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YURI WICHER DAMASCENO

Conversões e negociações: um estudo dos relatos de


missionários protestantes da Church Missionary Society em
Uganda-África (1876–1890)

ASSIS

2015
2

YURI WICHER DAMASCENO

Conversões e negociações: um estudo dos relatos de


missionários protestantes da Church Missionary Society em
Uganda-África (1876–1890)

Dissertação apresentada à Faculdade de


Ciências e Letras de Assis – UNESP –
Universidade Estadual Paulista para a obtenção
do título de mestre em História (Área de
Conhecimento: História e Sociedade)

Orientador(a): Profª Drª Lúcia Helena Oliveira


Silva

ASSIS

2015
3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP

Damasceno, Yuri Wicher


D155c Conversões e negociações: um estudo dos relatos de mis-
sionários protestantes da Church Missionary Society em
Uganda-África (1876-1890) / Yuri Wicher Damasceno. - As-
sis, 2015
115 f. : il.

Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras


de Assis – Universidade Estadual Paulista.
Orientador: Drª Lucia Helena Oliveira Silva.

1.Missionários. 2. África Central - Historia - Séc. XIX.


3. Uganda. 4. Protestantismo. I.Título.

CDD 266
4

AGRADECIMENTOS

Dedico este trabalho a todos aqueles que estiveram ao meu lado com paciência e
compreensão, assim, obrigado aos meus genitores Emílio e Maria Teresa que sempre me
incentivaram e me legaram todos os valores que carregarei por toda a vida, à minha irmã
Yasmin que partilha comigo esse mesmo carinho e atenção, à minha orientadora Professora
Doutora Lúcia Helena Oliveira Silva por todos os ensinamentos acadêmicos e pessoais, à
minha companheira Renata da qual muitas horas tomei e aos amigos que sempre estiveram ao
meu lado em incentivo.
5

DAMASCENO. Yuri Wicher. Conversões e negociações: um estudo dos relatos de


missionários protestantes da Church Missionary Society em Uganda-África (1876–1890).
2015. 115 f. Dissertação (Mestrado em História). – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015.

RESUMO

Trabalhamos a partir do conceito de representações utilizados pela “Nova” História Política


que foi utilizado na compreensão dos relatos de missionários protestantes da Church
Missionary Society liderados por Alexander Mackay, que atuaram na região central da África
durante o final do século XIX (1876-1890), engajados em um projeto evangelizador para
angariação de novos convertidos, principalmente a partir da análise da fonte primária The
Wonderful History of Uganda publicado por Joseph Dennis Mullins em 1904 após a reunião
de uma série de relatos produzidos no período utilizado como recorte temporal. O trabalho
visa reconhecer e explanar a voz dos africanos suas atuações enquanto resistentes e
negociadores do processo que levou à incursão da religião cristã protestante no território do
antigo reino de Buganda.

Palavras-chave: Missionários. África. Uganda. Protestantismo.


6

DAMASCENO. Yuri Wicher. Conversions and Negociations: a study of protestant


missionaries from Church Missionary Society in Uganda-Africa (1876–1890). 2015. 115 f.
Dissertation (MA in History). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015.

ABSTRACT

We work from the concept of representations used by the “New” Political History that was
used in the understanding of Protestant missionaries of the Church Missionary Society reports
led by Alexander Mackay, who worked in Central Africa during the late nineteenth century
(1876-1890 ), engaged in an evangelizing project for attracting new converts, particularly
from the analysis of the primary source the Wonderful History of Uganda published by
Joseph Dennis Mullins in 1904 after meeting a series of reports produced in the period used as
a time frame. The work aims to recognize and explain the voice of Africans his performances
as tough negotiators and the process that led to the incursion of Protestant Christian religion
in the territory of the ancient kingdom of Buganda.

Keywords: Missionaries. Africa. Uganda. Protestantism.


7

LISTA DE IMAGENS

1.Figura 1 - Mapa atual de Uganda ............................................................................16


2. Figura 2 - Região dos Grandes Lagos (COHEN, 2010, p. 19)...............................26
3. Figura 3 – Atividade comercial na região dos Grandes Lagos na segunda metade do
século XIX (COHEN, 2010. p. 331)..............................................................................60
4. Figura 4 – The “Slug” Map – (MULLINS, 1904. p. 2)…………...........................71
5. Figura 5 - A. M. Mackay: Pioneer Missionary of the Church Missionary Society to
Uganda – (http://www.wdl.org/en/item/7774/).....................................................99
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................10

CAPÍTULO I: O período precedente das missões cristãs e o ambiente colonial no leste


africano e a incursão da Church Missionary Society na
África...............................................................................................................................16
1.1 Contextualizando o espaço de ação missionária...................................................18
1.2 A região do reino de Buganda e suas características............................................26
1.3 A missão inglesa em Buganda: procedimentos e o ambiente para evangelização
...........................................................................................................................................31
1.4 O Imperialismo inglês, a religião cristã protestante e as teorias afirmativas do
imaginário cultural dominante europeu................................................................33

CAPÍTULO 2: O universo religioso de Buganda e a CMS: assimilações e


contrapontos....................................................................................................................38
2.1 Demais povos e culturas coexistentes na sociedade do reino................................41
2.2 O surgimento do cristianismo africano na região..................................................53
2.3 O chamado de Stanley: a organização e a partida dos primeiros missionários ingleses
protestantes................................................................................................................61

CAPÍTULO 3: Joseph Dennis Mullins e “A Maravilhosa História de Uganda”:


características da obra e o caminho traçado pela missão da CMS durante 1876 –
1890..................................................................................................................................66
3.1 Características da obra “The Wonderful Story of Uganda”, seu modo de escrita e
organização.....................................................................................................................67
3.2 “A nação dos brancos tem outra religião?”: A primeira missão em Uganda, os
caminhos traçados pelos primeiros missionários e as evoluções em campo
evangelizador ................................................................................................................71
3.3 Mackay como único membro chefe da CMS em Uganda...................................99

CONCLUSÃO
9

.......................................................................................................................................108

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................112
10

Introdução

Quando pensado num primeiro momento este estudo de História da África visou
investigar temáticas, para além dos estudos sobre a escravização e comércio das áreas de
predomínio português. Isto é estudar regiões pouco conhecidas pelos pesquisadores
brasileiros, lugares e paisagens que falassem da África, porém, de outras áreas.
As ações missionárias inglesas, nas quais focamos, foram precedidas por missionários
católicos e por muçulmanos numa região e chamou-nos atenção para um lugar em África, a
denominada região dos “Grandes Lagos” 1. A respeito dela se escreveu e se formulou o
imaginário ocidental através de narrativas de experiências de europeus e os diversos grupos
étnicos. São essas fontes nossa porta de entrada para entender as construções, desconstruções
e assimilações culturais que ali ocorreram durante boa parte do século XIX.
Desde o início se pretendia realizar um estudo das representações sobre Uganda,
durante o século XIX a partir do trabalho da Church Missionary Society2, na obra missionária
“The Wonderful Story of Uganda”3. Este livro escrito por Joseph Dennis Mullins membro da
instituição conta as relações entre missionários e grupos que viviam na região e é rico de
informações e impressões presentes do caráter “civilizatório” do período.
A periodização delimitada corresponde aos anos de intensificação da atividade
missionária na região, mas, também temos o histórico de viajantes missionários portugueses
católicos que passaram pelo território africano como um todo e estes se diferenciavam por
missões, que segundo Rêgo4 e Montecúccolo5 eram patrocinadas pela própria Igreja Católica
inclusive financiando a construção de prédios para estabelecerem-se e evitando contatos
1
Os Grandes Lagos Africanos são um conjunto de lagos de origem tectônica, localizados na África oriental, que
incluem alguns dos lagos mais profundos do mundo. A maior parte destes lagos foi formada há cerca de 3,5
milhões de anos no Vale do Rift Ocidental, um dos ramos desta formação geológica que abrange
a Etiópia, Quênia, Tanzânia, Uganda, Ruanda, Burundi, República Democrática do Congo, Malawi e
Moçambique, ou seja , em meio a regiões desérticas do continente africano, uma região bastante vasta no que
diz respeito a sua capacidade aquífera.
2
É uma sociedade missionária fundada por membros da Igreja Anglicana em 1799 com objetivo de
evangelização de locais onde o cristianismo estava pouco presente, como África e Oriente. A instituição continua
atuando em diversos locais no mundo. Estas informações são apontadas segundo o website oficial da mesma.
Doravante usaremos a sigla CMS.
3
MULLINS,J.D. The Wonderful Story of Uganda. London, Church Missionary Society, 1904.

4
REGO, Alberto da Silva. Alguns problemas sociológico-missionários da África negra. Lisboa, Junta de
Investigações Ultramar, 1960. P.11-12.
11

diretos de aproximação com os chefes locais. Tal estratégia não foi adotada pelos
missionários protestantes ingleses já que no primeiro contato desses homens com o reino de
Buganda, o governante daquele local em atividade naquele momento, como estudaremos a
frente, esteve em contato direto com os missionários, algo que não ocorre com seus
descendentes. Missões da Igreja Católica também estiveram presentes no território de
Buganda, vindos da França eles chegam posteriormente à chegada dos anglicanos ingleses e
estiveram, ora em conflito direto, ora atuando em conjunto para combater a oposição aos
cristãos por parte do governo local.
Patrícia Teixeira Santos6 aborda as principais características das missões de cunho
católico dentro da região da qual Uganda faz parte, diferenciando suas variadas vertentes
quando estuda o Sudão e as tradições missionárias, italiana e francesa, e suas influências e
apoio da instituição Igreja Católica para com essas incursões no território africano. Este
último trabalho por abordar uma região fronteiriça com Uganda nos traz um nítido panorama
das relações conturbadas entre os diversos povos que ali coabitavam bem como das missões
protestantes inglesas que cresceram em influência na região.
No projeto inicial um dos objetivos era contrapor as ideias propostas sobre
catequização pelos missionários ingleses na região com a experiência cristã italiana, francesa
e mulçumana exposta em trabalhos como os de Kefa M. Otiso 7 e Patrícia Teixeira Santos.
Contudo, no desenvolver das leituras se atentou para o modo como o missionário Mullins, que
reproduziu o que havia sido publicado no periódico The Church Missionary Gleaner. Neste
periódico foram reunidos artigos sobre as missões em África da instituição, principalmente
nas publicações do ano de 1902 e, a partir disso resolvemos fazer um estudo sobre as suas
representações sobre aquela missão, seus membros e como o período precedente à chegada
dos missionários e o colonialista de Uganda funcionou com a presença dos missionários.
Nosso foco são suas impressões e, por consequência, as da instituição Church Missionary
Society. Nos interessam suas percepções a respeito do cotidiano, os problemas com as
assimilações, aceitações e negações da presença de ingleses naquele local. A região possuía
uma estrutura de governo chefiada pelo kabaka8 M’tesa I, rei dos baganda, povo do reino de

5
MONTECÚCCOLO, João.A.C, Descrição Histórica dos três reinos Congo, Matamba e Angola. Lisboa, Junta
de Investigações Ultramar, 1965. P.291-295.

6
SANTOS, Patrícia Teixeira. Dom Comboni: profeta da África e santo no Brasil. Rio de Janeiro. Mauad, 2002.

7
OTISO, Kefa M. Culture and Customs of Uganda. Westport, Greenwood Press. 2006.
8
Monarca dos baganda no ano de entrada dos missionários ingleses na região.
12

Buganda em território que corresponde à atual Uganda e sobre a qual o trabalho se


desenvolveu. A chegada e permanência dos ingleses teve de ser negociada e as elites locais
tiveram papel indispensável para que aquela missão pudesse ali permanecer. Os missionários
não eram representantes oficiais do governo inglês mas propunham uma alteração no
ambiente cultural e religioso ali consolidado. Assim adentrar naquele ambiente não seria uma
tarefa fácil sem o apoio das lideranças locais que influenciaram o longo processo que veio a
culminar na efetiva presença de ingleses, missionários ou não na região ora como resistentes
ora como aliados dos missionários ingleses.
Já no prefácio da obra analisada feito pelo próprio Mullins, o próprio autor revela sua
concordância com a opinião da instituição CMS. Para os dirigentes da Sociedade da Igreja
Anglicana que levou a missão religiosa à Uganda considerava-se que aquela empreitada
iniciada em 1876, portanto, há trinta anos atrás, que a ação missionária de Buganda funcionou
como “um milagre cristão dos dias modernos”. Esta afirmação tinha por base considerável
aumento no número de cristianizados, bem como no espaço conquistado pelos religiosos
ingleses naquele reino.
É interessante observar que a tradição escrita ainda não era conhecida pelos baganda
no momento da chegada dos missionários e foram estes religiosos que criaram a linguagem
escrita e fizeram a tradução de obras como à Bíblia para a língua local. Também são esses
missionários os primeiros a iniciar a história da região usadas no processo de alfabetização
das populações locais. Assim, a história escrita de Uganda, ainda que com a presença do
homem local para elaborá-la, carregará consigo elementos da missão no momento da
formulação de documentos escritos, momento este despertado por Mackay que chega a região
depois de mais de um ano de trajetos dentro do continente finalmente em 1878, porém, as
construções da sede das missões onde os missionários iriam desenvolver seus trabalhos
demoraram mais de um semestre para se estabelecerem de fato, e dai a possibilidade de se
iniciarem as traduções e conversões da língua local para a forma escrita.
No decorrer desta dissertação utilizaremos para as analises os conceitos de
representações da nova História Política para compreendermos as visões pré-formuladas a
partir da cultura e influencias do autor inglês na elaboração de julgamentos e justificativas
para apresentar a atuação da instituição missionaria da Igreja inglesa Anglicana dentro do
espaço cultural, politico e religioso do povo baganda.
13

Esta metodologia utilizada compreende dois importantes teóricos, são eles: Peter
Burke9, Roger Chartier10, que utilizaram em seus trabalhos do olhar dos autores a partir das
representações, ou construíram teorias para que isto fosse possível. Esses métodos foram
analisados a partir do que foi empregado, portanto, por Roger Chartier em: Uma Mudança de
Perspectiva” onde coloca a nova História Política em foco, conceitos que mudaram as
possibilidades de análises de trabalhos literários, por exemplo. Peter Burke com “A
Fabricação do Rei” trata da construção do soberano de forma a transformá-lo em alguém
adorado, sem anacronismos mas utilizando do método de construção de um mito ou soberania
de alguém economicamente mais poderoso sob um menos, podemos perceber em exemplos a
seguir como o missionário foi colocado nas publicações em função privilegiada.
Para Chartier, portanto, houve uma reformulação de várias propostas eminentemente
estruturalistas de análise, nas quais os sujeitos acabam aparecendo como meros “suportes” das
estruturas sociais11, ou seja, antes dessas novas teorias a sociedade e seus membros eram
meros coadjuvantes e contribuíam para o processo de estudo de algo amplo e generalizado e,
nesse contexto, a história seria chamada a reformular seus objetos, referências e princípios de
inteligibilidade12. Essa nova vertente recusa o pressuposto de que os contrastes e as diferenças
culturais estejam forçosamente organizados em função de um recorte social previamente
constituído. A sua nova abordagem centra-se na atenção sobre os empregos diferenciados, nos
usos contrastantes dos mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas ideias. A representação,
segundo ele, designa o modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade é construída, pensada e dada a ler por diferentes grupos sociais.
A leitura dos diversos grupos sociais que tomavam conhecimento de Uganda através
dos relatos missionários era diferente, o olhar dos missionários a respeito dos baganda e da
leitura que fizeram daquela sociedade é diferente também dos islâmicos por exemplo. A

9
BURKE, Peter. “A Fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luís XIV”. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1994.

10
CHARTIER, Roger; ROCHE, Daniel. O livro: uma mudança de perspectiva. In: LE GOFF, Jacques;
NORA, Pierre. História: novos objetos. Trad. Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alvez,
1976.

11
CHARTIER, Roger. Introdução. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: _____. A
História Cultural entre práticas e representações. Col. Memória e sociedade. Trad. Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 13-18.
12
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: _____. À beira da falésia: a história entre
incerte-
zas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 64.
14

construção das identidades sociais seria o resultado de uma relação de força entre as
representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição
submetida ou resistente daquele que é nomeado e classificado têm de si próprio.
Assim vemos a interpretação da história da maneira como os indivíduos e a sociedade
concebem (representam) a realidade e de como essa concepção orienta suas práticas sociais,
tomando como “noção” o relacionamento da imagem presente em objeto ausente, assim as
práticas dos missionários esteve diretamente ligada à sua visão daquela sociedade.
Dentro desta forma de análise o texto fora dividido em quatro partes, além da
introdução, o primeiro capítulo tratando das diferenciações culturais e sociopolíticas dos
europeus e dos baganda, as características fundamentais da região leste africana, a
composição natural do ambiente e as etnias que ali coabitavam e eram fundamentais para o
processo de estabelecimento. A formação da elite local foi também indispensável ja que esta
por meio de afirmações aceitações e resistências foi uma das responsáveis pelo
estabelecimento e permanência dos missionários na região. O contexto econômico e as
disputas políticas entre as potências europeias e a ampliação da atuação de instituições
missionarias também serão trabalhadas nesse primeiro capítulo dentro de suas subdivisões.
O segundo capítulo abordara a respeito da formação do cristianismo e de seu
desenvolvimento no leste africano, além da formação da primeira missão da CMS a partir da
publicação de Henry Stanley enquanto esteve em uma de suas expedições e acabara
encontrando o monarca baganda, chamado M’tesa e analisou a possibilidade da instauração
do protestantismo inglês naquele reino. Este chamado fora o despertar da instituição
missionária anglicana formular e organizar a primeira missão da qual efetuamos o estudo.
O terceiro capítulo adentrara o universo da missão da instituição, os caminhos
percorridos, as mortes ocorridas com os membros do primeiro grupo, as estratégias de escrita
e traduções que ampliaram consideravelmente o número de fiéis, os conflitos com os padres
católicos franceses, árabes muçulmanos comerciantes e com a perseguição do governante
Mwanga na busca da contenção do cristianismo em Uganda. Terceiro capitulo irá mostrar
principalmente o enaltecimento e a caracterização dos membros da primeira missão, com
destaque para o mais influente, Alexander Mackay, como mártires e até mesmo em um
enaltecimento messiânico trabalhado pelo autor para valorizar os andamentos das atividades
missionárias protestantes ante as etnias, o rei e as vertentes religiosas ali presentes.
No final deste, perceberemos que no fim do período delimitado teremos uma atuação
veemente da Companhia Comercial Inglesa naquele território que auxiliou por sua vez na
permanência dos missionários da CMS. Como resultado para as ações missionárias veremos
15

na conclusão os feitos não só na área religiosa com a ampliação do número de seguidores do


cristianismo protestante inglês e diminuição da influencia do governo baganda e na
manutenção de sua religião originalmente pagã, na tradução de textos religiosos cristãos e na
formulação de escolas religiosas de mesma tendência que a partir desse método puderam se
ampliar e angariar um maior número de fiéis. A construção de obras de engenharia pouco
comentadas na obra nos revela uma conduta além dos incentivos religiosos mas também
pautada na necessidade de comunicação e facilitação para as viagens dos grupos missionários
na região, além das saídas pelo grande lago, como fora a construção de diversas estradas
atribuídas a Mackay como comandante.
16

CAPÍTULO I: O período precedente à chegada das missões cristãs e o ambiente


colonial no leste africano e a incursão da Church Missionary Society na África

Figura 1 - Mapa atual de Uganda (http://www.worldatlas.com/webimage/countrys/uganda)

Uganda e a África Central são pouco conhecidas nos estudos historiográficos no Brasil
e, por isso, se faz necessário uma apresentação do contexto histórico ser abordado. Quando
encontrada pelos exploradores europeus, a região onde se situa a atual Uganda estava
organizada em pequenos reinos, provavelmente fundados desde século XVI, povoados
inicialmente por bantus13 e nilotas14.
Kefa M Otiso15 evidenciou uma divisão de dezenove grandes tribos convivendo neste
mesmo espaço que precedeu o que fora encontrado pelos missionários em 1876. Nele
observa-se que no ano que marca a entrada dos membros da CMS, algumas influências
seculares como, por exemplo, a adoção dos costumes muçulmanos se fazia presentes na
região sendo assim trouxeram suas tradições culturais para dentro daquele espaço. Práticas
13
Bantu ou banto1 (forma preferível a bantus) constituem um grupo etnolinguístico localizado principalmente
na África subsaariana e que engloba cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes. A unidade desse grupo, contudo,
aparece de maneira mais clara no âmbito linguístico, uma vez que essas centenas de subgrupos têm como língua
materna uma língua da família banta.
14
Os nilotas são um grupo de povos africanos que falam línguas nilóticas, um dos principais ramos da grande
família das línguas nilo-saharianas e, como o nome indica, habitam a região sul do vale do rio Nilo, desde
a Etiópia à Tanzânia, mas tendo-se espalhado também para o interior, incluindo a República Democrática do
Congo.
15
OTISO, Kefa M. Culture and Customs of Uganda. Westport, Greenwood Press. 2006.
17

como a circuncisão feminina feita no momento do nascimento era um dos costumes que
chocava os missionários de origem cristã que para ali foram. Ou seja, as assimilações e a
convivência trouxeram para o cotidiano conflitos ideológicos e resistências, mas também
acomodações de costumes locais e dos assimilados secularmente e os que dos costumes
cristãos.
A presença de chefes locais consolidados e reconhecidos pela população foi um fator
determinante no estabelecimento das relações dos missionários com os povos locais como
iremos ver no desenvolvimento deste trabalho. Um exemplo é M’tesa rei dos baganda que
havia ascendido ao trono após a morte de seu pai Suuna II em 1856, filho de uma das 148
mulheres do rei (chamado de kabaka pelos locais). Ele teve um longo governo até sua morte
em 1884 e era considerado um homem visionário e negociador. Tinha nas habilidades de
diplomacia uma forte estratégia para manter a ordem e a estabilidade, o que favoreceu a
aproximação dos membros da missão inglesa para com a população.
Essa sociedade que se desenvolvera na região correspondente à atual Uganda sob a
qual M’tesa reinava de maneira soberana e com uma cultura secular com fortes influências
muçulmanas fez com que as negociações fossem necessárias, já que os chefes locais não
aceitaram as incursões e estabelecimentos de alterações no curso de vida sócio cultural
naquela sociedade tão facilmente. Também houve as negociações dos religiosos para poderem
se estabelecer no território e desenvolver seus projetos missionários sem que fossem atacados
ou perseguidos. Para isso acordos foram feitos com a elite do reino de Buganda. Este grupo se
constituía de uma corte representada pela absoluta minoria, não mais do que cinco por cento
da população que era de aproximadamente quinhentos mil habitantes na segunda metade do
século XIX e estava em constante proximidade com o monarca, além de serem os dominantes
dentro daquela sociedade.
Em muitas ocasiões são relatados conflitos algumas vezes com as lideranças nativas
além de perseguições feitas a missionários. O rei sucessor filho de M´tesa de nome Mwanga
tão logo ao assumir o trono em1884 passa a divergir da forte influência inglesa e passa a
perseguir os missionários. Essas perseguições ocorriam oficialmente a mando dele o kabaka
dentro de seu território mas também nas trilhas que cortavam o território e eram atravessadas
pelos missionários ingleses e outros estrangeiros. Nessas trilhas muitos povos locais
acabavam atacando aqueles considerados invasores em busca de evitar o que o rei entendia
como a destruição de suas tribos. Nesse momento já tinha histórias e a ideia de que o homem
branco era capaz de atrocidades e as ações do kabaka eram apoiadas por boa parte da
população local.
18

Os missionários ingleses também tinham interesse em desenvolver um grupo de


missionários povos locais, novos cristãos que espalhassem a crença o que era também uma
forma de ampliar a influência da missão. Um cristão povo local teria mais facilidade em
reunir novos fiéis para a empreitada da CMS. Era intenção, portanto, da primeira missão de
Uganda, transformar a região num reduto do cristianismo na África e isso seria mais
rapidamente alcançado a partir da conversão e da doutrinação para formação de sacerdotes
locais. Além dos conhecimentos religiosos os missionários locais deveriam atuar com
sabedoria diplomática e para isso deveriam conhecer bastante a língua europeia que também
era ensinada dentro das casas de missão através das leituras sagradas.

1.1 Contextualizando o espaço de ação missionária

A presença de missionários ingleses na região central do continente Africano se deu


em um período que remete ao século XVIII e início do XIX e continuou durante o surgimento
do colonialismo na região dos Grandes Lagos, na segunda metade do século XIX. Ali a
mentalidade dos membros da CMS fundamentada nas crenças e cultura europeias bem como
as influências científicas e literárias foram introduzidas juntamente com a missão.
O uso desta cultura nem sempre era isento de críticas. Um bom exemplo disso Foi a
obra de Charles Darwin A Origem das Espécies. Publicada em 1859 era uma obra considerada
herege por parte dos grupos religiosos cristãos por apresentar uma vertente diferente e
enfrentadora da concepção bíblica sobre a origem da humanidade. Contudo ela serviu para
fundamentar teorias como o darwinismo social 16 compartilhado por muitos religiosos e
estudiosos de época. Para a teoria de Spencer apoiada na obra de Darwin considerava-se que o
conflito e a seleção natural dos mais aptos são condições da progressão social. Tratava-se de
aplicar ao mundo social humano, os princípios de luta pela vida e pela sobrevivência dos
melhores das sociedades animais, defendidos pela corrente evolucionista. A competição
relativa à luta das espécies prolonga-se, assim, na vida social, explicando a mudança e a
evolução das próprias sociedades.
O evolucionismo de Spencer adverte que a evolução depende de "condições diversas"
que a favorecem ou inibem (relações do sistema social com o seu meio ambiente, dimensão
da sociedade, diversidade, etc.). Spencer considera, igualmente, que os determinismos sociais
são demasiado complexos; os indivíduos têm tendência a adaptar-se ao sistema social a que
pertencem, do mesmo modo que as atitudes dos indivíduos facilitam ou inibem o
aparecimento de determinado tipo social (o tipo "militar" ou o tipo "industrial", por exemplo).
16
Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2015.
19

O darwinismo social tornou-se um argumento a favor do individualismo económico e


político, contra o intervencionismo do Estado. Segundo Spencer, o Estado só deve, através do
Direito, estabelecer as regras do mercado.
Tratar o africano como inferior e salientar o desenvolvimento e o caráter civilizador do
branco era uma adaptação desta teoria transformando-a no que conhecemos como o já
mencionado darwinismo social. A partir desta teoria se acreditava que o africano não era
dotado das mesmas características intelectuais dos brancos europeus e seria nas palavras do
poeta britânico Rudyard Kipling17 “O grande fardo do homem branco” civilizar as populações
menos inferiores, uma forma de justificar a presença dando a ela um caráter nobre que no caso
dos religiosos ainda seria reforçado pela ideia de salvação feita pela conversão a religião
cristã.
Por sua vez, Durkheim, que segue o modelo evolutivo do darwinismo social, dando
conta de tendências evolutivas na sociedade, considera (na sua obra A divisão do trabalho
social) que o desenvolvimento do individualismo - que é uma consequência da complexidade
crescente da divisão do trabalho - é um aspeto fundamental na passagem das sociedades
tradicionais às sociedades modernas. No desenvolvimento das expansões europeias em busca
de novos espaços de influência período que denominamos de imperialismo do século XIX ou
Neocolonialismo esta teoria foi uma das utilizadas como justificativa da presença do europeu
na exploração do continente africano.
As ideologias eurocêntricas da qual o darwinismo social fazia parte do arcabouço
ideológico que sustentava as convicções da necessidade de estar em África como
regeneradores. Segundo Groves tal situação acontecia apesar do apelo filantrópico e
humanista dos evangelizadores cristãos temos este discurso regenerador do continente como
necessidade para a África como um todo a partir da presença missionária. (GROVES, 1969).

