não caiam na deles, não façam favor...”.
Mas como não se deixar seduzir e levar por um universo tão desconhecido e pouco explorado?
Como não querer conhecer a história, motivações, aventuras e desventuras narradas, fossem
elas reais ou imaginárias? Como continuar invisibilizando sujeitos que queríamos exatamente
conhecer, através do diálogo, para então propor meios efetivos de ressocialização, tornando-os
visíveis? Negar a escuta, nesse caso, seria novamente legitimar os processos de exclusão que,
de tão enraizados, são tidos como naturais.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo refletir sobre a educação corporativa no âmbito da
gestão pública. Para tanto, abordará teoricamente a temática acerca de Escolas de Governo,
apresentando os movimentos de articulação e parcerias realizados pelas Redes de Escolas de
Governo tanto no âmbito nacional quanto estadual.
Finalmente, o artigo apresentará parte das ações executadas neste primeiro ano de
governo e apontará as expectativas quanto ao futuro desta escola.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 83
AS ESCOLAS DE GOVERNO
As Escolas de Governo, então, surgem para atender a essa demanda por formação e
capacitação dos servidores públicos nas novas técnicas e concepções teórico-metodológicas
da gestão pública, não apenas na esfera do Poder Executivo, mas também na dos Poderes
Legislativo e Judiciário. De acordo com a Rede Nacional de Escolas de Governo, a maioria
das 258 instituições governamentais que a compõem tem formação recente que remete à
edição da Constituição Federal de 1988, quando do processo de redemocratização do país.
Essas escolas possuem diferentes naturezas, históricos e formatos que vão desde as Escolas de
Governo propriamente ditas até secretarias de administração estaduais e municipais, incluindo-
se universidades, universidades corporativas e centros de treinamento e capacitação (REDE
NACIONAL DE ESCOLAS DE GOVERNO, 2013).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 84
Souza (1996) comenta que uma das referências para a estruturação e desenvolvimento de
Escolas de Governo, em especial as latino-americanas como a Escola Nacional de Administração
Pública (ENAP), no Brasil, e o Instituto Nacional de la Administración Pública (INAP), na
Argentina, foi o pioneirismo da Ecole Nationale d’Administration (ENA), na França.
Criada em 1945, com base na reforma que visava à reconstrução do estado Francês, a
ENA nasce “[...] para proporcionar aos altos funcionários uma formação sólida, voltada para a
realidade, procurando desenvolver o senso de interesse geral e do serviço ao Estado.” (Souza,
1996. p. 70). A Escola fora, também, fruto de outras instituições de formação de pessoal na
França e sua estrutura inspira a criação e o desenvolvimento de várias outras Escolas de Governo.
O anúncio oficial da criação da EGP foi feito no I Congresso Ceará Gestão Pública,
realizado nos dias 29 e 30 de outubro de 2008 pela Secretaria do Planejamento e Gestão
(SEPLAG). A escola de governo nasce como uma ação de valorização do servidor e como
espaço para aprendizagem e gestão do conhecimento.
Tendo como princípio básico a cooperação mútua, cada escola componente da Rede
Estadual se compromete a promover ações conjuntas, ceder mecanismos de divulgação para
difundir as boas práticas na gestão pública e estender, reciprocamente, a todos os servidores a
possibilidade de participação em cursos e capacitações.
essencialmente distintos, ainda assim podem-se buscar pontos de conexão. Assim, desenvolve-
se uma discussão em torno de uma Nova Gestão Pública, baseada em princípios de eficiência,
eficácia e efetividade (Serra, 2008).
[...] um modelo de gestão em que o setor público atua com o objetivo de gerar resultados, impactos,
melhorias para a vida da população. Na busca do efetivo atendimento das necessidades dos cidadãos, a
atuação governamental admite uma lógica inversa à gestão tradicional que define entregas (produtos/
iniciativas) à sociedade em função de uma estrutura física, financeira e organizacional estabelecida, que
pode não ser compatível ou não estar adequadamente dimensionada para a geração do impacto pretendido
(SEPLAG, 2015, p. 03).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 89
O modelo de Gestão para Resultados pode ser apresentado de forma simplificada como
na figura 3.
Figura 3
A Gestão Pública para Resultados foi adotada pelo Estado do Ceará no ano de 2004,
quando o modelo foi concebido e houve a capacitação da alta gestão do estado e das equipes
técnicas que utilizariam o modelo. No mesmo ano, através do Decreto nº 27.524 de agosto de
2004 foi instituído o Comitê de Gestão por Resultados e Gestão Fiscal (COGERF), composto
por secretários de estado, que tem como uma de suas atribuições a consolidação do modelo de
gestão baseado em resultados e elevar a eficiência, a eficácia e a efetividade da administração
estadual (Ceará, 2004).
sociedade civil, denominado “Os 7 Cearás”. O documento define os principais eixos de atuação
governamental, a partir do qual se construirá o Plano Plurianual – PPA (2016-2019) do Estado
e a Lei Orçamentária Anual (LOA), para cada ano da gestão.
O Modelo de Gestão Pública para Resultados permite, tanto às autoridades quanto aos
servidores e cidadãos, a visualização de dados e de indicadores, através dos quais se podem
demonstrar a atuação governamental nas diversas áreas como saúde, educação, segurança,
infraestrutura, etc.
A Escola de Gestão Pública do Estado do Ceará (EGP) assume neste momento a tarefa
de facilitar aos servidores o acesso às informações que demonstram o que é o Modelo de
Gestão para Resultados, programando ações tanto na modalidade a distância quanto presencial.
Espera-se que as informações cheguem a todas as unidades de governo e aos interessados em
compreender onde e de que maneira cada ação de trabalho pode fazer a diferença.
Programa. Já em 2015, realizou-se a 1a turma do curso presencial Gestão para Resultados, que
será oferecido de maneira contínua na programação anual da EGP.
A Escola de Gestão Pública do Estado do Ceará (EGP), criada em 2009, com a missão de
desenvolver o processo educacional em gestão pública para servidores e empregados públicos,
visando ao aprimoramento de suas competências e possibilitando melhoria na prestação dos
serviços público, tem estabelecido parcerias estratégicas para viabilizar e potencializar o
cumprimento do seu papel no estado do Ceará.
Além dessa relação com o Sistema SEPLAG, a EGP mantém outra parceria estratégica
com a Controladoria e Ouvidoria Geral do Estado (CGE), focando no cumprimento do seu papel
de capacitar e formar servidores para possibilitar uma melhor prestação do serviço público no
Ceará. Para tanto, foi criado um eixo temático na Escola de Gestão Pública para trabalhar todos
os aspectos que dizem respeito ao Controle Interno, atividade-fim da CGE.
A CGE, assim como a SEPLAG, é uma secretaria corporativa, ou seja, trabalha dando
suporte a todas as outras instituições do Poder Executivo Estadual, e tem a missão de “assegurar
a adequada aplicação dos recursos públicos, contribuindo para uma gestão ética e transparente
e para oferta dos serviços públicos com qualidade” (Ceará, 2013, p.01). As capacitações e
formações desenvolvidas nessa parceria entre CGE e EGP tratam de temas vinculados ao
Sistema de Controle Interno, o qual compreende as atividades de Controladoria, Auditoria
Governamental, Ouvidoria, Transparência, Ética e Acesso à Informação.
O principal propósito deste trabalho conjunto é a preparação dos servidores para que
tenham condições de exercer correta e eticamente suas funções, no que diz respeito aos processos
de trabalho; aos controles necessários dos recursos públicos e à viabilização do controle social
sobre programas e orçamento de governo. Propõe-se que antes da CGE chegar às instituições
do governo, como órgão fiscalizador, já tenha sido cumprido o papel de órgão orientador, uma
vez que o objetivo do trabalho da Controladoria não é encontrar os erros e sim constatar que
a lei e as boas práticas de gestão estejam sendo observadas no cotidiano dos servidores e nas
atividades que estes realizam.
Contribuindo com a gestão pública na esfera municipal, a EGP mantém outra parceria
estratégica com a Secretaria das Cidades, por meio do Instituto de Desenvolvimento Institucional
das Cidades do Ceará (IDECI), o qual tem a missão de fortalecer a capacidade institucional
dos municípios, para viabilizar políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sustentável do
Ceará.
A EGP, além de promover nessa parceria com o IDECI capacitações dentro de todos
os sete eixos temáticos voltados para a gestão pública, anteriormente citados nas parcerias
com SEPLAG e CGE, ainda trabalha um eixo temático específico para contribuir com o
cumprimento da missão do Instituto, bem como para o avanço na gestão dos municípios, a
saber, o Desenvolvimento Sustentável, compondo este último o oitavo eixo de atuação.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 93
As parcerias citadas são alguns exemplos do que a EGP faz interna e externamente ao
Governo do Estado do Ceará para cumprir sua missão e objetivos estratégicos, consolidando
um modelo de escola para o futuro, uma vez que ainda podemos citar trabalhos conjuntos com
a Rede Nacional de Escolas de Governo, com a Rede Estadual de Escolas de Governo, com
escolas de outras esferas e outros poderes que compõem essas redes, com o Serviço Federal
de Processamento de Dados (SERPRO), e com a ENAP, estas últimas formalizadas através de
Termos de Cooperação Técnica.
Pode-se considerar que após seis anos de existência a Escola de Gestão Pública do
Estado do Ceará (EGP) está consolidada. Dispõe de uma estrutura física adequada às atividades
que desenvolve, equipamentos que atendem às suas necessidades operacionais e principalmente,
conta com um grupo de profissionais identificados com a missão institucional.
Este primeiro ano de governo (2015), na lógica dos Planejamentos Plurianuais (PPAs), é
o momento de execução do último ano do plano traçado pela gestão governamental anterior. É
também o ano de transformação das promessas e discursos de campanhas em planos concretos
de atuação governamental.
Importante se faz compreender o contexto político nacional que tem sido marcado por
uma crise que afeta além da política, a economia e a sociedade como um todo e impacta nos
níveis estadual e municipal, especialmente no repasse de recursos destinados à saúde, educação,
infraestrutura e programas sociais.
O Estado do Ceará tem feito todos os esforços no sentido de, compreendendo a crise
instalada, realizar ajustes necessários de forma a manter equilíbrio nas contas públicas.
Na Escola de Gestão Pública, este primeiro ano de gestão foi caracterizado pela
recomposição parcial da equipe e início de um processo de qualificação dos próprios servidores
ali lotados. Além destes, foram atendidos instrutores colaboradores em um programa de
formação específico para a atividade de docência na implementação de ações de qualificação.
Neste ano, foi reestruturado o segmento de estágios com alunos do ensino médio que
compuseram também a equipe da EGP através de dois programas de estágio capitaneados pela
Secretaria da Educação (SEDUC), o e-Jovem e o estágio de educação profissional, ambos
para jovens estudantes do ensino médio. Uma relação de aprendizagem, profissionalização e
convivência entre os profissionais da EGP e os jovens estudantes das escolas públicas.
uso dos softwares livres (política de governo) e organização de arquivos e documentos (em
ambientes físicos e virtuais) foram consideradas necessárias em termos de instrumentalização
da equipe.
A percepção de que o desempenho dos técnicos que já atuam como instrutores poderia
melhorar inspirou o planejamento de ação com aporte específico para a atividade didática. A
necessidade de ampliação do quadro de instrutores levou, ainda, à formatação de um curso de
formação para instrutores com foco principalmente nos aspectos técnicos e comportamentais,
ou seja, como planejar e conduzir de maneira efetiva uma ação de educação no trabalho. Esta
formação que se pretende contínua deverá, em curto prazo, impactar positivamente as avaliações
de instrutores, e em longo prazo, impactar os resultados alcançados.
O que se pretende com esta formação é oferecer ao servidor uma oportunidade modulada
de desenhar sua formação em gestão, considerando seus interesses, conhecimentos anteriores
e áreas de oportunidade, disponibilizando uma carga horária total que permita aprofundamento
nos conteúdos prioritários a cada área de especialização.
Novos esforços têm sido feitos na EGP no sentido de se inserir no contexto atual,
sensível às questões ambientais e ao tema da sustentabilidade.
NOTA:
“O artigo “Escola de Governo: importância dos processos de capacitação dos servidores
para a gestão pública” foi escrito no ano de 2016, sobre a realidade da Escola de Gestão Pública
do Estado do Ceará – EGPCE no ano de 2015.
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Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 98
INTRODUÇÃO
Iniciaremos este trabalho apresentando uma reflexão teórica sobre as apropriações psi-
cológicas do Trabalho, visando, com isso, expor as diversas formas através das quais a psicolo-
gia discute a prática laboral e seus reflexos para a formação identitária dos sujeitos. Seguiremos
para a apresentação dos relatos de experiência, que descrevem nossas vivências em ambientes
laborais distintos, sendo esses a Indústria e a Consultoria Organizacional. Partindo das perspec-
tivas expostas através dos relatos, levantaremos algumas questões que consideramos primor-
diais para nossa vivência no ambiente organizacional, à luz da Psicologia Social do Trabalho,
levando em consideração pesquisas e demais trabalhos acadêmicos voltados para as principais
temáticas abordadas. Finalmente, encerraremos nosso trabalho apresentando o saldo comum de
nossas experiências de estágio, considerando todos os percalços e benefícios do caminho que
trilhamos até a conclusão deste processo de aprendizado.
A Psicologia, como atividade profissional, em geral, tem seu grande foco de reconhe-
cimento nas práticas clínicas. No entanto, é preciso ressaltar também o importante espaço que
ocupam as práticas de Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT) no contexto da profissão
atualmente, tanto em levantamentos nacionais como regionais a prática nessa área ocupa o se-
gundo lugar em termos de psicólogos dedicados (Bastos et al., 2005).
grupo MOW (1987) como referência teórica e histórica na apropriação dos constructos sobre o
significado e a função psicológica do trabalho. Os estudos desenvolvidos pelos pesquisadores
do grupo, segundo o autor, representam um divisor de águas neste campo de pesquisa. A quinta
forma de apropriação do campo do trabalho pela psicologia se dá por meio dos modelos de
carreira profissional com base em três perspectivas: a organizacional, a psicologia vocacional e
as abordagens emergentes.
A Psicologia Industrial, por volta dos anos 1950, apresenta estudos sobre rotatividade
dos funcionários, absenteísmo, satisfação laboral, fatores motivacionais, etc. A partir de então,
termos como Psicologia das Organizações e Psicologia Organizacional passam a surgir. A Psi-
cologia Organizacional surgiu à medida que os psicólogos ampliaram seus estudos e práticas
e passaram a contribuir nos estudos do comportamento dos indivíduos dentro das organiza-
ções. Constitui-se assim, o que chamamos de Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT),
que segundo Zanelli, Borges-Andrade e Bastos (2014) que concentra seu foco de estudos em
investigação de fenômenos como comportamentos, atitudes, significados, assim como outras
subáreas da psicologia nos contextos de trabalho e das organizações. Seguindo a mesma linha
histórica de desenvolvimento, com o advento e crescimento da Psicologia Social, houve uma
penetração de concepções psicossociais no campo do trabalho. Diante disso, obteve-se uma
maior compreensão do complexo organismo social que cada organização se constitui, com
uma visão mais ampla no intuito de integrar as características do trabalhador; a natureza, a
organização e as condições de trabalho; e o ambiente social, político e econômico que envolve
todo o processo. Assim se constitui o campo da Psicologia Social do Trabalho, em que, segun-
do Aquino (2005), a categoria trabalho é mais ampla e complexa, ultrapassando os muros das
organizações, sendo antropo-histórica, ou seja, é a atividade na qual o homem se reconhece
enquanto sujeito que transforma e é transformado, dentro de um contexto histórico específico.
década em que o capital avança com um intenso processo de restruturação produtiva em escala
global, com o objetivo de recuperar seu padrão de acumulação frente à crise que se instaurava
no caos pós-guerra, com baixos salários e uma alta na inflação, desencadeando um grande ciclo
de greves e lutas sociais (Antunes, 2008). O advento do Toyotismo como modelo laboral desen-
cadeou uma série de efeitos sociais que levaram a inúmeras mudanças tanto nas organizações
quanto nos trabalhadores. E aqui surge a necessidade de que o Psicólogo do Trabalho atente
para estas inúmeras mudanças que emergem e assim busque meios para planejar ações de modo
a entender este “novo” trabalho e este “novo” trabalhador, reconceitualizando assim, organiza-
ções e o próprio significado de ser profissional.
De acordo com a Lei nº 11.788 de setembro de 2008, que dispõe sobre o estágio de es-
tudantes, esta forma de inserção no meio laboral é definida como:
o ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à prepa-
ração para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições
de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais
do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos” (Brasil, 2008).
No que diz respeito ao estágio em Psicologia, existem diversas formas de inserção nos
mais variados ambientes de trabalho, sendo uma delas a realização de atividades no meio orga-
nizacional. Acreditamos que, por si só, a área da psicologia organizacional e do trabalho apre-
senta diversos modos e campos de atuação que permeiam e caracterizam suas práticas, estando
estes imbuídos das significações do trabalho e dos modos de produção provenientes das formas
de organização fordistas-tayloristas e do modelo toyotista. Ambos os modelos de produção
estão presentes na realidade brasileira, e os relatos que se seguem exemplificam exatamente
isso: a indústria e a consultoria como dois ambientes de modos diferentes de produção, porém
permeados e atravessados pela realidade histórica da qual se originaram as formas de inserção
laboral do campo da psicologia.
Sabemos que no mundo globalizado e globalizante em que vivemos, cabe ao estagiário estar
disposto a adaptar-se para que o seu perfil profissional possa ser preparado para o exercício de suas habi-
lidades e competências profissionais. Em contrapartida, cabe às organizações oferecerem oportunidades
de estágio pelo motivo de uma maior qualificação dos potenciais humanos que adentrarão no mercado de
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 102
trabalho. Nunca é demais ressaltarmos que cabe aos programas de estágio – e os estagiários devem estar
atentos a isso – oferecer atividades que promovam a aplicação prática e cotidiana dos conhecimentos
recebidos durante a formação acadêmica (Campos, 2009, p 66).
Tendo certa apropriação da Psicologia Social do Trabalho, bem como de seu contexto
histórico e aplicações, é com a reflexão dessa citação que daremos seguimento a este trabalho
com os relatos de nossas experiências. No que diz respeito a este momento do trabalho, decidi-
mos nos utilizar da linguagem em primeira pessoa, tendo em vista que cada relato diz respeito
à experiência individual de cada uma de nós. A decisão de utilizar esta forma de linguagem no
seguinte espaço se deveu a nossa compreensão de que o relato de experiência deve ser descrito
de um modo que leve mais pessoalidade quanto possível ao leitor. Isso porque, apesar de partir-
mos de uma perspectiva semelhante de Psicologia Social do Trabalho, colocamo-nos de formas
diferentes em relação a outra série de vivências.
ESTÁGIO EM INDÚSTRIA
Minha primeira tarefa como estagiária de psicologia foi preencher uma planilha no pro-
grama Excel, referente a uma pesquisa de satisfação com os benefícios oferecidos pela empresa,
com os dados colhidos de todos os funcionários. Em seguida, para a apresentação da gestora de
Recursos Humanos à diretoria da indústria, eu precisava transformar os dados em informações
visualmente mais agradáveis. Após o que parecia o milésimo gráfico pizza, passei a divagar
sobre a necessidade de disciplinas optativas em Excel para a graduação, principalmente para
aqueles que se interessavam pela área organizacional. “Dos males, o menor”, pensava, visto
que, a cada célula preenchida, a cada gráfico desenhado, se apresentava de maneira mais nítida
a vida e as necessidades daqueles trabalhadores com quem eu passaria os próximos meses.
Decorridos alguns meses, não conseguia mais reconhecer o trabalho enquanto condição
constituinte do homem. Parecia-me que todos aqueles anos de estudo sobre a complexidade da
experiência subjetiva no âmbito laboral se traduziam em uma amálgama de taxas de absenteís-
mo, controle de horas e participação em lucros e resultados. De alguma forma, os sujeitos da
organização não aparentavam ser os mesmos sujeitos do trabalho.
Todas as pessoas, dos principais gestores aos auxiliares de produção, pareciam estar
5 Conjunto de práticas e métodos que visam a manutenção de um alto nível de qualidade nos procedi-
mentos realizados no âmbito empresarial, sendo ambos originados em empresas japonesas e tendo fortes relações
com o surgimento da produção just-in-time (Assunção et al., 2013).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 104
vivendo, na fábrica, um hiato de suas vidas. Ao baterem o ponto, iniciavam suas atividades de
rotina, fossem elas o carregamento de caminhões, o cálculo das despesas da empresa ou o desli-
gamento de alguns funcionários. Quando encerravam o dia de trabalho, retomavam suas vidas,
para continuar aquilo que talvez parecesse mais construtivo, mais estável, mais real.
