Mais de duas décadas depois, os historiadores chamariam aquele inverno,
ironicamente, de “O Estopim”. Piadas de mal gosto seriam feitas, pois, após aquele inverno, o Chanceler Adolf Hitler, se ergueria ao poder alemão. Como o inverno que antecedeu aquele pavoroso acontecimento foi o pior de quase todos os tempos, várias pessoas brincariam que o gelo esfriou os corações dos homens, de maneira que eles puderam aguentar a crueldade que se seguiria após aquela estação. Era óbvio, que Charles Harrison, deitado em sua pequena cama, jamais pensaria desta forma, sendo que o partido nazista não havia sido formado ainda, e ele não havia estudado história ultimamente, de forma que sabia muito pouco sobre a Primeira Guerra, e a iminente eleição que aconteceria na Alemanha dali a pouco tempo. Naquele momento, a única coisa que realmente preocupava Charles, era descer de seu pequeno apartamento ao térreo, onde um pequeno bar clandestino se instalara o subsolo do prédio, para conseguir um pouco de conhaque para se esquentar e para deixar sua mente um pouco mais enevoada, permitindo-o dormir tranquilamente somente por uma noite. Além do prédio ser antigo, com suas paredes insistentemente barulhentas, os vizinhos daquele lugar, começaram a incomodá-lo. De uma hora para a outra, o quieto estudante do 303 havia decidido ficar acordado estudando até altas horas da noite, deixando que a luz da lamparina se infiltrasse por meio das madeiras e iluminassem o quarto de Charles, mantendo-o acordado. Não obstante, um novo vizinho do andar de cima fazia reformas em seu quarto, batendo o martelo ritmicamente, seguindo o mesmo padrão: Três pequenas marteladas rápidas, três longas e mais três curtas, parando em intervalos regulares. Logo depois, o homem andava pelo seu quarto deixando que as madeiras rangessem, para novamente começar novamente a sequência. Para piorar, seu melhor amigo, Harry Oakwood dormia no quarto da frente. O jovem bebera demais e agora ria e cantava para si mesmo no quarto, gritando injurias, e amaldiçoando a vida. Charles não ficava de certa forma, irritado com seus colegas. Estava ficando velho, e já percebera que nenhum deles fazia estas irritantes coisas por maldade. O universitário tinha de estudar. O homem do andar de cima, tinha de consertar o chão, e Harry fazia bem de beber um pouco de vez em quando. A vida daqueles dois eram duras demais. Charles era um homem frio e sem vida, que arranjava trabalhos em becos escuros ou mansões glamorosas lutando por poucas libras, para que comprasse um cobertor em frangalhos para os invernos frios, pão e manteiga, e uma garrafa de conhaque. Dormia em beirais nas ruas e descascava batatas em qualquer restaurante para que ganhasse uma refeição grátis na hora do almoço. Aos trinta, decidira se manter na gloriosa mansão Oakwood por algum tempo. O pai de Harry lhe designara como cocheiro e Charles sempre amara animais. Ficara por lá durante dois anos, e foi onde conhecera Harry. O garoto tinha somente sete anos na época, e considerara Charles um tipo de herói. O homem fétido e meio bêbado sempre lhe trazia doces, e de vez em quando deixava que bebesse conhaque de sua garrafa. Quando o pai de Harry batia em sua esposa, e os dois gritavam de maneira voraz, Charles cedia espaço em meio a palha do estábulo, para que Harry se deitasse junto dele. Harry nunca lembrava da noite na qual seu pai o espancara até deixá-lo sem consciência. Não se lembrara também, de quando Charles o carregara nos ombros até um médico gritando por ajuda. Harry somente se lembrava do velho bêbado que sentara ao lado de sua cama e amorosamente esperou por 7 meses por sua recuperação, trabalhando que nem um escravo para pagar o caro tratamento. Desde aquela época, Charles lhe ensinara tudo o que sabia, e o adotara como filho. Ensinou o garoto a roubar, ludibriar, esmolar, escalar, cuidar de ferimentos leves e desaparecer em meio a multidão. Quando o garoto cresceu, ensinou-o a conquistar garotas, encontrar os melhores bares e diferenciar bebidas falsificadas das de real qualidade. Em troca, Harry ensinou Charles a ler, ensinou sobre a aristocracia, sobre os prováveis lugares onde se guardavam dinheiro nas grandes mansões. Explicou ao seu pai adotivo sobre empréstimos, sobre transações de dinheiros e formas de investimentos. Incontáveis noites as quais os dois escalaram os prédios e montaram acampamentos entre os telhados e viram as estrelas. Incontáveis noites nas quais os dois não conseguiram dormir pelo cortante frio, e contavam entre si histórias de bar e cama, rindo e tomando conhaque. Charles tinha cinquenta anos, e mesmo assim, desejava como uma criança, que aquela vida com Harry jamais acabasse. O garotinho de sete anos, e que agora tinha vinte e sete, ele rezava sobre o terço que mantinha desde a infância para que seu filho parasse de crescer e que nunca percebesse o quão ruim era aquela vida.