17
Em 1899, os Estados Unidos da América discutiam no Congresso a anexação das antigas colônias espanholas
que tinham lutado pela sua independência, nomeadamente as Filipinas. Nessa altura, o poeta britânico nascido na
Índia Rudyard Kipling escreveu um poema apologético para declarar que o facho da civilização tinha passado
das mãos do Reino Unido. “O Fardo do Homem Branco” defendia que passaria a caber a Washington “tratar dos
selvagens para o bem deles, sem contar com o seu agradecimento. Os povos locais do mundo tinham de ser
dirigidos pelas potências ocidentais. Eram homens inferiores, de civilizações fracas que precisavam de ouvir a
voz do dono. Os agitadores deviam ser castigados e eliminados, se necessário por meios violentos. Os selvagens
deviam ser controlados, para seu bem”. ALMEIDA, Nuno. Artigo: O Fardo do homem branco (Leitura de
noite). In: Revista eletrônica: Liberdade e Diversidade. Disponível em: <http://
linhaslivres.wordpress.com/2014/07/24/> Acesso em: 14/08/2014)
20

É importante ressaltar que mesmo tendo uma visão eurocêntrica de mundo, os


missionários não foram agentes do governo inglês, porém, sua incursão preparou o terreno
para a efetiva presença e dominação por parte dos agentes políticos do governo bem, como
num viés contrário a presença destes homens do governo inglês carregados de forças militares
foram fundamentais para que as missões se ampliassem e pudessem permanecer naquela
região, pois o futuro da missão por diversas vezes esteve abalado devido às constantes
perseguições promovidas pelo governo local. Sem a manutenção das missões e o
conhecimento regional daqueles primeiros ingleses que habitaram a região, teriam mais
dificuldade na permanência no reino e em 1894 a condição de protetorado sendo implantada
em Uganda poderia ter tido mais obstáculos.
Em termos sociológicos surgiram algumas definições a respeito do imperialismo que
assolaria a África principalmente na segunda metade do século XIX e início do XX, em uma
delas, o imperialismo foi definido por Joseph Schumpeter (em seu livro de 1918, The
Sociology of Imperialism.) que ele provinha de um desejo natural do homem de dominação
sobre o outro, um egoísmo nacional coletivo de expansão pela força, o imperialismo que
vivia-se no final do século XIX seria proveniente, segundo ele, de uma regressão aos instintos
políticos e sociais primitivos do homem, ele alega ainda uma defesa do capitalismo que puro
não teria essas características agressivas, porém, não partilhamos da mesma.
As teorias diplomáticas são mais esclarecedoras no que concerne à presença do
europeu, sua dominação do continente e a partilha da África, até porque as teorias
diplomáticas também são complementadas pela sociológica ao afirmar a necessidade de
dominação de uma nação sob outra ou outras e da ideia do prestígio nacional uma das
características do imperialismo do século XIX.
Entre 1876 e 1880 Portugal e França já demonstravam seus intuitos de exploração
colonial da África. O primeiro anexou as propriedades rurais de Moçambique que estava
praticamente independente e o segundo com o interesse junto ao Reino Unido de controle do
Egito e buscava o restabelecimento das colônias francesas na Tunísia e em Madagascar e na
vontade dos franceses de acordos com o chefe local do Congo. Essas ações demonstraram o
interesse português e francês de exploração colonial no continente africano e despertou no
governo do Reino Unido a necessidade de um controle mais efetivo de locais onde já
obtinham influência a partir de 1880. Em 15 de novembro de 1884 temos um acontecimento
que de fato coloca a África como certa na partilha entre as potências europeias, a Conferência
de Berlim.
21

O objetivo principal a ser discutido a fundo durante esta conferência, ao menos na


pauta das discussões era a “regeneração” da África, ou seja, ações que deveriam levar aquele
continente ao mesmo nível do chamado “desenvolvimento” , este conceito estava baseado na
idealização europeia a respeito de sociedade, ou seja, do modelo ocidental de vida nos
padrões do que se vivia na Europa. Dentre essas ações o combate ao tráfico de escravos no
continente africano e os ideais humanitários de “salvação” do continente que estava
acometido pela fome, doenças e problemas relacionados ao meio ambiente como a seca. Ou
seja, a discussão que não pretendia colocar em pauta a partilha acabou fazendo uma
distribuição de alguns territórios e tratando da livre navegação em alguns outros, bem como
na elaboração de documentos para ocupação de territórios na faixa litorânea.
O acordo exigia que qualquer ocupação e estabelecimento de protetorado em
territórios ocupados deveria ser comunicado aos países participantes da Conferência. Também
estabelecia que todo país ocupante deveria provar que tinha condições e autoridade suficiente
para se estabelecer, além de se fazer respeitar dentro do território costeiro ocupado,
garantindo a liberdade de comércio e trânsito. Era a ocupação efetiva e legal da África por
parte das potências que estava em curso.
Em 1885 ao fim da conferência a partilha do continente já era definitiva, o que
veremos mais adiante é que esse processo contou com as revoltas e não aceitação da presença
europeia de maneira tranquila ou submissa.
É válido destacar que antes desta conferência, os Estados europeus já tinham suas
áreas de influência, como é o caso do nosso local de estudo Buganda aonde a presença
missionária inglesa protestante já acontecia. É válido salientar que esta presença missionária e
a fundação das casas de missão da CMS em território africano não dependiam do governo
para se estabelecer, mas carregava a ideia da necessidade de uma ação conjunta da missão e
órgãos ligados ao governo inglês para a salvação do local, uma visão eurocêntrica cristã da
incursão. Desse modo, percebeu-se que a presença do governo inglês era de certa forma,
importante para que as missões conseguissem se desenvolver, mesmo em tese sendo
totalmente díspares ideologicamente.
Outras localidades também já tinham tratados de comércio, de influência, acordos com
o dirigente local e até mesmo de ocupação colonial antes da Conferência de Berlim, porém,
este acontecimento oficializou e legitimou as futuras definições territoriais e, no caso de
Uganda, no que viria a ser o protetorado no ano de 1894.
22

Discutindo sobre colonialismo, Frederick Cooper 18 entende que o colonialismo do


século XIX como um momento com características homogêneas em alguns aspectos, porém
heterogêneas em outros trabalhada na História Colonial recente. Segundo ele, a história
colonial traz em sua abordagem as discussões emergidas dos diálogos com estudos literários e
antropológicos. Para Cooper os críticos literários passaram a estudar as políticas de
representação e o processo pelo qual a afirmação dentro de um discurso europeu de um senso
de identidade nacional ou continental dependia das populações não-europeias serem
consideradas como o “outro”. Ou seja, era importante distanciar o africano da realidade
europeia para justificar o aparato colonial.
Tanto para antropólogos quanto para críticos literários, os entendimentos sobre África
se reduziram à visão de “tribos” ou “tradições” para justificar suas ideias de imposição
cultural e econômica que eram repassadas para o papel em forma de teorias e justificativas.
No caso dos missionários essas duas ideias serviram para o indivíduo africano a capacidade
de pensar sob a individualidade da salvação da alma e não mais o pensamento comunitário, do
bem comum e partilhado que era tradicional para aquelas sociedades.
Cooper ainda recupera a teoria de Ranajit Guha, historiador do chamado Estudos
Subalternos. Este grupo trabalha em uma perspectiva de romper com as tradicionais
abordagens dos africanistas da década de 1960 pós-independências e com os europeus que
escreveram durante o período colonial. A produção dos historiadores africanos na década de
1960, procurou se opor abertamente com os estudos coloniais feitos pelos europeus. A razão
para isso era que tal produção era carregada de influências político-sociais que segundo os
africanistas deturpavam a história e as fontes coloniais como uso das fontes orais e
documentos coloniais.
Neste sentido, os acadêmicos africanos deram maior ênfase uma história de viés
africano do que propriamente questionar como o processo de construção histórica africana
estava comprometido em estabelecer ou em contestar o poder colonial. Cooper demonstra ser
consenso a ideia de superioridade do poder dos europeus e valida a ação africana em falar
sobre como os conflitos que aconteceram segundo seu olhar. Ele também coloca seu parecer a
respeito do colonialismo africano afirmando que os conquistadores podiam concentrar seus
recursos militares na derrota dos exércitos africanos, “pacificar” aldeias ou massacrar
rebeldes. Por outro lado, a rotina de poder exigia alianças com representantes de autoridades
locais, fossem eles líderes de antiga linhagem ou reis que há pouco haviam sido derrotados.

18
COOPER, Frederick. Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África. Anos 90, Porto Alegre,
v. 15, n. 27, p. 21-73, jul. 2008.
23

Assim como na região estudada, onde a partir das alianças do rei local os missionários
puderam exercer seu projeto de evangelização, outras regiões africanas tiveram as mesmas
características. No caso de Buganda o monarca era M’tesa I no momento da incursão
missionária protestante vimos tanto com os europeus e também com os muçulmanos a postura
conciliadora e diplomática, já que manteve-se equilibrando seu poder em Buganda, diferente
do filho Mwanga II em uma situação mais conturbada de perseguição aos cristãos que
resultou em diversos conflitos até o fim efetivo controle político local que posteriormente
desencadeou no estabelecimento do protetorado inglês.
Uma leitura minuciosa das narrativas coloniais sugere que a missão “civilizadora” não
terminou com a conversão africana ao cristianismo ou com a generalização de relações
comerciais por todo o continente, embora a escrita colonial celebrasse as vitórias contra as
“práticas bárbaras” e o “fanatismo muçulmano”. Ou seja, o cristianismo não fora
determinante no estabelecimento do protetorado mesmo o poderio britânico auxiliando na
ampliação dos espaços a serem conquistados pelas missões, mas uma ferramenta poderosa
para a advento e manutenção do poder inglês.
Contudo, na medida em que penetramos cada vez mais no conflituoso espaço político
colonial, deveríamos enxergar além da noção de subalternidade (opressão do africano) – e de
conceitos de colonialismo que supõem ser capazes de coerção, cooptação, categorização de
desafios em suas próprias estruturas de poder e ideologia – com o intuito de examinar melhor
os outros modos em que o poder foi constituído e contestado, rebatido, condenado, assimilado
ou até mesmo acatado por aqueles que viam no europeu a possibilidade de alianças que
mutuamente fossem vantajosas. (CARVALHO. 2001, vol.7, no.15, p.107-147)
A violência dos colonizadores não é somente física, as transformações ideológicas
impostas também tem esse caráter. Do mesmo modo, a arrogância das ideologias
modernizadoras não foi reduzida pelo fato de que os africanos frequentemente desmontavam-
nas e criavam algo mais. “Mas, se os “subalternos” querem ser vistos como parte vital da
história, pelo menos, deve ser mantida aberta a possibilidade de serem destruídos os vários
significados da dominação e da subalternidade”.19
No caso do texto em destaque, o autor aborda os processos de contestação da classe
trabalhadora principalmente, na África de modo geral e na Índia, território também à época
colonizado pelos britânicos.

19
COOPER, Frederick. Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África. Anos 90, Porto Alegre,
v. 15, n. 27, p. 56, jul. 2008.
24

Outro trabalho com a temática colonial importante para nossa dissertação foi
elaborado por Nicholas Dirks20, Colonialismo e cultura que tratou das discussões a respeito do
período em que focamos dentro do trabalho. Segundo ele o colonialismo foi um processo que
se iniciou dentro da metrópole europeia e se expandiu para o exterior, sendo assim um
momento de novos encontros no mundo que facilitaram a formação das categorias de
metrópole e colônia primeiramente. É válido destacar que Dirks usa o termo encontros, já
trabalhado por outros estudiosos no que concerne à visão das trocas, aceitações e negações
entre os locais africanos e ingleses, por exemplo.
O processo colonial também acabou por incentivar o acúmulo de muitas coisas, como
o conhecimento até os temperos e as narrativas dos postos de comando militares. Durante a
longa permanência europeia na África, existiu diversas razões para forjar crenças sistemáticas
sobre diferenças culturais unindo projetos díspares com formações precárias da identidade
nacional e as pesquisas recentes sobre exploração econômica. Cooper aborda a importância do
conhecimento como fator de “superioridade” europeia frente às relações com os locais
africanos. Neste sentido o termo mais apropriado para Dirks seria o termo hegemonia, embora
o vocábulo seja equivocado para tratar do poder colonial. A imprecisão talvez decorra de que
estaria implícito não somente um consenso, mas a capacidade política de se generalizar essa
afirmação nos espaços institucionais da sociedade civil africana. Não somente as regras
coloniais permitiram as inexoráveis forças universais da ciência, progresso, razão e
modernidade como elas também dispuseram de muitos dos excessos das regras dentro das
instituições e culturas onde houve rótulos das tradições. O processo colonial passou a ser visto
como um ascendente e necessário para a construção do mundo colonialista com as naturais
oposições: nós e eles, ciência e barbaridade, moderno e tradicional. E nessa construção o
consenso foi menos valorizado do que a realidade do próprio poder. (DIRKS. 1992. p. 15)
Dirks trouxe em sua discussão a respeito do projeto missionário durante o período
colonial, a respeito do tema traz seu olhar sobre o processo, como coloca no trecho:
A expansão europeia também utilizou-se de velhas justificativas para suas
viagens e conquistas. O poder colonial procurou não só os recursos
naturais e posições estratégicas, mas também as almas dos povos locais. O
projeto colonial de missão e conversão é central para discussão
diferenciada de Vicente Rafael sobre a cristianização prematura na
sociedade colonial de Tagalog. Para os espanhóis a conversão representou
a última forma de conquista. Para converter foi preciso submeter a
dominação divina e por implicação, a uma série de autoridades de
mediação, incluindo a Igreja e seus sacerdotes. Mas mesmo sendo a
submissão através da crença totalizante, a crença em si dependia de uma
20
DIRKS, Nicholas. Colonialism and Culture. Comparative studies in society and history book series. Michigan.
Ed: The University of Michigan Press. 1992.
25

série de entendimentos, comunicados e organizados pela tradução, e na


tradução, a conversão nem sempre era o que parecia. 21
Essas crenças construídas e trabalhadas ao longo de décadas geraram o eficaz projeto
de missão da CMS será abordada no objeto de estudo a primeira geração daqueles
missionários que perceberam em Uganda um ambiente propício para a evangelização. A
construção da narrativa da vida missionária em seu cotidiano, bem como a evolução do
cristianismo graças ao trabalho missionário tem como destaque a figura heroicizada de Joseph
Dennis Mullins. A CMS era uma fonte literária e confessional, pois os escritos que chegavam
à Inglaterra e outros países iam além do apelo religioso. Eles falavam da geografia, fauna,
flora e das populações e seus antigos e novos costumes o que despertava interesse no grande
público. Assim, se cumpriam os objetivos de proselitismo em publicações propagandísticas,
de condenação de práticas e costumes povos locais e da implantação de um cristianismo
europeu baseado nos costumes de sua nação de origem. Somado a isso elas informavam aos
europeus a vida nas regiões colonizadas fazendo parte do processo colonial embora corresse
paralelo à suas ações e influenciando nas ações políticas como a transformação de Buganda à
condição de protetorado em 1894.
A Church Missionary Society contava principalmente com membros da Igreja
Anglicana22 que durante o fim do século XIX, instituição esta escolhida para estudo já que nos
forneceu material e instrumentos de compreensão de suas representações para com a
sociedade do que viria a ser Uganda. Um pequeno reino que no século XIX contava com
cerca de 500 mil habitantes, além de uma estrutura organizada de poder, cultura e religião,
habitantes que partilhavam de contatos comerciais principalmente com povos árabes, além de
um vasto número de reinos vizinhos com os quais mantinham contato direto, a fauna e a flora
possibilitavam seus potenciais encontros devido ao desenvolvimento da navegação pelo Lago
Victória. Essa população entrará em contato com a primeira geração oficial organizada pela
21
DIRKS, Nicholas. Colonialism and Culture. Comparative studies in society and history book series. Ed: The
University of Michigan Press. 1992. p. 16.
22
O anglicanismo surgiu em torno de questões que envolviam diretamente os interesses da monarquia britânica.
A monarquia Tudor, que na época controlava o trono inglês, buscava meios para reforçar a autoridade real frente
à forte influência das autoridades eclesiásticas. Tal disputa se sustentava principalmente no fato da Igreja ter em
mãos uma grande extensão de terras sob o seu controle. Na Inglaterra, o rei Henrique VIII (1491-1547) teve
grande importância na consolidação da reforma religiosa. Henrique VIII e a Igreja já tinham uma relação pouco
harmoniosa quando, no ano de 1527, o rei inglês exigiu que o papa anulasse seu casamento com a rainha
espanhola Catarina de Aragão o então papa Clemente VII resolveu não atender as súplicas do monarca britânico.
Inconformado com a indiferença papal, Henrique VIII obrigou o Parlamento britânico a votar uma série de leis
que colocavam a Igreja sob o controle do Estado e em 1534, o chamado Ato de Supremacia criou a Igreja
Anglicana.
26

instituição, mais precisamente no ano de 1876, data em que se inicia a o projeto de


evangelização da atual religião de Uganda esta de certo modo auxiliada pelo processo
colonizador da Inglaterra frente à África.
Foi visando proteger e dar voz ao povo do reino de Buganda e a seus habitantes que se
observa a partir de representações feitas por membros desta instituição que baseadas nos
conceitos de Dan Sperber23 e Roger Chartier24 foram fundamentais para compreendermos os
escritos missionários.

1.2 A região do reino de Buganda e suas características

A África desde o início das primeiras navegações europeias pelo Oceano Atlântico no
século XV se tornou parte das rotas em busca de um novo caminho para se alcançar as Índias,
rica em especiarias e sendo ela também fonte de riquezas. Estas navegações resultaram em
uma maior exploração dos territórios ao sul da África e também no conhecimento das terras
da América resultando em um relacionamento entre os três continentes que incluía troca de
costumes, assimilação e resistência.
Os primeiros contatos dentro do continente africano se deram na faixa litorânea onde
se formaram as primeiras vilas e agrupamentos de europeus e aliados africanos. Também no
litoral estavam situados os armazéns que guardavam as riquezas obtidas como metais
preciosos, escravos e demais produtos. Por isso o interior do continente foi paulatinamente
explorado seja pela riqueza que ganharam anteriormente nas regiões costeiras somada à
resistência dos habitantes seja pelo desejo de novos mercados consumidores para os produtos
ocidentais com o advento da industrialização acelerada ou pela ânsia de conquistar espaços
religiosos e novos fiéis a partir da evangelização proposta pelas atividades missionárias em
suas mais diversificadas formas e doutrinas como fora o caso da incursão da CMS.
Durante o fim do século XVIII e todo o século XIX percebe-se na região denominada
de “Grandes Lagos”, localizada no leste da África que contava com uma grande riqueza

23
SPERBER, Dan. Estudar antropologia das representações: problemas e perspectivas, In: JODELET,
Denise(organizadora); ULUP, Lilian (tradutora). ''As Representações Sociais''. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001.

24
CHARTIER, Roger; ROCHE, Daniel. O livro: uma mudança de perspectiva. In: LE GOFF, Jacques; NORA,
Pierre. História: novos objetos. Trad. Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1976.
27

aquífera e natural. A principal hipótese seria que ali estava a nascente do rio Nilo, tão buscada
nestes períodos pelos diversos exploradores. Essa região vivia uma série de mudanças nos
âmbitos da política, da sociedade. Os modelos de administração assimilavam-se bastante às
estruturas ruralizadas e tinham chefes controladores de estruturas rurais no que concerne a
divisão das terras e poucas características estruturais citadinas aos moldes do que se conhecia
nas cidades ocidentais europeias. Estes chefes estavam dominando pequenas parcelas do
território num primeiro momento e isto evolui aos poucos para governos centralizados sob o
domínio de um monarca na grande maioria dos territórios.
A política, portanto, se desenvolvia em todos os aspectos internos e externos com um
aumento significativo de relacionamentos comerciais entre as tradicionais áreas da costa com
os reinos do interior do continente. Quando abordamos a região dos “Grandes Lagos” estamos
nos referindo e dando destaque aos quatro grandes reinos, o primeiro e mais importante para
nosso estudo é o reino de Buganda, que corresponde atualmente a quase todo o território de
Uganda do qual nos aproximaremos através do trabalho de Mullins, além de Ruanda, Burundi
e Bunyoro, sendo estes os Estados mais organizados e em expansão desta região que foram
importantes dentro do processo de trocas culturais e formação da tradição regional. Em
tempos de conflito e perseguição esses lugares foram utilizados pelos missionários para fuga e
refúgio enquanto articulavam também ali as suas atividades e construíam um processo
evangelizador expansivo e regional. Assim como em Buganda esses reinos até a primeira
metade do século XIX já mantinham-se, depois de um longo processo de formação nos
séculos anteriores, com estruturas organizadas de governo, reis centralizadores, uma
estabilidade econômica e social e o paganismo com crenças em divindades ligadas à natureza
além de contatos com os comerciantes árabes de maioria muçulmana.
Acompanhando o movimento de transformação da estrutura de poder dos reinos
daquela região partindo de um ambiente ruralizado para um poder centralizado e com
instituições mais sólidas e organizadas aos moldes do que se conhecia na Europa esses quatro
reinos se aperfeiçoaram com cada vez mais eficácia com soberanos buscando alianças para
perpetuarem seu tempo de governo, diferente do que acontecia durante o século XVIII onde
as constantes disputas, inclusive dentro das próprias famílias dominantes não permitiam
longos períodos de reinado devido os interesses nas riquezas e controle da população, sendo
assim a alternância constante de chefes políticos durante o século XVIII acabou prejudicando
a centralização do poder por um longo período.
Ainda assim, mesmo com estas organizadas estruturas de governo, existia na região
centenas de outros territórios que se mantiveram ruralizados, ou seja, que consistiam em
28

propriedades onde senhores proprietários detinham o domínio sob aqueles que moravam em
suas terras. Com isso a maioria dos territórios que cercavam a região de Buganda, ou seja, a
parte centro-africana e leste do continente, não possuía chefes de governos detentores de
poderes centralizados totais. Assim, essas figuras de chefes basicamente rurais, bem como
durante o período denominado medieval na Europa, eram aqueles que de fato possuíam
domínio de terras e populações. Porém, isso não impediu que de forma mais lenta e gradual
que com o passar do tempo algumas dessas organizações ruralizadas que de certa forma
tinham uma hierarquia e eram bastante organizadas, passassem a se fortalecer ao longo das
décadas e ganhar características de estruturas monárquicas de governo e centralização de
poder.

Figura 2 - Região dos Grandes Lagos (COHEN, 2010, p. 19)

As estruturas de vilas e centros urbanizados de poder centralizado que se formaram a


partir dos reinos de Buganda, Ruanda, Burundi e Bunyoro passaram a ser motivo de atração
por parte de diversos grupos dos estados ou regiões menos atrativas da África, pessoas vindas
das mais diversas localidades por diferentes motivos, seja pela riqueza natural, aquífera,
também importante para o desenvolvimento do comércio que já acontecia com os
comerciantes árabes e no final do século XIX já contava com uma companhia inglesa de
comércio, riquezas possíveis das quais a atenção de Stanley ainda anterior a presença
missionária se atentou, mas também da possibilidade no campo religioso de ampliação no
29

número de evangelizados que pudessem não somente seguir os dogmas mas assegurar a
presença da Igreja Anglicana através da CMS na região. O universo religioso protestante
também era capaz de desenvolver ações além da conversão como vimos no caso da fundação
de escolas que garante a presença e manutenção da cultura missionária na tradição além de
obras de urbanização, abertura e aperfeiçoamento de caminhos para que o trânsito dessas
informações e riquezas ficasse cada vez mais acessível às gerações futuras.
A maior parte dos exploradores europeus via com intenções individualistas e nem
sempre tinham intenção de beneficiar um grupo ou um governo. Muitos deles buscavam a
ajuda dos soberanos locais mais influentes destes estados maiores para que estes pudessem
ganhar influência de poder em seus estados de origem, contribuindo para o fortalecimento
destes territórios maiores. Esta estratégia de contato inicial do estrangeiro com os chefes
locais também fora utilizada pelos exploradores coloniais e que vieram no século XIX da
Europa e também pelos religiosos que chegavam a partir da ideia de evangelização em busca
de espaço e, novos fiéis.
As negociações dos missionários anglicanos, principalmente com o soberano no trono
do reino de Buganda em 1876 M’tesae sua corte (kabaka lubiri) foram fundamentais para que
conseguissem se estabelecer com sucesso naquele território. Segundo David W. Cohen em
História Geral da África, volume VI, publicada em coleção pela Unesco 25, Buganda, Ruanda,
Burundi e Bunyoro a partir da segunda metade do século XIX passaram a monopolizar as
mercadorias trazidas de fora por comerciantes, aventureiros e exploradores europeus, bem
como membros de instituições missionárias cristãs e mulçumanas. Este processo explicitou
ainda mais a diferenciação entre reinos maiores e os menores, inclusive aumentando as
explorações tributárias dos primeiros sobre os demais. É válido destacar que a participação
europeia, seja na figura de religiosos ou na de leigos, foi se intensificando no período (século
XIX), o que mostra que o conhecimento sobre a região no continente estava aumentando.
Os primeiros exploradores europeus provavelmente se interessaram pela abundância
dos produtos presentes na região, principalmente alimentícios que ali eram produzidos e
utilizados também como forma de cobrança de tributos dos pequenos reinos para os quatro
maiores. Notícias sobre a “abundância” na verdade, parte de excedentes alimentares serviam
como alimentos para artesãos especializados, caçadores, caravanas de comerciantes e cortes
comuns na época como aponta J. Tosh26.