Nossa indústria constituía o único grande empreendimento no distrito, fazendo com que
boa parte da população masculina do município procurasse uma chance de inserção laboral
naquela filial. Pais, filhos e irmãos trabalhavam lado a lado, colaborando para o crescimento da
empresa que acreditavam ser sua única grande chance no mercado de trabalho. Para esses car-
gos, diferentemente daqueles selecionados para a produção de tintas na matriz, não exigíamos
o ensino médio completo, pois sabíamos que a grande maioria dos candidatos não tiveram a
chance de concluí-lo.
Mas havia aqueles que não se enquadravam aos padrões estabelecidos nas seleções.
A eles restavam os riscos dos trabalhos terceirizados e informais nas demais mineradoras de
calcário da região, que pude observar de longe no decurso de nossa visita. Em uma elevada
plataforma de terra, eles pareciam caminhar lentamente sob o sol escaldante do início da tarde.
Homens de peito desnudo utilizavam suas camisas como máscaras improvisadas para tentar
evitar a inalação da poeira do calcário. Sem óculos ou demais equipamentos de proteção, esses
trabalhadores realizavam suas atividades a duras penas, como se pagassem penitência por não
conseguirem se inserir no mercado de trabalho.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 105
Era o meu primeiro estágio, minha primeira experiência de trabalho, um universo total-
mente novo, um processo de adaptação. Até então, atuava há três anos dentro da Universidade,
no NUTRA, com experiências estritamente acadêmicas. Creio que essa adaptação seja um pro-
cesso por que todos os formandos e recém-formados passam quando estagiários. Por ser uma
empresa de Consultoria Organizacional, o ambiente era muito formal, seja na vestimenta, seja
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 106
no vocabulário. E meu processo de socialização começou por aí, pelas calças sociais muito bem
passadas e os saltos altos de pontas agulhadas, minha calça jeans nunca entraria ali. Trabalhei
meu modo de vestir, a polidez da fala e a postura ereta. É interessante notar o fato de que, a
partir de então, você passa a compor também o cenário em que vive a Organização.
Uma das atividades que mais desenvolvia era o processo de Recrutamento e Seleção,
devido à alta rotatividade característica dessa empresa. Para lidar com essa insatisfação cons-
tante e rotatividade dos funcionários, a empresa buscava de muitas formas amenizar a situação,
ora aumentando em 10 reais o salário de alguns, ora reformando a estrutura do escritório. Algo
interessante do processo de seleção de pessoal é que, durante meu estágio, lidei apenas com um
tipo de público nas entrevistas: jovem, com um nível de escolaridade alto e, em geral, de boa
aparência. Era esse o perfil exigido, e foi com esse perfil que passei a me relacionar. No início
apenas observando a gerente conduzir as entrevistas e depois, com o vocabulário apreendido,
conduzindo sozinha o próprio processo de Seleção de Consultores. Eram, em sua maioria, jo-
vens, recém-formados, com um brilho no olhar de quem está ávido por entrar no mercado de
trabalho e em uma empresa de renome.
A maior atividade da empresa era mesmo em torno dos consultores e dos contratos de
projetos de consultoria. E algo interessante de se apresentar aqui, é a particular situação laboral
desse principal cargo da empresa, o consultor organizacional. Com uma jornada altamente fle-
xibilizada, os consultores passavam o dia-a-dia indo e vindo, de uma empresa a outra, visitando
clientes e angariando novos. Geralmente, costumávamos vê-los no escritório durante alguma
reunião com um supervisor, ou em alguma leitura na biblioteca da empresa, ou na reunião
semanal na sexta-feira, em que todos os funcionários da empresa se reuniam para debater os
resultados da semana de cada setor. Em virtude dessas reuniões semanais, todos da empresa,
independente do setor e da especialidade de consultoria, invariavelmente, acabavam por dar
conta de inúmeras áreas e aprender muito e em variedade.
tímulo ao estudo e ao desenvolvimento era algo muito presente, inclusive tendo o consultor um
plano de estudos e leitura de, pelo menos, seis livros durante todo semestre. Ambos os eventos,
a reunião semanal e as aulas quinzenais eram de presença obrigatória, havendo punição no sa-
lário de quem se ausentasse, sendo responsabilidade do RH fazer esse controle.
Na empresa, todos trabalhavam por contratos, e não com carteira assinada, exceto por
uma única secretária que trabalhava na empresa desde sua fundação. Consultores ou internos
(escritório) seguiam esse mesmo vínculo laboral. Na admissão, se formulava esse contrato e
se assinava um termo de sigilo e confidencialidade das informações que corriam pela empresa,
e só. Assim, ninguém estava formalmente vinculado à empresa, cada um era uma espécie de
trabalhador autônomo fornecendo trabalho à empresa. Por isso mesmo a grande facilidade em
flexibilizar tudo, como as faltas e os descontos e acréscimos nos salários. Era em decorrência
disso também que a empresa sofria com a rotatividade e absenteísmo, pois não tinha que haver
obrigatória e legalmente aviso prévio de saída ou atestados médicos, apesar de serem cobrados
pela empresa. Para a organização, isso era positivo no sentido de desoneração de gastos. Essa
flexibilização se estendia inclusive ao cotidiano do estagiário, pois apesar da lei de estágio orde-
nar um máximo de 6 horas por dia de trabalho do estagiário, na empresa isso não era uma regra.
No decorrer dos anos, essa representação sofreu positivas mudanças, de maneira que,
em alguns empreendimentos, o psicólogo passou a ser reconhecido como profissional estraté-
gico para a promoção de alterações referentes à cultura e ao clima organizacional, facilitando
ações referentes à Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) e à saúde mental dos trabalhadores.
Entretanto, apesar dessas notórias conquistas, uma das primeiras inserções de psicólogos em
empresas, através do estágio, ainda se dá de maneira excessivamente técnica, reforçando pre-
conceitos e noções equivocadas sobre a atividade nas organizações. Ainda parece restar um
longo trajeto para os psicólogos desbravadores da área organizacional no intuito de modificar
essa visão tecnicista da psicologia no meio empresarial.
6 Assim como aponta Zanelli (1995), entendemos por tecnificação a ênfase dada a aspectos técnicos do
trabalho, em detrimento de saberes mais fundamentais e ampliados sobre o fazer psicológico.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 109
Dentre as novas formas de trabalho, também se destacam aqui aquelas com flexibilidade
quase total da rotina e dos horários. Esse é o caso, por exemplo, do trabalho do Consultor Or-
ganizacional, apresentado anteriormente, que faz os próprios horários e chega a visitar vários
clientes num dia só. A flexibilização “é o afastamento da rigidez de algumas leis para permitir,
diante de situações que o exijam, maior dispositividade das partes para alterar ou reduzir os
seus comandos” (Nascimento, 2003. p. 67). Além da flexibilização de horários, também se faz
presente aqui uma flexibilidade no salário desse profissional, seguindo a lógica da meta e da
comissão. Nesse sentido, “estas formas de trabalho permitem fugir da rede de legislação traba-
lhista e aumentar a flexibilidade das empresas com a diminuição de custos fixos e aumento dos
lucros imediatos” (Nardi, 2006, p. 65).
Para a empresa, esses processos justificam-se por serem menos onerosos ao emprega-
dor quando do término do pacto laboral. Na perspectiva do capital internacional, isso significa
diminuição dos custos trabalhistas por meio da contratação de serviço temporário, flexível,
customizado. Segundo Antunes (2008), para o trabalhador, isso significa menos direitos e ga-
rantias, mais riscos, menos tempo livre, mais trabalho, o que constitui um quadro cada vez mais
profundo de precarização laboral.
da flexibilidade, o “espírito do capitalismo” (Boltanski & Chiapello, 2009). Essa ideologia está
“consubstanciada no discurso da empregabilidade e da competência” (Machado, 1998, p. 19).
Nessa noção de empregabilidade está implícita a ideia de que o indivíduo é responsável pela
própria formação e obtenção de trabalho. Para Frigotto (2001, p. 46), há uma violência ideoló-
gica nessa concepção, pois a valorização da formação profissional e a oferta de qualidade total
levam os indivíduos que não obtiverem trabalho a interpretarem seu insucesso como incompe-
tência.
A insegurança social faz da vida um combate pela sobrevivência dia após dia, cuja saída é cada
vez mais incerta. Poderíamos falar de desassociação social (o contrário de coesão social) para dar um
nome a este tipo de situação, como a dos proletários do século XIX, condenados a uma precariedade
permanente, que é também uma insegurança permanente por falta de ter o mínimo controle sobre o que
lhes acontece (Castel, 2005, p. 31).
No ano de 2014, período em que se deu o relato de estágio no setor industrial, o Brasil
enfrentou o primeiro momento de uma recessão econômica, sinalizada pela retração do Pro-
duto Interno Bruto (PIB) em dois trimestres seguidos (IBGE, 2015). O desenvolvimento deste
fenômeno econômico tem reflexos não apenas nos setores de produção, mas apresenta relação
direta com o aumento dos índices de desemprego no país. No decorrer do ano de 2015, as taxas
de desocupação, que indicam o contingente de pessoas que não estavam trabalhando, mas que
tomaram providências efetivas para conseguir trabalho, se mantiveram elevadas, chegando a
7,5% no mês de julho de 2015, de acordo com a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) promo-
vida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 112
A perpetuação de uma situação econômica tensa faz com que um considerável número
de empresas e indústrias assuma um papel “defensivo” no que diz respeito à manutenção de
seus lucros. Esse posicionamento pode ser observado no corte de gastos com programas que
não sejam terminantemente essenciais para a continuidade dos negócios. A partir da perspectiva
de eliminação de excessos, ocorre também a demissão de um elevado número de trabalhadores.
Segundo Gaulejac (2007), “quando a lógica financeira faz sentido por si mesma, as rela-
ções entre o mundo do dinheiro e o mundo do trabalho se dissolvem” (p. 152). Essa passagem
ilustra a existência de uma tensão entre o sentido dado aos recursos humanos e ao trabalho pelos
acionistas, responsáveis pela valorização especulativa da empresa, e o sentido dado pelos fun-
cionários ao seu próprio trabalho, que é tratado como uma necessidade existencial.
Para os acionistas e diretores, que gerenciam o processo produtivo, as decisões que “fa-
zem sentido” se inscrevem através da lógica financeira, que enaltece como objetivo primordial
a manutenção do lucro e crescimento empresariais para além de todas as consequências que
possam advir dessa busca. Para os trabalhadores que vivem esse momento de instabilidade no
ambiente organizacional, resta apenas conviver com o medo de perder aquilo que está no fun-
damento de sua existência social e lhe confere uma identidade profissional, além de garantir sua
subsistência, seu emprego.
Essa lógica da produtividade coloca em jogo alguns processos que acabam por se tornar
necessários à empresa. Se por um lado, o trabalhador é levado a se pensar dentro do discurso
do “team”, do trabalho em equipe, o trabalhador passa a ser considerado “colaborador”, “par-
ceiro”, esse é um discurso ideológico, que afirma não mais haver conflito entre capital/trabalho
(Antunes, 2008). A empresa engaja e envolve os trabalhadores num processo complexo, onde
antes era a estabilidade e o emprego vitalício que garantiam esse processo. Porém, o “colabo-
rador” que não estiver mais colaborando com resultados pode ser facilmente deixado de lado,
sem nenhuma mágoa, porque há no mercado outros tantos querendo ser engajados e altamente
envolvidos em um emprego que não lhes proporciona mínimas garantias futuras.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos que há, hoje, um movimento dentro da grande área da Psicologia do Traba-
lho e das Organizações, no sentido de fortalecer e reafirmar os espaços, as práticas e os conhe-
cimentos dentro das organizações. Buscamos nos distanciar progressivamente de posições que
busquem de alguma forma deslegitimar e subjugar o fazer do psicólogo nesse campo, indo de
encontro a posturas que promovam um não reconhecimento deste profissional.
A partir de nossos relatos de experiência, acreditamos ter alcançado nosso objetivo prin-
cipal de apresentar diversas reflexões que permeiam tanto a atuação do psicólogo no meio
organizacional, como uma série de problemáticas referentes ao mundo do trabalho. Julgamos
que o presente trabalho representa uma parcela considerável das vivências de estudantes e es-
tagiários que têm seu primeiro contato profissional com o campo da psicologia organizacional
e problematiza alguns aspectos dessa experiência sob a ótica da Psicologia Social do Trabalho.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 114
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Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 117
INTRODUÇÃO
Nosso propósito foi compreender como esses dois fenômenos tão presentes e circuns-
critos no nosso cotidiano laboral se articulam e compõem um cenário próprio das novas formas
de inserção laboral. Para isso, tivemos como pressuposto básico a complementaridade entre os
dois.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 118
A pesquisa foi composta por três fases. A primeira foi realizada entre os anos de 2006
e 2007 junto aos professores vinculados ao Centro de Humanidades da Universidade Federal
do Ceará (UFC). A segunda fase concretizou-se entre os anos de 2009 e 2010 no Centro de
Ciências da mesma instituição. A última fase foi realizada entre os anos de 2010 e 2011 com
os professores substitutos da Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem da UFC. A
divisão em etapas e a abordagem em áreas distintas do saber que tradicionalmente compõem a
universidade se justifica pela compreensão de que a repercussão do contrato de substituto esta-
va atravessado pela própria diversidade do campo de formação e dos possíveis mecanismos de
inserção no mercado de trabalho vinculado a esses campos. Esses três momentos permitiram-
-nos uma discussão sobre as múltiplas vivências laborais nos vários campos do conhecimento.
Nesse sentido, a precarização laboral, compreendida a partir desses atributos, não é ca-
racterística do momento atual de desenvolvimento do capitalismo. Daí, pareceu-nos pertinente
distinguirmos precariedade de precarização. A precariedade corresponde às condições próprias
de cada realidade de trabalho e é demarcada em diferentes momentos históricos (Aquino, 2008).
Já a precarização, segundo Aquino (2008, p. 172) “[...] remete às profundas transformações
ocorridas ao longo dos últimos anos na forma de organização do trabalho, tendo por referente
básico sua dimensão mais social e as implicações que daí derivam”.
A segunda etapa da pesquisa foi realizada nos anos de 2009 e 2010. No primeiro ano de
federal que a partir de 2003 investiu no crescimento das universidades públicas federais. Incrementando orça-
mento, foram viabilizadas criações de novas universidades federais, aumento do número de vagas e matrículas e
concomitantemente a contratação de novos professores e técnicos-administrativos.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 121
O trabalho docente no ensino superior como meta de realização profissional foi a carac-
terística que mais apresentou uniformidade nos discursos. O desejo de retornar à universidade
na condição de efetivo foi um relato comum a todos os professores, assim como a compreensão
de que o período de ensino na função de substituto é uma experiência válida para enriquecimen-
to do currículo e para a aquisição de habilidades didáticas.
Para análise da percepção dos professores substitutos diante da sua realidade laboral,
foi necessária a compreensão do contexto de construção de conhecimento específico da área de
ciências. Os professores, em maioria, eram licenciados – uma graduação voltada para o ensino
de ciências. Daí é compreensível o resultado citado anteriormente de que todos os entrevistados
tenham a carreira docente no ensino superior como meta. Se no caso dos professores do Centro
de Humanidades os impactos da flexibilização eram percebidos de maneira mais significativa
quando o exercício da docência era a principal atividade e fonte de remuneração, para os pro-
fessores do Centro de Ciências essa percepção é vinculada à importância da atividade como
um período de formação. Os entrevistados narraram que esse momento é de aquisição de expe-
riências e de habilidades que os aproximam da consecução de seus objetivos. Dois excertos dos
discursos dos professores exemplificam este dado:
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 122
Então, por tá dentro da universidade, por tá no ensino de ciências e tudo, essa prática, essa ex-
periência me deu um embasamento muito grande pra eu passar num concurso pra professor efetivo lá na
Parnaíba. Então, pra mim foi muito bom (sic). (Entrevistado 1).
Mas, é aquela história, você precisa ter experiência pra colocar no currículo pra no dia que abrir
o edital pro efetivo você ter como. Então, aí isso acaba levando não só eu, mas muita gente a exercer o
cargo de professor substituto (sic). (Entrevistado 2).
Outro fator importante para a análise da percepção dos professores foi a faixa etária dos
entrevistados. Em sua maioria eram jovens solteiros recém-egressos de cursos de graduação
ou mestrado. Essa faixa constitui um dos públicos mais comumente atingido pela precariedade
laboral (Cingolani, 2005; Aquino, 2008).
Eu, particularmente, não tenho do que reclamar, hoje. Se hoje me chegassem e perguntassem:
‘Olhe, a gente vai prolongar seu contrato de substituto por dez anos, você deixaria outras atividades suas?’
Eu deixaria tranquilamente. Sem problema nenhum. (sic). (Entrevistado 4).
Outras dimensões do precário são descritas na literatura. Além dos aspectos ligados
à descontinuidade do tempo e à baixa remuneração, expostos acima, a precariedade laboral
refere-se à incapacidade de controle sobre o trabalho e à falta de proteção do trabalhador. A
primeira diz respeito à incapacidade, parcial ou total, tanto coletiva quanto individual, de nego-
ciação com o mercado de trabalho, o que expõe os sujeitos a uma disponibilidade permanente
e abusiva e a uma submissão às determinações do mercado (Agulló, 2001). A segunda está
relacionada com as condições de trabalho e com a vulneração dos direitos dos trabalhadores
(Aquino, 2008).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 123
Os relatos dos professores versaram, como em etapa anterior, sobre abandono por parte
da instituição no que se refere à organização do seu trabalho. Assim como sobre uma limitação
da participação nas decisões políticas, aspecto que implica tanto a restrição ao espaço de debate
e deliberações sobre sua realidade de trabalho quanto a sobredeterminação das suas atividades.
Como se percebe no discurso de um dos professores:
Mas, você exercer, ser... estar professor substituto é algo que a própria universidade, ela deixa
meio de lado. Só pra você ter ideia: aqui, nas reuniões de departamento, professor substituto não é contado
como membro, portanto, não dá quorum, não dá voto, não tem direito a voto, não tem direito a nada, então
já é um grande diferencial, né? Sem contar as próprias, é, você requerer alguma coisa ou da coordenação
ou do departamento, dificilmente você consegue e então tem todo um processo que vai... (Entrevistado 3).
Alonso (1998) explica que os discursos são gerados pela dinâmica social e histórica
própria do contexto de enunciação que envolve os sujeitos, característica que pudemos observar
durante as duas fases dessa pesquisa. A percepção da realidade laboral dos professores, e, por
conseguinte, os discursos que a implicam, são matizados pela “[...] formación y transformación
de los actores sociales y de sus capacidades de intervención en los conflictos y en las negocia-
ciones.” (p. 204).
Por su parte, los individuos, socializados en sus respectivas matrices culturales, confieren signi-
ficación concreta a su experiencia laboral, atendiendo, por un lado, a los valores y normas socialmente
prescritos y relativamente anclados en su personalidad y, por otro, en factores situacionales, tanto del
macrocontexto socioeconómico, juridicopolítico y organizacional como del microentorno inmediato y
específico.
Isso porque o trabalho constitui mais do que somente um modo de sobrevivência, repre-
senta algo de expressivo e pode configurar-se um fim em si próprio. Blanch (1996) apresenta
três fatores como definidores da centralidade do trabalho na vida dos sujeitos, a saber: a identifi-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 125
cação com o trabalho, a implicação com o mesmo e a adoção dele como meio de autoexpressão
pessoal, sendo a centralidade do trabalho o indicador geral da importância atribuída à atividade
laboral.
Eu penso em tentar, eu não sei quando vai abrir concurso pra efetivo, enfim, tem todo um proces-
so de seleção, mas se tivesse oportunidade eu gostaria mesmo. Mas, às vezes vão aparecendo as coisas e
você não pode parar no tempo, ficar esperando e ficar teimando naquilo. (Entrevistado 3).
Segundo Cingolani (2005), é a intermitência do tempo que produz uma ruptura na uni-
dade do coletivo de trabalho, e faz do isolamento relativo do assalariado precário a mola de um
reforçamento do comando sobre ele. A descontinuidade compõem a designação de alguns tipos
de emprego, dentre os quais o trabalho temporário se enquadra.