25
COHEN, David W. História geral da África, VI: África do século XIX à década de 1880 / editado por J. F. Ade
Ajayi. – Brasília : UNESCO, 2010. p. 319-322.
26
TOSH, J. “The cash -crop revolution in tropical Africa: an agricultural reappraisal”, African Affairs
Subscription Department, Oxford University Press, Press Road, Neasden, London NW10 ODD. ISSN 0001-
30

Portanto, a atividade comercial funcionava de forma efetiva e lucrativa dentro dessas


estruturas políticas organizadas desde a metade do século XVIII, principalmente pela
localização privilegiada. Se pensarmos na capacidade do comércio fluvial além do terrestre
podia-se facilmente observar que a essa estrutura política contava também com o comércio de
trocas que suplantava o terrestre. Estas lucrativas rotas foram tomadas dos povos como
bagandas por mercadores árabes e swahilis, que passaram a administrar a atividade comercial
antes mesmo das incursões europeias. Nessa tomada, o comércio de escravos e marfim se
intensificou servindo inclusive como trocas para aquisição bélica.
Os europeus, cristãos ou não e muçulmanos do Oriente passaram a fazer o mesmo no
decorrer do século XIX à medida que adentravam na região. É neste contexto que os
missionários também vão estar inseridos, inclusive conflitando e expondo suas divergências
com todos esses demais grupos em busca de maior influência ainda que com ressalvas quando
pensamos na postura que tomam diante das ações dos representantes do governo inglês. A
vinda e estabelecimento dos europeus, principalmente na região de Buganda foi somada à um
crescente processo de desigualdade facilitando o domínio religioso logo nos primeiros
contatos durante o governo de M’tesa em Buganda, já que estavam em meio a um confronto
civil entre os mais abastados e os mais explorados, podendo articular-se entre as duas
vertentes.
As constantes alterações dos cenários econômicos, políticos e sociais na região dos
“Grandes Lagos” da qual faz parte a atual Uganda, a partir do momento da incursão dos
missionários que estiveram ligadas ao processo que levou à chegada das influências do
colonialismo europeu e das vertentes religiosas das quais os missionários da CMS estavam
inseridos a partir de seu projeto de evangelização em solo africano. A primeira geração de
missionários protestantes da CMS iniciada em 1876. O colonialismo do século XVI explorou
a costa africana ocidental, ou seja, a região litorânea banhada pelo Oceano Atlântico que fora
sendo ocupada durante o período denominado de Expansão Marítima. Já durante o século
XIX o movimento de ocupação dos territórios no interior do continente foi cada vez mais
frequente seja pelos exploradores e naturalistas, pelos interessados em mercados
consumidores ou com a expansão de doutrinas religiosas como o caso das missões da CMS.
Esse movimento em direção ao interior do continente foi uma ação parecida com
aquela feita nas Américas durante a colonização do continente embora na África mais
tardiamente, o processo se desse de forma bastante acelerada como afirma Godfrey N.

9909. 79, 314, 1980. p. 79 -94. Este é um jornal publicado pela Royal African Society da Oxford University
Press. Membros desta sociedade devem estar diretamente ligados à secrataria da Royal African Society.
31

Uzoigwe27. Para este estudioso, a partir das teorias desenvolvidas dentro do imaginário
imperialista se cria uma lógica para justificar a subordinação por parte dos africanos daquela
região e o consequente avanço dos exploradores.

1.3 A missão inglesa em Buganda: procedimentos e o ambiente para


evangelização
Pode-se afirmar hoje que a Church Missionary Society e outras instituições
missionárias europeias que atuaram na África ultrapassaram as barreiras do trabalho religioso
e atuaram simultaneamente com as ações do colonialismo inglês. Tal condição com o tempo
auxiliou a expansão missionária dentro do universo colonial e levaram a ações coloniais que
por sua vez foram fundamentais para o estabelecimento e sucesso das missões como afirma
Eric Hobsbawm28. Segundo este autor, o século XIX foi um período clássico dos empenhos
dos missionários. Hobsbawm afirma que o trabalho missionário não foi intermediário da
política imperialista e que muitas vezes se opôs às autoridades coloniais. Porém, o sucesso da
empreitada das missões em busca da evangelização e expansão do cristianismo se deu em
função do avanço dos imperialistas. É indiscutível, para ele, que a conquista colonial abriu
caminho para a expansão e efetivação do trabalho dos missionários, usando como exemplo
Uganda.
Tal condição pode ser confirmada nos ideais de participação no meio político por parte
dos missionários anglicanos da CMS e ainda podem ser observados no acordo com o legado
deixado pelo secretário desta instituição até 1872, Henry Venn. Este homem foi fundamental
para que nos anos seguintes a instituição traçasse seus planos para se efetivassem seu trabalho
e consolidarem-se naquele espaço. Isto fica evidente no trabalho de Tudor Griffiths 29 que em
seu artigo aborda a respeito do período em que o Alfred Tucker fora o Bispo de Uganda,
momento este que coincidiu com a implantação do protetorado britânico. Neste artigo traz
algumas informações a respeito de como era a relação, ou pelo menos deveria ser, entre o
governo britânico e as missões da CMS.
27
USOIGWE, Godfrey. História geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935 editado por
Albert Adu Boahen. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. p. 21.
28
HOBSBAWM, E. A Era dos Impérios, 1875-1914. 3ªed. RJ: Paz e Terra, 1988.
29
GRIFFITHS, Tudor. Bishop Alfred Tucker and the Establishment of a British Protectorate in Uganda 1890-94.
Journal of Religion in Africa, Vol. 31, Fasc. 1 (Feb., 2001), pp. 92-114.
32

A influência de Henry Venn como secretário da CMS até 1872 sob o bispo Tucker
fora nítida durante seu episcopado em Uganda, quando havia um acordo para que os
missionários não interferissem nos assuntos políticos da região com relação às ações do
governo britânico na África. Porém, deve-se ressaltar que a não interferência de Venn não era
totalmente observada, pois em alguns momentos, os princípios cristãos contrariavam a
política britânica que, muitas vezes passava por cima dos ideais missionários que combatiam
explorações excessivas aos locais, condição não aceita pelos religiosos membros da CMS.
Apesar da orientação de afastamento com relação aos assuntos essencialmente
políticos que ficavam aos cuidados das autoridades seculares e dos chefes ingleses, os
missionários da CMS e funcionários ingleses conviveram num mesmo espaço. Eles
envolviam-se com a política ora concordando ou omitindo-se e ganhando o apoio e a
segurança do governo inglês para efetivarem sua presença ora com pequenas ressalvas a
respeito do que era considerado abuso sob o território e sua população. De acordo com as
instruções de Venn, um missionário só poderia se envolver politicamente, por exemplo, no
caso de escravidão, denúncias ou atentados aos princípios máximos de justiça, humanidade e
dever cristão, sempre com discussões entre eles e principalmente na presença do missionário
mais experiente. Ele enfatizou que o missionário deveria sempre que pudesse, evitar
partidarismo político da mesma maneira que deveria ser cordial e cortês na apresentação de
seus casos. As instruções de Venn eram no sentido de evitar envolvimento político por parte
dos membros missionários da CMS ao mínimo, mas não sem excluíam a possibilidade de que
algum envolvimento que pudesse ocasionalmente ser necessário.
Quando ele escreveu em 1860, a maioria dos missionários da CMS trabalhavam em
áreas onde havia algum nível de controle político britânico e os exemplos que ele deu de
aprovação no envolvimento de missionários em questões políticas, em todos os casos, eram
daqueles que de alguma maneira estavam relacionados a áreas e à situações onde a queixa foi
expressa contra as autoridades britânicas. Venn foi menos enfático e até de certo modo omisso
com os questionamentos sobre as relações políticas dos missionários da CMS do que com
governos não-cristãos e não-europeus.
Para os membros da CMS, as relações com o governo, apesar de por vezes estarem
envolvidas em pequenos conflitos locais, aconteciam relativamente sem grandes problemas.
Era claro para os próprios missionários que os representantes do governo britânico faziam
parte da nação intelectualmente “mais preparada” e que conduziria de maneira efetiva
Uganda, para a prosperidade. Tal ideia combinava um plano de salvação do legado bíblico
“amaldiçoado” imposto à África e que será tratado mais a frente. Tal assertiva se baseava no
33

pensamento eurocêntrico de época, bem como a crença na influência da cor da pele branca
para obtenção do status de “civilizados” que esteve presente em todo o século XIX com a
teoria da superioridade branca, nada melhor do que associar o avanço intelectual dos ingleses
com o avanço do cristianismo com a atuação dos missionários.
Uma outra particularidade nas missões religiosas inglesas era que o participante
pagava para participar da missão. O oferecimento de dinheiro para participar dessas missões
se deu ainda com os primeiros missionários membros da CMS para que pudessem fazer parte
daquela empreitada em 1876. Estes recursos mostraram-se fundamentais segundo o
entendimento da CMS.
É interessante ressaltar que o tema e a instituição são absolutamente atuais, visto que a
religião cristã sempre foi um importante componente no processo de “civilização” trabalhado
pela ideologia europeia tanto na África quanto na América. Contemporaneamente a CMS que
fundada em 1799 continua existindo, levando influências de um grupo e de um Estado até os
dias de hoje em diversas regiões espalhadas pelo mundo, inclusive mantendo missionários em
Uganda e enaltecendo os feitos de suas gerações passadas da qual faz parte a que estudamos
neste trabalho. Hoje um terço da população de Uganda segue o cristianismo pelo fato das
ações evangelizadores protestantes terem propiciado o cristianismo reverso, desenvolvido
com suas particularidades dentro do território.

1.4 O Imperialismo inglês, o protestantismo e algumas teorias afirmativas do


imaginário cultural europeu
Para compreensão da mentalidade do europeu e as bases fundamentais para
formulação de seu universo cultural afirmativo que pôde enaltecer as ações não só
governamentais, mas de todos os cidadãos ingleses que partilhassem de versões a respeito da
necessidade de se alterar um modelo sociocultural que estivesse fora dos padrões daquele
construído na Europa, alterações estas em vários setores sociais, dos quais faz parte a religião.
Assim algumas teorias foram por muitas vezes apropriadas e difundidas não só pela
Inglaterra, mas pela Europa como um todo e no decorrer do século XIX estiveram ainda mais
em evidência.
Nesta parte de texto visa-se reunir algumas para maior compreensão do ambiente
sociocultural do qual provinham os ingleses que se espalharam pelo leste africano a partir do
século XIX. São elas: a teoria econômica, teorias psicológicas, teorias diplomáticas e teoria da
dimensão africana. Para melhor explicitar ele coloca-as em tópicos separados, quanto à teoria
econômica, ainda que trate do período posterior ao nosso estudo, Uzoigwe fala das
34

continuidades de uma política eficaz por parte das imposições europeias, por isso, podemos
aplicá-la. O autor acrescenta ainda o pensamento clássico de John Atkinson Hobson que no
final do século XIX e início do século XX se difundiu sendo recuperado muitas vezes para a
compreensão do Imperialismo na era Vitoriana da Inglaterra para enfatizar o processo que
levou à crise da superprodução e à necessidade de se buscar rapidamente novos territórios
consumidores a qualquer custo, como vemos:
a superprodução, os excedentes de capital e o subconsumo dos países
industrializados levaram -nos a colocar uma parte crescente de seus
recursos econômicos fora de sua esfera política atual e a aplicar ativamente
uma estratégia de expansão política com vistas a se apossar de novos
territórios. (USOIGWE, 2010, p.23)

Logo percebemos que, no âmbito econômico a superprodução europeia que já


acontecia há muito tempo desde o avanço da indústria inglesa pioneira ampliada na Segunda
Revolução Industrial na segunda metade do século XIX com a produção de bens de consumo
comercializáveis que necessitava de novos mercados consumidores, assim como nos pactos
coloniais nas primeiras décadas do século XVI foram pautados visando não somente a
obtenção de novos produtos, mas também em novos mercados consumidores para os países
imperialistas. Além disso, a região de Uganda ainda contava com valiosos recursos naturais
que diferiam devido à fertilidade de outros territórios africanos. Em “A partilha da África
1880-1900” John Mackenzie30 também trará suas afirmações a respeito do imperialismo como
conceito econômico do século XIX onde a Inglaterra e outros países europeus ocidentais estão
em busca de novos mercados consumidores e fornecedores de matéria prima. Este
imperialismo irá chegar pelas mãos do governo inglês e atuará simultaneamente à empreitada
missionária. Logo, as relações entre o governo inglês e os membros religiosos estiveram
presentes naquele contexto da instituição CMS, não era interessante para os missionários
conflitarem com o governo inglês naquele território, pois isso confundia os objetivos
religiosos com os políticos, embora nem sempre se pudesse delinear uma ação da outra como
afirma Hobsbawm (1988).
Segundo Mackenzie o imperialismo também se deu pela imposição cultural e religiosa
a povos que eram considerados inferiores utilizando também da força militar no momento da
ocupação desses territórios. No caso da CMS era fundamental que os povos locais
aprendessem os preceitos religiosos e o evangelho cristão a partir da sua própria língua para
que auxiliassem no processo de expansão do número de evangelizados, transformasse a Igreja
local com aspectos cada vez mais próximos da realidade de Buganda como forma de garantir

30
MACKENZIE, J. M. A Partilha da África 1880-1900. São Paulo, Ática, 1994.
35

a permanência e a aceitação dos baganda com relação ao processo de conversão e


convencimento da necessidade do cristianismo protestante para os africanos.
Não só a língua local de forma escrita nos textos bíblicos, mas também as pregações
feitas por sacerdotes africanos, com formação religiosa em Buganda, possibilitaria um maior
reconhecimento dos africanos com a religião do europeu. Para isso a tradução dos materiais
para o ensinamento dos dogmas cristãos foi fundamental. Na década de 1880, os preceitos
cristãos já eram traduzidos do inglês para diversas línguas locais como swahili e a língua
inglesa já era ensinada a uma grande parcela da população local, assim, puderam surgir
pastores locais que garantiram a permanência daquelas ideias.
No âmbito econômico, por parte do governo inglês durante o fim da década de 1880 e
início da década de 1890 até o estabelecimento do protetorado, o que ocorria era uma espécie
de novo colonialismo, não mais aquele lento e analítico de ocupação territorial do século XVI,
mas sim ações rápidas que atendessem ao mercado e as mentes em uma disputa mais acirrada.
Boa parte da Europa precisava de recursos naturais para suas indústrias além de
riquezas naturais que atraíram novos exploradores. As ações deste grupo muitas vezes entrou
em desacordo com os grupos locais. Apesar dos abusos os membros da CMS na maioria das
vezes, não se opunham abertamente aos exploradores e mesmo algumas atitudes do governo
inglês. Contudo, a tolerância era quebrada quando se havia denúncias de escravidão. Neste
caso, sempre era recomendado pelos superiores que intervissem, sendo assim em alguns
momentos pontuais os missionários tomaram partido para tentar evitar práticas escravistas.
Os pensamentos que justificavam a ação do europeu, portanto, na maioria dos
momentos influenciou a postura desses estrangeiros dentro do território de Buganda, tradições
e cultura ocidental sempre representavam algo muito diferente do que era vivido dentro das
sociedades do leste-africano. Assim, mesmo quando missionários e o governo inglês através
de seus representantes na região tinham posicionamentos contrários eles eram muito mais
facilmente acordados e solucionados entre si do que com relação aos pensamentos da
sociedade local devido aos universos diferenciados. Por isso, havia a mínima intervenção
possível por parte dos religiosos ingleses nos assuntos ligados à esfera política.
Algumas teorias difundidas faziam com que a ação dos missionários da CMS partisse
de um pensamento comum ao dos representantes do governo inglês no que concerne a ideia
de uma religião “melhor e necessária” do que as crenças pagãs africanas, somente pelo fato de
terem se desenvolvido na Europa. Estas teorias, por exemplo, as enfatizadas por Atkinson
Hobson, dentre outras, pelas quais foi refletida ideia de superioridade intelectual e de
desenvolvimento da civilização que precisava ser levado até a África, fosse pela vertente da
36

imposição política representada pelo governo inglês, fosse pelo conhecimento e aceitação do
cristianismo protestante como religião “correta” para “salvação” daquela sociedade. Dentro
dessas teorias que mostram a religião presente num contexto geral imperialista Usoigwe
denomina como teorias psicológicas. Temos um grande exemplo a partir de sua posição em
relação a teoria do darwinismo social:
A obra de Charles Darwin, “A origem das espécies por meio da seleção
natural, ou a conservação das raças favorecidas na luta pela vida”
publicada em inglês em novembro de 1859, parecia fornecer caução
científica aos partidários da supremacia da raça branca, tema que, depois
do século XVII, jamais deixou de estar presente, sob diversas formas, na
tradição literária europeia. Os pós-darwinianos ficaram, portanto,
encantados: iam justificar a conquista do que eles chamavam de “raças
sujeitas”, ou “raças não evoluídas”, pela “raça superior”, invocando o
processo inelutável da “seleção natural”, em que o forte domina o fraco na
luta pela existência. (USOIGWE, 2010, p. 25)

O autor também traz suas reflexões quanto ao cristianismo evangélico:


O cristianismo evangélico, para o qual A origem das espécies era uma
heresia diabólica, não tinha, por sua vez, o menor escrúpulo em aceitar as
implicações racistas da obra. As conotações raciais do cristianismo
evangélico eram moderadas, todavia, por uma boa dose de zelo humanitário
e filantrópico sentimento muito disseminado entre os estadistas europeus
durante a conquista da África. Sustentava-se, assim, que a partilha da
África se devia, em parte não desprezível, a um impulso “missionário”, em
sentido lato, e humanitário, com o objetivo de “regenerar” os povos
africanos. Já se afirmou, além disso, que foram os missionários que
prepararam o terreno para a conquista imperialista na África oriental e
central, assim como em Madagáscar. No entanto, se é verdade que os
missionários não se opuseram à conquista da África e que, em certas
regiões, dela participaram ativamente, esse fator, por si só, não se sustenta
como uma teoria geral do imperialismo, em razão de seu caráter limitado.
(USOIGWE, 2010, p. 25-26)

Nota-se, portanto, que a religião tornou presente dentro do contexto cada vez mais de
forma efetiva e fora apoiada e auxiliada pelos governos imperialistas como mais um meio de
levar a cultura europeia para essas regiões no século XIX. É nesta vertente que esta
dissertação segue já que adiante demonstraremos mais ativamente as relações da política com
as instituições religiosas na África e as formas de afirmação de seus preceitos, rituais e
dogmas.
Além da ideia de superioridade e capacidade intelectual que estariam levando a
religião “correta” que era a cristã protestante, os missionários se apoiavam em interpretações
bíblicas e programas que buscavam uma “salvação” do continente a partir da religião trazida
pelos grupos missionários. A teoria da África amaldiçoada por Noé, a chamada “maldição de
37

Cam”31 também esteve ligada à esta tentativa de justificação ideológica para a incursão e
formação das missões. A CMS adentra neste contexto na busca por áreas de influência
religiosa e acaba atuando simultaneamente na expansão inglesa dentro de Buganda. Assim,
embora não oficialmente, autoridades inglesas e missionários atuassem na mesma área da
África central e leste eles ampliaram e colonizaram Buganda em uma empreitada que tinha
mais alianças do que conflitos.
Usoigwe observando pelo viés sociológico observa um ativismo social, e mostra esta
vertente utilizando outro teórico:
Foi Joseph Schumpeter o primeiro a explicar o novo imperialismo em
termos sociológicos. Para ele, o imperialismo seria a consequência de
certos elementos psicológicos imponderáveis e não de pressões econômicas.
Seu raciocínio, exposto em termos antes humanistas do que da
preponderância racial europeia, funda-se no que ele considera ser um
desejo natural do homem: dominar o próximo pelo prazer de dominá-lo.
Essa pulsão agressiva inata seria comandada pelo desejo de apropriação,
próprio do ser humano. O imperialismo seria, portanto, um egoísmo
nacional coletivo: “a disposição, desprovida de objetivos, que um Estado
manifesta de expandir-se ilimitadamente pela força”. (USOIGWE, 2010, p.
26)

Havia também as teorias diplomáticas do imperialismo, utilizadas para fundamentar as


ações de exploradores e políticos da época com relação à partilha da África no final do século
XIX. A partir dessas teorias percebemos mais nitidamente a intenção das nações europeias em
enfrentar todos os obstáculos que atravessassem seus projetos expansionistas de alcance de
novos mercados consumidores, de possibilidade de obtenção de matéria prima, na abertura de
estradas e na presença cada vez mais efetivas e comuns da Companhia de Comércio Inglesa,
que facilitou a presença e continuidade do trabalho missionário através da postura de seus
membros com relação ao apoio dado aos missionários.
No caso da vertente chamada de prestígio nacional, o principal teórico é Carlton Hayes
32
que faz a defesa do Reino Unido em sua política imperialista. Segundo ele, a nação que
aspirava compensar seu isolamento na Europa engrandecendo e exaltando o império britânico.

31
SANTOS, Patrícia Teixeira. Dom Comboni: profeta da África e santo no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Mauad,
2002.p. 64.
32
HAYES, Carlton. The Novelty of Totalitarianism in The History of Western Civilization, Proceedings of the
American Philosophical Society, vol. 82, no 1, fev. 1940, p.91-102.
38

CAPÍTULO 2
O universo religioso de Buganda e a Church Missionary Society: assimilações e
contrapontos

Antes de adentrarmos ao universo missionário da CMS é preciso considerar como era


o universo religioso na visão do colonizador europeu e, através da cultura religiosa, perceber
qual era o contexto em que se encontrava o continente. As religiões africanas por muito foram
negadas como religião pelos europeus. As primeiras recuperações deste universo vieram
através dos estudiosos africanistas naturais do continente africano. Um grande estudioso desta
39

temática é Emmanuel Obiechina33. Sua posição sobre as crenças religiosas nativas são um
marco e também importante aspecto para entender a visão de mundo dos povos das
sociedades tradicionais como aparece em um trecho de sua obra:
Não existe qualquer dimensão importante da experiência humana que não
esteja ligada ao sobrenatural, ao sentimento popular religioso e à piedade
[...]. Tudo isso constitui parte integrante da estrutura ideológica da
sociedade tradicional e é essencial para uma interpretação exata da
experiência no contexto social tradicional. (OBIECHINA, 1978. p. 208)

A religião nativa, segundo Obiechina, estava ligada ao contexto regional,


compreendendo além do sobrenatural, a natureza divina e o lugar do ser humano no mundo. A
divindade maior tinha suas variações de acordo com a localidade. Ainda segundo o autor,
deus funcionava como um suserano nas sociedades, podendo beneficiar ou castigar o
indivíduo de acordo com o que este tivesse feito, ou seja, o que faz bem recebe o bem e o que
faz mal, recebe o mal.
O ser superior não possuía uma imagem física, sua existência era essencialmente
espiritual. Abaixo do superior temos outros espíritos hierarquizados com base na
ancestralidade. A ancestralidade é uma condição presente na política e a sociedade nos
territórios da África como um todo sendo fundamental para compreensão de seu universo
cultural, religioso e político. A influência dos ancestrais está indiscutivelmente interagindo
com a hierarquia de poder, com a cultura e é fundamental para essas populações. Mesmo
nesta linha hierárquica aparecem os deuses que tinham responsabilidade de castigar ou
premiar os seus seguidores. Ainda existiam os feiticeiros e bruxos trabalhando com o místico
e eram reconhecidos pelos membros dos reinos. Segundo o autor, todas estas esferas
religiosas nativas eram necessárias para harmonia na comunidade.
Segundo um outro autor do tema (universo religioso nas sociedades africanas),
Mbiti34, muitas novas crenças poderiam ser incorporadas a tradição, já que, inclusive nas lutas
étnicas respeitava-se muitas vezes a crença do vencedor e também a do perdedor. Isso era
comum e coeso nas sociedades africanas e é algo que olhar das potências imperialistas avaliou
muitas vezes, segundo relatos, como ausência religiosa.
Para os missionários da primeira geração da CMS e os posteriores essas características
pagãs também eram tidas como necessidade de conversão ao cristianismo. A salvação só seria
possível a partir da aceitação da religião ocidental. Para o reverendo Mullins, “a ausência
religiosa” era o fator que motivava o que ele chamou “um pulo do escuro”, para salientar que
33
OBIECHINA, E. Culture, Tradition and Society in the West African Novel. Cambridge. Cambridge University
Press. 1978.
34
MBITI, John S. Africa religions & philosophy. Biddles Ltd, King’s Lyn, Norfolk. 1969. p. 2.
40

a conversão de milhares de pessoas de grupos locais a partir do trabalho evangelizador dos


missionários.
Devemos observar, entretanto, que a conversão implicava em um processo de
negociação de ambas as partes. Muitas vezes durante os batizados e as pregações era
necessário algumas assimilações com a cultura religiosa local para que os convertidos
pudessem compreender a intenção dos pregadores missionários, e mesmo nas passagens que
serviam como ilustração para convencimento dos novos fiéis do “caminho correto a ser
seguido” na visão do europeu, era colocado muitas vezes artifícios pagãos e costumes locais
para indicar o que era correto ou não após a conversão.
Uma passagem que traremos adiante mostrará inclusive um doente a beira da morte
que implora a um não convertido que borrife água em seu rosto e profira as palavras do ritual
cristão “em nome do pai, do filho e do espírito santo” para concretizar antes da morte o desejo
de se tornar cristão, e essa conversão fora aceita mesmo sendo feita pelas mãos de um
descrente no Evangelho.
As assimilações, adaptações ou negações do ambiente cultural pagão local eram
necessárias como meio de alcançar um maior número de fiéis, ou seja, o contexto histórico,
político e cultural local influenciou o modo de evangelizar dos missionários da CMS, que sem
adaptações não teriam obtido sucesso na empreitada como a necessidade de se criar uma
língua escrita que pudesse contribuir neste processo evangelizador além da necessidade de
fazê-la a partir da língua inglesa. Para a instituição missionária a tradição afirmava a condição
de “atraso” com relação ao inglês, era a forma como representavam “o outro” africano em
seus textos, mas, além disso, era uma maneira mesmo que fruto do ideal comum na Inglaterra,
de justificar a necessidade de se expandirem com o processo evangelizador pelo território de
Buganda.
Nessa perspectiva, John e Jean Commaroff 35 nos trazem fundamentos para melhor
compreensão da necessidade que o europeu tinha em afirma-se dentro no universo africano e
da suposta indispensável colaboração que os africanos dos reinos do leste do continente,
durante o século XIX, representados como sem cultura e desorganizados necessitavam para
alcançarem a “civilidade”. Isso fica evidente, por exemplo, no trecho:
Na medida em que uma sociedade civil em África é amplamente tomada a
depender “do triunfo do capitalismo liberal” seu futuro não é geralmente
percebido como uma mera questão de materialidades, de interesses
econômicos. Algo mais elevado está em questão: “o abraço do espírito
histórico mundial” que investe projetos cívicos com “finalidade imanente”.
35
COMAROFF, John L. COMAROFF, Jean. Civil Society and the Political. Imagination in Africa: Critical
Perspectives. Chicago and London: University of Chicago Press, 1999.
41

Para os espíritos “menos elevados” a chave para a civilidade reside em


mundanidades; (...) a consolidação da sociedade capitalista do século XVIII
e XIX, com seus arranjos sociais e culturais característicos, seus sujeitos
portadores de direitos, suas maneiras “refinadas”.
Assim é que os intelectuais ocidentais, advogados, empresários,
acadêmicos, professores, e às vezes Líderes cristãos (nunca muçulmanos)
foi orientada. - E são tipicamente vistos de fora como as vanguardas de
informação da sociedade civil. São eles que são pensados com maior
probabilidade de se comprometerem com o desenvolvimento de uma esfera
pública ativa, juntamente com os seus meios necessários e organizações
voluntárias; em gerar lugares e associações através do qual a burguesia
pôde perseguir os seus interesses sem entraves, por lealdades paroquiais, a
política de identidade ou governos intrusivos; a equiparar esses interesses
com o bem da sociedade em geral, até mesmo através de "humanidade". 36
Nesta ideia, mantiveram os diversos grupos provindos da Europa para a África sejam
eles ou não religiosos, uma mentalidade equivocada de superioridade do europeu em função
dos africanos, representá-los como aqueles que necessitam de auxílio para construção de sua
política e religiosa é uma maneira dos ocidentais europeus de personificarem as informações
do mundo “civilizado” para serem “repassadas” para a sociedade civil dos reinos como o
estudado, por exemplo.

2.1 Demais povos e culturas coexistentes na sociedade do reino

Além do ambiente religioso dos baganda existiram também outros povos que
coabitavam e exerciam influência na região dos quatro grandes reinos. Os muçulmanos
surgiram no período anterios à chegada dos missionários cristãos, os registros indicam que o
Islã chegou a Buganda, por volta de 1844, quando Ahmed Ibn Ibrahim conhece o então
palácio sede do monarca. No entanto, também acredita-se que alguns outros árabes
muçulmanos ligados ao comércio já exerciam suas atividades desde 1830, durante o reinado
do kabaka Suuna II`s. É também possível que os muçulmanos possam ter chegado mais cedo

36
Do original: “Insofar as a civil society in Africa is widely taken to depend on "the triunfo of liberal capitalism"
its future is not generally perceived to be a mere matter of materialities, of economic interests alone. something
more elevated is at issue:"the embrace of the world historical spirit" that invests civic projects with "immanent
purpose". For the less high minded the key to civility resides in mundanities;(...) the consolidation of eighteenth
and nineteenth century capitalist society, with its characteristic social and cultural arrangements, its rights-
bearing subjects, its "refined" manners.
Thus it is that Western intellectuals, lawyers, entrepreneurs, academics, teachers, and sometimes Christian
leaders (never Muslim) was oriented. - and are typically seen from outside as the vanguards of civil society
information. It is they who are thought most likely to commit themselves to the development of an active public
sphere, along with its requisite media and voluntary organizations; to criate places and associations through
which bourgeoisies might pursue their interests untrammeled by parochial loyalties, identity politics, or intrusive
governments; to equate those interests with the good of society at large, even means of “humankind”.” Tradução
Propria. In: COMAROFF, John L. COMAROFF, Jean. Civil Society and the Political. Imagination in
Africa: Critical Perspectives. Chicago and London: University of Chicago Press, 1999. p. 19.
42

em Buganda através do eixo norte do Egito e do Sudão. O fato é que esses homens chegaram
naquele reino pelo menos 33 anos antes do cristianismo e, assim como em certas áreas da
África oriental se interessavam por vias de comércio. Junto com sua atividade divulgavam e
seguiam o Islão há muitos séculos, como menciona Kofi Asare Opoku37:

Foi se desenvolvendo uma nova cultura muçulmana e, a partir dessa


mistura com a cultura bantu, nasceu a cultura swahili. O kiswahili é, hoje, a
língua franca da maior parte da África oriental. Antes da chegada das
potências coloniais, o islão já avançara em proporção considerável. Dentre
seus progressos, assinalemos a substituição do ciclo de festas tradicionais
pelo calendário muçulmano em várias partes da África e a incorporação de
numerosas palavras e conceitos árabes por línguas africanas como o
haussa, o fula e o mandinga, o que contribuiu muito para enriquecê-las. No
retorno da viagem, os peregrinos já seguiam novas modas de vestuário; e,
com o exemplo de religiosos e clérigos muçulmanos residentes ou de
passagem por diversas regiões da África, a cultura árabe tinha começado a
causar grande impacto sobre os africanos. A influência se fazia sentir
também na arquitetura, nos títulos, na música e em outros aspectos da
cultura, principalmente entre as camadas mais favorecidas da população
africana, sobretudo no Sudão. Malgrado o progresso muçulmano
conseguido antes da chegada das potências coloniais, as últimas décadas do
século XIX assistiram ao desmoronar de alguns Estados teocráticos da
África ocidental, ao enfraquecimento do comércio e da influência
muçulmanos na África oriental. (OPUKO, 2010. p. 595)
Percebemos a forte influência muçulmana secular e em vários âmbitos da sociedade de
Buganda, com destaque para a formação da cultura swahili, esta que concentra aspectos dos
povos bantus misturados no decorrer de séculos com a cultura árabe de tradição religiosa
muçulmana que ficara fixada na arquitetura, nas vestimentas, artesanato, principalmente entre
a elite dos reinos que cercavam os “Grandes Lagos”, alguns aspectos podem ser observados
nas imagens pintadas dos soberanos, mas principalmente no campo linguístico onde a língua
recebe também o nome de swahili e é compartilhada até hoje pelo povo de Uganda, tamanha e
importante sua presença naquela região, bem como na paisagem urbana de lugares próximos,
como o caso do Sudão que faz fronteira com o local de estudo.
Por conta dessa presença efetiva dos muçulmanos que configuram como parte da
cultura e do cotidiano da região de Uganda, surgiram críticas e combate a influência entre os
povos dos reinos ali presentes. Os missionários teciam críticas em seus escritos afrontar e
combater os muçulmanos. Uma das práticas mais criticadas eram as circuncisões feitas pelos
seguidores do Islão e veementemente combatidas pelos missionários, geralmente citadas
como mutilações. A condenação não se fazia apenas contra os rituais muçulmanos, mas,

37
OPOKU, K.A. A Religião na África durante a época colonial. In: História geral da África, VII: África sob
dominação colonial, 1880-1935 / editado por Albert A. Boahen. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010, p. 595.
43

justamente para condenar seus seguidores que eram muitos dos baganda, uma vez que a
religião tinha sido a religião do rei, ou seja, combater as influências muçulmanas era mais
uma forma de enaltecer a necessidade de se inserir o cristianismo e solucionar os “atrasos”
daquele povo representado a partir da visão dos membros da CMS.
Os conflitos religiosos eram frequentes e perseguições feitas durante o governo do rei
Mwanga ante os cristãos, muitas vezes apoiados pelos muçulmanos mais próximos
representou uma forma de afirmação por parte do rei baganda na defesa de seus interesses e
de sua cultura religiosa. Essas ações eram duramente combatidas nos textos dos missionários
ingleses que condenavam as ações do rei e enalteciam o caráter vitimador de seus membros.
O líder baganda e sua corte foram representados pela olhar da crueldade com que agiam para
com os protestantes e não como defensores de seu território, ainda que com artifícios
violentos.
Os combates físicos ou críticos entre os europeus cristãos protestantes contra o
governo local e muçulmanos que aconteceram em diversos momentos, baseavam-se em juízo
de valores culturalmente europeu e apontam de certa forma um jogo de influências constante
para o domínio regional. Os muçulmanos estavam na região há muito mais tempo do que os
europeus e haviam influenciado todo um processo de construção da cultura, incluindo a
religiosa, além de desenvolverem atividades comerciais fundamentais para a região desde
antes da chegada dos europeus e já no século XIX exerciam uma grande influência no âmbito
político inclusive sob as ações do monarca.
A influência islâmica foi fundamental para que o europeu imperialista afirmasse na
África a sua identidade na segunda metade do século XIX. (SANTOS, 2002, p. 84)
O que se observa é que a incursão do cristianismo na África se deu de maneira tão
forte no período de domínio colonial, porque ela tinha raízes no período anterior à chegada
das missões e no caso de Buganda, a entrada dos membros da Church Missionary Society fora
pouco tempo anterior a dos padres missionários católicos, também na segunda metade do
século XIX.
O continente africano ja havia tomado contato com as ideologias e rituais do
cristianismo em algumas etapas da história, porem algumas regiões só vieram a tomas contato
com esta vertente religiosa mais tardiamente como no caso do reino Buganda. A África,
portanto, passou por três etapas de intensa presença do cristianismo em seu território, segundo
Kofi Opoku38, a primeira etapa de expansão cristã no continente africano vai do século I até o
38
OPOKU, K.A. A Religião na África durante a época colonial. In: História geral da África, VII: África
sob dominação colonial, 1880-1935 / editado por Albert A. Boahen. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO,
2010, p. 597.
44

século VII quando os “rivais” muçulmanos passam a expandir seus domínios pelo norte e
centro do continente, começou no final do século I no Egito, e até o fim do século II na região
em torno de Cartago, a Igreja Ortodoxa de Alexandria foi um exemplo desta presença precoce
do cristianismo, seguido pelas Igrejas Copta também no Egito e Igreja Ortodoxa Etíope,
conhecida oficialmente como Igreja Ortodoxa Etíope Tewahido. Essas Igrejas foram
essenciais para deixarem uma importante contribuição cultural nessas determinadas regiões
do continente, muitas delas com forte influencia até os dias atuais.

A segunda fase se iniciou no século XV com as navegações. A partir dela se ampliou o


conhecimento sobre o continente africano e se inicia um maior trânsito junto com a presença
dos portugueses que levou a uma grande penetração das ideias cristãs, nas regiões costeiras e
centro africana.

Essas ideias e desenvolvimento do cristianismo no continente africano, porém, foi


suplantado pela intensa atividade do tráfico de escravos durante séculos. Devido a ele, a
ampliação das igrejas cristã europeias na busca de novos fieis foi diminuta em relação os
espaços de ação do comércio. O tráfico negreiro estava em desacordo com a atividade
religiosa, porém esta atividade era tão lucrativa que era tolerada por ela.
A última fase é o período de chegada dos missionários de diversas vertentes cristãs. É
este também o momento de interesse deste trabalho, vindos da Europa durante os fins do
século XIX, mais intensamente na década de 1880, derivados de correntes surgidas desde o
século XVIII na Europa, como é o caso da CMS que aparece em 1799 na Inglaterra com
claras intenções de expansão de suas doutrinas e evangelização de territórios onde o
cristianismo estava pouco presente ou praticamente inexistente.
Esses homens membros dessas instituições vinham de diversas localidades apoiados e
incentivados por elas para iniciarem suas jornadas no interior do continente. Neste momento,
diferente dos outros dois períodos anteriores, o que perdurou até o século VII e
posteriormente no século XV em outras regiões do continente, aconteceu na parte oriental, ou
seja, na região dos “Grandes Lagos”. A inspiração para tal feito era a expansão evangelizador
somado a um maior conhecimento da região. Ainda que não fosse tão avançado, contava-se
com os relatos de experiências dos primeiros exploradores que povoavam semanalmente os
jornais de todo mundo contando as aventuras de viajantes na “África selvagem”.
As rotas comerciais e a agricultura figuravam como parte dos projetos de
catequização, a permanência e o conhecimento desenvolvido a partir da presença missionária
foram de fundamental importância para o momento em que se iniciaram as lutas de fato pela
45

conquista do continente por parte dos governos europeus. A figura do missionário auxiliou
muitas vezes no conhecimento de trilhas e caminhos assim como muitas vezes o inverso
também acontecera com relação à entrada em territórios mais inóspitos. Opoku argumenta que
as ações missionárias encorajavam entusiasticamente a intervenção europeia, sobretudo a
partir dos anos 1870, nela vendo um empreendimento moralmente justificado e no caso de
Uganda não fora diferente.
Durante o período colonial vemos a difusão da forte influência europeia dentro da
região interiorana do continente, a mudança de local de exploração saída da costa e chegada a
territórios recentes marcou a trajetória do cristianismo dentro da África. A visão
“progressista” defendida pelos europeus de todas as instâncias seja ela religiosa, comercial ou
política passava por um processo de convencimento da sociedade local de que era necessária a
desconstrução de ideias e apegos culturais e inserção de outros valores como no caso da
cultura escrita para ampliação e edificação do cristianismo para obtenção da característica do
progresso que era o status de “civilizados”.
Via-se em várias citações durante as pregações de Mackay, por exemplo, a crítica ao
ambiente pagão e às tradições não aceitas por qualquer ocidental ou como algo errado que
deveria dar lugar aos dogmas do universo cristão.
Mackay após enaltecer o caráter critico e a postura egocêntrica de M’tesa, valorizando
seu discurso, tece suas pregações para diminuir a importância dos ensinamentos muçulmanos
repassados para o monarca por um árabe chamado Masudi e causar impacto a respeito da
posição “correta” que o kabaka deveria seguir:
Oh Mtesa, meu amigo, não repita sempre essa desculpa! Quando você e eu
estivermos diante de Deus no grande dia do julgamento, você vai responder
a Deus Todo-Poderoso que você não sabia no que acreditar, porque Masudi
te disse uma coisa e Mackay disse que outra? Não, você tem o Novo
Testamento; leia lá para você mesmo. Deus vai julgá-lo por isso. Nunca
houve qualquer pessoa que mesmo diante da verdade disse não tê-la
encontrado. 39(MULLINS, 1904. p. 29)
Assim como na Europa, política, cultura e religião estavam intimamente ligadas e, no
continente africano estes aspectos eram ainda mais interligados à vida cotidiana. O advento da
política europeia colonial com os princípios da religião tradicional nativa foi inevitável uma
vez que se constituía como uma das bases da centro sociedade africana. Esta condição era
análoga as diversas regiões da região equatorial, exceto na Etiópia onde o cristianismo há

39
Do original: “Oh M’tesa, my friend, do not always repeat that excuse! When you and I stand before God at
the great day of judgment, will you reply to Almighty God that you did not know what to believe because Masudi
told tou one thing and Mackay told you another? No, you have the New Testament; read there for yourself. God
will judge you by that. There never was any one yet who looked for the truth there and did not find it.” Tradução
Própria.
46

muito estava presente se nos remetermos à dinastia salomônica, provavelmente descendente


de Salomão, rei do povo hebreu, ali reinante. O forte embate entre os europeus e a religião
tradicional, foi o grande desafio para a sobrevivência das tradições por parte dos africanos.
Esse conflito trouxe como protagonistas, os povos locais e missionários que agiam como
ponte entre a religião e a cultura ocidental e religião e a cultura nativa. A conversão, portanto,
não deveria ser somente religiosa, mas sim para uma vida nova, como mostra Opuko:
Trabalhavam sem descanso para converter os africanos a uma forma de
vida na qual a religião estava separada dos outros aspectos da existência.
Ensinavam ao seu novo rebanho que a vida podia ser dividida em esfera
espiritual e esfera secular – ensino que se opunha à própria base da cultura
africana, ou seja, a unidade entre religião e vida. Desse modo, os
missionários tratavam de atacar o próprio elemento que sustentava a
coesão das sociedades africanas. (OPUKO, 2010 p. 597)

As ações afirmativas a partir das missões foram contestadas e combatidas por diversos
chefes locais como o caso de Mwanga e sua corte, bem como os muçulmanos árabes que
perceberam a possibilidade de perdas de influência como apontado por Mullins. Foi comum
em publicações dos missionários da CMS os relatos dessas relações conflituosas sempre
expondo o europeu como vítima desses chefes e não como ameaçadores da cultura
tradicional:
O rei os desapontou elaborando um plano diabólico contra todos os
principais ‘readers’ entre cristãos e muçulmanos, junto com sua corte, eles
seriam enviados a uma pequena ilha no Lago e seriam deixados a mingua.
(MULLINS, 1904. p. 51) 40
A abominação das formas ritualísticas era um meio de expor sua indignação aos
modos de vida desses povos. Acreditar em divindades, em espíritos, no sobrenatural, no poder
dos antepassados sobre a realidade do presente, dentre outros aspectos característicos desses
povos locais a partir da representação da visão do soberano e não conhecerem o monoteísmo
cristão ou abdicar dele estava, para o europeu, diretamente ligado ao “atraso” dessas
sociedades. Os missionários, assim como os europeus não religiosos propagavam sua posição
contrária a essas tradições. Um exemplo desta crítica negativa esta na análise publicada a
respeito do cenário de Uganda na época do estabelecimento dos primeiros missionários,
retratando não só o ambiente pagão como também o envolvimento dos árabes muçulmanos no
comércio de escravos:

40
Do original: “The king soon disappointed them. He conceived a diabolical plot to get rid of all the principal
‘readers’, both the Christian and Mohammedan, about his court. They were to be decoyed on to a small island on
the Lake and there left to starve. The plot laked out.” Tradução própria.
47

Um Comissário especial em seu relatório (...) descreveu os encantos e


cortesia dos baganda de hoje, enquanto também retratara em cores
chocantes do derramamento de sangue, o grande número de escravos, os
vícios, e a adoração degradada de “lubare” (espírito ao qual dedicavam
sua adoração) da antiga religião pagã de Uganda. As cenas horríveis
daqueles dias através das cores chocantes estiveram em todas as primeiras
narrativas tanto dos missionários quanto dos exploradores. Assassinatos
arbitrários não tinham outra razão senão por capricho do rei e estavam
constantemente ocorrendo. O rei pediria ao longo do tempo que as estradas
deveriam ser vigiadas, e todos aqueles que as atravessasse ocasionalmente
deveriam ser apreendidos e até mesmo condenados à morte. Mutilação era
uma punição comum para o crime. Deboche dessas situações era
indescritível e prevaleceu. O comércio de escravos era galopante. Mackay,
por exemplo, em uma carta ao The Times, em 1889, afirmou que 2.000
escravos foram vendidos para fora de Uganda a cada ano para traficantes
de escravos árabes.41(MULLINS, 1904. p. 18-19)
Até mesmo o poder de influência curandeiros, feiticeiros, líderes políticos que
respondiam também pela religião (costumes que inclusive, haviam acontecido na História da
Europa como em Os reis taumaturgos42), esteve fadado à críticas e condenações, foi um meio
de barrar a importância desses cargos dentro das relações sociais, dando espaço para atividade
missionária. A adoção da religião cristã, portanto, era também de interesse das nações
europeias, logo a figura do missionário apareceria como aquela que auxiliaria na suplantação
desta religião local diante das posições muitas vezes impopulares dos kabakas segundo a
visão dos missionários. Mesmo assim, neste cenário aparentemente propício, a incursão e a
difusão do cristianismo protestante enfrentou uma serie de barreiras devido a superstição que
os baganda mantinham a respeito da figura do kabaka, não partiu da vontade da população de
Buganda a “necessidade” de uma nova religião, pois a estrutura do governo, misturada com a
posição religiosa do monarca seguida pelos súditos, satisfazia uma ordem natural desde a
organização daquele reino. A impopularidade dos atos, portanto, é fruto da representação dos
missionários a respeito dos governantes e não da população do reino. Como no excerto:
O governo de Uganda, tal como existia quando descoberto pela primeira
vez, tinha como base uma estrutura ruralizada. O kabaka, ou rei, era um ser
supremo e e as pessoas tinham reverência a ele, uma espécie de superstição
para com ele, mesmo quando este tinha posturas impopulares. Isso explica a

41
Do original: “A special commissioner in his report (...) described the charms and courtesy of the
Baganda of to-day while he also pictured in lurid colours the bloodshed, the slave-raiding, the vice,
and degraded lubare worship (spirit-worship) of the old pagan Uganda. The horrible scenes of those
days colour all the early narratives of both missionaries and explorers. Wanton murders, for no other
reason than that it was the king's caprice, were constantly occurring. The king would order from time
to time that the road-tracks should be watched, and all casual wayfarers seized put to death.
Mutilation was a common punishment for crime. Indescribable debauchery prevailed. The slavetrade
was rampant. Mackay, for instance, in a letter to the TIMES in 1889, stated that 2.000 slaves were
sold out of Uganda every year to Arab slavers.
42
Descrição do caráter sobrenatural do poder régio na França e Inglaterra presente na obra de Marc Bloch.
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos, São Paulo: Cia. das Letras, 1993.” Tradução Própria.
48

influência exercida pelo tirano Mwanga mesmo depois que ele foi deposto. 43
(MULLINS, 1904. p. 19)
Neste universo onde a figura do governante era reverenciada pelos súditos, temos a
forte presença da religião pagã e os ritos dos baganda influenciaram diretamente a política e
as ações do monarca Mwanga, por exemplo, como forma de resistência de religiões
opressoras, até mesmo aquelas mais aceitas como o caso da muçulmana já mencionada, fora
inclusa no plano do rei de garantir a tradição pagã e se distanciar das influências estrangeiras.
Os cultos aos antepassados tradicionais para a sociedade foram utilizados como forma de
resistência ao opressor indesejado. Mesmo com a opressão e o intenso combate à essas formas
de manifestação religiosa, os africanos criaram e mantiveram suas tradições ainda que
sincretizadas com as diversas vertentes religiosas ali presentes.
No caso de Uganda, em 1912 pouco depois da passagem da primeira geração de
missionários por ali, a intensa presença de religiosos, temos o governo britânico que na
política era responsável pelo controle do regime de protetorado, cria uma lei que proíbe e traz
penas graves para aquele que possuísse materiais de feitiçaria, ou seja, materiais naturais ou
artesanais que representassem o paganismo ou que pudessem ser utilizados em ritos pagãos.
Mesmo com a pregação dos distanciamentos com relação aos rituais pagãos , a vida
após a morte e a utilização de exemplos a respeito do alcance do “céu” demonstravam que
ainda existia uma necessidade de se aproximar da realidade da tradição local para que as
pregações pudessem ser melhor compreendias pelos futuros e recém convertidos. O culto aos
antepassados, por exemplo, continuou sendo importante dentro da cultura do povo baganda e
não pôde deixar de fazer parte nem mesmo do cotidiano dos novos cristãos tendo de ser
mantidos.
Além da feitiçaria, termo utilizado pelos cristãos para condenar práticas não cristãs,
havia rituais de iniciação originado nas estruturas tribais, além de outras tradições como a
sodomia que durante o governo de Mwanga era incentivada. Os rituais de iniciação de
meninos e meninas na vida adulta eram alvo de constante descontentamento e abominação por
parte dos europeus, principalmente o da circuncisão feminina e masculina, derivadas dos
costumes do islão que Kefa M. Otiso 44 apontará este dado em seu trabalho, como a presença
dos árabes era maciça e a religião muçulmana estava presente a mais tempo do que a cristã no
reino de Buganda, alguns desses rituais já eram parte da tradição e aceitos não somente pela

43
Do original: “The government of Uganda, as it existed when first discovered, was a feudal basis. The
kabaka, or king, was supreme, and the people had sort of superstitious reverence for him, even when
he was personally unpopular. This explains the influence exerted by the tyrant Mwanga even after he
was deposed.” Tradução Própria.
44
OTISO, Kefa M. Culture and Customs of Uganda.Westport, Greenwood Press. 2006. p.20-60.
49

corte e o rei, mas pela população no geral. A influência do Islão que como já observamos se
deu pelo menos três décadas antes da chegada dos missionários da CMS em Buganda, já
obtinha não só um espaço de atuação na vida cotidiana, com destaque para o comércio, como
na postura dos kabakas com relação a sociedade. Mwanga, por exemplo, por diversas vezes
tomou decisões a respeito da postura a ser tomada com relação a ampliação da missão
protestante inglesa. A expressão “o homem branco que quer comer a terra” que diversas vezes
fora usada nos relatos para justificar a perseguição do rei aos missionários, surgiu a partir da
necessidade dos muçulmanos conselheiros do kabaka de enfrentarem e reduzirem o espaço de
influência do cristianismo com relação ao avanço do número de convertidos.
Enquanto isso, para os baganda esses rituais de origem na tradição muçulmana não
serviam somente para marcar a transição da vida infanto-juvenil para a adulta, mas também
para inserir de fato este jovem na vida em comunidade, explorando também o lado social e
cultural deste. Um exemplo dos embates a respeito de tradições culturais mantidas no reino
como resistência a aceitação das tradições cristãs no governo de Mwanga foi um grande
massacre que levou a morte de dezenas de cristãos. Luís Frederico L. Santos45 fala respeito:
O segundo grande massacre aconteceu entre 1885 e 1887, terminando com
a morte de quarenta e cinco cristãos, na maioria protestantes, a mando do
kabaka Mwanga. Segundo os aliados do chefe Baganda a razão para os
assassinatos teria sido sua desconfiança de que muitos dos pajens estariam
repassando informações da corte aos ingleses e franceses. Do lado dos
missionários, a principal acusação é de que os pajens teriam recusado a se
submeter aos atos de sodomia, estritamente condenados pelos cristãos,
requisitados pelo soberano. Os dois eventos, no entanto, são demonstrações
extremas dos conflitos em curso já há algumas décadas, decorrentes da
abertura do reino a forças externas que ao chegarem, desestabilizam o
poder do rei e de seus aliados.(SANTOS, 2013. p. 7)

No momento da atividade intensa do colonialismo nos fim do século XIX,


missionários indagavam os administradores para que contribuíssem no combate a tais
práticas, no decorrer das décadas os confrontos entre colonizadores e os povos locais de
Buganda foram inevitáveis, a aversão às práticas também se intensificaram e contribuíram
para tais fatos. Para o africano existia uma afronta não só contra suas tradições, mas também
contra seu domínio territorial e as sedes missionárias, suas escolas e locais onde missionários
de concentravam eram os maiores alvos desses tumultos.