A remuneração emergiu como aspecto positivo. Quanto a isto houve uma mudança sig-
nificativa a partir da segunda etapa da pesquisa, no Centro de Ciências. Nas entrevistas reali-
zadas no Centro de Humanidades, o salário foi assunto de críticas constantes pelos professores
substitutos, principalmente por parte daqueles que queriam seguir na carreira de docência. Al-
guns afirmaram que praticamente pagavam para dar aula.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 128
INTRODUÇÃO
Os debates e questões em torno das relações entre juventude e cidadania têm sido muito
frequentes desde o final do século XX. Entretanto, os jovens aparecem na cena pública como
importantes atores sociais justamente em um momento onde eles compõem um dos segmentos
mais vulneráveis às consequências negativas das transformações do mundo do trabalho.
A categoria trabalho funciona como o elo que guia a construção das relações entre essas
temáticas e está na base de nossas reflexões, já que ela funciona como um dos principais ele-
mentos explicativos do fenômeno do prolongamento da juventude e é, atualmente, compreendi-
do como componente fundamental da noção de cidadania (Coelho, 2013; Lima, 2008).
É importante destacar que partimos da ideia de que o trabalho cumpre diversas funções
psicossociais importantes e que, através dele, o sujeito pode construir a própria subjetividade,
se manter economicamente, organizar seu tempo, planejar outras esferas de sua vida, interagir
com outros e se sentir útil e participante de uma sociedade. Dentro dessa ideia, em concordância
com autores como Aquino (2009), Garrido (2006) e Nardi (2006), afirmamos a centralidade
dessa categoria em nossa sociedade e entendemos que as transformações sofridas pelo mundo
do trabalho seguem afetando fortemente a organização da sociedade e gerando mudanças nos
modos de vida e nos modos de subjetivação contemporâneos.
Também vale ressaltar que, ao compreendermos as categorias que são o foco deste en-
saio, quais sejam, a juventude e a cidadania, como sócio historicamente construídas, é funda-
mental entender que tanto elas vão se transformando a partir dos contextos em que se situam,
como também serão fortemente influenciadas pelas próprias transformações sofridas pelo tra-
balho em nosso contexto.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 129
Com vistas a dar conta de nosso objetivo, o presente ensaio está organizado em três par-
tes. Primeiramente, buscaremos contextualizar o fenômeno do prolongamento da juventude em
nossa sociedade e entender sua dinâmica no cotidiano, no segundo momento, tratamos formas
de compreensão da cidadania, sua gênese e sua relação com o trabalho na sociedade moderna.
E finalmente, refletimos sobre uma aproximação dessas categorias, problematizando a ideia de
que os jovens na condição de juventude prolongada podem estar vivendo também uma con-
dição de pseudo-cidadania ou de cidadania fragilizada, dadas as características do momento
sócio-histórico em que nos inserimos.
Entendemos que juventude é uma condição que se constrói situada em contextos sócio-
-históricos e culturais delimitados e se constitui uma categoria complexa, heterogênea e cam-
biante (Kehl, 2004; Revilla, 2001). Ela não existe como algo pré-determinado, como uma ca-
tegoria natural. Nesse sentido, o que define os seus limites temporais, seus significados sociais
e suas vivências são os contextos onde os jovens são socializados. E, apesar de considerar que
eles compartilham, em nosso contexto, o fato de viver uma etapa que se situa entre a infância/
adolescência e a idade adulta e estar em um momento de busca de autonomia, independência e
integração sócio-laboral, o ser jovem varia bastante em função do nível educacional do jovem,
sua condição econômica, formas de acesso ao trabalho e ócio, entre outros, abrindo, assim, a
possibilidade de que haja várias juventudes convivendo em um mesmo momento histórico e
espaço social.
Como os limites da juventude vêm sendo cada vez mais compreendidos a partir de parâ-
metros sociais vinculados ao desenvolvimento psicossocial e à inserção sócio-laboral mais que
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 130
É importante destacar que tal processo de transição acontece cada vez menos como uma
sequência linear, principalmente, em decorrência das transformações do mercado de trabalho
que contribuem na construção de um senário sócio-laboral complexo, flexível e precário que
transfere insegurança e instabilidade aos diversos âmbitos da vida social (Aquino, 2005; Nardi,
2006). Nesse contexto, os jovens encontram dificuldades de inserção no mercado de trabalho,
sofrendo com o desemprego, escassas oportunidades de trabalho formal, trabalhos temporários e
com baixa remuneração, além de viverem trajetórias à vida adulta cada vez menos programadas,
mais descontínuas, fragmentadas e reversíveis (Gil Calvo, 2009; Pais, 2002). Essa situação
termina levando muitos jovens a viverem uma condição de semi-dependência da família de
origem e de políticas de ajuda do governo, afetando seus projetos de vida futura e provocando
um atraso em sua emancipação (Coelho, Álvaro & Garrido, 2014).
Uma das múltiplas estratégias escolhidas pelos jovens para lidar com essa situação está
em atrasar os limiares de transição à vida adulta, permanecendo por mais tempo em uma con-
dição tipicamente juvenil (Coelho, 2013). Há que ressaltar que esse atraso deve ser entendido
como uma tendência que vem se intensificando e não como um fenômeno que aparece de forma
generalizada na maioria dos países ocidentais. Isto porque cada sociedade impõe seus próprios
esquemas de transição que vão servir de guia para os jovens planificarem suas vidas, juntamen-
te com as situações concernentes a suas biografias pessoais.
O atraso da transição à vida adulta – que vem sendo observado em um número cada vez
mais significativo de jovens – vem acompanhado de uma complexificação da própria condição
de ser jovem e gerando sinais objetivos de que a vivência da juventude se prolonga (Coelho,
2013; Galland, 2001; Gil Calvo, 2005; Monteiro, 2011).
É importante ressaltar que apesar de que o atraso nos processos de transição à vida
adulta funcione como um sinal objetivo de que a juventude esteja se prolongando, o que
estamos denominando de prolongamento da juventude não se resume a tal atraso, mas se refere
à ideia de que estamos assistindo a uma mudança qualitativa nas experiências psicossociais
vividas pelos jovens, a uma construção de novos discursos e significados do que é ser jovem
e a novas possibilidades de construção identitária para esses sujeitos em distintos contextos
contemporâneos (Coelho, 2013; Galland, 2001; Monteiro, 2011). Estamos falando, também, de
uma resposta cultural dos jovens de nosso contexto.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 131
O prolongamento da juventude como fenômeno tem se justificado por uma grande va-
riedade de aspectos característicos do contexto contemporâneo e que influenciam diretamente
a situação dos jovens. A questão estrutural refletida, por exemplo, na dificuldade de inserção
laboral dos jovens e suas impossibilidades de construir uma vida independente financeiramente
e autônoma se situa entre as principais explicações dadas por eles mesmos para o prolongamen-
to da juventude (Coelho et al., 2014). Outra questão que contribui ao prolongamento está na
quase exigência do mercado pelo aumento do tempo dedicado à formação, tanto no sentido de
maior especialização – pós-graduações – quanto no sentido da polivalência – múltiplos conhe-
cimentos em diferentes áreas para garantir a empregabilidade –o que contribui para uma maior
permanência dos jovens na condição de estudantes.
Essa permissão social se fortalece ainda mais diante do aumento crescente da expectati-
va de vida da população – não gerando urgência na transição à vida adulta – e da imagem social
positiva vinculada à juventude que impera no contexto contemporâneo ocidental, baseando-se
em uma cultura hedonista e de busca da eterna juventude como ideal social (Coelho, 2013).
Nesse sentido, caberia aos jovens aproveitar ao máximo sua juventude, se possível por mais
tempo que as gerações anteriores, já que ela representaria a melhor etapa da vida de uma pessoa,
tomando como referência essa cultura ocidental de hipervalorização da juventude.
Em resumo, a ideia que nos guia para a compreensão desse fenômeno é que as mudan-
ças estruturais que afetam a inserção sócio laboral dos jovens, provocando uma intensificação
no atraso dos processos de transição à vida adulta, convertem o prolongamento da juventude
em um dos possíveis fenômenos da condição de ser jovem nos contextos ocidentais. Entretan-
to, o que em um primeiro momento se configura apenas como um atraso em comparação com
as gerações anteriores contribui para a construção de mudanças qualitativas nas vivências e
no próprio significado de ser jovem. Todas as novas experiências que são geradas pelo maior
espaço de tempo ocupado pela juventude na vida das pessoas originam novos discursos e pos-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 132
sibilidades da condição de ser jovem e criam novas condições de construção identitária para
esses sujeitos. E ao somar-se a um contexto cultural de valorização da juventude como a melhor
etapa da vida, onde os estilos de vida, valores e atitudes típicos dos jovens são tomados como
um ideal social, encontramos um entorno favorável ao prolongamento da juventude.
Uma questão importante a ser destacada sobre esse fenômeno diz respeito à diferença
que existe entre prolongar o “ser jovem” e o “sentir-se jovem” (Coelho, 2013). O primeiro en-
globaria aqueles aspectos vinculados à idade e aos limiares de transição à vida adulta. Estaria se
referindo à juventude como etapa da vida onde a condição de instabilidade, de semi-dependên-
cia, de intenso processo de busca de integração sócio laboral e características como vitalidade,
potência corporal e abertura ao novo são tipicamente vividas pelos sujeitos. Em relação ao
sentir-se jovem, haveria uma referência direta a aspectos subjetivos e à ideia de espírito jovem.
Remete a atitudes e características de ordem mais psicossociais também típicas da juventude,
mas que podem ser reproduzidas em outras etapas da vida como motivação para a mudança,
leveza, vitalidade, sentimento de potência e desfrutar a vida intensamente, por exemplo.
Tal diferença se mostra relevante, já que traz variações nas possibilidades de manifesta-
ção do prolongamento da juventude. Em pesquisa realizada com jovens brasileiros e espanhóis
(Coelho, 2013), observou-se que o prolongamento da juventude no sentido de “ser jovem” é um
fenômeno que vem aumentando em comparação com as gerações anteriores em ambos os paí-
ses – mas de forma mais intensa na Espanha – e que se evidencia, principalmente, entre jovens
de melhor condição socioeconômica. Entretanto, o prolongamento da juventude como “sentir-
-se jovem” tende a se manifestar de forma mais ampla entre os indivíduos dos dois países, refor-
çando a existência de uma cultura da busca da eterna juventude, onde há a intenção de manter
os aspectos subjetivos positivos característicos da etapa juvenil, se possível, para toda a vida.
Nesse sentido, apesar de nem todos os jovens terem a mesma oportunidade de prolongar
o “ser jovem” por mais tempo – já que ele está limitado pelas possibilidades socioeconômicas
da família de origem e pelas próprias questões corporais –, o prolongamento através do “sen-
tir-se jovem” se converte em uma possibilidade quase ilimitada para grande parte dos jovens e
outros grupos etários, instalando-se como um modelo a seguir.
Há que ressaltar – ainda com base nesta investigação – que, a longo prazo, não foi mani-
festada pelos jovens a intenção de prolongar a juventude como etapa da vida ou o “ser jovem”,
vinculada às ideias de precariedade vital, instabilidade e semi-dependência. Entretanto, querem
prolongar a juventude através do “sentir-se jovem”, mantendo atitudes, valores e estilos de vida
juvenis como uma estratégia de agregar uma valoração positiva à própria identidade.
não ter autoridade de gerir de forma plena suas próprias vidas ou participar de forma mais ativa
na sociedade. E essa condição de precariedade vital é cada vez mais comum entre os jovens
(INE, s/d; IBGE, 2010). A busca de prolongar sua juventude no que se refere ao sentir-se jovem
funcionaria como uma estratégia de fazer parte de uma condição social positivamente valori-
zada, de estar em um lugar onde muitos gostariam de estar e, assim, como já dissemos, agregar
aspectos positivos à sua identidade. A possibilidade de deixar para trás os aspectos negativos
da juventude, conquistando uma participação social mais ativa e independente – condição de
cidadão pelo trabalho – e, ao mesmo tempo, manter somente aqueles considerados positivos,
vinculados ao “espírito jovem” poderia ser vista como uma saída para tal contradição.
Isso pôde ser percebido entre os jovens participantes da investigação mencionada ante-
riormente (Coelho, 2013), já que não apareceu como contradição essa possibilidade de prolon-
gar o “sentir-se jovem” e ao mesmo tempo levar uma vida adulta de reponsabilidades laborais e
familiares. Aqui entendemos que isso pode ser reflexo da força que o prolongamento da juven-
tude exerce como modelo típico ideal e se converte em uma possibilidade de identificação para
um grupo significativo de pessoas.
É importante ressaltar que entendemos que falar em uma condição de cidadania plena,
principalmente se temos como referência a participação social efetiva através do “ter um
emprego”, é cada vez mais complexo, ou talvez utópico frente às atuais configurações do mundo
do trabalho e a contextos de Estado mínimo. Entretanto, não podemos deixar de considerar que
o fato de ter um trabalho ou, pelo menos, os valores do trabalho, como a honestidade, a retidão,
a disciplina e a participação contribuinte ainda guiam a construção da concepção do que é ser
cidadão atualmente, juntamente com outras esferas como, por exemplo, o consumo.
CIDADANIA
Ao propormos uma investigação sobre o que seja cidadania, deparamo-nos com ques-
tões semelhantes ao que encontramos quando abordamos a categoria trabalho, ou seja, ela é
também uma categoria construída sócio culturalmente que sofreu diversas mudanças, desde
seu surgimento orientada por questões econômicas, políticas, sociais e psicológicas, refletindo
conjunturas e estruturas sociais do contexto em que ela se apresenta.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 134
A cidadania pode ser compreendida, como aponta Hopenhayn (2002), a partir de três
linhas, a liberal, que congrega os direitos civis e políticos, orientada por uma diversidade de
leis e códigos referente a cada país, a segunda linha, chamada social democracia, que trata de
uma extensão aos direitos econômicos, sociais e culturais e, por último, a linha republicana que
aborda o sentimento de pertença e participação na “coisa pública”. Didaticamente parece fazer
sentido estas divisões, mas, na realidade, o que se observa é uma miscelânea de cada uma des-
sas linhas nas falas dos sujeitos quando tratam do ideal de cidadania em que estes se inserem.
A nós em particular, interessa a articulação que a cidadania passou a ter com o trabalho
quando da criação dos Estados modernos. Correia (2002) e Cortina (2005) apontam aqui para o
aparecimento do que se convencionou chamar de Estado-de-Direito. Este modelo de Estado é o
que faz com que haja a possibilidade de se criar uma concepção moderna de cidadania relacio-
nada com as linhas descritas acima e que, como veremos, apontam para um direito coletivo que
parece ser exercido de forma individual. Não podemos desvincular também aqui, uma relação
direta entre o fortalecimento da burguesia em meio a tantas transformações sociais, pois é no
fortalecimento desse segmento que surgem uma série de questionamentos à estrutura da socie-
dade pós-feudal, ainda impregnada de conceitos e estruturas muito rígidas, principalmente, às
formas de participação na vida pública.
Lima (2008) mostra que a compreensão de cidadania erguida com o Estado Moderno
relaciona-se, diretamente, com dois aspectos que para nós são fundamentais - a Liberdade e o
Trabalho. Essas duas categorias despontam na modernidade e contemporaneidade como prin-
cípios a serem alcançados por todos os homens. Marshall (1967) afirma que, na economia, o
direito civil básico é o trabalho, o de seguir uma ocupação de escolha do sujeito, direito este
negado durante toda a Antiguidade, quando as posições a serem seguidas por cada um já eram
delimitadas previamente. Para nós, o direito à igualdade proposto dentro do Estado moderno é
atingido na forma de isergonia (igual direito de trabalhar) como sugere Correia (2002) e, por
isso, o trabalho torna-se um eixo central para pensarmos a constituição destes sujeitos enquanto
cidadãos. Nesta perspectiva, observamos que o trabalho se vincula à vida pública quando se
torna elo entre as várias linhas de direitos, quando interconecta direitos econômicos, sociais,
culturais e dá ao sujeito que trabalha, um lugar de existência e visibilidade na sociedade.
Com o Estado moderno amparado em um modelo democrático, forma pela qual a bur-
guesia destitui o poder aristocrático, e no direito à propriedade privada, seria necessário criar
um modelo de contrapartida para a grande massa destituída de propriedade: uma parcela da
população que se fazia ainda mais presente na constituição da sociedade nesse momento. É aqui
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 135
que o direito ao trabalho remunerado ganha força enquanto forma de contrabalançar o direito à
propriedade privada. Para o cidadão não detentor dos meios de produção, este direito o coloca-
ria em um plano de equivalência com os proprietários, pelo menos em suposição. Percebemos
aqui que o exercício do direito civil começa a ser associado diretamente ao direito ao trabalho.
O fato é que, estar trabalhando e ser reconhecido por isso, fizeram com que o indivíduo
fosse identificado com sua tarefa e com seu papel para aquela sociedade. As instâncias que
preparavam o indivíduo para sua vida em sociedade, como a escola e a família, direcionaram
seus olhares para o potencial doutrinador do trabalho. A importância foi tanta que obrigou o
Estado a tomar uma posição protecionista daquele que fazia a sociedade do trabalho funcionar,
o trabalhador.
Nardi (2006) afirma que é na modernidade que o trabalho adquire o valor de atributo
moral e garantia de cidadania; é nele que se busca o referencial não só para gerenciar a vida
profissional, mas a vida política, econômica e social. Coadunando com essas ideias, o trabalho
representa, para Durkheim (1973a), um fator agregador que mantém os membros da sociedade
unidos por um ideal comum, assim como a religião. O que percebemos é que ambas as cate-
gorias agregadoras desse contexto parecem se retroalimentar e se fortalecer. A ética incutida
dentro do trabalho sustentou toda a sociedade durante o pacto Fordista, que, por sua vez, repre-
sentava um compromisso social em torno da triangulação entre Estado – Trabalhador – Capital.
Castel (1999), ao abordar a sociedade salarial, reconhece que a filiação do cidadão trabalhador a
essas diversas instituições garantem a ele uma existência digna que junto à condição assalariada
representa a porta de acesso a um sistema protecionista por ele denominado de “Propriedade
Social”.
ções internacionais, ao mesmo passo que a condição do trabalho se deteriora dentro de uma
lógica que escapa ao controle do trabalhador, pois este é atingido por conjunturas externas à sua
realidade que, na grande maioria das vezes, nem conhece.
Essa condição é um dos principais fatores que explicam o fenômeno do atraso da tran-
sição à vida adulta e a possibilidade de prolongamento da juventude. E, apesar de que, ao pro-
longá-la, o jovem possa se manter em uma etapa valorizada socialmente e tida como a melhor
fase da vida, incorporando à sua identidade aspectos positivos como os sentidos de vitalidade,
beleza e abertura ao novo, ele também se mantém em uma condição de semi-dependência
marcada, frequentemente, por trajetórias de transição à vida adulta instáveis, descontínuas e
reversíveis (Pais, 2002).
Tal condição vivida pelos jovens se converte em uma problemática relevante ao situar-
-se em um contexto onde ainda é central a ideia de construção da cidadania através do trabalho e
de seus valores. Nesse sentido, surgem-nos questões sobre as possibilidades de pensar o jovem
como cidadão ou sobre como lidar com as dificuldades que, possivelmente, serão manifestadas
em seu processo de construção de cidadania quando ele está em uma condição de não trabalho
ou de precarização laboral. Inclusive, somos levados a pensar que aqueles que efetivamente
terminam prolongando sua juventude vivem uma condição de construção de uma pseudo ci-
dadania, ou de uma cidadania cada vez mais frágil, onde a participação coletiva cede cada vez
mais lugar para ações individualizadas, como o ato de consumir e se identificar coletivamente
com uma marca ou com um segmento de produto (Severiano, 2001) e não mais com os valores
que orientavam e mantinham uma coesão e uma participação social.
etapa juvenil mais atraente para o consumismo: a imaturidade, a falta de reflexão e a impulsi-
vidade, que são elementos presentes no discurso imediatista e pouco envolvido com questões
mais profundas da vida coletiva.
Reconhecemos aqui que esta carga se manifesta de forma diferente nos estratos de jo-
vens trabalhadores. Dentro da diferenciação feita por Antunes (1998), os ditos superespeciali-
zados, parecem conseguir um maior suporte, dada as condições da família de origem que conse-
guiria dar sustentabilidade a esta juventude enquanto o jovem espera, se qualificando, por uma
inserção melhor no mercado de trabalho. Quando observamos o subqualificado, o movimento
parece ser diferente, este parece ingressar mais cedo no mercado de trabalho, em condições de
subemprego, ou em uma realidade precária, adentrando ao contexto adulto, mas não escapando
da cooptação consumista, porém dada pelo seu trabalho diretamente.