45
SANTOS. Luís F. Lopes. Entre Deus, a Coroa e os Kabakas: evangelização e colonização inglesas no reino de
Buganda, 1885-1900. XXVII Simpósio Nacional de História, 2013, Natal-RN. Trabalho apresentado e publicado
em anais. Disponível em:
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364934155_ARQUIVO_LuisFredericoLopesdosSantosANP
UH2013.pdf> acessado em 20/12/2014
50

Esses três principais grupos, povos locais, muçulmanos viajantes vindos do Oriente,
muçulmanos povos locais e cristãos locais convertidos ou europeus relacionaram-se durante
todo o processo de exploração colonial nos países africanos. Porém, os cristãos europeus
divergiam neste processo e atuaram com diferentes políticas. Como já mencionado as relações
europeias e principalmente missionárias, se deram desde a época anterior à colonização da
região do central da África no século XVIII e foram se intensificando a partir do fim do
século XIX. Uma mistura de exploradores e conviveram lado a lado e convivência só possível
devido às similaridades nas visões de mundo compartilhadas por estes grupos. Estas crenças
iam desde a ideia da superioridade europeia pelo Darwinismo Social, passando pela
condenação bíblica do continente africano até a justificativa de motivos humanitários como a
necessidade de auxiliar esses povos para que alcançassem o desenvolvimento e o sucesso
econômico.
No caso das missões inglesas, temos que evidenciar que antes de serem missionários,
aqueles homens que estavam chegando a África eram britânicos e seus interesses se pautavam
na ideia de política imperialista da Inglaterra. Além dos similares pensamentos políticos entre
os missionários e os administradores ingleses havia a necessidade de proteção dessas missões
que também se beneficiavam do processo de formação da “civilização” a partir do modo
inglês de vida.
A religião cristã era a religião dos “vencedores” e estava ligada diretamente ao homem
europeu ocidental que carregava consigo a ideia de superioridade física e intelectual
largamente aceita intensa no século XIX. Neste sentido, a crença era de que somente através
da influência da superioridade branca seria possível o alcance do sucesso em todos os
âmbitos. Ou seja, no trabalho, a influência, a política ou qualquer outro meio social e viria a
partir do processo de ocidentalização vindo das escolas. Caberia as escolas a difusão e
manutenção dos valores europeus para moldar a nova vida do povo local, ou seja, escolas
apoiadas e organizadas por missionários ou mesmo espaços de evangelização e ensino da
língua inglesa fora ensinada a partir dos materiais contendo passagens do livro sagrados como
veremos adiante.
Tomando como exemplo uma escola britânica fundada na Nigéria na última década do
século XIX quase virada para o século XX, mas com os padrões de ensino do ainda do século
anterior, Chinua Achebe46 traz uma abordagem a respeito da atuação de missionários
46
ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o protetorado Britânico. Ensaios. Tradução: Isa Mara
Lando. Companhia das Letras, 2009. p.19.
51

anglicanos e de escolas fundadas por ingleses na Nigéria. Ainda que seja mais recente, é
possível perceber que as missões certa similaridade ligadas aos legados educacionais
protestantes e doutrinadores muito próximos daqueles propostos pelas ideias do protetorado
inglês. A trajetória de um menino africano dentro deste ambiente escolar mostra os dilemas
que ele vivia entre sua cultura materna e a imposição cultural e religiosa europeia
exemplificada no relato à sua mãe enquanto estudante de um colégio de missão inglesa:
Quando eu era adolescente, mais de trinta anos depois, a foto de Miss
Warner continuava na nossa parede. Na verdade ela era muito bonita, e na
foto sua boca parecia normal. “Uma perfeita dama”, nas palavras do
escritor Amos Tutuola. Uma noite, ela disse à minha mãe para comer a
comida no prato e depois lavá-lo com cuidado. Parece que ela estava
aprendendo o idioma igbo e o usou nessa ocasião. Ela disse:
“Awakwanaafele”, que deveria significar “Não quebre o prato”, só que os
verbos igbo às vezes são bem complicados. Minha mãe não se conteve e
deixou escapar uma risadinha mal reprimida, o que foi um grande erro.
Aquela dama vitoriana não achou a mínima graça. Pegou um enorme
pedaço de pau e deu-lhe uma tremenda surra. Mais tarde chamou-a e lhe
deu um sermão sobre boas maneiras: “Se eu falar errado seu idioma, você
deve me dizer qual é a maneira certa; mas é errado rir de mim”, ou algo do
gênero. Ouvi minha mãe contar essa história muitas vezes, e toda vez
ríamos de novo, pois “Awakwanaafele” é uma maneira de falar de
bebezinhos, que soa absolutamente hilária. (ACHEBE, 2009. p. 19)

Achebe afirma que o legado tradicional das surras levadas quando se contrariava ou
debochava de algo que vinha por parte dos educadores, permaneceu inclusive em sua
educação, mesmo quando os professores não eram mais missionários. Sabemos que a escola
foi o ambiente mais eficiente para conversões. No caso de Uganda elas foram muitas e,
mesmo quando não estavam de acordo com os moldes ocidentais tradicionais que
compreendem a concepção de escolas, pois muitas vezes o ensino estava em espaços abertos
ou principalmente dentro das casas de missão com a atividade educadora para conhecimento
da língua inglesa e nativa transcrita e a leitura com objetivo de evangelizar e conquistar novos
fiéis era a forma mais eficiente de ampliação da tradição cristã num menor período de tempo.
A necessidade da transformação da oralidade para a escrita estava totalmente de acordo com
os preceitos europeus, na ideia de cultura e “desenvolvimento”, já que as sociedade baganda
era harmoniosa antes da chegada do europeu com relação a oralidade para manutenção da
cultura.
Joseph Mullins47 utilizando a fala de um missionário diz que em Uganda aconteceu
“um milagre cristão dos dias modernos”. O milagre seria a conversão dos povos locais a fé
cristã em 30 anos conquistou-se mais de 30 mil fiéis. O que Mullins chamou de “um pulo do

47
MULLINS,J.D. The Wonderful Story of Uganda. London, Church Missionary Society, 1904. p. 6-7.
52

escuro”. Esse milagre cristão nos aponta qual o alto grau de convencimento dos missionários
e mostra como se auto representavam nos processos de conversão e traz o ponto de vista deles
sobre a população convertida ou a converter. O “pulo do escuro” era uma alusão às trevas, um
ambiente desprovido de qualquer benefício antes da chegada dos “salvadores”, ou seja, os
cristãos missionários da CMS. Neste sentido a figura do missionário inglês imbuía-se da
figura dos salvadores da fé daquela região.
O sucesso nas empreitadas europeias na região dos “Grandes Lagos” acabou
culminando, no caso de Uganda, na transformação da região ao status de protetorado inglês.
Tal mudança proporcionou em toda a África colonizada, a abertura para o surgimento de
inúmeras comunidades cristãs protestantes, onde antes não era comum ver cristãos. Em
consequência disso, muitos povos locais africanos convertidos ao cristianismo protestante
também se envolveram em um trabalho de evangelização de seu povo. À sua maneira, era
uma forma de ampliar o domínio cristianismo muito eficaz e de aproximá-lo dos africanos
que eram da mesma origem. Embora tenhamos que considerar os problemas da ideia de
transculturação48, o registro escrito da história de várias línguas e história de povos africanos
só foi possível através destas escolas e do processo de evangelização. Os missionários
passavam nas tribos locais ou nas casas de missão da CMS que tinham como método o uso de
materiais evangelizadores que traziam a língua local impressa e onde a língua inglesa também
era ensinada. Este processo não era novo e foi usado eficazmente com os jesuítas na América
e na África e era repetido com igual efeito pelos ingleses.
Dentro deste processo consideramos o processo de assimilação das línguas ancestrais
com as línguas europeias ensinadas que facilitou o contato com esses povos favorecendo
também a alfabetização e o registro. Ao se registrar as mais diversas culturas, que eram quase
que exclusivamente de tradição oral, se possibilitou o aparecimento de narrativas escritas
pelos próprios africanos que sob sua ótica contavam seus feitos e suas tradições.
A sobrevivência desses escritos pode dar longevidade e difusão das cultura ainda que
olhadas de modo preconceituoso trazendo informações não apenas para os próprios religiosos
mas também para fora da região e da África. O processo de assimilação de novas línguas não
parou e, em plena contemporaneidade, se observa o aparecimento de novas línguas em África.
Se tomarmos por base as escolas quase sempre de origem missionária, vemos que elas foram
de grande importância para o domínio local. É a partir da escrita que são produzidos
documentos povos locais e um conhecimento mais intenso da cultura e tradição das regiões do
interior permitindo uma maior aproximação. A escola não era apenas o ambiente de estudo,
48
PRATT, Mary L. Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo: EDUSC, 1999. p. 29.
53

mas muitas vezes fora também a própria igreja. Um grande exemplo disso é a mateka. A
mateka era um caderno religioso de ensino linguístico, alfabetizador e evangelizador,
produzido pela CMS. Ela contava com os principais mandamentos cristãos da Bíblia e era
utilizado pelos missionários para alfabetizar os habitantes locais e inseri-los no cristianismo
através da leitura e da escrita. Alexander Mackay enquanto esteve à frente da missão usou
muito este artifício para atrair novos fiéis e propagação do protestantismo anglicano.
Como vimos, os missionários acabaram por fazer um desenvolvimento literário e
desenvolver a migração da tradição oral para a escrita. Em muitas sociedades também por
desenvolveram um importante papel na modificação da economia monetária no continente
africano. A incursão de novos produtos e técnicas agrícolas, de certa forma deu maior
diversidade para a economia e conhecimento, mesmo sendo controladas pelos europeus, essas
atividades tem suas vantagens.

2.2 O surgimento do cristianismo africano na região

A atividade missionária tinha pontos que convergiam com relação ao relacionamento


com nativos, pois muito do que era comum nos rituais pagãos foi sincretizado, como, por
exemplo, a explicação da vida após a morte, que para os cristãos se dava a partir da chegada
ao céu e a salvação. As adaptações interpretativas tiveram de ser feitas para melhor
compreensão dos escritos bíblicos, assim, foi mais fácil expandir o projeto evangelizador
idealizado pelos missionários da CMS. Segundo Kefa Otiso (2010, p.609) as pregações e
rituais diferiam muito mais do que admitiam os missionários e eram consideradas importantes
dentro do processo cultural de mediação. Contudo, por mais que existisse a necessidade de
adaptação a vida e costumes dos povos catequizados, os missionários sempre manifestavam
uma atitude negativa para com a cultura e a religião africana, como aponta OPUKO :
Desde o início estavam decididos a destruí-las. Pregavam que o único deus
verdadeiro era aquele cuja natureza e essência haviam sido reveladas pela
Bíblia; que todos os outros deuses não passavam de ilusões; que o filho de
Deus, Jesus Cristo, era a revelação suprema e único salvador da
humanidade; que a igreja era a única a dispensar a graça divina e que fora
dela não havia salvação. Desse modo, os missionários europeus
consideravam dever divino conduzir todos os povos ao domínio da graça e
da salvação.
Imbuídos da convicção de serem donos da única verdade,
condenavam tudo o que fosse “pagão”. Pregavam contra todas as formas
de práticas tradicionais: o derrame de libações, a celebração de cerimônias
de pompa, batuques e danças, as cerimônias tradicionais dos ritos de
passagem, como a condução do recém-nascido para além da soleira, os
ritos de puberdade das moças e os costumes ligados aos mortos e aos
54

enterros. Também negavam a existência dos deuses, das feiticeiras e de


outras entidades sobrenaturais em que os africanos acreditavam. De modo
geral, tornar-se cristão significava, em larga medida, deixar de ser africano
e tomar como ponto de referência a cultura europeia. O cristianismo
exercia, portanto, uma força desagregadora sobre a cultura africana.
(OPUKO, K. 2010. p. 612)

A reação ao processo de conversão sempre foi diversa. Havia aqueles que aceitaram
sem problemas a nova religião, principalmente grupos excluídos do poder em suas
comunidades étnicas. Uma vez convertidos, muitos habitantes de Buganda se adaptaram
facilmente ao cristianismo e auxiliaram na propagação do mesmo, funcionando muitas vezes
como missionários para propagação da evangelização. Outros ainda que declarados
convertidos, não conseguiam se desvincular de suas tradições por completo e continuavam a
temer feiticeiras e enaltecer antepassados como forma de não abandonarem por completo seus
rituais. Isto pode ser provado pelos textos dos missionários. Se pensarmos no sincretismo
religioso e nas adaptações de tradições feitas pelos escravizados africanos e afro-brasileiros,
percebemos que estas estratégias de manutenção de parte da cultura de sua etnia eram comuns
também entre os grupos subalternos que toma como base a fuga da dicotomia colonizador
europeu/colonizado africano, que restringe e não dá “voz” aos não-europeus, algo que
segundo Frederick Cooper deveria ser feito. A preservação cultural se dava por meio desses
processos que possibilitaram de alguma forma assegurar o não desaparecimento de cultura
locais de povos como os Buganda.
Posteriormente no século XX, essa mistura de elementos de uma religião africana com
a cristã europeia, acabou por fundar as chamadas Igrejas separatistas. A formação delas se
deu a partir do interesse de se incorporar cada vez mais elementos africanos à doutrina cristã,
o que levaria a uma maior aceitação do que aquela obtida pelos missionários europeus. O
principal motivo foi justamente o surgimento das línguas nativas escritas e a partir destas, a
tradução do livro sagrado (a Bíblia) para essas línguas. Esse procedimento acabou
possibilitando a leitura e interpretação das escrituras sagradas por parte dos africanos e ajudou
a formação de um código escrito nos mais diversos dialetos para o inglês e vice-versa.
De acordo com o que se compreendia, os convertidos começaram a difundir as
diretrizes do cristianismo e também a fundar e/ou administrar suas próprias igrejas. A medida
que surgiram convertidos e missionários africanos eles progressivamente foram tirando das
mãos dos missionários o monopólio da catequização e sua interpretação. Ou seja, a CMS
indiretamente criou novas interpretações na continuidade do trabalho de evangelização feito
pelos “nativos” convertidos. Desse modo, o trabalho missionário não só se ampliou, mas foi
55

ganhando novas funções e leituras por parte dos convertidos (BYARUHANGA, C. 2008. p.
206)
Não por acaso as igrejas criadas pelos africanos convertidos passaram posteriormente
a se tornar palco político para exprimir a insatisfação para com o colonialismo. Neste sentido,
elas deixaram de ser o braço do colonizador e, em muitas partes, elas passaram a ser
hostilizadas por parte dos povos colonizadores como forma de conter movimentos contrários
à suas administrações. Em muitas áreas, o descontentamento com os impostos e outros abusos
da política colonial foi levado por essas instituições surgidas a partir de cisões para pauta e
impulsionaram o surgimento oposições contra o domínio colonial. No caso de Uganda essas
oposições ficaram marcadas por um homem que fora militar chamado Ruben Spartas Mukasa
que durante a dominação inglesa sob a forma de protetorado na segunda década do século XX
fundou um novo braço da Igreja Ortodoxa Africana, dissidência da anglicana, em Uganda e
nela exprimiu as insatisfações com o governo imperialista inglês. Doou-se para a liberdade do
continente através da African Progressive Association (Associação Progressista Africana) o
Christian Army for the Salvation of Africa (Exército Cristão para a Salvação da África) e parte
da Igreja Ortodoxa Africana quis demonstrar sua luta para o fim da exploração vigente.
Havia também o combate a tradições vistas com aversão pelos missionários europeus
em Buganda como a poligamia comum em determinadas áreas e aceita pelos costumes locais
e islâmicos. Também combatiam a prática da circuncisão (atentemos para elementos presentes
na cultura do Islão que era marcante e muito mais antiga do que as cristãs na África) passaram
a ser incorporadas a muitas dessas igrejas.
O denominado cristianismo africano de certa forma foi, portanto, um produto do
sincretismo e era uma forma complementar da cultura local aos costumes e religião ocidental.
É preciso compreender que muitas vezes, as religiões tradicionais não correspondiam
totalmente aos anseios dos povos locais em suas explicações com o sagrado do ambiente
religioso na África, bem como as explicações do cristianismo missionário europeu.Contudo,
era justamente partes de um de outro mundo religioso que solucionavam as lacunas voltadas
para o sentido do sagrado e que acabaram sendo formando o chamado cristianismo africano.
As associações feitas ao livro sagrado cristão, a Bíblia e sua interpretação e adaptação,
fizeram com que o cristianismo africano fosse mais contextualizado, pois estava de acordo
com a realidade vivida naquele local, e por consequência, mais atento e compatível ao
imaginário religioso dos povos da região centro leste da África.
Assim o cristianismo africano logo seria capaz de solucionar as necessidades humanas,
já que pensava cura, adivinhação, profecias, visões, feitiços, bruxarias, forças do mal,
56

demônios dentre outros elementos da religião tradicional faziam sentido. De certa forma, eles
também eram reconhecidos na Bíblia embora fossem renegados pelos missionários europeus,
fato intrigava os africanos convertidos cristãos uma vez que para eles seria incompatível tal
descrença com as escrituras. (GALGALO, Joseph, 2012. p. 6). As igrejas cristãs
desenvolvidas em África trouxeram uma nova teologia africana, atravessando obstáculos
colocados pelos aparatos colonialistas em seus países, elas significaram de certa forma, a
proteção de etnias que se viam exploradas e a manutenção de culturas indo além das fronteiras
do local de seu surgimento, um cristianismo original e nascido no continente africano. O que
fica válido afirmar é que durante todo o período em que se assistiu na África o processo de
colonização no século XIX e o surgimento no caso de Uganda do protetorado inglês, pode-se
perceber o não desaparecimento total da diversidade religiosa da África. Alguns escritores
cristãos, baseados nas suas crenças ignoravam o que havia de diferente no modo de vida
presente em Buganda e nos demais reinos. Eles afirmavam a ausência de crenças enraizadas
na tradição, ou mesmo o paganismo que eram o processo de resistência mas ainda que não
falassem não podiam ignorar que a religião tradicional africana, ainda que enfraquecida,
serviu de base para que surgisse uma série de outras religiões. Na realidade até mesmo para
que se perpetuassem, os missionários precisavam dela e do Islão até porque, condenar ou
demonizar uma religião era preciso ter parâmetros. Desse modo, tanto a religião muçulmana
quanto as religiões tradicionais eram necessárias para que os missionários se afirmassem.
A visão de mundo colocada pela crença nas religiões locais foram essenciais e não
deixaram de perdurar entre aqueles que escolheram pela vida cristã ou por seguir os
muçulmanos. Ela possibilitou a manutenção do diálogo entre essas tradições que tanto se
diferiam. A perda de espaço das religiões tradicionais culminou na decadência tanto de
instituições político-sociais as quais elas estavam ligadas, bem como às relações familiares e
comunitárias que haviam muito tempo perdurado com eficiência e que foram desaparecendo
no decorrer da expansão colonialista. Porém, de modo geral as três religiões principais, a local
pagã, a muçulmana e a cristã, que foram enriquecedoras para a conquista de fiéis.
Além do ambiente religioso as missões tinham problemas também ligados às disputas
pelas influências políticas nos território como ocorreu durante a tentativa de Mwanga de
afastar os grupos mencionados (muçulmanos e cristãos protestantes e católicos) do reino com
seu plano de exílio dos mesmos em uma ilha do Lago Victoria, plano este combatido em
conjunto pelos grupos que iam ser prejudicados. Logo, ora agiam em parceria por diversos
motivos em comum, ora eram relações conflituosas de embate. Principalmente em Buganda
onde as relações entre estes grupos eram mais antigas, os conflitos apareciam com mais
57

intensidade. Somado a isso, a centralização do poder nessa região era evidente e a religião
respeitada pelo governante era, logo, a que deveria obrigatoriamente se seguir. Os Baganda,
nativos de Buganda e os Wanga, nativos do Quênia, tinham passado antes da intensificação
do aparato colonial, por intensos contatos com mercadores árabes e suas caravanas que
cortavam vários territórios em busca e comercialização de escravos e marfim. Sua adesão ao
modo de vida e costumes islâmicos eram muito combatidos nos escritos missionários, um
exemplo disso aparece no sermão dado por Mackay ao rei M’tesa que demonstrava dúvida a
respeito do evangelho cristão por conhecer, partilhar e acatar os conselhos dos comerciantes
árabes muçulmanos baseados no Alcorão.(MULLINS, 1904. p. 29). A intensificação de
oposição a este contato trouxe consigo igual nível de resistência que manteve mesmo durante
a ampliação da influencia inglesa na região.
Alguns conflitos que envolviam áreas de domínio envolveram as questões da
resistência ao modo antigo e ao novo ocidental. Foi o caso das lutas coloniais entre o sultanato
de Zanzibar, localizado no leste da África, (região da atual Tanzânia,) a Alemanha e a
Inglaterra. Os árabes de Zanzibar, pioneiros no comércio da região desde o século XII, com
seus interesses claros em escravos e marfim num primeiro momento atuavam somente no
litoral e passam a ter interesses em Buganda, sobretudo depois que alemães e principalmente
ingleses passam a adentrar a região de forma mais intensa.
Com esta nova ameaça de disputa política, observou-se tentativas por parte dos
muçulmanos, de se manterem em posição favorável em influência no local para que seu
comércio não fosse prejudicado. Organizou-se para tanto um golpe contra os cristãos
(representados principalmente na figura dos missionários), logo após terem colaborado para o
afastamento do soberano Mwanga que estava insatisfeito com os cristãos na região. Assim,
mesmo atuando como adversários, no momento em que o chefe nativo representou maior
ameaça, foram parceiros para derrubá-lo. Porém após o sucesso na empreitada, tentaram a
obtenção do poder regional para si. Os europeus por sua vez, missionários e comerciantes
queriam a região para que se mantivessem seguros e em condições de se perpetuarem à frente
da política e da sociedade.
Com o comum uso da violência, os europeus foram se espalhando pelos territórios da
região, porém, as maneiras de colonização nem sempre tinham as mesmas características. No
caso dos missionários, como vimos, a escola era o principal meio da política imperialista e da
religião cristã. Todavia tivemos também o investimento para acelerar e otimizar o processo de
incursão territorial. Um exemplo desta estratégia foi a construção das estradas de ferro que
cortavam Quênia até Uganda, uma maneira de facilitar a entrada inglesa na região. Políticas
58

como essa que obtiveram sucesso já que os missionários ainda que não estivessem claramente
envolvidos na política, apoiaram a mudança do status político de reino de Buganda para
protetorado inglês em 1894. Assim, a partir daquele ano, depois de uma série de
investimentos e empreitadas não só dos missionários, mas também exploradores comuns e
agentes do governo de Buganda o maior dos quatro reinos da região centro leste tornou-se um
território colocado sob autoridade de outro estado, possuindo geralmente alguma autonomia e
um sistema de governo próprio, a partir de 1894, tornava-se oficialmente aquilo que já havia
sendo feito na prática, sob domínio inglês.
Esta mudança não teria sido possível sem a primeira geração de missionários
protestantes da CMS de 1876. Eles foram de fato, o estopim para a empreitada inglesa e se
tornaram os agentes daquela potência europeia no território. Décadas antes da deflagação do
imperialismo esses homens ao buscarem desenvolver o processo de evangelização criaram
terreno se miscuindo na política, na sociedade e principalmente na religião local. A forma de
ação dos religiosos inaugura o modo de atuação imperialista através dos caminhos percorridos
pela CMS. J. Ajayi traçou o panorama:

Já se fora o tempo em que os exploradores agiam simplesmente movidos


pela curiosidade científica; neste período tratar-se-ia, sobretudo de agentes
encarregados de recolherem informações estratégicas e segredos
comerciais. Os missionários não eram somente servidores de Deus,
obedecendo à vocação de evangelização, doravante seriam agentes
organizados em prol de um esforço nacional de aculturação que tinha como
objetivo exclusivo enfraquecer a posição cultural e comercial dos seus
anfitriões. (AJAYI, 2010. p. 912)

A região de Uganda fora bastante explorada na busca pela nascente do Rio Nilo que
intrigava há tempos os aventureiros. A curiosidade devia-se a presença de um gigantesco lago
batizado posteriormente à chegada dos ingleses de Victoria Nyanza. Uganda fica na parte
central, a leste do continente próxima ao “chifre da África”, como vimos anteriormente (mapa
da página 3). Contava com cerca de dezenove tribos que jconviviam num mesmo espaço com
outros povos de diversas influências étnicas como árabes, swahilis, muçulmanos 49. A
exploração cristã foi mais tardia do ali que outros territórios e se iniciou na após a segunda
metade do século XIX. Ela atraiu interesses da CMS que resolveu iniciar ali uma missão na
África. É interessante salientar que alguns missionários também atuavam sob tutela de
instituições ligadas aos governo como era o de caso de alguns que trabalhavam na Royal
Geographical Society. Porém, diferentemente dos primeiros homens que estavam voltados à

OTISO, Kefa M. Culture and Customs of Uganda. Westport, Greenwood Press. 2006.
49
59

exploração econômica e geográfica basicamente como Richard Francis Burton, John Hanning
Speke50, os missionários tinham interesses que iam além das riquezas. Apoiados por
sociedades de pesquisa ou ligadas à religião adentraram para o interior da África em busca de
uma influência cultural onde as tradições europeias religiosas estariam como linha de frente
para ditar as ações de participação e alteração do cotidiano nativo ao realizar o processo de
evangelização.
Os primeiros relatos sobre a região na imprensa datam de1846 e foram escritos no
jornal The Calwer Mission por dois viajantes missionários alemães que passaram pela região,
John Rebman Erhard e Ludwig K, membros da CMS. A região era desconhecida se
comparada com aquela da faixa litorânea de Angola e Costa do Marfim exploradas desde o
século XVI. Esses dois homens descreveram a paisagem de floresta tropical, ímpar aos olhos
dos europeus bem como a magnitude do lago Victoria Nyanza como faziam os demais
exploradores europeus quando partiam param grandes empreitadas. Essa descrição também
foi utilizada por Mullins como forma de dar maior ênfase aos feitos dos missionários.
Chamava atenção de ambos (Erhard e Ludwig) o clima tropical que diferia do europeu e a
organização política do reino que ali existia. Estas descrições são registros de uma área ainda
pouco conhecida à época destacada também por Richard Francis Burton51 que conheceu a
região apoiado no século XIX pela Royal Geographical Society52.
Os estudos mais aprofundados sobre a região, neste período foram os de James Erhard
e Ludwig K. e John R. Eram eles que repassavam informações, à medida que conheciam o
território. Suas impressões eram enviadas a CMS e também para a imprensa inglesa. Foram os
relatos que incentivaram a CMS a enviar missionários para expandir a propagação do
protestantismo. Sendo a metade do século XIX, 1846, a região estava em destaque e naquele
momento o eixo do comércio da região, desembocava no porto de Mombasa, ao Leste da
África. Ele era retratado na literatura segundo os relatos de Mullins como um “Paraíso
Perdido”.