Sobre essa questão, é importante ressaltar que, apesar de observarmos que esse incenti-
vo ao prolongamento da juventude em contextos sociais onde a juventude é tida como a idade
canônica (Severiano & Álvaro, 2006) se espalhe fortemente em diversos âmbitos sociais, ele
não impacta de forma semelhante os jovens. A lógica ou ideia de valorização da juventude ten-
de a se difundir em um número crescente de contextos socioeconômicos, mas se concretiza de
forma mais efetiva em situações de melhor condição financeira (Coelho, 2013).
Dependendo da condição econômica da família ela não consegue manter o jovem por
muito tempo, muito menos possibilitar a sua participação através do consumo. Essa situação
termina acelerando a inserção laboral desses jovens como uma forma de garantir sua participa-
ção social, seja pelo trabalho ou pelo consumo possibilitado por este. E aqui outras problemá-
ticas aparecem para o jovem que tende a se inserir precocemente no mercado de trabalho, sem
muita oportunidade de investir em uma melhor educação e tende a conseguir trabalhos menos
qualificados, pior remunerados e sem perspectivas efetivas de crescimento, mantendo-os nessa
situação de inserções precárias de difícil saída.
ofertas de trabalho cada vez mais precárias. Ainda na mesma linha, todo o contexto parece en-
gendrar nas gerações mais recentes uma normalização do precário, apesar de ainda termos um
desejo pela promessa de segurança e estabilidade do pleno emprego de outrora (Lima, 2008).
Não podemos esquecer que, o próprio fato de manter por mais tempo os indivíduos
dentro do ideal social da juventude e propagá-lo como modelo ideal a seguir, estar-se-ia con-
tribuindo com o fortalecimento de valores e modos de subjetivação que produzem indivíduos
mais adaptáveis e abertos às mudanças, mais flexíveis e acostumados a lidar com as situações
de insegurança e incertezas, ou seja, mais adaptados às próprias demandas do capitalismo fle-
xível contemporâneo.
Outro aspecto que pode estar funcionando como estratégia para minimizar os impactos
das problemáticas advindas da condição de pseudo cidadania entre os jovens que prolongam a
juventude está na possibilidade de acesso à cidadania pelo consumo.
Bauman (2008) aponta que o consumo é uma característica inerente à lógica capitalista
da produção, mas o que assistimos atualmente não é o mero consumo, mas o que o autor con-
ceitua como consumismo, uma ação individualizada que vende as promessas de realização de
desejo, de individuação e de identificação grupal. O olhar criterioso que tentamos dar aqui não
reside no consumo, mas nas atitudes consumistas, que colocam o sujeito em uma pseudo parti-
cipação na vida coletiva, constituindo uma identidade frágil associada a uma faixa de consumo.
Objetivamente falando, para ser cidadão, há que ser um jovem que consuma, que siga
por mais tempo consumindo educação, lazer, diversão, estilos de vestir e de ser tipicamente
juvenis. Nessa lógica, até o trabalho é consumido, não mais em seus valores, mas em seu ca-
ráter utilitarista. Bauman (2008) mostra que tratar o trabalho como mercadoria leva a tratar o
trabalhador também como mercadoria.
cos do mundo adulto, principalmente, relacionados à manutenção do lar. Não é incomum entre
esses jovens (Coelho, 2013) o discurso do “vivo com meus pais, mas pago minhas contas” no
sentido de expressar uma vivência de maior independência. Entretanto, a ideia envolvida no
“pago minhas contas”, em grande parte, se refere ao pagamento das saídas, do lazer, das via-
gens, das roupas caras, da academia, etc, configurando-se um consumo que acontece porque
ele tem um “colchão” ou suporte – a família – que aguenta o peso de sua condição semi-depen-
dente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece haver, dentro desta lógica, a construção de uma pseudo cidadania, na qual a pro-
messa de se incluir em um segmento da sociedade e ter um lugar representativo nesta, aparece
mais atrelado ao consumo incessante de bens, do que do envolvimento destes sujeitos em sua
participação no coletivo social. Ser um elemento participativo nesta lógica parece estar atrelado
a poder consumir as mais diversas ofertas de satisfação propostas pelo mercado. A transfor-
mação provocada pela mudança do foco ético do trabalho para o estético do consumo parece
delimitar um modus operandi no segmento jovem e também naqueles que se colocam nesta
condição. Um dado que nos chama a atenção é que parece haver uma servidão consciente ou
uma normalização da degradação provocada por essa mudança (Lima, 2008), onde o dito jovem
valoriza tudo que envolve esta condição de se ver na sociedade.
Salientamos que nosso ensaio não é um saudosismo de uma cidadania regulada, mas um
questionamento acerca da compreensão do que são a cidadania e a juventude, conceitos muito
propagados, mas ainda pouco discutidos de forma crítica pela psicologia. Além disso, procura-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 142
mos aqui compreender como o consumo e o trabalho ocupam lugar na compreensão do que é
ser um cidadão nos dias de hoje. Trazemos aqui a possibilidade de reconhecer tanto no traba-
lho, como no consumo, elementos que podem acenar para a participação social, mas também
alertamos para o fato de amparar essa participação em elementos esvaziados de valores ou com
conotações individualistas e segregadoras.
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Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 144
Thais França
INTRODUÇÃO
Desde meados de 2013, o Brasil atravessa uma forte turbulência econômica, política e
social (Vasconcelos, 2014), de maneira que nenhuma área tem escapado a cortes, reestruturações
ou renegociações. Contudo, antes dessa realidade instalar-se de forma tão intensa, em 2011, o
governo federal, através do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação e do Ministério da
Educação, lançou um dos seus mais ousados projetos de internacionalização da ciência através
da promoção da mobilidade acadêmica. Nomeado “Ciência sem Fronteiras” o programa foi
traçado para os anos de 2011-2015, com o objetivo de oferecer cerca de 100 mil bolsas de
estudo no estrangeiro para estudantes de graduação, mestrado, doutorados, pós-doutorados,
pesquisadores/as e docentes das áreas de ciências básicas, tecnologia e saúde (MEC, 2016) .
Ao longo dos anos de 2011 a 2014, o programa seguiu entre êxitos, melhorias, falhas, críticas
e muita instabilidade. Se por um lado é preciso reconhecer a criação de novos convênios,
estabelecimento de redes, crescimento do número de publicações em conjuntos é também
importante apontar a lentidão no pagamento das bolsas, retorno de estudantes antes do prazo e
o baixo nível da proficiência em outros idiomas dos candidatos, principalmente o inglês.
Dentro desta lógica, se ainda for permitido ressaltar alguma mudança resultante da
globalização sem que soe repetitiva, a circulação de acadêmicos/as e estudantes por instituições
internacionais, o aumento da cooperação entre instituição de diferentes países e o crescimento
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 146
Contudo, apesar da grande visibilidade que tem recebido nos últimos anos, é necessário,
ressaltar que esta prática de mobilidade de acadêmicos(as) por diferentes países e instituições
é bastante antiga. Relatos de experiência de estudiosos(as) que se transladavam desde a China
a Europa, entre distintas regiões do Oriente Médio e por todo o território Europeu em busca
de conhecer diferentes escolas de pensamento são encontrados com frequência na literatura
(Dedjier, 1971; Kim, 2009). Por isso, o que é preciso demarcar agora é a intensidade, a
frequência e a direção com que esses deslocamentos acontecem e quais suas consequências
para a academia e para a ciência tanto no que diz respeito às práticas de produção e circulação
do conhecimento, como também à concepção do que vem a ser uma carreira acadêmica bem
sucedida.
Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo discutir a mobilidade acadêmica
como um fenômeno atravessado por aspectos migratórios, laborais e de produção do
conhecimento, desde uma perspectiva crítica e pós-colonial. Trata-se de uma análise teórica
que procura abarcar questões como: qual o peso das hierarquias geopolíticas nas dinâmicas
de produção e circulação do conhecimento? Como as assimetrias e desigualdades de gênero e
de nacionalidade refletem-se nesses deslocamentos? Até que ponto a mobilidade acadêmica
constitui-se como uma oportunidade de desenvolvimento ou como uma prática de precarização
da carreira acadêmica?
Desde a escolha pela utilização do termo “mobilidade acadêmica” para designar este
fenômeno, até o formato dos programas e seus parâmetros de avaliação não há nada ingênuo
ou por acaso. A opção pelo termo ‘mobilidade’ esconde uma ideologia segregacionista que
procura construir os/as protagonistas/as da mobilidade acadêmica– professores, cientistas,
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 148
paradigmas, teorias, padrões, técnicas e cultura do que uma dinâmica de cooperação entre todos
os participantes.
Inúmeras são as críticas que podem ser feitas a forma como esse processo se sucedeu,
desde sua forte visão voltada para a construção de um ensino superior para servir o mercado e
promover a empregabilidade e à imposição do modelo de ensino, pesquisa e aprendizagem de
apenas alguns membros a todo o bloco, desconsiderando as especificidades de cada país(Lima,
Azevedo, & Catani, 2008). Kofman (2015) sublinha, por exemplo, como o modelo adotado de
uma formação divida em dois ciclos, 3 anos de licenciatura e 2 anos de mestrado, foi uma cópia
exata do padrão vigente no Reino Unido. Logo, enquanto os demais países lutavam para tentar
acomodar o novo modelo às suas realidades locais, no Reino Unido as discussões acerca dessas
reformas não ecoavam e tão pouco faziam sentido. Do mesmo jeito, os programas de mobilidade
estudantis dentro do esquema Erasmus Plus9 se por um lado estimulam estudantes de graduação
a desenvolverem novas habilidades – autonomia, flexibilidade, criatividade – e os confrontam
com a diversidade cultural, por outro lado o inglês continua a ser a língua dominante nos cursos
que esses estudantes frequentam e, consequentemente, poucos/as são aqueles/as que realmente
chegam a aprender a língua local.
Essa realidade europeia pode ser vista como um recorte do que acontece mundialmente.
Ou seja, as desigualdades políticas e econômicas existentes entre países, interna ou externamente
aos blocos econômicos, são reproduzidas nas práticas de produção de conhecimento, resultando
no que Mignolo (2002) denomina hierarquias epistêmicas. Essas desigualdades remontam o
período colonial, uma vez que os efeitos da colonização dos países do Norte nos países do
Sul ultrapassam as esferas políticas e econômicas e podem ser sentidos também nas ciências e
saberes.
esforço em provar que o atual deslocamento de acadêmicos/as e cientistas dá-se em uma lógica
diferente daquela tratada no paradigma da fuga de cérebros (Oteiza, 1998), e que por isso
seria mais adequado, falar em circulação de cérebros (Meyer, 2003), o que se vê na prática
é a continuação da saída de mão de obra qualificada dos países do Sul para o Norte. Isso
por que os investimentos que cada país dispõe para enviar seus/as acadêmicos/as para centros
internacionais, bem como para atrair acadêmicos/as de países estrangeiros são desiguais.
Deve-se considerar também que a exclusão das mulheres das redes sociais informais e
formais em suas instituições, por conta dos mecanismos de segregação sexual das dinâmicas
laborais (Ibarra, 1993, 1997) torna mais difícil o acesso à informações e convites para programas
de mobilidade acadêmica, financiamento e participação em projetos e redes internacionais. Além
do mais, o reduzido número de mulheres em posições de professoras receptoras de estudantes,
orientadoras ou supervisoras contribui igualmente para que as oportunidades de mobilidade
para estudantes mulheres e acadêmicas sejam abreviadas (Jons, 2011).
O desenvolvimento da carreira acadêmica das mulheres pode ser comprometido pelo fato
de que a participação em programas de mobilidade acadêmica ser extremamente obstaculizada,
difícil e onerosa para esse grupo. Como dito anteriormente, cada vez mais a mobilidade
acadêmica vem sendo compreendida como um fator chave do crescimento profissional de
acadêmicos/as, à medida que as mulheres não conseguem fazer parte destes programas na
mesma intensidade que seus colegas homens, elas perdem oportunidades de promoção. Ao
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 153
mesmo tempo, a presença reduzida de mulheres nesses programas dificulta mais ainda que
seus processos de seleção, bem como sua estruturação, levem em conta as especificidades e
as necessidades da carreira acadêmica feminina, resultando em um ciclo vicioso que apenas
compromete a performance laboral das mulheres.
Segundo Cantwell e Lee (2010) (2010), a maneira como os estereótipos étnicos e raciais
moldam a experiência de acadêmicos/as e pesquisadores/as não brancos aproxima-se daquilo
que Balibar (1991) identifica como sendo uma forma de neorracismo. Dentro desta lógica, as
diferenças de nacionalidades, étnicas, fenotípicas e culturais são hierarquizadas em categorias
raciais. Tal construção legitima a exclusão desses sujeitos não brancos e não ocidentais de redes
sociais, a negação de direitos e os tratamentos diferenciais. Dentro dos fluxos de mobilidade
Sul-Norte, justificaria também a posição das instituições do Norte como superior, não por
conta do essencialismo biológico, mas sim por conta da cultura científica e acadêmica mais
desenvolvida. “Em outras palavras, neorracismo é uma abordagem analítica para explorar
o racismo estrutural no contexto migratório onde raça, cultura e nacionalidade interagem de
forma complexa para produzir uma hierarquia de posições sociais” (Cantwell & Lee, 2010, p.
10 Neste caso, a opção por citar as nacionalidades apenas na variação masculina do
gentílico justifica-se pelo reconhecimento de que há também uma construção dos campos de
saberes com base nos estereótipos de gênero, sendo as ciências exatas e naturais associadas aos
homens e as humanas e sociais às mulheres
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 154
497)11. Portanto, raça e etnia aparecem como outro eixo fundamental para refletir as dinâmicas
de opressão, exploração e subalternização existentes nos esquemas de mobilidade acadêmica.
Essa breve análise sobre esses eixos de diferenciação mostra como a mobilidade científica
é um fenômeno complexo e multifacetado que exige uma compreensão de distintas perspectivas
a fim de identificar as sutis dinâmicas de poder e opressão que permitem a reprodução das
desigualdades e assimetrias. Portanto, compreende-se porque a mobilidade acadêmica é um
recurso que não está igualmente acessível a todos/as os acadêmicos/as e cientistas, o que tem
consequências diferenciadas na progressão de carreira daqueles/as que podem ou não fazer
parte desses programas.
11 Tradução própria. No original: In other words, neoracism is a framework to explore structural racism
in the context of immigration where race, culture, and nationality interact complexly to produce a hierarchy of
social positions (Cantwell & Lee, 2010, p. 497)
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 155
A mobilidade acadêmica tem vindo a ser celebrada como uma estratégia enriquecedora
para a carreira acadêmica, tornando-se quase que uma obrigatoriedade para aqueles/as que
almejam permanecer nesse setor. Contudo, a maneira como os programas de mobilidade tem
sido conduzidos e experienciados por acadêmicos/as aproxima-o mais de uma prática de
precarização laboral do que propriamente de uma estratégia de desenvolvimento de carreira
(Bauder, 2012).
O avanço das políticas neoliberais nas Universidades e o aumento dos cortes orçamentais
é uma realidade que atravessa o meio acadêmico internacionalmente (Amaral, 2003; Bok,
2004; Mirowski, 2011). Com a impossibilidade de encontrarem postos de trabalho estáveis e
com a pressão para que tenham experiência de pesquisa ou docência no exterior, cada vez mais
recém doutores/as candidatam-se a pós-doutorados ou a uma vaga em projetos de pesquisas no
estrangeiro. A ideia dominante acerca da relevância da mobilidade científica, como apresentado
anteriormente, é que os benefícios trazidos, principalmente no que diz respeito a abertura de
redes de contato, aprendizagem de novas técnicas de investigação e consolidação de convênios
de cooperação são fundamentais para o amadurecimento acadêmico e, consequentemente,
para o desenvolvimento da sua carreira. Contudo, esse discurso esconde uma realidade de
precarização do trabalho acadêmico por conta das instabilidades dos contratos e da falta de
oportunidades de inserção laboral posteriormente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões sobre mobilidade científica, via de regra, ressaltam sua importância para o
crescimento e desenvolvimento da ciência e do conhecimento local e internacional é inegável.
Cita-se igualmente a economia de recursos materiais e financeiros, aprendizado de diferentes
técnicas de pesquisa e teorias analíticas, transferência de tecnologia, formação de redes de
pesquisa transnacionais, aumento do número de publicações entre outros. Contudo, é preciso
não perder de vista de que maneira as dinâmicas de desigualdades e assimetrias existentes em
nossa sociedade reproduzem-se nestes deslocamentos contribuindo para o fortalecimento de
uma sociedade pautada na inequidade e de uma ciência elitista e conservadora.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
A Clínica da Atividade (Clot, 2007; 2010), perspectiva que norteará esta discussão,
assume sua filiação aos estudos histórico-culturais em psicologia (Vygotsky, 1991; 1995) e em
linguística (Bakhtin, 1997), tomando o trabalho como um conceito central. Clot (2007) propõe
compreender a função psicológica do trabalho para o desenvolvimento do sujeito, considerando-
se a relação entre atividade e subjetividade, dentro de uma perspectiva histórica e dialética.
É dentro deste contexto que se pretende debater a relação entre trabalho e saúde, tema
central discutido neste artigo. A discussão em torno da saúde no campo da Psicologia do Trabalho
se faz necessária, uma vez que as configurações do modelo atual de produção e da organização
do trabalho, com os excessos de prescrições ou ausência delas, com a invasão dos tempos livres
por atividades laborais, com fragmentação dos coletivos de trabalho, com a destituição do laço
social e as flexibilizações, dentre outros elementos, têm levado a uma atividade cada vez mais
destituída de sentido, onde o trabalhador não se reconhece no produto final do seu trabalho e
nem é reconhecido por seu esforço, levando a diversas formas de adoecimento.
A relação entre trabalho e saúde se colocou como foco de nosso interesse a partir
dos estudos sobre a Clínica da Atividade, associados à nossa prática como Psicólogos da
Universidade Federal do Ceará (UFC). Realizamos intervenções, através do projeto Elaborar,
que visam provocar mudanças nos contextos de trabalho, tendo em vista o desenvolvimento
do poder de agir dos trabalhadores (PINHEIRO; SILVA; TAISSUK; AQUINO, 2013). Estas
ações contam com a parceria do Núcleo de Psicologia Social do Trabalho (NUTRA/UFC) por
meio do qual articula-se os eixos pesquisa, ensino e extensão, ao contar com os alunos do curso
de Psicologia da referida instituição que participam como bolsistas nas ações do projeto. São
realizados através dessa parceria, grupos de estudos, treinamento introdutório ao campo e às
metodologias próprias da Clínica da Atividade, além da produção acadêmica através de artigos
com os relatos das experiências.
Desta forma, iniciaremos por uma breve introdução dos conceitos centrais da Clínica da
Atividade, tais como o de atividade e saúde, a fim de situarmos o leitor nas discussões teórica e
metodológica que serão fundamentais para a compreensão das reflexões suscitadas no decorrer
do capitulo.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 162
Neste tópico iremos explicitar de forma breve o conceito de atividade para a concepção
aqui adotada e a sua importância na análise do trabalho, relacionando-a com as quatro dimensões
do oficio.
sobre a concepção de saúde para a Clínica da Atividade com base nos estudos de Canguilhem.
Canguilhem (2009) traz uma contribuição para o estudo das ciências da vida ao
problematizar a concepção de saúde, questionando práticas totalizantes e discriminatórias. Suas
ideias contribuíram para reformulações em torno desse conceito dentro das ciências humanas
e da saúde, culminando com as proposições da Reforma Psiquiátrica e os questionamentos ao
instituído pela prática clínica de outrora. O filósofo propõe, assim, uma reflexão em torno da
saúde que é perpassada por questões éticas, sociais e epistemológicas.
propícios à manutenção da ordem vigente, sem questionamentos ao que está posto e proposições
de uma nova ordem, mantém-se os padrões.
Conforme assinala Silva (2008, p. 147): “Normalizar parece ser um lema abertamente
assumido por nossa sociedade. Afinal, é preciso padronizar as coisas para que elas possam
melhor se adequar ao estatuto de mercadoria.”
Conforme Lima (2011), a concepção de saúde proposta por Canguilhem está para além
de um saber restrito a especialistas e vincula-se a como os próprios sujeitos vivenciam seu
corpo, suas dores e seus prazeres. A saúde é concebida como potência de ação sobre o mundo,
como capacidade de inventar novas normas que questionem o que está posto. Ser normativo é
ter a capacidade de criar normas e possibilidades de vida.