50
GEBARA, Alexsander L. A. A África presente no discurso de Richard Francis Burton: Uma análise na
construção de suas representações. Tese de Doutorado em História, Universidade de São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2006.
51

52
Fundada em 1830, é uma instituição tratada como um centro mundial de geografia que trabalha com
investigação de apoio, educação, expedições e trabalhos de campo, promovendo a participação pública eo prazer
e engajamento de levar informação a respeito do nosso mundo. (texto informado pelo site oficial da instituição).
60

Figura 3 – Atividade comercial na região dos Grandes Lagos na segunda metade do século XIX (COHEN, 2010. p. 331)

A casa de missão de Rabai ficava próxima dos riachos que corriam do porto de
Mombasa até o interior e seu conhecimento foi muito importante para levar a mensagem do
cristianismo protestante e o desenvolvimento do trabalho missionário naquela região que mais
tarde ocupariam de forma intensa. Ludwig e John R. e, posteriormente, Erhard fixaram-se
morada na casa missionária da CMS em 1846 e trabalharam muito na região. O trabalho de
exploração da região feito pelos viajantes foi muito importante para que a Europa tomasse
conhecimento da região e as potenciais riquezas como o grande sistema aquífero que a região.
A casa de missão foi mencionada em nossa fonte pelo autor de The Wonderful Story of
Uganda e seguramente foi a base para o conhecimento europeu a respeito do leste do
continente africano e da África Central, bem como os estudos e conhecimentos linguísticos
desenvolvidos por eles que dariam margem a uma série de conhecimentos das tradições
culturais, esta era uma forma de enaltecer a importância da região e também dar maior
credibilidade e despertar interesse na missão de Uganda.
Os missionários também fizeram uma viagem que acabou por adentrar em um
desconhecido reino onde se depararam com um jovem rei do território chamado por seus
súditos de M’tesa, tratado pelas publicações como cruel, opressor, mas que tinha de certa
forma um sistema de governo parecido com qualquer um do mundo civilizado53.

MULLINS,J.D. The Wonderful Story of Uganda. London, Church Missionary Society, 1904. p. 11-12.
53
61

2.3 O chamado de Stanley: a organização e a partida dos primeiros missionários


ingleses protestantes

Embora os interesses religiosos parecessem ser o objetivo mais importante para os


missionários, às descobertas geográficas foram de grande importância e acabaram por ser
usadas por viajantes como John Hanning Speke, Richard Francis Burton e Henry Morton
Stanley que haviam viajado em busca de David Livingstone. Livingstone foi explorador e
missionário e esteve desaparecido na África desde março de 1871 e encontrado entre o final
de outubro e início de novembro (data imprecisa por haver duas hipóteses, a do diário de
Stanley e a do próprio Livingstone) período em que já havia conhecido o rei M’tesa. Após ser
encontrado por Stanley ele escreveu suas descobertas a alguns jornais ingleses e afirmou ter
ficado impressionado com o modo de comandar e o uso da força e violência daquele
soberano. Tais informações causaram grande impacto nos noticiários quando Stanley fez um
apelo em 15 de novembro de 1875 no Daily Telegraph Journal:
Oh, se algum devoto, prático missionário, viesse aqui!... Como nenhuma
outra, se essa tal pessoa puder ser encontrada se tornaria o salvador da
África”. ... “E agora, onde há em todo mundo pagão um campo mais
promissor do que Uganda?... Aqui cavalheiros está sua oportunidade:
abrace-a! As pessoas da margem do Nyanza chamam por você. 54

A notícia causou grande repercussão na Inglaterra e como consequência do apelo para


a divulgação da fé cristã, muitas igrejas resolvem enviar grupos de missionários para a região
de Uganda. Em 1875 a CMS inicia uma espécie de recrutamento entre seus membros para
uma futura missão com a propaganda de evangelização para aquele reino “desprovido de
crenças nítidas entre seus habitantes”. Tal afirmação é contraposta pelos os escritos de Otiso.
Segundo o autor, os habitantes tinham suas crenças em vários deuses, assim como os demais
povos de outros territórios africanos. O que ocorria era que eles não eram monoteístas tal
como os europeus. Esta diferença era entendida como uma característica de inferioridade que
deveria ser combatida com cristianismo e pautou a presença e os objetivos em combater o
politeísmo, ocultado pelos escritos missionários através de um projeto evangelizador que fora
tratado nos relatos como “um milagre cristão”.

54
Do original: “Oh, that some pious, practical missionary would come here!...Such no one, If he can be found,
would become the saviour of África. ... Now, where is there in all the Pagan world a more promising Field for a
Mission than Uganda...Here, gentlemen, is your opportunity: embrace it! The people on the shores of the
Nyanza call upon you.”.Tradução própria.(MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p. 4-5)
62

Obteve-se dezenas de voluntários que se ofereceram diversas quantias em dinheiro


para que fazer parte do primeiro grupo de missionários. Dentre eles estava um conhecedor da
África o tenente aposentado Shergold Smith. Este candidato propôs doar cinco mil libras se
fosse incluído na lista de selecionados, fato bastante curioso já que se tratava de um
continente pouco conhecido e perigoso a europeus que viviam de certa forma
confortavelmente na Inglaterra. Temos neste fato um indício de que para além da fé poderia
haver interesse em explorar as potencialidades econômicas daquela região, pois, é curioso
pensar no porque de um homem de vida ganha na Europa iria se interessar em uma aventura
complexa como era adentrar o interior do território africano.
O fato de pessoas voluntariamente oferecer dinheiro para estarem na lista de
voluntários da CMS, portanto, nos faz refletir se é possível avaliar interesse com outras
motivações como possíveis riquezas além do aumento do número de fiéis cristãos que
estavam implícitos nessa empreitada. A região era potencialmente uma área de investimentos
se observarmos a intensa atividade comercial, a fertilidade das terras e fontes de água citadas
nos relatos dos membros da CMS.
A primeira missão religiosa diferenciava-se em diversos aspectos da primeira missão
de origem católica. Primeiramente observa-se o modo de patrocínio feito pelos próprios
missionários. Depois o modo de abordagem com os nativos bem como, as estratégias de
divulgação do trabalho missionário feito através de narrativas publicadas em periódicos
ingleses que tinham também por objetivo que propagandear e recrutar novos voluntários. O
modelo de missão patrocinada pela instituição religiosa exemplo da Igreja Católica foi
posteriormente adotado pela CMS. Isso aconteceu devido à separação e morte dos membros
do primeiro grupo enviado em 1876, quando paulatinamente foi sendo necessário o envio de
novos missionários.
Enquanto na primeira geração de missionários acumulou vinte e quatro mil libras
esterlinas arrecadadas dos voluntários, as missões posteriores passaram a ser patrocinadas
exclusivamente pela instituição religiosa (CMS). O fato desta seleção da primeira geração ter
de oferecer dinheiro e as demais missões não mais usarem deste propósito nos leva a indagar
como teria sido a seleção desses missionários. A partir do apelo feito através do periódico às
igrejas cristãs, em três dias a CMS já recebia sua primeira carta oferecendo as primeiras cinco
mil libras esterlinas e a sua incursão na primeira geração oferecendo-se para embarcar de
imediato se necessário. Como afirmamos antes, ela fora enviada pelo ex-tenente da Marina
inglesa George Shergold Smith, que tinha voltado de um serviço na costa leste da África e
estava inválido em casa. Nota-se, portanto, que ele era um conhecedor daquele continente,
63

ainda que na região costeira. Mas se pensarmos que no contexto de época a região se
constituía em reino liderado por M’tesa55.
Este rei tinha contatos diversos comerciais chegando inclusive em contatos com a
costa. Pode-se imaginar que poderia ser conhecido por pessoas vindas da Europa que
passaram por essas determinadas regiões. Além disso, o pai de Smith, o capitão Smith era
muito próximo da CMS e havia participado de um resgate de um escravo chamado Adjai e
posteriormente do Bispo Crowther, além de ser amigo pessoal do presidente desta instituição
Sir John Kemaway. A segunda oferta aparece com o posteriormente mais famoso europeu
dentro de Uganda, o jovem engenheiro Scotch, mais conhecido como Alexander Mackay. Sua
trajetória pessoal se confunde com a da própria instituição entre os anos de 1876 – 1890
justamente o período aqui estudados e é o grande personagem trabalhado por Mullins em sua
obra. Para Mullins, este homem pôs em prática o que era proposto pela CMS e os dogmas
protestantes da Igreja Anglicana.
Seguido de Mackay, temos a presença do reverendo C.T. Wilson, curador de
Manchester, Mr. T. O’neill, arquiteto, Dr. John Smith, doutor de Edinburgo, o engenheiro
G.J. Clark, e o artesão W. M. Robertson constituíram o primeiro grupo de missionários. Note-
se que muitos desses homens vinham de profissões destacadas o que torna ainda mais curiosa
sua adesão à causa religiosa. Bem poderiam estar buscando maior sucesso profissional ao
mesmo tempo em que somavam os motivos de fé. Eles acabaram reunindo-se a um construtor
de New Castle, Mr. James Robertson, que, sendo rejeitado pelos doutores da missão,
acompanhou os pioneiros por sua própria conta em risco como afirma os relatos de Mullins.
Ao final de abril de 1876 todos haviam navegado para a África.
Buscando contatos com os poderes locais, aos poucos foram desvendando as tradições
daquele território tentando, num primeiro momento, a relação amigável com os chefes. Esta
era uma forma de conseguirem mais rapidamente a adesão dos baganda à nova religião.

55
M’tesa I (1838-1884) foi kabaka, ou monarca, de Buganda e um dos governantes africanos destacados do
século XIX. Sob a sua liderança dinâmica Buganda tornou-se um dos reinos mais poderosos e influentes da
África Oriental. A CMS com sua primeira expedição chegou em Buganda em 1877 seguidos pelos padres da
Igreja Católica Romana em 1879. O sistema Ganda manteve os recém-chegados na corte de M’tesae ali eles
encontraram um público receptivo entre os jovens enviados de todas as partes do reino para servir páginas para
ensino dos recém-chegados. Durante a vida inserido numa profunda transformação cultural e social que
começara a ocorrer no interior do estado, como novos conceitos de crença substituindo valores tradicionais entre
uma elite que viria a dominar a evolução do reino ele procurou manter-se forte e com poder centralizado. M’tesa,
portanto, nunca totalmente convencido a acatar os dogmas de qualquer uma das novas crenças ele tentou
assegurar seu poder a partir de uma série de alianças e pacificar os conflitos que poderiam dar origem a maiores
divergências e, em grande parte, conseguiu utilizar os muçulmanos e cristãos para aumentar o domínio já
substancial da região e demais povos vizinhos africanos. Morreu em 1884, deixando uma merecida reputação
como o maior de todos os governantes de Buganda.
64

Como mencionado anteriormente, se o soberano tivesse uma religião ela deveria ser seguida
pelos seus súditos. Assim que conheceram mais a fundo a região se depararam com os
problemas mais comuns aos exploradores como doenças, clima tropical que muito diferia do
europeu, além da paisagem ímpar da região dos chamados “Grandes Lagos”. Esses problemas
foram colocados em determinados momentos como agravantes e interruptores dos projetos
missionários em determinadas etapas da conquista.
Essa incursão em Uganda mostrou que ao longo do período em que o imperialismo
britânico esteve na África, a figura do missionário funcionou essencialmente como agente
desta política e evidenciou uma série de conflitos que fizeram com que o protetorado se
estabelecesse com eficiência em 1894. O período abordado por este trabalho tratou de ir até
justamente do ano da morte do último integrante da primeira missão e como esses homens
foram publicados na posterioridade, mas também mostra como seu legado continuou surtindo
efeito e como foram as publicações a respeito do momento em que o reino de Baganda
(Uganda moderna) deixa de ser de domínio dos nativos de forma oficial e passa para a mão
dos britânicos.
Para as publicações da instituição, a ida desses homens estava marcada por seu
heroísmo, coragem e humildade, ideia expressa em uma série de passagens na obra de Joseph
Mullins. Segundo Shergold Smith após acatar a oferta feita pela CMS ele seria capaz de
aceitar qualquer posição que lhe fosse oferecida, até mesma a posição mais baixa. Ele dizia
isso embora soubesse que dentro do grupo era o maior conhecedor da África e que a ele seria
reservado o cargo máximo de chefia da expedição. Segundo as memórias de Mullins no
momento da despedida, Alexander Mackay, o mais jovem dentre os missionários e último a
dizer adeus ao comitê da Igreja na Inglaterra disse aos mais experientes e aos que estavam
presentes na ocasião que, dentro de ao menos seis meses as pessoas que não embarcaram com
aquele grupo ouviriam dizer que algum deles estaria morto e ali mesmo já clamou por mais
integrantes assim que essa notícia chegasse, pois para ele, a missão não podia parar. Segundo
Mullins ele era movido por um espírito de liderança, na ocasião Mackay proferiu o seguinte
discurso:
Eu quero lembrar o comitê que dentro de seis meses eles provavelmente
ouvirão que um de nós está morto. Sim, é absolutamente provável que oito
homens ingleses comecem a adentrar pela África central e todos estejam
vivos seis meses depois? UM de nós pelo menos, pode ser eu, certamente
cairá antes disso… Quando esta notícia chegar, não fiquem desanimados,
65

mas enviem imediatamente alguém para preencher este espaço vazio.


(MULLINS, J.D. 1904. p. 7-8)56

O trecho citado demonstra a capacidade articuladora de Mackay dentro do grupo e


principalmente certa previsão do que de fato aconteceria. Antes de dominarem a região os
missionários enfrentaram muitas dificuldades principalmente por desconhecerem o clima das
regiões pelas quais passaram ou, principalmente pelas doenças que assolavam esses grupos e
que eram desconhecidas na Europa. Podemos fazer um paralelo com o colonialismo do século
XVI quando esses mesmos problemas eram vistos com a chegada do europeu nas Américas.
O medo dessas doenças também influenciou a preocupação em levar recursos da
medicina e médicos para as regiões. A presença deles servia, principalmente como meio de
combater a crença em feiticeiros e curandeiros tão tradicionais na cultura africana, fato
também fora apontado também por Opoku.57
Para contar as histórias de viagens e a trajetória da CMS no Leste da África Mullins
utiliza, muitas vezes, o lugar comum de outras narrativas onde há a preocupação de explorar
as descrições físicas de uma determinada missão também de realçar a doção de um costume
ocidental religioso. Vemos tal recurso era uma estratégia de escrita dos missionários da CMS
para propagandear seus feitos fossem mostrados para o continente europeu.

56
Do original: “I want to remind the Committee, that within six months they will probably hear the one of us is
dead. Yes is it at all likely tha eight Englishmen should start for Central Africa and all be alive six months after?
One of us at least – it maybe I – will surely fall before that… When that news comes, do not be cast down, but
send someone else immediately to take the vacant place.” Tradução própria.
57
(OPUKO, K. 2010. p. 616)
66

Capítulo 3

Joseph Dennis Mullins e “A Maravilhosa História de Uganda”: características da


obra e o caminho traçado pela missão da CMS durante 1876 – 1890

Este capítulo busca discutir com mais afinco as representações e o modo como foi
conduzida a ideia sobre a sociedade de Buganda formulada pelos missionários membros da
primeira missão da CMS. Nossa fonte aqui são os escritos que escreveram a respeito da
sociedade. Nosso contraponto é a tese de Alexsander Gebara 58 que trabalhou os textos
produzidos por Richard Francis Burton em suas viagens pela África Ocidental.
Gebara revela que a visão eurocêntrica nos textos produzidos por Burton são claras,
mas ajudam a observar as resistências dos povos autóctones. Ou seja, é possível mesmo
partindo de visões ocidentalizadas observar os africanos como agentes históricos, resistentes à
imposições e negociações, mesmo quando os processos pelos quais atuam como agentes
tenham resultado no recrudescimento de políticas de controle direto no final do século XIX.
Esta agência pode ser observada principalmente durante os processos de alianças traçados
pelo kabaka M’tesa com relação aos muçulmanos, cristãos católicos e os membros da CMS
como forma de continuar administrando seu reino. Dentro do discurso de Mullins, muitas
práticas e ações deste governante, pautado pelo material escrito pelos missionários, serão
condenadas e tratadas como não “civilizadas”.
As análises das representações feitas a partir do olhar de Burton que Gebara explorou
permitem colocar o africano numa posição de agência e acabam por interferir inclusive na
configuração da própria imagem da África em construção na Inglaterra bem como a ação
política inglesa na região. Esta forma de ver o africanos não como passivos mas como pessoas
que agem por si com resistência, processos de negociação e estratégias de afirmação de poder
é uma interpretação que fazemos diante dos escritos dos missionários. Do mesmo modo a
agência dada aos africanos a partir dos relatos explorados por Mullins nos confere uma ideia
de como a CMS alcançava através de suas publicações e ação, não só um grande número de
fiéis e uma representação daquela região, mas uma imagem de evangelizadora dentro de seu
país de origem, a Inglaterra. Apesar de mostrarem a incursão dos missionários ingleses com
protagonismo explorando as “dificuldades” para impor a religião, os missionários

58
GEBARA, Alexsander L. A. A África presente no discurso de Richard Francis Burton: Uma análise na
construção de suas representações. Tese de Doutorado em História, Universidade de São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2006. p. 9.
67

reconheciam a importância de se estabelecer uma Igreja com a presença de sacerdotes


baganda, ou seja, a religião era essencialmente europeia, mas uma vez compreendida e
acatada poderia ser difundida pelos próprios africanos. Os evangelizados teriam a
possibilidade de participarem ativamente da missão após a conversão, sob a custódia e
obediência aos missionários ingleses.

3.1 Características da obra “The Wonderful Story of Uganda”, seu modo de escrita e
organização

Neste sub item trataremos a maneira como foram escritos os trabalhos produzidos
pela CMS que resultaram na obra que vem a ser nosso objeto de estudo. Como sabemos ela
faz um histórico de como se deu a história da incursão da CMS e sua primeira missão em
Uganda. Segundo Mullins membro da instituição além de trazer uma visão do contexto
colonial contemporâneo a empreitada ela também permite observar como se deu a
participação política do governo colonial inglês na região, as ações dos políticos locais e,
primeiramente, as relações do rei Mutesa e seu sucessor Mwanga com o trabalho missionário
protestante inglês.
É válido afirmar que muito do que era escrito pelos homens que estavam presentes no
cotidiano da missão africana era lido na Europa como forma de obtenção de conhecimento a
respeito dos avanços da evangelização e da ampliação de fronteiras. Nessa perspectiva
observamos o que fora trabalhado por Mary Louise Pratt 59. Pratt em em seu trabalho “Os
olhos do Império” traça um olhar a respeito das produções de europeus, exploradores ou
missionários na África a receptividade desses escritos. Seu estudo muito nos auxilia já que
tratamos neste trabalho de uma obra que para ser produzida teve de recolher uma série de
escritos feitos por missionários contemporâneos ou membros da primeira missão da CMS em
Uganda.
A respeito de documentos produzidos por europeus, em especial os ingleses é preciso
considerar que a época seu país era a maior potência imperialista do século XIX e que os
missionários Church Missionary Society escreviam a partir da região dos “Grandes Lagos”.
Pratt nos auxilia no entendimento dos relatos quando mostra que as características das escritas
de ingleses na África nos traz as similaridades e distanciamentos na produção literária de

59
PRATT, M. Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação/ Mary Louise Pratt; tradução
Jézio Hernani Bonfim Gutierre; revisão técnica, Maria Helena Machado, Carlos Valero. Bauru, SP: EDUSC,
1999. p. 343-344.
68

viajantes religiosos de época, o que nos auxiliou na melhor observação do trabalho de


Mullins. Segundo a observação das passagens de narrativas permite perceber que são usadas
pelos escritores para criar valores qualitativos e quantitativos para melhor compreensão da
atuação nos territórios dos quais escrevem. Nesta direção podemos colocar os escritos de
Mullins como parte de um estilo de escrita similar aqueles documentos e escritos de
precursores que o antecederam sua missão em Uganda. Pratt aponta como exemplo desta
tipologia os relatos de Richard Francis Burton e aponta três características constantes
utilizadas em textos de viajantes que estiveram na África Central durante todo o século XIX.
A primeira dessas características seria a retórica vitoriana com a estetização da
paisagem, feita a partir dos relatos de Richard Francis Burton. A visão do autor é tomada
como uma pintura segundo Pratt e a descrição aparece como pano de fundo. A narrativa
utiliza artifícios adjetivando intensamente o que querem que seus leitores na Inglaterra
percebam e “visualizem”, como a água salpicada de espuma, colinas com névoa ilustrando
com palavras a paisagem natural que está diante do explorador. Veremos adiante que os
missionários da CMS também utilizam das mesmas descrições até porque estamos tratando
dos casos de uma mesma região considerada rica em natureza e ímpar aos olhos dos
exploradores e para aqueles que não estavam ali mas sentiam a partir da leitura a força da
religião da Inglaterra e as dificuldades enfrentadas pelos missionários nestes locais.
Veremos adiante que os missionários da CMS também utilizam das mesmas
descrições até porque estamos tratando dos casos de uma mesma região considerada rica em
natureza e ímpar aos olhos dos exploradores e para aqueles que não estavam ali mas sentiam a
partir da leitura a força da religião da Inglaterra e as dificuldades enfrentadas pelos
missionários nestes locais. A descrição da paisagem no caso de Burton se constitui um item
importante na narrativa das jornadas dos exploradores. Richard Burton se utilizou também das
contradições apontando a respeito do que considerava avanço e atraso, grandioso e pequeno,
comparações de coisas que enalteciam ainda mais o caráter descritivo e a importância dos
feitos dele como explorador. Ao abordar a descoberta do lago Tanganica fez largo uso dessas
estratégias, mostrando como era gratificante estar diante daquela descoberta e daquela
paisagem.
Tal estratégia foi usada em The Wonderful Story of Uganda quando Mullins inaugura
sua narrativa tratando da região do porto de Mombasa, também na região dos “Grandes
Lagos”. Ele a trata como a descoberta de um “Paraíso Perdido” e nesta descrição há uma
intensa valorização da paisagem onde as montanhas com névoa também são lembradas.
69

Ao trabalhar com os relatos de Ludwig K. e John R; ela também aponta o uso do


recurso narrativo descritivo da paisagem que chamava atenção por completamente diversa
daquela que se via na Europa, descrevendo os desfiladeiros e riachos com viva emoção. As
montanhas e o lago são comparados ao mar devido as suas dimensões e a impossibilidade de
se observar de uma margem à outra, tal como o fez Burton enaltecendo em seus escritos tudo
que era novo e diferente do comum na Europa. Descrições da paisagem que chamavam
atenção por serem completamente diferentes daquelas que se via na Europa o que fazia que a
descrição de desfiladeiros e riachos fossem mostradas de modo ao passar a mais viva emoção.
As montanhas e o lago são comparados ao mar devido as suas dimensões e a impossibilidade
de se observar de uma margem à outra, tal como o fez Burton enaltecendo em seus escritos
tudo que era novo e diferente do comum na Europa.
Uma outra característica que Pratt enuncia na tradição da escrita vitoriana era a
densidade semântica usada nos relatos de Burton e nos relatos missionários da CMS. A
paisagem sempre aparece com uma riqueza material e semântica e neste quesito os
modificadores adjetivais também são fundamentais para convencimento do leitor para com o
que lhe é apresentado. Ainda segundo a autora e nosso estudo comprova, muito raramente
veremos nestes textos, substantivos com intensa adjetivação que não sejam modificados uma
vez que essa alteração serve para dar densidade à escrita. Como exemplo ela cita expressões
como “verde esmeralda”, “neblina pérola”, “espuma nevada” que apesar de se referir a cores,
davam as expressões uma conotação de referentes materiais na paisagem fazendo uma ligação
daquilo que é conhecido pelo leitor do explorador. No caso europeu, este recurso era uma
maneira de inserir o leitor na descoberta e na jornada explorador, ou seja, seria como levar um
pouco destes novos ambientes aqueles que o liam na Inglaterra. A forma narrativa também
está presente naqueles documentos e publicações feitos originalmente pelos membros da
primeira missão da CMS em Uganda.
A terceira estratégia que Pratt destaca e principal artifício desta forma de literatura era
a relação de domínio mostrada entre o que se vê e o que é visto. A metáfora da pintura é usada
pelos escritores, como se o que é apreciado e visto pelo mesmo é a verdade, a visão dele é que
será transmitida aos ingleses. É como se a representação feita por eles fosse a única hipótese
daqueles que estavam fora daquele ambiente e fora da narrativa.
Para Pratt o texto de Burton criava densidade de significado por meio de uma intensa
utilização de adjetivos e o abuso de referenciais concretos e materiais que são por ele
introduzidos no texto, materiais estes que podem aparecer literalmente, bem como através de
metáforas. As metáforas são usadas para induzir o leitor a visualizar situações ou, até mesmo,
70

para familiarizá-lo com o diferente recurso utilizado tanto os textos precedentes á incursão
missionária protestante quanto os pós-coloniais. Isto pode aparecer com semântica diferente,
ou seja, podem estar querendo valorizar o que veem, bem como depreciar lugares e
sociedades.
Em nosso estudo observamos que os missionários fazem largo uso das metáforas em
seus escritos durante as narrativas. Esta situação indica que há uma linguagem muito similar
utilizada por escritores não religiosos com relação aos missionários em alguns aspectos. Ao
tratar da paisagem, Moravia observando Gana já no século XX vai dizer:
Da sacada do meu quarto tive uma visão panorâmica de Acra, capital de
Gana. Sob um céu de azul incerto, preenchido por névoa e nuvens de um
amarelo áspero e cinza, a cidade se assemelhava a uma grande panela de
espessa e escura sopa de repolho no qual ferviam numerosas peças de
macarrão. Os repolhos eram as árvores tropicais de rica, ampla e pesada
folhagem de um verde escuro salpicado por tons negros; os pedaços de
macarrão os recém-construídos edifícios de concreto reforçado, vários dos
quais eram agora vistos por toda a cidade. (MORAVIA, 1972. p. 1)

Percebe-se que os artifícios semelhantes são usados no texto de Burton60:


Nada, na verdade, poderia ser mais pitoresco que esta primeira vista do
lago Tanganica, estendendo-se ao sopé das montanhas, aquecendo-se sob o
deslumbrante sol tropical. Abaixo e além de um curto primeiro plano de
rugosas e íngremes elevações, abaixo das quais as trilhas ziguezagueiam
dolorosamente, uma estreita faixa de verde esmeralda, jamais ressecada e
maravilhosamente fértil, inclina-se na direção de uma fita de brilhante areia
amarela, aqui, margeada por juncosos caniços, lá, clara e nitidamente
cortada pelas pequenas ondas quebrando na orla... O pano de fundo, à
frente, é dado por uma alta e escarpada parede de montanha cor de aço,
aqui, salpicada e coroada por uma neblina pérola, lá, erguida e
agudamente desenhada contra o ar azul celeste. (BURTON, 1961. p. 43)

Utilizando metáforas também para apontar as descobertas dentro do território de


Uganda, o primeiro capítulo da obra do missionário Mullins traz um título curioso, mas que
caracteriza as descrições adjetivadas também colocadas nos outros excertos mostrados
anteriormente.
O Calwer Mission Journal foi o primeiro a publicar esta produção notável.
Mostrava uma espécie de mar que avançava para o interior do leste
africano por centenas de milhas, parecendo uma enorme “lesma” num
espaço vazio... Uma grande controvérsia surgiu a respeito da mapa da
“lesma” pois muitos geógrafos que não saiam de suas casas, apontavam a
partir de argumentos que não poderia existir uma grande lago na região da
linha do Equador. (MULLINS, 1904. p. 20)

60
BURTON, Richard F. The Lake Regions of Central África: A Picture Of Exploration (1860), New York,
Horizon Press, 1961.
71

A ligação e relação de confiança entre os missionários e os escritores não religiosos


são expostas também no texto quando o autor afirma que hipóteses traçadas por missionários
como, por exemplo, a “descoberta” dos “Grandes Lagos” foram levadas a sério e divulgadas
por exploradores que não estavam ligados a instituições religiosas, mostrando uma confiança
no trabalho dos primeiros. A característica descritiva, que inclusive dá nome ao segundo
capítulo da obra (Descriptive), e metafórica ilustram os textos e mostram que a linguagem
utilizada pela CMS é muito semelhante a dos demais escritores em determinado momento.

Figura 4 – The “Slug” Map – (MULLINS, 1904. p. 2)

Alexina Mackay Harrison61, em sua obra a respeito do irmão, membro e


principal nome da missão da CMS em Uganda, narra os feitos de Mackay e utiliza inclusive
partes do discurso deste enquanto missionário. Podemos perceber que já na introdução ela
coloca um trecho atribuído a seu irmão e o faz posteriormente por diversas vezes assim como
os demais membros da CMS em seus escritos que sempre o citam como forma de demonstrar
a importância dele dentro do imaginário cultural de Uganda e da Inglaterra. Nesse discurso
recuperado por Alexina, Alexander Mackay condenará as práticas religiosas não cristãs e a
idolatria colocando os feitos missionários em evidência. Também menciona da saída da
escuridão, ou seja, do “atraso” para a chegada do “civilizado”. Combater práticas não cristãs
protestantes, é ao mesmo tempo negar a cultura nativa e os demais atores daquele cenário.
Vide o discurso:
Não é nenhum sacrifício, como alguns pensam, para vir aqui como um
pioneiro do cristianismo e da civilização. Eu não daria a minha posição
61
HARRISON, Alexina Mackay. A.M. Mackay: missionário pioneiro da Sociedade Missionária da Igreja em
Uganda. Hodder and Stoughton, London. 1890.
72

aqui para todo o mundo. Uma raça poderosa tem de ser levada das trevas à
luz, a superstição e a idolatria tem que ser derrubadas, eles têm que ser
ensinadas a amar a Deus e amar o próximo, o que significa o
desenraizamento de instituições que duraram séculos; trabalho nobre, o
escravo passar a ser livre, definir o conhecimento como livre para ser
transmitido e a sabedoria implantada, e, acima de tudo, que a verdadeira
sabedoria ensinou tudo o que por si só pode elevar o homem de um bruto
para ser um filho de Deus. Quem não estaria disposto a se engajar em tal
nobre trabalho, e considerar a mais alta honra na terra ser chamado para
fazê-lo? (HARRISON, 1890. p. 5)62

A saída da escuridão e chegada à luz através das mãos dos missionários é uma
metáfora sempre usada por Mullins e os demais membros da CMS. Podemos observar no
discurso de Mackay que a aversão às instituições centenárias na região que podem ser lidas
não só como as instituições políticas, mas também como religiosas. Como sabemos, os
muçulmanos controlavam o comércio e dominavam boa parte do imaginário local e suas
instituições somente atrapalhariam o desenvolvimento do projeto missionário da CMS.
O uso de palavras e expressões como “civilização”, “mundo civilizado” referindo-se
aos europeus, traz a ideia de “superioridade europeia” que estava sendo levada até os
africanos. Isto é comum não só nos relatos missionários da CMS mas principalmente, nos
escritos de escritores não religiosos. Herbert Jones missionário da CMS trabalhou com o
conceito de transformação, palavra utilizada no título da obra “Uganda in Transformation:
1876-1926” 63. Este termo é também é usado como nome de capítulo, tratando da chegada do
inglês missionário onde se enaltece a figura de Mackay. Ainda na obra se evidencia a
importância da presença dos homens da primeira geração de missionários anglicanos que
foram importantes para a “conquista” e incursão do cristianismo protestante inglês na região.
Jones cita um trecho do discurso de Mackay em 1878 falando justamente das dificuldades e
novamente expondo a “escuridão” que se vivia na região:
Escrevendo em 4 de junho de 1878, Alexander Mackay afirmou: “Uma
coisa é certa: Esta terra nunca vai pouco mais além da escuridão da África
até que possamos encontrar alguns meios fáceis de viagem e trânsito na
mesma. Muito poucos poderiam suportar as provações e dificuldades que
passamos no mês de início deste ano.”(JONES, 1926. p. 47)64

62
Do original: “It is no sacrifice, as some think, to come here as a pioneer of christianity and of civilization. I
would not give my position here for all the world. A powerfull race has to be won from darkness to light;
superstition and idolatry have to be overthrown; men have to be taught to love god and love their neighbour,
which means the uprooting of instituitions that have lasted for centuries; labour made noble, the slave set free,
knowledge imparted, and wisdom implanted; and, above all, that true wisdom taught which alone can elevate
man from a brute to a son of God. Who would not willingly engage in such noble work, and consider in the
highest honour on earth to be called to do it?” Tradução Própria.
63
JONES, Hebert Gresford. Uganda in Transformation: 1876-1926. The Camelot Press Limited, Grã Bretanha.
1926.
73

A CMS na figura dos missionários se torna paulatinamente a ser indissociável da


história de Uganda. Em determinado momento, já durante o protetorado inglês, J.J. Willis
(1872-1954) segundo bispo de Uganda (sucessor de Alfred R. Tucker) escreveu um relatório
trazendo uma visão geral da área, da população e da política missionária da igreja nas seis
províncias da Diocese de Uganda. Seu texto é divido por seções que versavam sobre
organização, educação, disciplina e finanças da igreja. Nele ele falava também do trabalho
positivo e dos aspectos problemático dos colonizadores europeus em Uganda.
O relatório enfatiza a importância do governo autônomo local da igreja de Uganda e o
papel central dos ugandeses nativos treinados para promover o seu crescimento, mostrando a
educação como fonte de permanência no território. Neste documento Willis trata da
importância da instituição religiosa na educação, algo que era fundamental e valorizado para
permanência e edificação do missionado. Tratava ainda da propaganda de benfeitorias dos
ingleses dentro da África, fato que os levava a valorizar a si próprios em sua própria
empreitada. Mesmo Willis escrevendo num período posterior ao da primeira missão ele faz
uma análise geral da trajetória da atividade missionária, recuperando o desenvolvimento da
missão como modelo.
Esse e demais documentos, narrativas, publicações periódicas da CMS foram
fundamentais para análise e constatação de que a presença dos missionários dentro de Uganda
foi fundamental para o estabelecimento da igreja nativa e a ampliação do número de
convertidos através da evangelização. Além disso, ela levou a ampliação da escrita e das
traduções de costumes do povo que permitiu um maior conhecimento da região.
Os conflitos entre a população local e os missionários foram muitos e a instalação do
status político de protetorado aconteceu durante o estabelecimento da missão em Uganda,
portanto, um importante período da história daquela região.

3.2 “A nação dos brancos tem outra religião?”: A primeira missão em Uganda, os
caminhos traçados pelos primeiros missionários e as evoluções em campo evangelizador

Era característico de Mullins explorar ao máximo em seus relatos, o ambiente


adjetivando-o para que se compreendesse e se fizesse uma imagem do trajeto da missão desde
seus primórdios. Tal ação buscava traçar um panorama do trajeto e efetivação do trabalho

64
Do original: “Writing so early as 4 June, 1878, Alexander Mackay affirmed: “One thing is certain: This land
will ever remain little else than what it is dark, benighted Africa until we can find some easy means of travel and
transit in it. Very few could endure the trials and hardships we went through in the early month of this year.”
Tradução própria.
74

missionário em Uganda. Como vimos anteriormente, era comum tal estratégia para garantir
maior visibilidade e importância ao que estava sendo mostrado pelos autores das narrativas e,
nesta direção, vemos que Mullins reforça nos relatos, a importância dos missionários para
Uganda e trabalho deles como a ideia de “heróis” dentro de uma região repleta de
adversidades para a evangelização.
A incursão no território africano pós partilha se deu de maneira bastante conturbada.
A jornada para dentro do continente era sempre incerta e, muito tempo foi perdido devido às
dificuldades em que encontrar a melhor rota. Embora alguns trajetos já tivessem sido trilhados
por outros viajantes que se aventuravam do Mediterrâneo para o sul da África nem sempre os
habitantes locais eram receptivos. As primeiras impressões diante do calor úmido que
assolava cada vez mais, conforme os missionários iam adentrando o continente, a sensação de
cansaço e exaustão se tornavam mais evidentes e insuportáveis.
Os insetos também faziam parte do cotidiano e eram o principal desconforto
reclamado por parte daquele grupo. As picadas e os barulhos do voo dos mosquitos foram se
tornando parte da rotina dos missionários. Além de insetos, cobras e outros animais existiam
os moradores da região, que, segundo os relatos são mostrados com uma aparência de
desidratação diante do clima tropical e quente. As febres e outras doenças tropicais dia após
dia iam aparecendo e debilitando cada vez mais aquele grupo. Durante o percurso, para que
ficassem hospedados nos caminhos pelos quais passavam, alguns chefes de tribos locais que
ficavam nas trilhas da região faziam espécies de chantagem para que permitissem a passagem
e o descanso entre uma localidade e outra, amedrontando e retirando pequenas riquezas
daqueles religiosos missionários.
Alguns dos acompanhantes e outros viajantes que percorriam as mesmas rotas dos
missionários da CMS nem sempre chegavam a seu destino final. Era comum que missionários
desertassem ou até mesmo morressem durante a incursão nessa região do continente, além de
outras tragédias. Segundo Mullins, aqueles que por sua vez se propunham a voltar para a linha
de partida estavam sujeitos a mais um “espetáculo de horrores”. (MULLINS, J.D. 1904. p. 19)
Durante todo o trajeto o projeto original era mencionado e o que se queria era que
postos de missão fossem sendo abertos desde Zanzibar (costa da Tanzânia atual) até o lago
Victória, porém, o que aconteceu de fato em Mamboia, Mpwapwa, Kisokwe, Uyui, Msalala e
Usambiro é que foram ocupados em momentos diferentes dos pretendidos e ali instalados os
postos missionários. Percebe-se a todo instante o autor apresentando as dificuldades que
foram enfrentadas pelos missionários numa espécie de transformar essas dificuldades em atos
heroicos. Nesta mesma perspectiva, ao abordar as dificuldades enfrentadas pelos missionários,
75

em seu primeiro capítulo intitulado “Como tudo começou”, Mullins traz um subtítulo
denominado “Os sobreviventes do Lago” e é neste momento que a figura de Mackay se
evidencia. Ele é citado como grande exemplo de homem da missão e ganha protagonismo
personificando esta missão, ele atua como homem que enfrenta os obstáculos pelos
missionários da CMS em África.
Segundo Mullins no ano de 1877 em seu primeiro semestre, Mackay estava prostrado
em febre quando a expedição alcançou Mpwapwa a duzentos e vinte milhas dentro do
continente e foi obrigado a retornar para a costa. Os relatos apontam que Mackay não nutria
vontade de retorno à Inglaterra, para ele a África realmente era a nova casa e o sucesso da
missão era um objetivo de vida. Assim, manteve-se na região costeira fazendo tudo o que era
preciso para que pudesse continuar sua jornada e buscou fazer parte da próxima caravana em
direção à Buganda ainda que tardiamente, enquanto isso os demais homens da primeira
missão da CMS continuaram seu percurso. Nota-se no decorrer da leitura dos relatos uma
tentativa de sensibilização do leitor para com a figura de Mackay, enaltecendo a vontade e
determinação daquele homem em realizar seus feitos em África.
Mackay nesse período, entre outras coisas, organizou, como engenheiro, a construção
de uma estrada de ferro que era tão extensa quanto Mpwapwa, livrando-se de obstáculos
geográficos e construindo pontes entre os morros naturais daquela paisagem. Esta informação
trazida pelo autor mostra a ideia de progresso subtendida com o advento da missão. Mais do
que trazer a religião cristã, Mackay e a CMS estavam levando o progresso para a África e isso
era muito importante no convencimento não só da população local que via essas alterações,
como também os ingleses que recebiam as informações a respeito dessas mudanças cotidianas
que estavam sendo levadas pelos membros daquela instituição dando a ela credibilidade.
Durante a execução desses feitos, Mackay teve o apoio de trabalhadores locais que
viam nele um líder que, em uma centena de dias propôs e executou projetos que modificaram
a vida daquelas pessoas que ali moravam para melhor no sentido de dar maior mobilidade
fatos que renderam-lhe reconhecimento. Mais do que isso, esses caminhos e a modernização
das estradas também feita a partir das ideias de Mackay eram uma melhoria como objetivo de
se alcançar Uganda. Ainda em 1877 no espaço de tempo em que Mackay ficara
impossibilitado pela febre e tendo que aguardar a próxima caravana, Mr. Robertson um dos
seus acompanhantes ficou inválido devido a uma doença sendo impedido de partir com ele de
Mpwapwa.
As dificuldades citadas eram muitas como os focos de malária, pouca água, seca
extrema, as dificuldades de relacionamentos com os povos locais que não queriam invasores
76

europeus em seu território e para isso faziam de tudo para impedir as passagens nas rotas
espalhadas pela região, bem como as conturbadas negociações e imposições de chefes dos
locais que ficavam no caminho dos missionários nutrindo sua inimizade perante o grupo, os
desertores dos postos de missão e os demais problemas não impediram que aqueles homens
seguissem seu caminho em direção ao Lago enfatizou o autor ao mostrar as condições
terríveis e problemáticas que a CMS se deparava dia após dia no caminho até Uganda.
Depois de seis meses após a partida de Mpwapwa os missionários chegaram ao sul do
Nyanza. Os quatro primeiros a alcançar a região foram Shergold Smith, Reverendo Wilson,
John Smith e O’Neil e traziam consigo uma pequena embarcação a vapor que auxiliou em
alguns momentos a qual chamaram de Daily. Mesmo com muita dificuldade, eles
permaneceram juntos e Shergold logo foi para a grande ilha de Ukerewe para comprar um
veleiro árabe denominado dhow. Esta embarcação daquele momento (segunda metade de
1877) em diante, foi um importante meio de locomoção para efetivação dos trabalhos
evangelizadores da CMS.
Segundo o autor as notícias a respeito dos missionários estavam chegando à Uganda
com frequência naquele momento e o próprio rei M’tesa estava aguardando por aquele
encontro enviando inclusive cartas escritas por seu escriba Dallington Scopion, este que havia
estudado em uma escola missionária em Zanzibar e viajado por muito tempo com Henry M.
Stanley antes de retornar à Uganda, clamando para que viessem rapidamente.
O que o autor tenta trazer para seus leitores que até mesmo as elites locais
representadas pelo próprio rei nutriam esperanças e queriam que os missionários trouxessem
suas contribuições de modernidade. A ideia de uma nova religião “necessária” naquele
contexto, é uma clara visão europeia do conceito de civilização que observamos nas
entrelinhas dos relatos que eram destinados aos leitores ingleses. A intenção estava na ideia da
missão como algo progressista e promissor para aquela região do continente africano,
portanto. Portanto provavelmente esses anseios do kabaka pela chegada dos missionários
eram uma visão dos missionários da primeira geração cujos relatos foram reunidos para a obra
escrita por Mullins.
O terceiro capítulo do livro inicia-se tratando dos primeiros feitos importantes dos
missionários nas terras do antigo reino de Buganda e davam início nas atividades que
consagraram a efetivação da missão naquelas terras. Depois de um mês em Rubaga, quando a
casa de missão ainda estava sendo construída por ordem do rei M’tesa que acatara a partir de
negociações algumas ideias dos missionários, o coronel Smith retornou para o sul do lago
77

para juntar-se a O´Neill que estava próximo dali para ficar ao par do que estava sendo feito
pelo kabaka e pelos missionários que já estavam atuando em Buganda.
Neste momento a pequena embarcação comprada dos árabes não estava em perfeitas
condições no retorno à capital. Era como se tivessem sido trapaceados pelos comerciantes que
lhes entregaram uma embarcação inacabada. O problema é em tais condições corriam risco de
estarem navegando com algo inseguro, e para sobreviverem tiveram de fazer algumas paradas
em aldeias margeantes do rio, algo que, como mencionado anteriormente poderia ser perigoso
devido à hostilidade que muitas dessas comunidades tribais tratavam os considerados
invasores. Quando a embarcação foi finalizada depois de alguns dias e eles estavam de fato
prontos para dar continuidade à jornada da missão, um conflito entre Lukongeh, rei de
Ukerewe e Songoro, um dos comerciantes árabes do qual tinham comprado a embarcação
alterou a relativa paz que até então estavam vivenciando. O rei atacou um comerciante árabe
que foi pedir proteção aos missionários. O rei Lunkongeh ordenou sua rendição mas os
missionários recusaram em aceitar a capitulação e as forças reais os atacou, assim como
atacara o posto da missão em dezembro de 1877. Nessa tragédia todos os membros da missão,
o comerciante foram poupados dois nativos. Este episódio apontava que as resistências e
alianças ainda eram muito frágeis e que a interferência dos missionários nem sempre tinha
bons resultados.
Os corpos dos dois membros da primeira geração da CMS não foram encontrados para
serem enterrados e a ausência dos membros foi duramente sentida no pequeno grupo iniciante
Aquele havia sido o maior golpe que a missão recebera até então. O prestígio de Shergold
Smith era tão grande que um busto de mármore foi em homenagem aos seus feitos. É
interessante ressaltar a ação heroica e protetora dos missionários para se defender, recusando
rendição para o rei Ukerewe bem como a coragem que tiveram para enfrentar o inimigo que
fora construída no discurso de Mullins como forma de valorizá-los.
As notícias sobre o acontecimento chegaram um dia depois ao reverendo Wilson que
estava sozinho em campo, enfrentando problemas inclusive com alimentação. Então ele
tentou encontrar Mackay retornando a alguns lugares pelos quais passaram no início da
empreitada porém sem sucesso. Mackay tinha iniciado com dois ajudantes sua jornada rumo à
capital de Buganda. Porém, mesmo tendo chegado às margens do lago em junho de 1878, até
novembro daquele ano não havia adentrado à capital. Segundo Mullins, um desses ajudantes
foi morto pelos árabes como uma forma de apontar esses homens como inimigos dos
missionários, esse é mais um dos exemplos que os colocam em lados opostos. No início de
78

fevereiro de 1879, novos missionários chegaram ao Nilo, ajudados no caminho pelo general
Gordon então governante do Sudão. Eram eles reverendo Litchfield, C.W. Pearson e Felkin.
Durante esse ano os missionários da CMS tiveram de enfrentar talvez um dos maiores
embates em terras africanas, a chegada dos padres franceses em busca da expansão do
catolicismo. Esse foi um grande problema, pois teriam de convencer os novos fiéis das
diferenças entre o cristianismo protestante que defendiam e o cristianismo católico. Esse
perigo era ainda maior devido a indicação desses padres, que havia sido feita pelo famoso
cardeal Lavigerie65.
Os padres franceses passaram a agir em oposição aos missionários ingleses, inclusive
não queriam fazer parte dos cultos proferidos por Mackay à corte do rei, como também
denunciaram-no ao mesmo deixando M’tesa perplexo fazendo com que o rei perguntasse em
determinado momento: “A nação dos brancos tem outra religião?”66
Como mencionado anteriormente, M’tesa tinha a negociação como chave para manter
seu poderio diante das diversas influências que chegavam aos seus domínios, não era um
convertido, mas aceitava que todas as vertentes religiosas atuassem com certa liberdade em
sua corte. A reação diante do cristianismo mostra a dificuldade muitas vezes de se assimilar as
diferenças cruciais entre uma vertente cristã e outra, já que ambos tratavam de um
monoteísmo apoiado pela figura de cristo. Mais do que isso, até a chegada dos franceses o
protestantismo era visto como a religião dos brancos, com essa alteração e os conflitos entre
os missionários da CMS e os padres católicos franceses ficara mais difícil de organizar suas
alianças e explicar isso à seus súditos.
A linha de ações que os padres franceses continuaram a fazer originou uma série de
problemas que conturbaram os trabalhos dos missionários ingleses em terra e com as pessoas
de Uganda. No fim de 1879, M’tesa enviou para a Inglaterra juntamente com o reverendo
Wilson e Dr. Felkin, três homens, que segundo o autor do livro, eram de pouca instrução,
chamados Namkadi, Kataruba e Sawaddu.
Começava a partir daquele ano, a intensificação dos intercâmbios entre Inglaterra e
Uganda. O fato de caracterizar esses homens como pouco conhecedores da cultura europeia é
uma tentativa de desvalorizar o conhecimento que estes possuíam a respeito de sua própria

65
Charles Martial Allemand Lavigerie (31 de outubro 1825-1826 - novembro 1892) foi um cardeal francês,
arcebispo de Cartago e Argel e primaz da África. Um padre católico que se tornou um bispo na França, Lavigerie
estabeleceu missões católicas francesas e ordens missionárias para trabalhar em toda a África. Lavigerie
promoveu o catolicismo entre os árabes e berberes do Norte de África, bem como os nativos negros mais ao sul.
66
Do original: “Has ever nation of white men another religion?”. Tradução própria. (MULLINS, J.D. 1904. op.
cit. p.24)
79

cultura. Porém, Mutesa também os caracterizava assim e isso era uma forma de mostrar sua
superioridade e importância perante seus súditos.
Esses três homens vindos de Uganda foram recebidos no comitê da CMS e pela Royal
Geographical Society, instituições que estavam fortemente ligadas desde antes da formação
da primeira geração de missionários protestantes que foram enviados a Uganda. Quando eles
homens voltaram à Uganda no verão de 1880 as suas aventuras em terras estrangeiras,
segundo o próprio autor Mullins foram consideradas ridículas e, segundo ele não tinham
trazido nada de relevante. Até o ano de 1882, para o estabelecimento da missão, alguns
reforços vieram e foram para a casa missionária em Uganda, entre eles Hannington, Ashe e
Gordon. Hannington teve uma curta passagem pela missão, perdendo sua vida com uma
disenteria.
O nome que atravessa todo esse período e se torna cada vez mais importante é sem
dúvida o de Alexander Mackay. Outros homens foram e voltaram da casa de missão, porém
ele foi presente em todos os estágios. Talvez por isso ele tenha sido eleito por Mullins, como
o grande personagem da “Maravilhosa história de Uganda” e condutor dos grandes feitos da
missão e de ações que, no decorrer do caminho percorrido, foram acompanhadas da chegada
da “modernidade”. Mackay parecia ser aquele que cumpriria todas as expectativas de Henry
Stanley em sua carta enviada antes do início dos preparativos da missão ao Daily Telegraph.
Ele podia e não estendeu sua mão, segundo Mullins, a nada relacionado à rebeldia do rei
M’tesa e com sua desenvoltura e habilidade conquistou o respeito do soberano, bem como
capacidade de instalar uma casa de missão que prosperou nas terras do antigo reino de
Buganda.
Mackay teve papel importante para que os nativos tomassem contato com as escrituras
sagradas e, principalmente, na alfabetização dos povos locais. Depois que ele dominou o
idioma local, ele iniciou a tradução de porções da Bíblia. A disseminação desse material só foi
possível porque ele possuía uma pequena prensa de letras pequenas. Ele tinha de dividir o
material produzido por ela com as próprias mãos, já que esta não fazia os cortes necessários
para um livro comum. O fato de possuir esse tipo de equipamento foi fundamental para a
expansão e sucesso da evangelização. Esse material era produzido não só na língua inglesa
ensinada aos nativos por ele, mas também em swahili, língua local que fora transformada de
idioma oral para a grafia em caracteres ocidentais a partir do trabalho de Mackay.
(MULLINS, J.D. 1904. p. 26)
Podemos observar então, que talvez o maior feito da missão de Uganda, mais do que a
possibilidade de material evangelizador escrito, temos com essa empreitada a história de
80