Conforme afirmado previamente, a noção de saúde formulada por Clot (2006; 2008,
2010) se aproxima de uma definição filosófica proposta por Canguilhem. Para situar sua con-
cepção de saúde, Clot (2010) inicia seu raciocínio com uma crítica à noção de defesa oriunda
da psicanálise e apropriada pela Psicodinâmica do Trabalho. Diante do adoecimento, a defesa
mantém o sujeito no espectro da normalidade, ou seja, confinado às normas. Garante-se uma
estabilidade à custa de empobrecer os meios para se viver. Ter saúde, entretanto, é, mais que se
defender e se proteger do infortúnio da patologia, resistir à norma e, indo além, atribuir-se a
própria normatividade, compreendendo que ser “normal não é ser adaptado à situação, mas ser
criador de normas” (CLOT, 2008, p. 67).
[…] um poder de ação sobre si mesmo e sobre o mundo, adquirido junto dos outros. Ela está
ligada à atividade vital de um sujeito, àquilo que ele consegue, ou não, mobilizar de sua atividade pessoal
no universo das atividades do outro; e, inversamente, àquilo que ele chega, ou não, a utilizar das atividades
do outro em seu próprio mundo. Portanto, se a saúde encontra sua origem na preservação do que o sujeito
se tornou, ela descobre seus recursos naquilo que ele poderia ter sido.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 165
A saúde não se opõe à doença, do mesmo modo que não se identifica com ela, mas procura
apropriar-se dela. Sua tentativa consiste em alterar o estatuto da doença. A saúde, diferentemente da
normalidade defensiva, é a transformação da doença em novo meio de existir, a metamorfose de uma
experiência vivida em um meio de viver outras experiências e, finalmente, a transfiguração de um
paradoxo experimentado em história possível, de uma vivência em um meio de agir (CLOT, 2010, p.
113).
Clot (2011) vê o trabalho como espaço para expansão das potências humanas em
meio ao encontro com a diferença que ele traz consigo. Obviamente, não se desconhece a
possibilidade de seu rebaixamento, de sua dissolução como espaço de produção humana e de
criatividade. Rebaixamento que se dá quando se rebate o trabalho contra o buraco negro das
impossibilidades, das formas de proceder imutáveis e da fala esgotada ou calada, privando-se
o sujeito do encontro com a cultura que funda a ação e garante sua reinvenção. Entretanto, de
acordo com Clot (2011, p. 78):
Ao tentar dar, no ambiente profissional, outro destino à atividade desiludida (graças aos
recursos que dispõe os coletivos de trabalho, recursos desconhecidos deles mesmos), a clínica do real
que nos serve de referência encara as criações e recriações da atividade praticamente como uma negação
da morte, da morte que se apodera sempre do vivo no trabalho humano. A clínica do real encara essas
recriações aventurosas como invenção de novas possibilidades de vida [...]
Nessa direção, ter saúde é abrir-se para os possíveis e criar ou recriar as próprias
normatividades. A Clínica da Atividade é uma clínica da saúde, porque entende que sua função
é desenvolver os possíveis presentes como potência no real da atividade, em um meio onde a
atividade esteja impedida, onde haja uma amputação, um rebaixamento do poder de agir dos
trabalhadores. Conclui-se, por conseguinte, que promover saúde é ampliar o poder de agir.
O poder de agir, noção desenvolvida por Clot (2010) a partir de Ricoeur e Espinoza,
se amplia ou se reduz em função do sentido e da eficiência da atividade, portanto de sua
eficácia. Sentido que se refere ao encontro, mas não necessariamente à igualdade entre o que
é significativo para o sujeito e as metas a serem alcançadas na ação. Eficiência que precisa
ser encontrada nos modos operatórios experimentados para que a atividade se fixe, ao mesmo
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 166
tempo em que se refere ao “cuidado” que se tem com o trabalho, de modo que o sujeito possa se
reconhecer no “trabalho bem-feito”, em que se faz presente o gênero profissional e pelo qual se
assume responsabilidade. Nesta direção, a impossibilidade de se efetivar o trabalho a contento
também é fonte de sofrimento quando o profissional não encontra meios para reorganizar seu
trabalho. No sentido oposto,
[…] o bem-estar psicológico é encontrado naquilo que permite aos sujeitos realizarem
plenamente suas atividades, em outras palavras, naquilo que lhes permite avaliar e escolher efetivamente,
de uma forma esclarecida e eficaz, quando estão diante de situações delicadas. Os recursos disponíveis
são heterogêneos: ligados à instituição, à organização do trabalho, à história da profissão, à experiência
pessoal e às relações com os colegas. Por isso, em cada situação, nós procuramos maneiras diversas
para realizar um bom trabalho, a despeito da complexidade e dos obstáculos inerentes às situações
(KOSTULSKI, 2011, p. 195, tradução nossa).
Ainda, segundo Clot (2010, p. 111): “Existe um poder de agir que a doença corrói e
que o sujeito defende, sem se confundir com as defesas, há um poder de indeterminação, uma
atividade de resistência que a doença põe à prova e contraria”. Essa resistência não é individual,
ela se constrói nas relações que se estabelece ao longo da vida. Desta forma é que a saúde se
descobre, se desnuda, aparece nos devires possíveis do sujeito, nas suas multiplicidades de
existência e meio de vida.
Clot (2010) vai, desta maneira, propor uma aproximação entre atividade e saúde, uma
vez que a criação faz com que o indivíduo se sinta ativo. Atividade como criação de um meio de
vida, portanto, como a capacidade de normatividade e de ampliação das possibilidades de ação
do sujeito.
Desta forma, pretendemos apresentar no próximo tópico algumas reflexões suscitadas
a partir da intervenção já mencionada e que ilustram questões relativas ao poder de agir
dos trabalhadores que encontravam seu poder de ação impedido por um modelo de gestão
centralizador e autoritário e pelas diferentes formas de vínculo laboral dos funcionários do
setor.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 167
A partir do uso dessas técnicas foi possível identificar elementos que impediam o poder
de agir dos trabalhadores nas diversas dimensões do ofício mencionadas anteriormente e que
retomamos agora: impessoal, pessoal, transpessoal e interpessoal.
normatização sobre como ordenar o estoque. Essa lacuna gerava impedimentos aos trabalhadores
terceirizados que, ao tentar definir onde cada produto deveria ser acondicionado, tomando por
base sua experiência cotidiana de trabalho, viam suas decisões rechaçadas pela gestão, que
não reconhecia a autonomia e a participação deles na organização do galpão. Por vezes, a
chefia determinava mudanças nos locais de armazenamento sem comunicá-los, pois a decisão
superior não era coletivizada e discutida com o grupo de trabalho. Quando estes iam procurar
os produtos para encaminhar aos setores, acabavam não os localizando e precisavam se reportar
ao gestor com o qual nem sempre mantinham uma relação amistosa.
a produtos tóxicos.
Destacava-se, também, a diferença salarial entre profissionais com mesmo cargo. Por
se tratar de um vínculo diferenciado, os servidores públicos recebiam de 3 a 4 vezes mais
que os terceirizados, além de possuírem Plano de Cargos, Carreiras e Salários, de modo que
qualificações e capacitações se convertiam em benefícios salariais. Os terceirizados, caso
precisassem ou quisessem realizar alguma capacitação, deveriam procurá-la por conta própria
e custeá-la com o próprio salário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tais reflexões, podemos afirmar que as contribuições de Yves Clot para a
Psicologia do Trabalho são de ordem epistemológica e ética, rompendo com uma lógica limitada
e simplista de compreender a relação saúde e doença, uma vez que a concepção adotada por
ele ultrapassa a perspectiva de dualismo, que restringia as possibilidades de compreensão de
tal relação a uma lógica adaptacionista e de normalização. Atualmente, o entendimento desta
relação apresenta-se como uma problemática não superada, mas, com um olhar ampliado, é
possível ter uma compreensão diferenciada sobre os coletivos de trabalho e sobre as intervenções
realizadas.
A partir das reflexões em torno dos dados iniciais da intervenção realizada, pudemos
observar contradições típicas do atual modelo de produção do capital em uma instituição
pública. Assim, pudemos discutir aspectos pertinentes a este contexto, relacionando-os com a
autonomia dos trabalhadores, os impedimentos para sua ação, bem como a relação estabelecida
entre eles e as condições distintas para o exercício de sua função em decorrência do tipo de
vínculo empregatício.
Ressaltamos que, a administração pública, ao imprimir aos seus trabalhadores essa mar-
ca da vulnerabilidade do trabalho, expõe uma dupla desproteção, qual seja, trabalhista e social.
Na área trabalhista, o Estado, ao promover seu enxugamento, coloca o esgarçamento dos víncu-
los e da estabilidade trabalhista como uma funcionalidade inerente a essa dinâmica. No campo
social, é estabelecida a desproteção aos sujeitos, ao que pese que, paradoxalmente, esse mesmo
Estado deveria protegê-los, sob os pilares da manutenção de direitos sociais e de cidadania,
como expresso na Carta Magna de 1988. Nesse contexto, percebemos que, na esfera do capital,
muitos são os desdobramentos dos novos modos de produção e suas consequências nefastas
para a saúde e direitos dos trabalhadores. Esses se encontram cada vez mais destituídos de sua
força coletiva, o que contribui para degradação das suas condições de vida e trabalho.
Destaca-se ainda que, embora haja estudos que abordem a relação saúde-trabalho, ainda
existem muitas lacunas a serem preenchidas na literatura, especialmente, no que diz respeito
aos estudos que envolvem a precarização do trabalho e seus aspectos ligados ao sofrimento
e adoecimento relacionados à atividade laboral, devendo estas serem exploradas por novas
pesquisas.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 171
REFERÊNCIAS
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Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 173
INTRODUÇÃO
Iniciou-se o processo de privatização dos bancos estaduais brasileiros, que foi consti-
tuído, em um primeiro momento, pela federalização das instituições, a partir da qual os bancos
passaram a ser geridos sob a égide do BACEN e, posteriormente, a aquisição deles, que, em
grande parte dos casos, deu-se por bancos privados como Bradesco e Itaú. Foi um momento de
grande instabilidade para o setor bancário, tendo em vista o notável número de fusões, aquisi-
ções e incorporações que ocorreram nessa década.
Esse processo não foi concluído sem fazer certo número de “vítimas”. Os profissionais
que trabalhavam em bancos que vieram a ser privatizados enfrentaram uma série de dificul-
dades referentes tanto à mudança organizacional em si, como à drástica redução do quadro
de funcionários dessas instituições. Este último procedimento foi amplamente auxiliado pela
utilização dos Planos de Demissão Voluntária (PDV), que consistem, segundo Leme (2000) na
rescisão do contrato trabalhista de maneira bilateral, em troca do adiantamento de uma determi-
nada indenização, que equivaleria a um número específico de anos de remuneração. Foi nesse
contexto histórico que se iniciaram as grandes mudanças para os funcionários de instituições
financeiras no Brasil como um todo, mas de forma especial para aqueles que desenvolviam suas
atividades vinculados a instituições estatais.
Partindo dessa contextualização, o objetivo deste capítulo consiste em, além de anali-
sar os aspectos técnicos que constituíram os PDVs e sua aplicação em determinado momento
histórico, apresentar os desdobramentos decorrentes da realização desta ação por diversos em-
preendimentos estatais para os trabalhadores. Para tanto, realizaremos um levantamento biblio-
gráfico direcionado pelas temáticas PDV e reestruturação produtiva, no sentido de apreender o
processo de utilização do PDV e seus reflexos para a classe trabalhadora.
Segundo Harvey (1990), entre as décadas de 1950 e 1960, o capitalismo fordista atingiu
sua maturidade. Os países que adotaram o chamado “Alto Fordismo”, termo utilizado para indi-
car o modelo fordista-taylorista no período pós-guerra, mantiveram um crescimento econômico
forte e relativamente estável. Entretanto, mesmo quando o capitalismo fordista alcançou seu
apogeu, havia sinais de descontentamento por parte daqueles que não eram beneficiados por
este sistema. Aos trabalhadores que eram negadas as possibilidades de crescimento do sistema
de produção em massa, seja por gênero ou etnia, se uniram os países de “terceiro mundo”, que
buscavam as promessas de emancipação e modernização, mas alcançaram apenas “a destruição
das culturas locais, muita opressão e diversas formas de dominação capitalista em retorno”
(Harvey, 1990, p.139).
A acumulação flexível, como caracterizada por Alves (2011), constitui um novo ímpeto
de expansão da produção de mercadorias e de vantagem comparativa na concorrência inter-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 177
No âmbito social, esse período foi caracterizado por baixos salários e pelo aumento do
trabalho em tempo parcial (part-time job). As organizações voltaram seus esforços para sua
própria manutenção e sobrevivência em período de crise, enquanto o Estado, por sua vez, bus-
cava novas estratégias para a contenção da inflação. A característica keynesiana fundamental do
sistema fordista-taylorista, ou seja, a pressuposição do intervencionismo estatal na economia,
passou a ser severamente criticada (Anderson, 1995; Bonanno, 1999) e percebida como fonte
da rigidez do modelo e causa da retração econômica.
As raízes da crise, segundo o pensamento neoliberal, estariam no poder excessivo e ‘nefasto’ dos
sindicatos e do movimento operário que, através da pressão pelo aumento dos salários e asseguramento
de garantias e proteções trabalhistas, ocasionava a inviabilidade da retomada e crescimento dos lucros,
corroendo as bases de acumulação das empresas e fomentando um processo de explosão inflacionária.
(Montenegro, 2007, p.4).
O Estado deveria ser forte para conter as manifestações populares e empreender essas
transformações com sucesso, mas a ele seria restrita qualquer intervenção na economia. Nesse
ponto, é necessário afirmar que tais transformações não ocorreram de maneira pacífica e fluida.
No decorrer das primeiras décadas do século XX, o modelo de organização do trabalho fordista,
apesar de promover a alienação do processo produtivo, também foi associado à consolidação
de direitos trabalhistas e organização de sindicatos (Moita, 2012). Nesse sentido, a luta pela
diminuição do poder conquistado pelos trabalhadores consistiu em um desafio para os novos
adeptos do pensamento neoliberal.
O plano, que ficou conhecido como Consenso de Washington, tinha como principais
pontos de ação: “Promover a estabilização da economia através do ajuste fiscal e da adoção de
políticas econômicas ortodoxas em que o mercado desempenhe o papel fundamental” (Pereira,
1990, p. 6), assim como a redução da intervenção do Estado na economia. Após os períodos de
crise enfrentados nas duas últimas décadas, muitos países da América Latina e do Leste Asiá-
tico adotaram parcial ou totalmente essas medidas. No Brasil, o Consenso de Washington teve
grande influência sobre a consolidação do Plano Real.
NEOLIBERALISMO NO BRASIL
Boito (2006) enumera três elementos característicos do modelo neoliberal que foram
adotados nos diversos momentos da implementação deste no contexto brasileiro: (1) a polí-
tica de desregulamentação do mercado de trabalho, redução de salários e redução de gastos e
direitos sociais; (2) a política de privatização e (3) a política de abertura comercial. Durante o
governo Collor, foram propostas e iniciadas ações que cobririam esses elementos com os planos
Collor I e II. Estes promoveram a abertura comercial através da eliminação de barreiras não-ta-
rifárias às compras externas e redução das alíquotas de importação, além de iniciar o programa
de privatização (Alves, 2002).
Mas não podemos deixar de lado a hipótese de que, a série de práticas inovadoras, de caráter
organizacional, na indústria brasileira, que constitui um importante aspecto do novo complexo de rees-
truturação produtiva, [...], e a livre negociação de salários, com a concessão de abonos e antecipações
salariais, de acordo com o espírito do toyotismo, tenham colaborado sobremaneira com o recuo das gre-
ves. (Alves, 2000, p. 120).
O desdobramento das medidas tomadas pelo Executivo Federal na década de 1990 foi
o aumento das diversas modalidades de trabalho precarizado, como os trabalhadores terceiri-
zados, subcontratados e part-time. Com a redução da influência política e do poder econômico
do empresariado industrial brasileiro, houve a redução e desconcentração desse segmento do
operariado, sendo este amplamente absorvido por um “setor de serviços” afetado pela rees-
truturação produtiva, submisso à racionalidade do capital e à lógica dos mercados (Alves &
Antunes, 2004).
acompanhou a utilização dos Planos de Demissão Voluntária (PDV) como forma de auxiliar o
processo de venda e fusão de empresas nacionais a empreendimentos estrangeiros.
O PDV, então, se constituiu em uma estratégia de corte neoliberal, que visava a deses-
truturação do setor público de economia mista, no qual foi amplamente utilizado. Frente à mu-
dança na configuração das relações de trabalho, foram desenvolvidos sistemas de exoneração
por desligamento voluntário para promover a redução de quadro funcional no setor público
(Leme, 2000).
A utilização dos PDV foi inicialmente verificada em países como Inglaterra e Estados
Unidos, devido ao seu alinhamento com políticas neoliberais. Nesses países, os PDV foram rea-
lizados através do trabalho de consultorias que assessoravam empresas, ficando essas responsá-
veis pelo procedimento. Sobre as empresas que adotaram essa forma de demissão, Pfeilsticker
(2008, p.11) ressalta que eram: “Grandes empresas, normalmente bem sucedidas e que, durante
décadas, ofereceram a seus funcionários a possibilidade de construir uma carreira como projeto
de uma vida inteira, garantindo-lhes, tacitamente, estabilidade e segurança em troca de lealdade
e comprometimento”.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 182
O processo do PDV pode variar de acordo com as necessidades da empresa que o está
adotando, mas, de maneira geral, sua finalidade é “enxugar” o quadro funcional. Assim, é ne-
cessário que as ofertas propostas aos trabalhadores sejam aparentemente vantajosas para que
um número considerável de funcionários manifeste interesse em assinar o termo de demissão.
Para isso, como uma forma de estímulo à adoção dos PDV, podem ser oferecidos em um pri-
meiro momento, benefícios como pagamentos dos Planos de Saúde e Previdenciário, além da
indenização em dinheiro correspondente a determinado número de salários (Pfeilsticker, 2008).
Lima (2000 apud Grimm, 2002) critica os objetivos principais dos PDV, sugerindo que
a verdadeira meta dos planos de demissão seria, para além do enxugamento do quadro, a rea-
locação desses funcionários no mercado produtivo, de maneira que este contingente não se
volte para o mercado informal. Durante a década de 1990, o mercado de trabalho brasileiro
presenciou uma elevação sem precedentes no nível de informalidade, significando o aumento
da proporção de trabalhadores por conta própria e sem carteira de trabalho assinada (Ulyssea,
2006). Ramos (2002, apud Bosch et al, 2007), ressalta que o aumento da informalidade se deu
por uma alteração estrutural, sendo fundamentada no crescimento do setor de serviços e redu-
ção do setor industrial.
Essa característica pode ser observada de maneira mais evidente através do relato de
funcionários do setor público (Pfeilsticker, 2008; Silva et al, 1998), que fizeram a travessia do
universo da estabilidade para as vulnerabilidades do mercado de trabalho. A referida vulnera-
bilidade se configura no sentido de, em um contexto de desemprego estrutural elevado, impul-
sionar a submissão de grandes contingentes de trabalhadores a condições de trabalho precárias.
Dessa forma, a precarização é tida como a privação, para este contingente, de direitos básicos e
necessários ao pleno exercício da atividade designada (Rabelo & Barbosa, 2012).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 183
Tem-se observado que, nesse momento, que engloba desde a realização do anúncio até
a finalização do processo, o nível de insegurança dos funcionários aumenta bastante, em decor-
rência de diversos aspectos. Seja pela nova configuração de sua atividade (Carrijo & Navarro,
2009), a sensação de inadequabilidade por parte dos trabalhadores mais velhos (Correia, 2008),
o medo da demissão após o encerramento do período de assinatura (Cunha & Mazzilli, 2005),
dentre tantas outras possibilidades, os trabalhadores vivenciam esse período de maneira tensa,
ansiando por descobrirem o que será feito com aqueles que negarem o PDV, bem como o que
acontecerá com os funcionários que o aceitaram.
Segundo Dejours (2007, p. 19), “Indubitavelmente, quem perdeu o emprego, quem não
consegue empregar-se ou reempregar-se e passa pelo processo de dessocialização progressivo,
sofre”. O reconhecimento de tal sofrimento gera o sentimento de medo, diante da ameaça de
exclusão iminente. Por si, o medo gera a angústia, que se reflete naqueles que temem não satis-
fazer às expectativas, de não estar à altura das incontáveis imposições da organização (Gaule-
jac, 2007).
Durante a década de 1990 e início dos anos 2000, o setor bancário foi um dos mais
amplamente atingidos pelos processos de desligamento em massa, como resultado do processo
de automação e informatização do setor. No destacado período, tais mudanças atingiram di-
versos planos da organização bancária e da sociedade, promovendo o avanço do processo de
internacionalização do sistema financeiro, a implementação de políticas de regulação do setor
financeiro e um processo de “privatização da cultura organizacional”, que fez com que bancos
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 184
em todo país mudassem sua função social, descartando o apoio ao desenvolvimento econômico
para se tornarem bancos comerciais (Druck et al, 2002).
Tais características se modificaram a partir dos anos 1970, quando os bancos come-
çaram a operar em termos de bancos múltiplos e redes de agências. A partir desse momento
intensificou-se a internacionalização das transações bancárias, fazendo com que houvesse um
aumento na competitividade e profundas transformações na organização do trabalho bancário.
Outro fenômeno de grande importância que toma cada vez mais espaço no setor bancá-
rio é a terceirização de atividades. De acordo com Garcia (1999), o processo de terceirização do
setor bancário, iniciado em áreas de apoio como serviços gerais e vigilância e que avança para
atividades técnicas (Recursos Humanos e departamento jurídico), chegando a atividades fim
(processamento de dados e tratamento de documentos contábeis); à medida que vincula estraté-
gias de redução de custos com encargos trabalhistas, passa a conduzir à negação das condições
de trabalho dos bancários.
Com a diversificação dos serviços ofertados, o trabalho bancário ganha uma nova configuração,
que, com a redução do número de funcionários atuando em agências, afeta diretamente na in-
tensidade do trabalho realizado.
Em 12 anos, de 1986 a 1998, houve uma redução de 48% de empregos no setor ban-
cário, passando de 705.065 a 367.852 empregos (Druck et al, 2002). Atualmente, o emprego
no banco público caracteriza-se como instável, em decorrência da ampla utilização de PDV,
Planos de Aposentadoria Incentivada (PAI) e frequentes transferências de locais de trabalho.
A automação, com o surgimento de caixas e autoatendimento e possibilidade de realizar tran-
sações via internet (Internet Banking), foi, em diversos casos, utilizada como justificativa para
implementar os PDV.
O sindicato dos bancários também sofreu uma grande perda de associados, em decor-
rência do número representativo de demissões. Isso promoveu a desmobilização sindical, in-
correndo na predominância do discurso de incentivo à individualização das negociações no
trabalho (Barbarini, 2001). A atuação dos sindicatos fica, então, limitada a ações pontuais, nor-
malmente relativas a denúncias, obtendo poucos resultados concretos no sentido de benefícios
e mudanças, mesmo que parciais, para o trabalhador bancário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 190
INTRODUÇÃO
Duas perspectivas acerca do estudo marxiano sobre o trabalho deverão iniciar esta
pesquisa, as quais ambas demonstram a amplitude da teoria marxiana e sua abrangência em
relação às considerações sobre o trabalho. A primeira, apontada por Alves (2008, p. 223) afirma
que, diante do caráter manipulatório do sistema capitalista, mostra-se necessária a construção
de uma teoria marxista da subjetividade, “tendo em vista que o nexo essencial da ideologia
orgânica da produção do capital tornou-se a ‘captura’ da subjetividade/intersubjetividade
do trabalho”. Alves, neste caso, faz alusão ao novo caráter de controle sobre a mão-de-
obra na contemporaneidade: absortos pela nova organização do trabalho, os trabalhadores
passam a adotar um comportamento de unicidade junto aos objetivos da empresa, tornando-
se colaboradores desta e disseminando “novo valores, sonhos, expectativas e aspirações que
emulem o trabalho flexível” (Alves, 2011b, p.6).
Marx não compreende a subjetividade como um simples reflexo das determinações da base econômica,
como um mero produto do econômico, e sim como um componente inseparável dos processos de formação
da vida humana. O seu pensamento não pode ser reduzido a um objetivismo, a um mero determinismo
econômico, unilateral, visto que a objetividade é impensável sem uma íntima correspondência com a
subjetividade. Não há, para ele, objeto sem sujeito, como não há sujeito sem objeto. Nenhum dos polos
dessa relação, sujeito e objeto, é posto como um dado a priori; eles se constituem na relação (Chagas,
2013, p. 16).
Para o apontamento inicial acerca da crítica à Economia Política, suporte que dará
sustentação ao objeto deste capítulo, deve ser destacada, antes de fazer menção aos trabalhos de
Marx e sua crítica sobre o trabalho humano no sistema capitalista e o mal constituído a partir
deste trabalho, alienado, sobre o sujeito, a contribuição de Engels, manifesta por meio de seu
“Esboço de uma crítica à Economia Política”, de 1843.
economia política”, a partir da qual Engels desvela como origem do estado de desigualdade
da sociedade e de pauperismo de uma das classes que formariam a sistemática econômica a
propriedade privada.
Pelo seu [de Malthus] viés, conhecemos o mais profundo aviltamento da humanidade, sua
dependência das relações concorrenciais; ele [Malthus] nos mostrou que, em última análise, a propriedade
privada faz do homem uma mercadoria, cuja produção e destruição dependem, também elas, apenas da
concorrência, e que o sistema concorrencial massacrou deste modo, e massacra, diariamente milhões
de homens; vimos tudo isto e tudo isto nos leva a suprimir este aviltamento da humanidade ao suprimir a
propriedade privada, a concorrência e os interesses antagônicos. (Engels, 1979, p.19)
E ainda:
Depois de a economia liberal ter feito tudo para universalizar a hostilidade decompondo as
nacionalidades, transformando a humanidade numa horda de bestas ferozes (acaso não são bestas ferozes
os que se dedicam à concorrência?) que se entredevoram precisamente porque cada um partilha com
todos os outros dos mesmos interesses — após este trabalho preliminar, restava-lhe apenas um passo para
chegar ao fim: dissolver a família. Para isso, o sistema fabril, sua bela invenção pessoal, correu em seu
auxílio. O último traço dos interesses comuns, a comunidade familiar de bens, foi minada pelo sistema
fabril e — pelo menos aqui, na Inglaterra — está a ponto de ser dissolvida. Cotidianamente, as crianças,
logo que estão em idade de trabalhar (ou seja: quando chegam aos nove anos), gastam o salário em usos
próprios e consideram a casa paterna como simples pensão, entregando aos pais uma certa quantia para
alimentação e alojamento (Engels, 1979, p. 6)
Engels destaca que a “nova economia”, apoiada no livre comércio, “revela-se como a hipocrisia,
a imoralidade e a inconseqüência que, presentemente, afrontam todos os domínios da liberdade humana.”
(ENGELS, 1979, p. 3). As primeiras linhas escritas por Engels, portanto, apontam para sua preocupação
principal: o devir da humanidade tendo por base o sistema de produção de mercadorias, em seu cerne
contrário à própria sobrevivência do ser (social) humano. Diante do capitalismo, a humanidade – lato
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 195
O trabalho, aos olhos dos vendedores da própria força de trabalho enquanto sofrimento
necessário à manutenção de uma vida “realmente humana” – por meio do usufruto dos
momentos de “não-trabalho” –, é, desta forma, ressignificado. Desta maneira, e considerando o
papel primordial do trabalho, Marx realça a constatação de uma “efetivação do trabalho” e uma
“desefetivação do trabalhador”: enquanto que, com o desenvolvimento das forças produtivas
o trabalho continua a satisfazer as necessidades vitais do ser, dando origem a valores-de-uso,
portanto, o mesmo desefetiva o indivíduo enquanto conhecedor do processo de produção dos
bens que atenderão às suas próprias necessidades e a quem deverá pertencer o produto final.
mudança de atividade.”
Neste sentido é que Marx (2006, p. 82-83) destaca o caráter externo do trabalho, de
forma que a atividade, como um todo (assim, portanto, alienada e explorada), não faz parte do
seu ser, “que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente
bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica
sua physis e arruína seu espírito”. Desta forma, o trabalhador se veria caracteristicamente como
ser humano, percebendo sua individualidade enquanto tal e, assim, estando realmente junto a si
próprio, no espaço de não-trabalho, ou melhor, em seu tempo de ócio ou em meio às atividades
que o igualam às demais espécies – alimentação e reprodução, por exemplo –, ao passo que:
O trabalhador só se sente [...] fora de si (quando) no trabalho. Está em casa quando não trabalha
e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho
obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer
necessidades fora dele. Sua estranheza (Fremdheit) evidencia-se aqui (de forma) tão pura que, tão logo
inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. (Marx, 2006, p. 83)
Um assassinato contra o qual ninguém pode defender-se, porque não parece um assassinato: o
assassino é todo mundo e ninguém, a morte da vítima parece natural, o crime não se processa por ação,
mas por omissão – entretanto não deixa de ser um assassinato” (Engels, 2010, p.136).
O avanço realizado por Marx anos mais tarde por meio de um maior rigor na escrita
presente em “O Capital”, de 1867, promove ao mesmo tempo um resgate de sua teoria presente
nos “Manuscritos” e um avanço em termos da alienação do trabalho e do indivíduo ao levar em
consideração a desestruturação do sistema capitalista, enfim, da Economia Política, a partir de
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 198
sua menor célula de representação, a mercadoria. Apesar de sua maior idade neste período, em
contraponto à perspectiva “moralizante” que ilustra a obra de sua juventude, torna-se perceptível
certa continuidade teórica em sua análise.
Da mesma forma que nos Manuscritos, Marx resgata em muito o caráter empírico
presente em Engels, adotando também na construção de sua obra a utilização de relatórios
médicos e notícias acerca dos males presentes no chão de fabrica. Centrando-nos no objetivo
deste estudo, deve ser dado enfoque a um dos principais pontos desenvolvidos pelo autor logo
no início de sua obra: o fetichismo da mercadoria. Apesar de desenvolvido sobre a própria
noção da mercadoria, sobre a qual o autor discorre acerca de sua dupla face – valor-de-uso e
valor – e a gênese da forma dinheiro, percebe-se sobre o fetichismo um destaque à atividade
humana sob o jugo do valor das mercadorias em detrimento ao valor-de-uso.
Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de
trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa
troca. Em outras palavras, os trabalhos privados só atuam, de fato, como membros do trabalho social total
por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre
os produtores. Por isso, aos últimos aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como
o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos,
senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas. (Marx, 1996, p.199,
destaque nosso)
Ademais, torna-se presente uma camuflagem do trabalho enquanto cerne de formação das
mercadorias, tomando de forma evidente o seu lugar a monetização, na qual a partir da adoção
do dinheiro enquanto equivalente geral no processo e intercâmbio das mercadorias, adquire
um sentido de inerência à humanidade e toma para si o papel de real valor das mercadorias.
“É exatamente essa forma acabada — a forma dinheiro — do mundo das mercadorias que
objetivamente vela, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, portanto, as
relações sociais entre os produtores privados” (Marx, 1996, p. 201).
Frente ao que foi exposto sobre o trabalho segundo a corrente marxiana, percebe-se que
o autor deixa claro, assim, uma espécie de dupla limitação do ser humano enquanto alcance de
sua condição de ser social e desenvolvedor principal de sua própria subjetividade. Dupla por se
mostrar presente nos principais âmbitos de sua vivência: a do trabalho e da própria manutenção.
No primeiro caso, limitando seu alcance sobre suas próprias concepções da realidade por meio
do trabalho alienado, o indivíduo se encontra fragilizado subjetivamente, sendo imputado neste
(inclusive, na perspectiva do trabalhador, como o único modo de se manter), no decorrer do
desenvolvimento histórico da organização do trabalho e do próprio sistema capitalista, novos
pensamentos sobre a vivência humana (atualmente calcada sobre a concorrência dos indivíduos
e da venda da força de trabalho enquanto construtor do progresso pessoal).
muitos casos a articulação realizada por Marx se mantém enquanto base à crítica sobre os
delineamentos adotados pelo trabalho na contemporaneidade. O que se vê atualmente é uma
transformação dos significados adotados pelo trabalho, bem como uma intensificação da intrusão
do trabalho no tempo e espaço dedicados à vida pessoal, antes demarcada de forma mais clara
no período de produção vinculada mais fortemente aos pressupostos fordista/taylorista.
A ideia de Marx acerca da diferenciação do ser social frente às outras espécies animais
por meio do trabalho consciente coloca o atual posicionamento do indivíduo perante a atividade
sob indagação, principalmente quanto às formas como se dá a formação de novos modos de
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 201
pensar e interpretar a realidade. Com o desenvolvimento das forças produtivas, bem como
com a restruturação da produção e do trabalho dentro das empresas (com ênfase ao avanço do
toyotismo frente ao modelo de produção fordista/taylorista), percebe-se um duplo aspecto sobre
o trabalho na contemporaneidade: ao mesmo tempo em que há uma maior aproximação do saber-
fazer da atividade, proveniente de um trabalho cada vez mais imaterial, gerando com isso uma
intrusão e uma dependência maior entre trabalho-trabalhador (o trabalhador ultra-especializado
e o trabalho que, para sua feitura, depende da existência daquele profissional), percebe-se um
afastamento crescente do indivíduo em relação ao significado dedicado à atividade – dedicando-
lhe o papel de provedor de capacidade de consumo por meio do dinheiro – e, com isso, a
alienação em todas as instâncias. Assim, um reconhecimento singular em relação ao trabalho
proveniente dos fluxos de demanda do mercado.
Estas, pois são as forças que dobram as pessoas à mudança: reinvenção da burocracia,
especialização flexível de produção, concentração sem centralização. Na revolta contra a rotina, a
aparência de nova liberdade é enganosa. O tempo nas instituições e para os indivíduos não foi libertado
da jaula de ferro do passado, mas sujeito a novos controles do alto para baixo. O tempo da flexibilidade
é o tempo de um novo poder. Flexibilidade gera desordem, mas não livra das limitações. (Sennett, 2011,
p.69)
Claro deve se mostrar, nestes aspectos, que diante das transformações sofridas pelo
mundo do trabalho, uma vez caracterizado pela estabilidade, pelo reconhecimento da atividade
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 202
com a identidade do sujeito e pelo apoio do Estado no alcance das condições mínimas de
subsistência, bem como pela mais evidente e possível divisão do tempo do trabalhador, as
mudanças radicais promovidas por uma maior maleabilidade da atividade – de seu tempo,
espaço e qualidade de sua operacionalização –, por uma maior cobrança sobre o indivíduo, que
apenas a si próprio deve caber a capacidade de se empregar ou não e por uma maior intrusão
do trabalho no espaço particular do sujeito, provocam sérias patologias, conforme pode ser
vislumbrado, apesar do foco diferenciado, em Dejours (1999).
[...] por trás das vitrinas, há o sofrimento dos que temem não satisfazer, não estar à altura das
imposições da organização do trabalho: imposições de horário, de ritmo, de formação, de informação, de
rapidez de aquisição de conhecimentos teóricos e práticos (Dessors & Torrente, 1996) e de adaptação à
“cultura” ou à ideologia da empresa, às exigências do mercado, às relações com os clientes, os particulares
ou o público etc.
De acordo com Dejours, uma das principais consequências desta limitação à análise
crítica do sofrimento humano dentro da organização do trabalho é o aparecimento progressivo
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 203
Apesar da perceptível distância teórica entre Dejours e a lente marxiana sobre o trabalho,
por exemplo, percebe-se certa continuidade no que se diz respeito à análise sobre as formas
de tratamento em relação ao trabalho, estando baseadas principalmente nas transformações
da organização do trabalho sob o propósito do capital. Assim, vemos, uma análise sobre as
condições da Economia e a tentativa de revelá-la em seu âmago se mostra, enfim, como o
cerne da análise, na qual, assim, inserimos a crítica à Economia Nacional, a crítica à Economia
Política.
As condições relatadas por Marx durante a segunda metade do século XIX parecem,
na devida proporção e seguindo o desenvolvimento histórico adotado pelas forças produtivas
e pela realidade material, se aprofundar na sociedade contemporânea, tornando-se uma
realidade comum, normalizada e sobre a qual nada se pode fazer. A aceitação voluntária e a
superficialidade dos fatos econômicos e políticos, sobre as quais os indivíduos se encontram
e mantêm suas histórias de vida, permanecem imutáveis por meio da situação de alienação na
qual estes se encontram. Moldados à busca pela empregabilidade e às dificuldades do mundo
do trabalho – adotadas como situações “dadas”, às quais ao indivíduo só resta adequar-se;
resiliência, portanto –, aos sujeitos pesam as constantes crises, fruto do confronto entre si
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 205
próprios e os novos valores comumente adotados, mas nem sempre cooptados pelo próprio
indivíduo. Conforme destaca Alves (2011b, p.26),
A dinâmica histórica posta pelo novo metabolismo social do trabalho com a nova precariedade
salarial, instaura o que podemos denominar de “crise do trabalho vivo”, dentro da qual ele destaca “(1) a
crise da vida pessoal, (2) crise de sociabilidade e (3) crise de auto-referência humano-pessoal.
REFERÊNCIAS
Marx, K. (1980). O Capital – Crítica da Economia Política. (6a ed.) livro 1, tomo 1. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
Marx, K. (1996). O Capital – Crítica da Economia Política. (Coleção Os Economistas). São
Paulo: Nova Cultural.
Nascimento, C. A., Dillenburg, F. F., Sobral, F. M. (2015, fevereiro/maio). Teoria da
exploração e da superexploração da força de trabalho em O Capital (livro I) de Marx.
Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. (40). Disponível em <http://revista.
sep.org.br/index.php/SEP/article/view/108/116> Acesso em 16 mar. 2015
Sennett, R. (2011). A corrosão do caráter – Consequências pessoais do trabalho no novo
capitalismo. (16a ed.). Rio de Janeiro: Record.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 208
Conforme Fischer (2002), entre a década de 60 e meados dos anos 90, apontou-se a ne-
cessidade em estabelecer vínculos entre a gestão de pessoas e as estratégias da organização. A
visão era que os recursos humanos deveriam encaixar-se às políticas empresariais e os fatores
ambientais.
Desse modo, o desafio para a gestão de pessoas é como encarar cada pessoa, consi-
derando-a individualmente, e que maneira utilizar para gerenciá-la dentro desse ambiente de
diversidade e coletividade. Novas tendências e novos conceitos vêm sendo desenvolvidos e
o modelo de Gestão por Competências insere-se nesse cenário. Levando em consideração as
competências organizacionais e individuais, a Gestão de Pessoas por competências se propõe a
desenvolver e integrar pessoas em torno da estratégia, meta e objetivos organizacionais, a fim
de desenvolver e sustentar competências consideradas fundamentais à consecução dos objeti-
vos organizacionais.
competitivo de cada profissional. No passado, o foco era na tecnologia dos produtos e dos
processos visando sempre o aumento do lucro. As competências técnicas estavam em maior
evidência, hoje, de acordo com Banov (2010) o que confere um diferencial ao cargo são as
competências comportamentais, descritas como atitudes.
Para responder a essas perguntas foram analisadas algumas metodologias e técnicas que
subsidiam os subsistemas na Gestão de Pessoas, são elas: A Metodologia para mapeamento de
competências: Inventário Comportamental; a técnica de Seleção: Entrevista Comportamental; e
o instrumento de Avaliação de Desempenho: Escala de Classificação de Base Comportamental
(BARS).
Para alcançar esse objetivo, tais termos foram localizados nas obras que fazem referên-
cia ao contexto da Gestão de Pessoas, foram caracterizados os instrumentos que se intitulam
como “comportamentais”, em seguida, foram buscadas as descrições de “comportamentos”
em tais instrumentos, e foram postos sob a perspectiva Analítico-Comportamental, para tanto,
os fundamentos e conceitos da Análise do Comportamento foram apresentados e servirão para
embasar a análise. Metodologicamente, utilizou-se a Análise de Conteúdo, por meio da qual, o
analista busca categorizar as unidades de texto que se repetem inferindo uma expressão que as
representem (Carengato & Mutti, 2006).
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 210
Somam-se a isso dois fatos: fazer análises sob a perspectiva da Análise do Comporta-
mento, em especial, acerca do termo comportamental, de instrumentos que se intitulam como
comportamentais, significa adentrar na dimensão política e social da Análise do Comportamen-
to. E o questionamento revisa as bases teóricas e epistemológicas que a prática da Gestão de
Pessoas executa em seu dia-a-dia.
Deste modo, quando uma ciência conta com uma forte tradição experimental e reúne
uma comunidade em torno de conceitos e programas de pesquisa, raramente os pesquisado-
res se indagam sobre os pressupostos teóricos e filosóficos que estão em sua base científica
cotidiana. Diante de tais circunstâncias, o trabalho teórico perde sua centralidade para grande
parte da comunidade, com exceção daqueles que estão atentos ao permanente processo de (re)
elaboração conceitual inerente a qualquer sistema científico. Quando sob tais condições, certa
comunidade se volta para um problema novo, diferentes esforços vão sendo requeridos para a
formulação de uma nova resposta (Tourinho, 1999).
Inicialmente foi realizada uma breve revisão bibliográfica nas bases de dados científicas
Scielo e Lilacs. A busca foi feita a partir de enunciados que foram descritos segundo o objeto da
pesquisa. Na ordem de um mais específico até um menos específico, portanto mais abrangente.
Os enunciados foram: competências e inventário comportamental, competências e entrevista
comportamental, competências e comportamentos, seleção e competências comportamentais,
avaliação de desempenho e competências comportamentais, competências e gestão de pessoas,
competências e Psicologia Organizacional, listados na tabela a seguir.
TABELA 1- ENUNCIADOS BUSCADOS NAS BASES DE DADOS CIENTÍFICAS
Devido ao inexpressivo número de artigos que abordassem o tema mesmo que indireta-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 211
mente, e diante do fato de que de acordo com a busca empreendida, nenhum aborda a relação
entre a Análise do Comportamento e a utilização do termo “comportamental” nas práticas de
gestão de pessoas, não sob o mesmo recorte do presente estudo, optou-se então, por referenciá-
-lo teoricamente a partir de livros. Nos livros, foram localizados os termos “comportamento” e
“comportamental” nos contextos de Gestão de Pessoas.
Para fins de análise, serão criadas categorias que embasarão o exame sobre a deliberação
do uso do termo “comportamental” nos processos que envolvem o contexto Organizacional, ob-
jetivando analisar se tais termos enquadram-se nos pressupostos da Análise do Comportamento.
Essa unidade básica de análise foi formulada com o que de mais frequente se repetiu
na escrita dos autores, ao se referirem ao conceito comportamento. A partir da repetição dos
elementos que compõem a categoria comportamento, reuniu-se indicadores que sugerem ser
requisitos básicos para que se possa definir comportamento.
É importante frisar que uma vez proposta uma unidade básica de análise para o termo
Comportamento pode ir além do que delimitamos aqui; entretanto os autores aqui elencados
concordam que nossa unidade básica de análise apresenta o mínimo comum entre os autores
para classificar algo como comportamento.
Assim, a partir do que foi encontrado em comum entre os escritos dos autores nas pro-
duções publicadas na Revista Brasileira de Análise do Comportamento, o que era recorrente
quando se tratava de definir comportamento foi operacionalizado em categorias que embasarão
a análise posterior.
É necessário enfatizar, além do que se propõe este trabalho, também aquilo que não é
pretensão ou proposição. Logo, não se pretendeu nesse estudo caracterizar ou definir o que é
comportamento, diante da complexidade que seria tal empreitada, o que foi proposto então, foi
uma análise a partir do que é recorrente ao tratar-se de comportamento, entre os autores listados
na tabela abaixo (Tabela 3). Não é pretensão também discutir acerca das discordâncias presen-
tes entre as discussões dos autores, visto que as convergências, no que se refere ao conceito de
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 212
Carrara e Zilio (2013) trazem o termo relação como associado visivelmente ao conceito
de função, quando se trata de contingência. Os autores recordam o trabalho de Mach, na sua
tentativa de mudar os objetivos da ciência, da busca das causas dos fenômenos para a busca das
relações funcionais entre as variáveis que participam do fenômeno.
ta. Fala-se então que mudanças no ambiente são alterações que afetam o padrão (frequência,
topografia, duração) daquilo que o organismo faz e é a esse tipo de mudança a que se refere o
fazer do organismo.
Botomé (2013) afirma que se pode fazer referência àquilo que o organismo faz de uma
maneira descritiva das características físicas dessas ações, ou de uma maneira funcional por
meio das características das relações entre aquilo que o organismo faz, no ambiente no qual faz.
Por não ocorrer no vácuo, qualquer complemento que se acrescente ao verbo já configura uma
interação como parte da delimitação de um comportamento.
Todorov e Henriques (2013) afirmam que quando Skinner fala que os homens agem
sobre o mundo, modificam-no e são modificados pelas consequências de suas ações, ele está
falando de operantes.
Botomé (2013) afirma que inicialmente em 1938, Skinner afirmava que comportamento
era a parte da atividade total do organismo, já em 1969, Skinner salienta o papel das complexas
interações entre classes de estímulos antecedentes, classes de respostas e estímulos consequen-
tes às respostas de tais classes, o que passou a ser adjetivado como operante. Porém, mais que
um adjetivo, o termo operante traduz a síntese de uma descoberta sobre o que era entendido
como comportamento. Skinner (1969 citado por Botomé 2013) denominou resposta como com-
ponente ou instância de um operante, considerando eventos ambientais, tanto os que incluem os
que antecedem a ação do organismo e os que a sucedem.
Ainda conforme Botomé (2013) o termo operante, mesmo quando não explicitado, será
o tipo de comportamento ao qual serão feitas as referências no âmbito das contribuições da
Análise do Comportamento.
A partir do que foi encontrado em comum entre os escritos dos autores, no que se refere
ao conceito de comportamento para a Análise do Comportamento, foram operacionalizadas
categorias. Tais categorias não se propõem a definir comportamento, a proposição é no sentido
de circunscrever o conceito e delimitar o que minimamente deve-se considerar para referir-se
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 214
à comportamento.
Por meio das convergências e termos recorrentes discutidos, no que se refere a definição
de comportamento aqui elencada em categorias, feita por Todorov e Henriques (2013), Lazzeri
(2013), Carrara (2013) e Botomé (2013) referenciando-se também nos conceitos da Análise do
Comportamento explorados no presente trabalho, em especial o conceito de comportamento
operante, será feita logo adiante a análise sobre a utilização do termo comportamental nos mé-
todos e técnicas que se inserem no contexto da gestão de pessoas.
A terminologia “Gestão de Pessoas” é bastante abrangente e tem como missão dar nome
e identidade a um intenso processo de mudança que vem sendo desenvolvida nas práticas, po-
líticas e processos de gestão (Fischer, 2001).
Para Dutra (2008), a Gestão de Pessoas pode ser caracterizada como um conjunto de
políticas e práticas que podem permitir a conciliação entre as expectativas da organização e as
pessoas, a fim de que ambas possam realizá-las ao longo do tempo. Referindo-se às políticas
como princípios e diretrizes que conduzem decisões e comportamentos das pessoas em relação
à organização e às práticas como procedimentos, métodos e técnicas que possibilitam a imple-
mentação de decisões que norteiam as ações no âmbito organizacional e em sua relação com o
ambiente externo.
O mesmo autor enfatiza que o desafio que se lança para a Gestão de Pessoas é como en-
carar cada pessoa considerando sua individualidade e de que maneira gerenciá-la dentro desse
ambiente de diversidade. De acordo com Carbone et al (2001 citado por Brandão, 2009) a área
de Gestão de Pessoas desempenha papel fundamental no processo de gestão por competências.
Os diversos subsistemas (Avaliação de Desempenho, Recrutamento e Seleção, dentre outros)
podem promover ou induzir o desenvolvimento profissional.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 215
Uma das possíveis noções de competência trata da perspectiva integradora da qual fala
Brandão (2007). Gonczi (1999 citado por Brandão, 2007) defende que a competência é uma
associação de atributos pessoais ao contexto em que são utilizadas, ou seja, relaciona-se ao
desempenho da pessoa no trabalho. Desse modo, a competência é compreendida não somente
como o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes necessários à determinada atividade,
mas também como o desempenho expresso pela pessoa em determinado contexto, em forma de
comportamentos adotados e realizações decorrentes.
Assim, as competências humanas são provenientes das ações das pessoas diante das
situações com as quais se deparam (Zarifian, 1999 citado por Brandão, 2007). De acordo com
Fleury (2001), a competência do indivíduo não é um estado e não deve ser reduzida a um co-
nhecimento específico, a competência deve ser sempre contextualizada. Dessa forma, a noção
de competência aparece atrelada a verbos como: assumir responsabilidades, engajar-se, ter vi-
são estratégica. Na organização as competências devem agregar valor econômico para a orga-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 216
Brandão (2007) adapta o conceito de competência proposto por Fleury e Fleury (2001)
e Dutra (2004), ampliando o que descreve como “Componentes da competência humana”. Os
insumos representados pelos conhecimentos, habilidades e atitudes aparecem como geradores
de um desempenho profissional que é valoroso tanto para a pessoa que o produz quanto para a
organização para a qual trabalha. Tal desempenho, por sua vez é expresso pelos comportamen-
tos que a pessoa emite no trabalho e pelas consequências de tais comportamentos, na forma de
realizações (Gilbert, 1978 citado por Brandão, 2007).
Embora o autor supracitado enfatize que a divisão é meramente didática, já que compe-
tências se tratam do agrupamento entre conhecimentos, habilidades e atitudes, há a divisão entre
competências técnicas e comportamentais, a fim de viabilizar a implantação prática dos proje-
tos de Gestão por Competências. Nesse caso, competências técnicas são aquelas necessárias ao
profissional para que esse desempenhe seu papel. São expressas pelo C (conhecimentos) e pelo
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 217
Fischer (2001) afirma que a diferença entre conceito e moda é tênue em administração.
No que se refere ao novo modelo de gestão de pessoas, compreender a especificidade da produ-
ção e a disseminação do conhecimento no campo administrativo é necessário. A comprovação
de um novo conceito deve respeitar duas condições básicas, que são: teste do cientista e teste
do mercado. Com relação ao cientista, o conceito é verdadeiro quando resguarda estreita fideli-
dade com os pressupostos norteadores de seus estudos. Com relação ao mercado, comprova-se
sua validade como no caso de qualquer outra mercadoria, ou seja, pelo grau de aceitação e de
generalização desse conceito pelas empresas.
Desse modo, circunscrever o conceito de comportamento por meio dos escritos dos
autores especificados no Quadro 1, logo abaixo, foi uma das proposições desse trabalho, en-
quanto ferramenta para alcançar o objetivo de análise, a fim de sinalizar se as práticas falam de
Comportamento (senso comum) ou do Comportamento (constructo teórico Analítico Compor-
tametal).
QUADRO Nº
(Todorov & (Carrara & Zilio,
(Lazzeri, 2013) (Botome, 2013)
AUTOR Henriques ,2013) 2013).
CATEGORIA
O conceito de
relação implica a
caracterização de Qualquer
nexo, conexão, complemento
ligação, dependência. colocado em um
Organismos não É correto dizer que
Nesses termos as verbo já significa
vivem no vácuo comportamento é
relações expressam uma interação
O comportamento não é possível uma um elemento de
visivelmente uma como parte da
ação do organismo um a relação com
operante sempre associação ao conceito delimitação do
sem relação com o o abiente.(Todorov,
de função (Carrara comportamento,
como em relação à: ambiente (Todorov 2012 citado por
& Zilio, 2013). “Não por ser um
& Henriques, 2013, Lazzeri, 2013, p.
há como falar em processo que
p.77) 58)
comportamento em si não acontece no
mas em suas relações vácuo (Botome,
com o ambiente p. 36 2013).
(Carrara & Zilio,
2013, P.14).
O termo operante
Comportamento não Comportamento para Skinner
Comportamento não
está no organismo é aquilo que um inclui a noção de
é o que o ambiente
é parte daquilo que organismo faz e que o fazer do
O comportamento é aquilo que faz restando ser o
o organismo faz que possui uma organismo era
o organismo faz que o organismo faz
(Skinner, 1957/1978, ou mais funções uma operação
(Carrara & Zilio,
citado por Carrara & (Lazzeri, 2013, de mudança de
2013)
Zilio, (2013) , p. 76) p.63). seu ambiente
(Botome, 2013).
Os homens agem
Quando skinner Parece plausível sobre o mundo
profere que os sugerir que esta
Trata-se de modificam-no
homens agem (Análise do
algo emitido ou e são por sua
sobre o mundo Comportamento) se
realizado pelo vez modificados
(comportamento) ocupa das relações
organismo, em pelas
modificam-no entre as variáveis,
um momento e consequências
(efeito) e são quais sejam as
local específicos... de sua ação
Relações entre Antecedentes, modificados antecedentes, as
reações mudança (Skinner,
respostas, consequentes. por alterações consequentes e as que
no ambiente 1957/1978,
no ambiente intermediam essas
ao qual estão citado por
(consequência) ele condições típicas
associados Carrara & Zilio,
está falando em da tríplice relação
(Lazzeri, p.48, (2013); Todorov
operantes. (Todorov de contingências.
2013) & Henrique
& Henriques, 2013, (Carrara & Zilio,
p.77) 2013) (2013), Botome
(2013).
A seguir listamos os livros que foram a base da pesquisa dos instrumentos e metodolo-
gias que utilizam o termo “comportamental/comportamento” no âmbito da Gestão de Pessoas
(Tabela 2) e seguimos com a análise de cada instrumento ou método analisado.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 220
TABELA 2 - Tabela de livros utilizados (as informações completas constam nas referências)
O INVENTÁRIO COMPORTAMENTAL
De acordo com Todorov (2013), conforme o que já foi dito, organismos não vivem no
vácuo, não é possível que qualquer comportamento ocorra sem que haja uma relação com o
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 221
Segundo a categoria 4.2 “Comportamento é aquilo que o organismo faz”, não no sentido
de definição, já que não cabe qualquer tipo de reducionismo diante da amplitude e complexida-
de do termo “comportamento”, mas para denotar que o comportamento ocorre no organismo.
As sentenças representadas no Quadro 2 expressam ações do organismo, porém tais ações de-
vem ter uma ou mais funções conforme o que descreve uma das citações no Quadro 1, quadro
sintético das categorias. Dizer que comportamento é aquilo que o organismo faz não é descrever
comportamento como ação é situá-lo no organismo sem deixar de considerar as funções de tais
comportamentos.
Cabe analisar ainda que as sentenças expressam verbos sem complemento. Conforme
sinaliza Botomé (2013), o complemento do verbo é o que indica o que é contexto, se só apre-
sentam-se verbos sem complemento mais um aspecto que indica o Inventário Comportamental
como descritor de ações, atividades e não de comportamentos de acordo com o referencial da
Análise do Comportamento. Outro instrumento que apresenta as mesmas características é a
Entrevista Comportamental; a seguir, ela será apresentada e posta à análise.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 222
A ENTREVISTA COMPORTAMENTAL
Feitas essas ressalvas, toma-se agora as categorias. A primeira pergunta a ser feita é: a
Entrevista Comportamental aborda comportamentos segundo o referencial da Análise do Com-
portamento? A análise da primeira categoria, 4.1 “O comportamento operante sempre como em
relação à”, traz a noção do papel desempenhado pelo ambiente quando se trata de comporta-
mento.
A partir do que foi explanado sobre Botomé (2013) ao se referir ao efeito partindo dos
escritos de Schick, e questionando o que deve ser considerado efeito em relação ao comporta-
mento, se é o que é produzido ou o que se segue a uma determinada propriedade de uma classe
de atividades, ou seja, em termos contingenciais ou contíguos, respectivamente. Analisar o
efeito é perceber e descrever as relações entre resposta e consequência, no caso da entrevista
comportamental, deve-se levar em consideração a característica circunstancial de que fala Bo-
tomé (2013) e perceber contingencialmente essas relações.
De acordo com a Categoria 4.2 “O comportamento é aquilo que o organismo faz”, ca-
racterizando esse fazer como promotor de mudanças no ambiente (Botomé, 2013). As sentenças
não aludem às mudanças no ambiente, no que se refere a tratar de consequentes. Assim não
condizem com o que sinaliza a Categoria 4.2.
Portanto, foi possível analisar que a utilização do termo comportamental vem sendo
difundida especialmente nos instrumentos e metodologias que objetivam avaliar e mensurar
comportamentos. De certo modo, tal fato sinaliza para as transformações que ocorreram no
âmbito das organizações.
e as competências comportamentais estão cada vez mais em ênfase. Nesse cenário, o modelo
de Gestão por Competências possibilita um olhar para as competências individuais e organiza-
cionais e operacionaliza instrumentos que se propõem a avaliar e mensurar comportamentos.
Tais instrumentos por se intitularem comportamentais, sugerem uma teoria por trás da
denominação. De acordo com o exposto, a Análise do Comportamento não é essa teoria. Os
instrumentos, Inventário Comportamental e Escala BARS não expressam comportamentos de
acordo com as categorias vistas e, portanto, não estão sob o referencial Analítico Comporta-
mental. Já a Entrevista Comportamental fornece meios que podem indicar basicamente um
comportamento, com a utilização do acrônimo CAR, o contexto, a ação e o resultado, que pode
ser a consequência, se postos circunstancialmente, um estabelecendo relação com o outro, sina-
lizam a possibilidade de indicar um comportamento, de acordo com as categorias apresentadas
neste trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como a definição para o termo comportamento para a própria comunidade verbal com-
posta por analistas do comportamento é passível de questionamentos e correções, a busca por
uma definição, ou convergências no que se refere ao termo, foi empreendida. Os autores citados
para esse exame convergiram no fato de que o comportamento deve ser minimamente descrito
pela relação entre as variáveis ou a relação entre as partes de uma unidade comportamental, a
descrição de resposta, atividade, ação é completamente diferente da descrição de comportamen-
to que envolve a relação entre contexto, ação e consequência.
Visto que, mesmo que não se faça referência explícita com relação ao termo operante,
quando se trata de comportamento, é esse tipo de comportamento a que são feitas as contri-
buições da Análise do Comportamento e se não se trata de operantes, não se pode falar em
Análise “do” Comportamento, pode-se falar então de Análise “de” Comportamento, o conce-
bendo como atividade, àquilo que verbos e tempos verbais, como correr e andar descrevem, ou
quaisquer formas que aludem a comportamentos para o senso comum e não para a comunidade
de Analistas do Comportamento.
Portanto, pode-se afirmar que nos contextos de Gestão de Pessoas, no que se refere aos
instrumentos que se propõem a mensurar e avaliar comportamentos, sob a denominação “com-
portamental”, não há correspondência clara com a Análise do Comportamento, quando há algo
que indique tal correspondência, como no caso da Entrevista Comportamental, não é de manei-
ra direta, clara. Pode-se supor, então, que façam Análise “de” Comportamento, em seu sentido
geral, no âmbito do senso comum.
O presente trabalho sinaliza para a necessidade de mais estudos na área, abre caminho
para novas asserções que busquem a correspondência entre não somente a Análise do Compor-
tamento, mas qualquer outra teoria que embase as metodologias e instrumentos que se propõem
a mensurar e avaliar comportamentos. Aponta-se ainda à necessidade de criação ou adaptação
desses instrumentos à teorias que os embasem enquanto constructos metodológicos. Sob a ótica
da Análise do Comportamento outras possibilidades podem ser tecidas, enquanto comunidade
científica outras pesquisas podem ser empreendidas no sentido de propor novos instrumentos,
adaptá-los ou validá-los a partir da ótica Analítico Comportamental.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Esse texto é fruto de reflexões acerca do papel da categoria social “tempo de trabalho”
nos estudos sobre o mundo laboral. O tempo é uma categoria que se faz presente de maneira
marcante durante toda a vida e se revela essencial na relação do homem com o mundo. É
evidente que o tempo se configura como elemento importante na organização da sociedade e
da vida. Diversas são as temporalidades, entendidas nesse trabalho como sendo equivalentes ao
tempo, que compõem o quadro temporal social. Segundo Sue (1995), a história foi marcada por
distintos períodos nos quais a estruturação social tinha uma evidente representação temporal.
Na modernidade, o tempo de trabalho despontou como esse tempo dominante, em torno do qual
se organizam as outras temporalidades.
Segundo Aquino (2007), tem-se vivenciado nos últimos séculos, uma sociedade do
trabalho na qual essa atividade é a orientadora da organização social ocidental, reconhecendo
no referencial temporal um mediador dessa estruturação. A industrialização proporcionou
uma ruptura na questão do trabalho e do tempo. Segundo Aquino (2003), com a introdução
do industrialismo, as atividades laborais passaram a ser controladas pelo tempo. Sobre essa
transformação, Friedmann e Naville (1973) reconhecem que a industrialização e a empresa
capitalista subvertem a relação entre tempo e trabalho, que tinha na agricultura e nos grêmios
e ofícios um modelo de tempo autônomo e natural, se estabelecendo com o trabalho como a
medida do tempo. Passava, no período industrial, a se configurar o tempo como medida do
trabalho. Segundo os autores, essa ruptura é responsável pela transformação do trabalho em um
conjunto de gestos funcionais e impessoais.
trabalho através da jornada laboral como a materialização de sua vivência, demonstrando o quão
versátil é o estudo acerca do tempo de trabalho ao ser analisado por perspectivas diferentes.
TEMPO DE TRABALHO
Pensar sobre o tempo é pensar sobre a definição de mundo e de homem. O mundo torna-
se mundo a partir da subjetivação que o homem lhe concede, através de vivências e da ação do
homem sobre ele, aqui identificada como trabalho. Observam-se relações estabelecidas entre
tempo e mundo na dinâmica das quatro estações, no decorrer de dias e noites, nos determinantes
de ciclos naturais, na evolução biológica da fauna e do homem, e em vários outros exemplos.
Assim, percebe-se o modo em que o mundo foi e continua sendo transformado pela intervenção
do tempo e, também, a transformação deste pela ação do homem em sua relação com o ambiente.
De acordo com as teorias dos Tempos Sociais e alguns de seus expoentes, Sue (1995) e
Pronovost (1996), cada sociedade, em determinado momento histórico, tem uma atividade social
que regula seu funcionamento e estruturação e, por conseguinte, determina os seus referentes
temporais (Aquino, 2007), como explanado sucintamente na introdução. Assim, os sentidos e
significados atribuídos ao tempo, à forma de quantificá-lo e à experiência de qualificá-lo são
produzidos pela atividade social dominante, como por exemplo: a contemplação, a religião ou
o trabalho.
Como dito, a vida em sociedade nem sempre se estruturou como nos modos atuais,
o avanço da ordem social reflete a evolução nos significados atribuídos ao trabalho e ao
tempo e estabelece relações entre eles, justificando a análise da história para o entendimento
da origem e manutenção do tempo de trabalho. A sociedade primitiva conforma o primeiro
esboço de organização social, as sociedades pré-letradas (Ramos, 2008). A sociedade primitiva
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 232
é marcada pela a homogeneização das esferas: a economia, a religião, a política e o trabalho são
interdependentes e reproduzem o meio de produção destinado a sobrevivência da comunidade em
geral. As atividades eram coletivas, onde a noção de tempo era ligada a natureza, passivamente
mediada pelos ciclos naturais: dias, noites e estações do ano determinavam os modos de
produção agrícola, desse modo o homem tinha períodos (cíclicos, impostos pelos movimentos
naturais) de trabalho intenso e períodos de ociosidade (Mello, Fugulin & Gaidzinski, 2007).
A Antiguidade Clássica é marcada pela perda das culturas de subsistência e pela criação
da propriedade privada e das classes sociais (Oliveira, 2003). De acordo com Canadell (2004),
não exista, ainda, uma só palavra que conceituasse e se traduzisse por tempo, este era interpretado
como vida cósmica (Canadell, 2004) parte de um fluxo maior, e fenômeno de reflexão de grandes
filósofos como Enéia e Zenão. O trabalho era visto na Antiguidade Clássica fundamentalmente
como uma atividade torturante: na civilização grega, grandes pensadores como Aristóteles,
exaltavam o dualismo metafísico entre corpo-mente, valorizando apenas o exercício intelectual
e legitimando a escravidão como um resultado da hierarquização dos valores, sujeitando os
escravos à condição de “um bom instrumento de trabalho” (Ramos, 2008).
Como dito anteriormente, não existia uma unidade de análise relacionada ao tempo,
a referência temporal se distinguia entre a medida do tempo Kronos, a longitude da sombra
projetada pelo sol; Kairos, a qualidade própria de cada momento temporal; e Aion, a duração
da vida, o tempo cósmico sem começo e nem fim (Canadell, 2004). Nas palavras do próprio
Canadell, “la combinación de estas três dimensiones temporales configuraba un <<mundo>>,
una morada, es decir, un lugar donde convivían la presencia y la ausencia” (p. 23). A junção
dessas três dimensões representava a síntese do que hoje entendemos por tempo (Elias, 1998).
Em razão disso, o trabalho era tido como uma relação de submissão e fidelidade, em
troca de proteção e da oportunidade de estar inserido no sistema de produção da época, ou seja,
no sistema de produção ruralizado. Era através do labor que se alcançava a salvação. Dar-se,
assim, um princípio a visão linear do tempo: “la linealidad del tiempo respondia al carácter
salvífico que ese tiempo había adquirido con la llegada de Cristo: el tiempo renovado debía
conducir a la humanidad hacia la plenitude” (Canadell, 2004, p. 26). Essas transformações
começam a ocorrer durante a Idade Média – pautadas na ideia da vida como um caminho
irreversível ao alcance da salvação – e intensificadas com o advento do Protestantismo e pela
abertura à produção do conhecimento científico, desvinculando, paulatinamente, a concepção
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 233
O tempo passa a medir as atividades de produção, passando a ter valor de troca, ou seja,
transformando-se em moeda e objeto de disputa e negociações. (Aquino, 2007). Ao controlar
o trabalho a temporalidade de caráter mecânico repercute na organização do tempo social – a
organização temporal, agora, gira em torno do tempo industrial e o relógio é a representação
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 234
máxima da industrialização e dos seus efeitos na composição do tempo social (Aquino, 2003) –
por isso, intitulou-se a Idade Moderna de “sociedade do trabalho”, por este assumir o lugar de
atividade social dominante e estruturante da ordem social.
Assim, o trabalho é guiado pelas relações capitalistas que lhe atribuíram características de
“assalariado, controlado, fragmentado por tempos e movimentos, condicionado à emancipação
humana, muitas vezes à precarização e à alienação” (Faria & Ramos, 2014) mantendo sua
hegemonia desde o século XIX. Ao longo do século XX e princípio do século XXI, as sociedades
têm mantido uma ligação de dependência com a globalização e a informatização e vem ao
encontro da cultura do ter que apresenta como pano de fundo a liberdade de escolha, ou seja, “a
produção de riquezas e a fruição de bens de consumo têm como condição inicial a liberdade do
indivíduo dos tempos democráticos” (Mattos & Castro, 2008, p. 154).
A máquina de lavar significa tempo livre para a dona de casa, tempo livre virtual transformado
em objeto para ser vendido e comprado (tempo livre que eventualmente porá a render vendo a TV e a
publicidade que nela se fará para outras máquinas de lavar). (p. 205)
Para Teixeira (2010), o trabalho é a atividade humana vital, porém, não é a única, isto
é, todas as manifestações autenticamente humanas (como a cultura e as festividades, a arte e a
ciência) devem ser levadas em consideração, pois o homem é a totalidade dessas e não somente
expressão de sua atividade vital. No entanto, a dominância do trabalho na vida das pessoas
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 235
ocorre de forma intensa e durante tanto tempo que ele, acaba por, se confundir com a própria
vida, impossibilitando a distinção entre o tempo de trabalho e de não-trabalho.
Na sociedade moderna, segundo Dal Rosso (2006), o trabalho em sua forma assalariada,
mais especificamente no emprego, se constituiu como elemento central. Em consequência, a
jornada de trabalho, que se configura como tempo concebido para o trabalho, ganhou relevo. É
importante ressaltar que o conceito de trabalho nas sociedades capitalistas, ao longo do século
XX, está fortemente vinculado ao conceito de emprego. Assim, ao se falar em jornada de
trabalho, implicando inclusive na questão contratual e salarial, é ao vínculo empregatício que
se faz referência, pois o trabalho vai além do emprego.
que o quadro temporal do sujeito trabalhador se dividia em tempo de trabalho e de não trabalho
somente (Aquino, 2003), sendo este último um tempo de descanso fisiológico para recuperar a
força laboral e torná-la renovada para a nova escala de produção.
Pensar em um quadro temporal que apresentasse outras atividades além das laborais era
praticamente impossível e a própria concepção de jornada de trabalho, com horários fixos, era
uma ideia sem sentido, haja vista que não existia uma regularidade mecânica em sua realização
e o tempo de trabalho era levado ao máximo das capacidades humanas e da viabilidade dada
pelas condições ambientais. Desse modo, a sincronização e rigidez temporal só eram controladas
em relação ao fluxo (intenso) da produção (Gasparini, 1996), e não na delimitação da jornada
laboral.
Mesmo com a fixação de horários que demarcavam a jornada laboral, o tempo para o
trabalho continuava extenso e desumano. O tempo de trabalho, materializado nas jornadas, se
configurava como o grande fator de exploração do capital sobre os trabalhadores, de maneira
tal que alguns autores, como Marx (1976), afirmaram que a jornada de trabalho usurpa o tempo
que o corpo necessita para se desenvolver e manter-se são.
Com o surgimento de novas leis e com a intensificação das lutas em torno da redução
da jornada de trabalho, esta foi, progressivamente, sendo reduzida. Paralelamente à redução do
tempo de trabalho diário e mensal, a luta dos trabalhadores introduzia novas demandas relativas
a férias, descansos pagos, aposentadoria (aspectos ligados direta ou indiretamente à esfera
temporal), entre outras. As horas de trabalho, contudo, permaneciam como principal ponto
de reivindicação do movimento operário em vários países do planeta (Aquino, 2003). Nesse
sentido, vale lembrar o ideal da jornada de oito horas, que se tornou um ícone do movimento
trabalhista internacional, sendo acolhido em algumas legislações e tornando-se realidade em
diversos países durante as primeiras décadas do século XX. Neste período, o Estado apresentava-
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 237
se como grande interventor e pacificador das questões trabalhistas, colocando o trabalho como
mediador de direitos e garantias sociais. A questão do tempo dedicado a ele era encarada como
principal ponto de negociação entre os trabalhadores e o capital (Fonseca, 2011). Percebe-se
uma mudança na concepção da questão da redução da jornada laboral. Como já destacamos
através de Aquino (2003), em um primeiro momento da sociedade industrial, esta questão teria
uma motivação quase vital, de recuperação fisiológica. Com o desenvolvimento industrial
e o amadurecimento do movimento operário ela se transformou, por sua vez, em um objeto
legítimo e privilegiado de negociação entre trabalho e capital. E atualmente? Atribui-se às lutas
que versam a jornada de trabalho a qual objetivo?
Com a segunda guerra mundial, o processo de redução das jornadas, que desde meados
do século XIX vinha ocorrendo de maneira gradativa, sofre um período de leve estabilização
(Jáuregui & De La Puerta, 1998). No período pós-guerra, essa estabilização no número
de horas trabalhadas continua incentivada, sobretudo pela alta demanda de crescimento
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 238
econômico dos países nesse momento. A tensão em torno da luta pela redução das jornadas
entre trabalhadores e capital foi, nesse momento, intermediada pelo Estado (principalmente
nos países industrializados), que, como já exposto, tinha como grande marca nesse período
seu caráter social. No entanto, este não deixava de focalizar seus esforços no desenvolvimento
econômico e no progresso, que passaram a ser metas essenciais a serem cumpridas frente à
crescente competitividade produtiva no cenário mundial.
É interessante notar que ao assumir estes dois papéis, defensor dos direitos sociais
e incentivador econômico, o Estado coloca esses dois processos, que em outros momentos
históricos pareciam antagônicos, como sendo processos concomitantes, ratificando o ideário
de que o progresso e o desenvolvimento econômico eram imprescindíveis para a manutenção
e desenvolvimento do Estado de Bem-estar. O processo de redução cronométrica da jornada é
então estancado, em decorrência desse novo contexto internacional, mas o trabalho e os direitos
sociais a ele associados, juntamente com a propagação do ideário do progresso, davam o sentido
necessário à manutenção da sociedade salarial.
Em meio a esse processo de estabilização das horas dedicadas ao trabalho por dia – a
chamada jornada de trabalho habitual – ocorreu o surgimento de novos direitos trabalhistas,
principalmente nos anos 1960, que tiveram impacto direto sobre a duração do tempo dedicado
ao trabalho, como o aumento quantitativo e generalização das férias pagas; definições de
parâmetros para a aposentadoria; a exigência de uma melhor qualificação para o trabalho, que
aumentava o tempo de formação; e a conquista do fim de semana como tempo liberado do
trabalho (Aquino, 2008).
A introdução desses direitos que reduziam a jornada laboral em uma escala de vida foi
fundamental na constituição dos quadros temporais. Primeiramente pelo próprio conceito de ser
uma redução em “escala de vida”, o que deixa claro que esse processo não se restringia somente
ao número de horas trabalhadas ao dia, mas a um quadro mais amplo, que transformava a
estruturação temporal ao longo de toda uma vida. Além disso, esses tempos liberados do trabalho
passariam a ser temporalidades, por excelência, vinculadas ao exercício de outras atividades,
como o lazer e o consumo, representando as outras atividades humanas (Teixeira, 2010).
Antes desse período, segundo Aquino (2003), já se pensava na redução da jornada laboral
como forma de liberar os indivíduos do trabalho para que estes pudessem gozar de atividades
ociosas, mas, nesse período e principalmente nas sociedades que vivenciaram o Estado de
Bem-estar, o tempo livre passou a ser um grande fator de negociação, sendo privilegiado em
detrimento de aumentos salariais ao se pensar em redução do tempo de trabalho. Devido a
essa valorização do tempo livre, alguns teóricos, como Gorz (2007) e Offe (1984) passaram a
pensar e teorizar sobre a perda da centralidade do trabalho e o surgimento de uma sociedade
do ócio. Aquino (2003) aponta, contudo, que nem todas as sociedades alcançaram os padrões
de bem-estar que permitiam trocar a retribuição salarial por tempo livre. É importante destacar,
porém, que o próprio modelo de sociedade de bem-estar, ao longo do tempo, foi se deteriorando
frente a diversas crises econômicas, que produziram diversas transformações sociais e tiveram
impacto especial no mundo do trabalho.
É interessante notar que até os anos de 1970 a redução da jornada de trabalho era
exclusivamente um objeto de negociação de tempo e hoje se configura como um instrumento
político e econômico que visa à diminuição do desemprego, agindo como um gerador e catalisador
de empregos. Vale ressaltar que os outros sentidos atribuídos ao processo de redução do tempo
laboral coexistem, porém, hoje, este novo papel atribuído a este processo se apresenta de uma
forma mais predominante. Aquino (2003) ratifica essa questão apontando que o reconhecimento
da dificuldade de criação de empregos, em um contexto marcado pelo desemprego estrutural,
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 240
tem transformado a redução das jornadas laborais, pelo menos no âmbito discursivo das políticas
neoliberais, em um elemento chave de enfrentamento do massivo desemprego.
O desemprego vem sendo um dos pontos centrais que marcam a sociedade capitalista
contemporânea, porém esse elemento faz parte de um quadro mais amplo de transformações
no campo do trabalho. Na contemporaneidade o campo do trabalho vem sofrendo diversas
mudanças, se configurando de uma maneira diferenciada da, até então, forma vigente – modelo
temporal fixo, marcado pela regularidade, caráter mecânico e sincronicidade – apresentando
modos de contratação e tempos de trabalho mais flexíveis, marcados por um processo gradativo
de precarização, no qual direitos e garantias a ele vinculados são perdidos. Este cenário muda
o próprio sentido da atividade laboral. Segundo Aquino (2003), o debate em torno das horas
trabalhadas é realizado, atualmente, em um cenário onde a estabilidade e as garantias sociais
não são generalizadas. O trabalho está se transformando e requer uma nova abordagem dentro
desse contexto socioeconômico distinto.
questionar acerca do seu tempo de trabalho, como é a sua jornada laboral – sendo entendida como
produto e produtor das condições de trabalho enfrentadas – e quais foram as transformações
ocorridas com a regulamentação da profissão.
Como pressuposto de trabalho, por essa ser uma profissão cheia de peculiaridades
implicadas no tempo – jornada laboral, geralmente, medida por unidades que se diferenciam
daquelas constituídas no seio da industrialização, como por exemplo, dias ou quilometragem;
e tempo externo, tempo interno e de distribuição (Gasparini, 1996) diferente das demais
profissões que seguem às 40 horas de trabalho semanais dispostas em lei –, defendeu-se
que a profissão, devido a sua peculiar organização do trabalho e às precárias condições de
trabalho, especificidades da realidade brasileira, conjuntura um quadro de jornadas de trabalho
extenuantes que ultrapassam a delimitação legal proposta em Lei Nº 13.103 (BRASIL, 2015),
assim, a regulamentação da profissão ficou mais evidente no âmbito jurídico e de discussão, do
que na práxis dos caminhoneiros.
A luta pela redução da jornada de trabalho se mantém viva nos dias atuais, mesmo
com sentidos e concepções diversas das primeiras reinvindicações. No Brasil, após um período
de latência no que se refere a manifestações pela redução da duração do tempo de trabalho,
o movimento de algumas categorias profissionais chama a atenção, é o movimento pela
regulamentação de uma jornada de 30 horas semanais. Dentre os profissionais que lutam pela
jornada de 30 horas se encontram os psicólogos.
A realização dessa pesquisa teve como objetivo investigar o que pensam os psicólogos
sobre o processo de luta pela redução da sua jornada de trabalho, considerando as vivências
dessas jornadas de trabalho e os impactos do veto sobre essa questão.
A análise dessa questão foi realizada à luz do movimento histórico pela redução da jornada
de trabalho, pois, segundo Alonso (1999) deve-se buscar situar e contextualizar historicamente
a enunciação, encontrando nos discursos um modelo de representação e de compreensão do
texto concreto em seu contexto social e histórico, entendendo que, no que as categorias tempo
e tempo de trabalho, como aponta Elias (1998), são conceitos bastante naturalizados e que pelo
caráter natural, externo e objetivo, para Cardoso (2009), o tempo tornou-se um símbolo universal
e praticamente inquestionável. Desnaturalizar o conceito de tempo e tomá-lo como um conceito
social foi, assim, parte primordial desse trabalho. A interpretação das entrevistas ressaltou a
grande fragmentação da categoria profissional analisada, o que possibilita a individualização
dos profissionais, que não chegaram a participar da luta pela redução da sua jornada de maneira
coletiva. Além disso, foram identificadas nas falas a naturalização da precariedade da profissão
e uma assimilação do discurso produtivista, advindo, sobretudo, da difusão da ideologia
neoliberal, na qual os profissionais buscam através de si mesmo, modificações pontuais para
amenizar a situação precária do seu trabalho, no caso dos psicólogos, procurando um outro
trabalho e buscando reduzir sua jornada laboral. A busca pela redução da jornada de trabalho,
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 244
dessa forma, parece servir mais à intensificação das relações de exploração, do que possibilitar
a emancipação desses trabalhadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi explanado ao longo do texto, após a Revolução Industrial o tempo passou a
controlar o trabalho, e concedeu a este o lugar de agente central na estruturação social, ficando
conhecido como tempo de trabalho. O tempo em que o trabalho é a atividade social dominante
é, ainda hoje, caracterizado pelas jornadas laborais. No entanto, novas características têm
alcançado relevância, como por exemplo: mudanças nos postos de trabalho, novas unidades
de medida da jornada laboral, terceirização, flexibilização e a precarização em diversos níveis.
Ainda se ressalta o aspecto em comum às lutas por mudanças nas jornadas laborais,
referente ao tempo de trabalho, que perpassa o âmbito individual – as implicações subjetivas
de impacto físico e mental – e de âmbito social – o tempo de trabalho dominante e estruturante
da ordem social.
Ter como objetivo a análise desses apontamentos subsidiam a proposta desse texto, no
qual atua aliando construção teórica, envolvimento prático e técnico na produção e multiplicação
de conhecimentos da Psicologia Social do Trabalho.
Núcleo de Psicologia do Trabalho: Duas décadas de história 245
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SOBRE OS AUTORES
Possui interesse nas seguintes áreas: Psicologia Social, Psicologia do Trabalho, Políticas Pú-
blicas, Temporalidade. Desenvolve trabalhos com os seguintes temas: Tempo de trabalho e
lutas em torno da jornada laboral, Juventude e mercado de trabalho, Trabalho: marginalização
e inserção social, O trabalho do psicólogo: Formação e atuação dos profissionais da Psicologia.
ção clínica em Gestalt-terapia pelo Instituto Gestalt do Ceará. Tem experiência nas áreas de
psicologia social e do trabalho e psicologia clínica com estudos voltados para psicologia do
trabalho e organizações, psicologia institucional enfocando temas como: Trabalho e Subjetivi-
dade, Políticas Públicas e Cidadania, Saúde e Trabalho. Atualmente é professor dos cursos de
psicologia e serviço social da Faculdade de Ciências Aplicadas Dr. Leão Sampaio.