Uganda. Neste sentido, o material produzido era escrito não só em inglês como também na
língua local o swahili. Assim, por intermédio dos missionários pôde-se ser grafada em
caracteres ocidentais e, ainda que com visões muitas vezes deturpadas e carregadas de
influências daqueles que a promoveram (missionários) a história dos povos da região.
É claro que era preciso considerar que em determinados momentos confunde-se a
história da missão com a própria história local, mas sem dúvida, esta foi a principal
contribuição para a alteração completa no modo de vida daquela sociedade. Dentre esses
materiais, além de partes do texto bíblico, Mackay trouxe o que ficara conhecido como
Mateka, o primeiro livro que continha parte do alfabeto e da formação de sílabas, os
principais credos da Igreja Anglicana, a oração do “Pai-Nosso”, os dez mandamentos e uma
seleção de textos tirados da bíblia. Essa publicação vinha da Inglaterra a altos custos devido
aos encargos e à distância para os novos fiéis. Segundo o autor, as pessoas adquiriram amor
ao hábito da leitura assim que ela fora introduzida e, para Mackay, aquela era uma forma de
alimentar os nativos com a “Palavra de Deus”. Sendo, segundo ele, uma experiência única do
uso da bíblia em todos os lugares do mundo como parte da evangelização.
O Mateka materializava o trabalho dos missionários da CMS que tinham concretizado
a evangelização a partir da alfabetização na língua inglesa, mas, foi muito, além disso, pois
era um dos responsáveis pela transformação do idioma principal dos baganda que
secularmente fora passado para gerações de forma oral e, a partir daquele momento estava
transcrito em caracteres ocidentais. Mais do que os outros povos da Europa como no caso dos
franceses ou até mesmo com os contatos entre os locais e muçulmanos, somente a partir do
protestantismo inglês é que criou-se e difundiu-se uma língua local de forma transcrita o que
auxiliou muito o trabalho da missão.
Os primeiros adeptos do cristianismo que fizeram parte do início da missão eram
chamados de Readers, ou seja, leitores. Desse modo, a leitura foi uma grande marca da
expansão do gospel e da própria missão, que cada vez mais, garantia efetivação de seu
objetivo em Uganda. Antes de 1890, dois dos principais evangelhos haviam sido traduzidos,
ou seja, boa parte do material utilizado para conversão e evangelização estava à disposição
dos missionários. Contudo, durante o período de cinco anos apenas Mackay conseguiu
transcrever de forma inteligível e com qualidade esse material. Nenhum tradutor tinha a
mesma qualidade e eficiência dele, enfatiza Mullins, que quer, a todo tempo, buscou
vangloriar os feitos daquele que selecionou como grande ícone da primeira missão da CMS.
O trabalho de ensino, pregação, tradução e os vários tipos de manuais produzidos pela
missão começaram a “render frutos” a partir de 1881. Deste ano em diante os batismos só
81

aumentaram. Nesse período os missionários em campo deixaram relatado um acontecimento


local que depois servira de exemplo em suas pregações futuras a respeito de um rapaz
chamado Sembera. Ele tinha chegado para se instruir e escrevera uma pequena carta a
Mackay entregando-a muito envergonhado. Esta carta continha os seguintes dizeres: “ Bwana
67
, Mackay, Sembera vem cumprimentá-lo e dar boas notícias, você poderia batizá-lo porque
ele acredita nas palavras de Jesus Cristo?”68.
Sembera e outros foram instruídos para o batismo. Naquela ocasião uma história foi
recordada a respeito dos primeiros eventos da missão pelos missionários para que a
proferissem e ilustrassem seus feitos e todos que ali estavam aplaudiram-na ao mesmo tempo
em que se entristeceram. Um jovem rapaz chamado Dumilira que tinha iniciado como “leitor”
(modo como chamavam os aprendizes locais do cristianismo proposto pela CMS) adoeceu e
estando em condições muito debilitadas pediu para que um amigo, seguidor de um espírito
pagão chamado lubare (divindade seguida por alguns dos baganda), clamasse pela vinda dos
missionários na esperança de ser salvo. Obtendo a recusa do amigo a única coisa que pôde se
apegar naquele momento era o Evangelho que havia sido emprestado para que mantivesse um
aprofundamento na sua evangelização. Num quadro evolutivo de piora ele fez seu último
pedido ao amigo, seguidor de lubare, para que borrifasse água sobre ele e fizesse aquilo em
nome do “pai, filho e espírito santo”. O rapaz acaba morrendo, mas foi aceito segundo os
missionários como um cristão convertido e salvo, mesmo que o batismo tenha sido feito pelas
mãos de um descrente.
Podemos notar que a simbologia do cristianismo protestante já estava presente e para o
doente Dumilira o ato de borrifar água sobre seu rosto e pronunciar as palavras sacras era uma
forma de purifica-lo e prepara-lo para a morte, mas, principalmente para a salvação. Essa
conversão havia sido a primeira oficial ainda que pelas mãos de um homem não religioso fato
que deve ser destacado pela valorização dada pelo próprio autor ao acontecimento, pois um
homem acamado e no leito de morte reconhece a necessidade de se “render” ao evangelho.
Na passagem, a vontade de Dumilira em deixar de ser pagão, segundo os missionários,
somado ao apego às palavras do Evangelho foram suficientes para que sua crença fosse
confirmada com o batismo, logo após isso Dumilira morre, porém, como cristão. O fato de
recordarem esta história era uma maneira de emocionar os locais para que percebessem que
alguns de seus iguais haviam reconhecido a necessidade do batismo e da conversão. Era
comum também durante o ritual do batismo que tanto era explorado nas pregações dos
67
Um título de respeito semelhante a mestre.
68
Do original “Bwana, Mackay, Sembera has come with compliments and to give you great news. Will you
baptize him, because he believe the words of Jesus Christ?” (MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p.27)
82

missionários a alteração do nome africano, como exemplo disso o autor ilustra que no ano de
1882 o reverendo O’Flaherty, na companhia de Mackay, batizou Sembera e quatro outros.
Sembera Mackay, como ficara chamado, adotou o nome domissionário, tornou-se pouco
tempo depois, um líder cristão local de suma importância para o andamento do trabalho
missionário dentro de Uganda. O uso de nomes em inglês após o batizado, geralmente
relacionado a algum missionário era bastante comum e, em termos locais para o local, uma
forma de destaque e reconhecimento dentro da missão, principalmente de entendimento e
compreensão do evangelho cristão e de uma vida nova e diferente daquela que tinham
enquanto pagão. Para os missionários, uma forma concreta de mostrarem seu sucesso
enquanto evangelizadores.
Essa história servia também como ilustração para a necessidade de “salvação” em
qualquer circunstância e colocava a possibilidade de um local conduzir um batizado a partir
da crença cristã e nas escrituras trazidas pelos missionários. Uma série de outros batizados
foram importantes para composição da igreja cristã local fundada pelos primeiros
missionários a se aventurar nas terras de Buganda, atual Uganda. Nesta direção há o caso de
Duta, um seguidor e muito amigo de Pearson, um missionário contemporâneo de Mackay, que
além de líder religioso exercia o trabalho de tradutor entre ingleses e os nativos, tornou-se
reverendo Henry Wright Duta. Em outubro de 1883 já eram vinte e um líderes religiosos
cristãos na missão da CMS provindos dos povos baganda, ou seja, locais convertidos que
atingiram o estágio de líderes da religião cristã de viés protestante naquele território.
Mullins trata o trabalho de evangelização como um encorajamento diante das
adversidades daquele território como forma repetitiva de enaltecimento do heroísmo da
missão. Ao final do primeiro capítulo reporta um empasse vivido por Mackay e talvez um dos
maiores desafios daquele missionário em campo africano que fora a evangelização, ou ao
menos tentativa de fazê-la, do rei M’tesa.No início desta passagem o autor descreve os
esforços dos missionários para convencer aquele soberano de que a religião que deveria ser
seguida era proposta pelos missionários:

Enquanto o trabalho de ensinamento continuou com muito incentivo e


coragem, os esforços dos missionários para convencer M’tesa da nova
religião e tocar seu coração eram em vão. A história desta cena marcou
sem dúvida pelo menos alguns, entre os muitos que ali estavam. Mackay foi
até a corte e implorou para que o rei se convertesse ao cristianismo. M’tesa
logo iniciou com suas habituais desculpas:
Existem duas religiões; disse ele. “Quando Masudi leu o livro Corão você
chamou aqueles dizeres de mentiras; quando você leu o seu livro, Masudi
disse que os seus dizeres eram mentiras; O que é verdade?
83

Mackay então se dirige a frente e de maneira solene se ajoelha em frente ao


trono do rei e diz:
Oh M’tesa meu amigo, não repita essas desculpas! Quando eu e você
estivermos diante de Deus no grande dia do julgamento, você irá
pronunciar diante do Deus onipotente que não acreditou em sua palavras
por que Masudi disse uma coisa e Mackay disse outra? Não, você tem o
Novo Testamento; leia você mesmo, Deus irá julgá-lo por isso. Nunca houve
ninguém que mesmo tendo olhado para a verdade, disse não tê-la
encontrado. (MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p.29)69

Essa passagem nos mostra os meios utilizados para conversão por parte do grande
líder da missão em Uganda, Mackay, a intenção de persuadir o rei e, além disso, deixar para
que o próprio soberano refletisse a partir do temor de escolher o lado da mentira, representado
segundo ele pelo Corão, ou pela verdade exposta no Novo Testamento. De forma impessoal
Mackay se coloca como mais um fiel no evangelho, um homem que precisa ser salvo no
chamado “dia do julgamento” ou “juízo final” proposto pela Bíblia e aconselha o rei que siga
seus passos e faça o mesmo, inclusive dando a partir da leitura do Novo testamento a verdade
buscada entre as duas hipóteses apresentadas naquele momento.
É interessante observar a maneira pouco conflituosa que Mackay se coloca para com
seu rival ideológico naquele momento, como o caso de Masudi. Apesar de apontarem seus
livros como “a verdade” e “a mentira”, no momento do convencimento do rei para seguir o
cristianismo protestante, cabe ao próprio soberano a escolha por um caminho ou outro.
Mullins induz o leitor a pensar, obviamente, que o correto é o ensinamento cristão do Novo
Testamento. Deste acontecimento podemos analisar a necessidade de Mackay em se prostrar
diante do rei de maneira respeitosa, agindo como súdito além de buscar uma aproximação
carismática quando chama-o de “meu amigo” e mostra conselhos que levariam aquele homem
a uma situação melhor do que aquela que estava vivendo a partir da evangelização, mas
principalmente a capacidade do rei em se articular entre duas vertentes distintas de
pensamento como uma forma de manter uma diplomacia. Coloca questionamentos e pontos

69
Do original: “While the work of teaching went on with much encouragement, the efforts of the missionaries to
touch M’tesa’s heart were in vain. The story of an affecting scene, doubtless only one amongst many, was
recordered at the time.
Mackay was at the court, and had pleaded with the king to become a Christian;-
“M’tesa then began with his usual excuses.
“There are these religions, he said.
When Masudi reads his books, the Koran, you call it lies; when you read your book, Masudi call it lies: which is
true?”
“I left my seat, and going forward to the mat, I knelt on it, and in the most solemn manner I said: ‘Oh, M’tesa
my friend, do not always repeat that excuse! When you and I stand before God at the great day of judgment, will
you reply to Almighty God that you did not know what to believe because Masudi told you one thing and Mackay
told you another?
No, you have the New Testament; read there for yourself. God will judge you by that. There never was any one
yet who looked for the truth there and did not find it.’ Tradução própria.
84

cruciais para que não tome partido nem de uma, nem de outra religião. Além disso,
observamos a necessidade dos missionários em ter o soberano próximo para que o andamento
da missão tivesse mais segurança e principalmente o embate entre os muçulmanos e
missionários protestantes, agentes históricos distintos que coabitavam a região buscando
ampliar seu espaço de atuação.
A conversão de M’tesa não ocorreu até sua morte em 1884, porém, durante seu
reinado os missionários conseguiram sem grandes problemas desenvolver as estratégias
necessárias para a efetivação da missão e a evangelização de milhares de locais, inclusive com
o desenvolvimento de sacerdotes baganda para continuarem com o trabalho da CMS em
campo missionário.
A morte de M’tesa daria início a um longo período obscuro na história da missão da
CMS em Uganda, o reinado do herdeiro do trono e filho de M’tesa, Mwanga fora bastante
desafiador e iniciava ali um período de perseguições aos cristãos e derramamento de sangue
que custou a vida de muitos dos missionários em campo. O quarto capítulo da obra de Mullins
intitula-se “O sangue dos mártires” e já faz um alerta ao sombrio período para aqueles que
estavam trabalhando pela evangelização naquele território. Mesmo não tendo aderido ao
cristianismo protestante, M’tesa dava aos missionários a segurança e a liberdade, ainda que
com ressalvas, para que desenvolvessem e levassem a diante a missão e sua morte fez com
que esses ingleses aprendessem o valor da proteção.
Mwanga era um jovem de apenas dezoito anos quando ascendeu ao trono e o
missionário H. H. Johnston o classificava como um mal homem em todos os detalhes que esta
expressão necessita para ser real. Mullins, partilhando da mesma vertente e utilizando a
representação a partir da visão missionária protestante inglesa classificará este rei como
inconstante, vicioso, cruel, traiçoeiro, suas características o mostravam como malvado em
todos os pontos, desde o início de seu governo segundo o autor que completa dizendo da
influência nefasta do rei à missão, mas também ao próprio país que para os missionários
retroagia.
Notamos que a visão dos missionários sobre o novo rei é descrita como bastante
conflituosa, outros detalhes desse embate direto de ideias opostas de sociedade fora bastante
violento e as perseguições deram fim à relativa liberdade que a missão até aquele momento
havia se desenvolvido. No ano da morte de M’tesa o número de batizados e convertidos havia
aumentado para oitenta e oito e os missionários em atividade na casa de missão em Buganda
eram Mackay, Ashe e O’Flaherty, estes que participariam de fato dos conflitos com o rei
Mwanga.
85

Mwanga, segundo os relatos documentais e do próprio autor estava muito mais


próximo dos árabes e outros seguidores da doutrina de Maomé, bem como dos chefes pagãos
do que dos cristãos protestantes que segundo Mullins o induziram a acreditar que o homem
branco, logo o europeu inglês protestante, “devoraria a terra” e esse medo, menos do que o
ódio religioso, ainda que esse existisse, influenciou na perseguição aos missionários que
passou a ser o carro chefe da política de governo daquele rei. Não só os missionários foram
repreendidos com violência, mas todo aquele que concordasse e espalhasse o evangelho
segundo a proposta da CMS também era colocado na mesma situação de perseguido e os três
missionários em campo passaram a correr risco de morte e viver em constante situação de
perigo desde o momento da chegada de Mwanga ao poder. A primeira perseguição do rei na
perseguição dos missionários ocorreu em janeiro de 1885. Mackay havia obtido a licença do
rei para ir em direção ao lago e estava no caminho da costa quando Mujasi, um dos chefes
locais com muitos seguidores apreendeu alguns rapazes que acompanhavam Mackay em sua
jornada com a desculpa de que eles estariam tentando deixar o país e por isso deveriam ser
contidos. Os membros da CMS chegaram a apelar para o primeiro ministro Katikiro diversas
vezes, e todas essas apelações foram rejeitadas, mas alguns dos rapazes escaparam com vida
da prisão e com frequência reportava a respeito do momento difícil que haviam passado nas
mãos de Mujasi e seus seguidores. Seruwanga, Kakumba e o filho de Ashe foram enviados
para um local fora da capital.
Sobre este fato, Mackay reportava com veemência a crueldade de Mujasi em diversas
vezes durante suas passagens. Segundo o autor como forma de ilustrar a maneira como eram
tratados pelos muçulmanos e por consequência por Mwanga já que este último compartilhava
da mesma opinião de que os brancos europeus, lê-se missionários, estariam prejudicando o
desenvolvimento daquela sociedade e teriam o objetivo de “comer a terra” como já
mencionado. Os comentários que fazia em suas passagens a respeito do acontecimento
constam no livro de Mullins com detalhes sórdidos da maneira como aqueles homens
membros da missão sofreram. Aponta que teriam sido colocados numa espécie de andaime e
amarrados ali de uma maneira que não pudessem se soltar Logo depois fogo fora ateado
abaixo destes homens que iam queimando lentamente até a morte ao mesmo tempo que
Mujasi e seu comparsa pediam que eles clamassem por Isa Masiya (Jesus Cristo) para que
este os livrasse daquele “pesadelo”.
Segundo os relatos de Mackay, carregados de detalhes que enalteciam a fé no
cristianismo proposto pela CMS, mesmo diante dos insultos e da morte aqueles homens não
perdiam a fé e cantavam hinos de louvor para se acalmarem e pedirem para que fossem
86

livrados daquela situação. É possível observar que durante várias situações Mackay e os
demais membros da missão proferiam e reportavam histórias que pudessem ser incentivos
para a conversão, isso de acordo com as passagens da obra A Maravilhosa História de
Uganda era uma estratégia ilustrativa do poder da fé e dos sofrimentos inerentes àqueles que
resolviam assumir a identidade de cristão fiel às escrituras sagradas, ou seja, as dificuldades
que deveriam enfrentar os convertidos deveriam trazer ainda mais fé e conquistar ainda mais
pessoas para a doutrina.
A Bíblia conta com diversas passagens de exemplos de sofrimento do povo hebreu
perante os demais, porém, a fé sempre os fazia persistir. O que o autor Mullins trabalha
constantemente é essa ideia do sofrimento como uma consequência daqueles que escolhem o
melhor caminho e os mártires da missão eram os que conduziam a este caminho. O primeiro
concílio da Igreja de Uganda aconteceu no ano de 1885 e este momento, os missionários
tentavam organizar-se em vista da possibilidade de terem de deixar o país por conta da
intensificação das perseguições e mortes contra eles a partir do que era ordenado pelo novo
rei. Este momento significou o maior desafio dos missionários em campo de ação já que além
dos rivais tradicionais desde sua chegada como fora o caso dos mercadores árabes e padres
franceses católicos. Ali tinham de enfrentar um monarca que estava disposto a eliminar
qualquer que fosse a possibilidade de se continuar aumentando o número de fiéis ao
protestantismo anglicano e, mais do que isso impedir a presença daqueles homens dentro do
reino de Buganda. É possível pensar que o retorno às práticas do islamismo representasse uma
volta aos costumes mais próximas à vida anterior a conversão cristã, bem como maior
domínio político.
Neste concílio eles acabaram por escolher meia dúzia de homens considerados
avançados e centrados que correspondessem aos anseios da CMS para serem líderes ou, como
costumavam chamar aqueles que tinham um poder de persuasão e conhecimento dos trabalhos
da missão que estavam a algum tempo na CMS, anciãos. Esses homens auxiliariam na
manutenção da missão em meio aos problemas com o governo local e os demais “inimigos”.
Esses homens juntamente com os demais líderes colocaram a pequena prensa em atividade e
começaram a pulicar um primeiro lote de 1.000 cópias de algumas preces comuns dentro das
igrejas de vertente anglicana na Inglaterra além de hinos de louvor comuns entre os
missionários para que pudessem ser espalhados e continuassem obtendo apoio popular e
agregando novos seguidores de sua doutrina.
Esta primeira ação para combaterem a perseguição e enfrentarem suas proibições
rendeu-lhes um aumento considerável de fiéis leitores, os readers mantendo o trabalho de
87

alfabetização a partir da tradução em língua local e ensinamento da língua inglesa. Segundo


os relatos de Mullins, até mesmo antigos seguidores de Mujasi o líder muçulmano, acabaram
se convertendo ao protestantismo, porém não há a catalogação dos nomes mesmo de quanto
fora este aumento no número de fiéis leitores, apenas no número de batizados que foram vinte
no final de maio de 1885.
Transcrevendo escritos de Mackay, Mullins mostra que um dos seguidores de Mujasi
teria mudado sua postura após ver o tratamento dado aos prisioneiros cristãos torturados com
golpes de faca e uso do fogo o que fez com que esse jovem começasse a repetir as preces
feitas pelos cristãos e se rendesse ao evangelho, não há maneira de comprovar esse
acontecimento, porém, a formulação de uma cena comovente por parte do que fora escrito por
Mackay pode ser uma maneira de mostrar, principalmente para o leitor da Inglaterra o
sofrimento do cristão, a força da missão e a necessidade de se compreender o evangelho e crer
na divindade monoteísta proposta pelos membros da CMS como aquela mais justa e pura, e
mais do que isso um apelo à comoção.
Diante desses feitos e vendo o alcance do poder da palavra dos missionários, com
destaque especial à Mackay, o próprio rei estabelece uma pausa nas perseguições e acaba,
inclusive, permitindo algumas ações e recebendo em uma audiência privada o líder Mackay
entregando-lhe presentes pra serem encaminhados aos missionários. Este fato deve ser levado
em consideração devido a capacidade diplomática exercida pelos missionários e a religião
muitas vezes tendo de apelar à manobras políticas para que pudesse continuar sendo exercida,
e essas manobras eram encabeçadas e sugeridas por Mackay como por diversas vezes o autor
Mullins coloca.
Este curto período de pacificidade não seria muito longo, no mesmo ano o rei ouvira
de seus informantes um boato de que um novo grupo de homens brancos estava vindo pelo
norte do lago Victória Nyanza provindos da Alemanha denominados invasores, pois era assim
que costumava apontar os europeus de qualquer nação, e esses boatos passaram a ficar cada
vez mais frequentes. No final de outubro esses rumores tornaram-se verdade. Segundo os
relatos analisados pelo autor dois homens, um de meia idade que havia perdido o polegar e
um mais jovem se aproximaram de Busoga e imediatamente o rei ordenou que fossem
aprisionados e determinou suas mortes. Apoiando-se na ideia de que muitas vezes Mackay e
os demais líderes religiosos da missão ilustravam ao máximo suas histórias como forma de
enaltecer os fatos e comover a população, o próprio Mullins trouxe uma ressalva de que na
verdade não existiam dois homens, pelo contrário, somente um que fora reconhecido como
88

um bispo membro da CMS que acabara de fato sendo preso e morto conforme era comum
naquela época devido à posição do rei sempre avesso ao homem branco europeu.
Sobre essa passagem Mackay se posiciona:
Tendo passado a escuridão, Ismail veio nos contar que mensageiros que
haviam voltado de Busoga com notícias a respeito do acontecimento e que
homens brancos haviam sido mortos com todos os seus pertences... Oh, que
noite de tristeza! Que derramamento de sangue absurdo! Como isso pode
ter acontecido?” (MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p. 34) 70

Essa passagem era também colocada em meio às pregações, principalmente no período


de perseguição quando condenar as opressões por parte do rei e daqueles que o apoiavam em
suas ações contrárias a cristãos missionários e aqueles que seguiam estes últimos era uma
forma de encorajar e conquistar um maior número de evangelizados.
No ano de 1885 retorna a Uganda um importante membro da missão que juntamente
com Mackay controlará as atividades missionárias, James Hannington. Ele esteve engajado no
ano de 1882 e desenvolvia atividades importantes dentro do controle da casa de missão, era
respeitado na Europa, mas principalmente era atento para os desdobramentos da missão em
solo africano. Ainda em 1882 acabou retornando para a Inglaterra devido a fortes febres que
acometeu durante sua primeira passagem pela casa de missão. Com a recuperação de sua
saúde se engajou novamente foi auxiliar Mackay em meio a tantos problemas que estavam
enfrentando desde a morte de M’tesa.
Hannington recebeu a oferta da sede da CMS na Inglaterra para se tornar bispo do
Leste da África Equatorial e acabou aceitando o posto fazendo com que este retornasse ao
continente africano. Ele iniciou a viagem por navio em junho de 1884 navegando até outubro
quando fez uma série de paradas nas estações espelhadas pela costa até que em 22 de julho de
1885, pouco mais de um ano após sua partida da Europa chega a Uganda. Devemos notar o
tempo de viagem para se alcançar Uganda naquele período ainda que Hannington tivesse feito
paradas pela região costeira, a viagem era bastante longa bem como, por consequência, as
notícias a respeito do andamento da missão tanto da parte europeia quanto de Uganda.
A rota que incluía passagem por Zanzibar, Saadani e Chigogo vinda do sul e
terminando no Lago Victoria era, naquele momento, a mais conhecida e a mais explorada por
viajantes missionários ou não. Segundo os relatos apurados por Mullins era um caminho
repleto de perigos devido a insalubridade e insetos, mas, principalmente pela quantidade de

70
Do original: “After dark, Ismail came to tell us that Messenger had returned from Busoga with the tidings that
the White men had been killed, with all their porters... Oh, night of sorrow! What unheard-of deed of blood!
How had this come about?” Tradução Própria.
89

chefes de tribo que não admitiam a passagem de estrangeiros por acreditarem que estes eram
sinônimo de perigo para a integridade territorial e das comunidades ali instaladas, o que, de
certo modo, não era uma inverdade. Como sentiam-se ameaçados pela presença branca
europeia, atacavam e tentavam impedir que esses missionários e os demais viajantes europeus
que cruzassem essa rota seguissem a diante.
A travessia muitas vezes era feita através dos afluentes que desaguam no lago Victória
e esses afluentes cortavam o trajeto mais comum entre os viajantes e para ser feito dependia
da posse de pequenos barcos dos próprios missionários ou mesmo de canoas de populações
locais que não entravam em embate com grupos estrangeiros. Existia uma rota alternativa ao
norte passando pelos Masai, uma tribo de nômades conhecidos pelos europeus como
selvagens que ficava geralmente nos arredores deste caminho e, eram muito temidos segundo
o que fazia que Hannington fosse temerário em enfrentar essas hostilidades, como sugerem os
relatos. (MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p. 35)
Os supostos perigos do percurso não superam as vantagens que o Bispo Hannington
acreditava possuir, uma delas foi a estratégica ordenação de um africano a diácono, o Rev.
Willian H. Jones que o acompanhava no percurso. Apesar de implícito no texto a estratégia de
levar um africano consigo melhorava a comunicação e as possíveis e necessárias negociações
com populações locais. Um africano convertido e imediatamente tendo vantagens dentro da
missão, como no caso de Jones ocupando um cargo importante, era uma forma de dar
credibilidade para as pregações mais acima de tudo era sinônimo de segurança no decorrer
dos caminhos.
Como vimos anteriormente, era intenção da CMS formar uma igreja local, onde os
próprios africanos atuariam em posições de protagonismo, porém, devemos salientar que esta
ideia auxiliava e muito a permanência segura dos ingleses missionários que estariam
juntamente com os convertidos atuando no processo de ampliação das ações e
estabelecimento da missão. Uma igreja local não significava uma igreja exclusivamente
africana, mas sim um ponto chave para que os ingleses missionários garantissem a efetivação
de seu trabalho e o processo de convencimento de novos convertidos.
Apesar dos notórios perigos que as viagens possuíam a estratégia de Hannington era
efetivamente inteligente e garantiu-lhe a seguridade de uma viagem tranquila, porém o
principal inimigo da CMS não estava nos arredores e nos caminhos que levavam à Buganda,
mas sim no próprio território a partir da figura do kabaka Mwanga. Muito próximo dos
comerciantes árabes, o kabaka dava ouvidos aos seus conselhos, estes sugeriram que este
homem branco estava vindo pela "porta dos fundos" de Uganda, a fim de "comer a terra",
90

expressão comum utilizada pelos povos locais que sugeria que a integridade e liberdade, bem
como a riqueza do local eram o verdadeiro objetivo dos europeus, e os missionários estavam
inclusos neste julgamento. Assim, os comerciantes árabes jogaram receio no rei, que ordenou
que Hannington deveria ser preso assim que chegasse no território de Buganda.
Inconsciente deste perigo, Hannington propôs uma parada e deu uma pequena festa
par a caravana como modo de incentivá-la, estavam já na colina onde se podia avistar as
águas do Nilo e estaria a poucas horas de distância do Victoria Nyanza, porém antes que
pudesse alcança-lo, foi surpreendido e aprisionado por alguns homens que estavam seguindo-
o. Ele foi arrastado para uma cabana e mantido em um pequeno cativeiro, seus seguidores e
companheiros de caravana eram quarenta e seis e todos foram aprisionados com ele, porém,
estes tinham pouco mais liberdade e mobilidade. Seu captor era Luba, um chefe de Busoga,
território que vivia sob a suserania de Buganda (Uganda).
Mensageiros foram enviados por Mwanga para novas ordens, enquanto isso, segundo
Mullins, o bispo preso, torturado e com febre, passou seus dias de cativeiro em oração,
estudando a Bíblia e escrevendo. Seu diário fora recuperado por Mackay algumas semanas
depois, contendo passagens até seu o último dia. Ao enaltecer a fé de Hannington através de
suas ações mesmo em cativeiro diante da morte anunciada e mostrar que o diário deste
missionário fora recuperado pelo líder da missão da CMS Alexander Mackay, inclusive na
passagem adjetivando de que o diário continha uma história maravilhosa, o autor nos sugere
de que assim como faziam com os demais exemplos de histórias trágicas, porém heroicas,
Hannington também viraria exemplo nas pregações para mostrar seu heroísmo, bem como sua
trajetória engrandeceria o trabalho da missão anglicana para os próprios ingleses.
O assassinato de Hannington foi mais um episódio trágico para a CMS diante da
expansão cristã protestante em curso, porém o grande número de seguidores e a perseguição
aumentavam consideravelmente o número de convertidos, e as ações tratadas como heroicas
ilustravam as pregações e convenciam com cada vez mais eficiência. Mullins inclusive trará
um subtítulo no final deste capítulo “O Bispo Martirizado” apontando como fora tratado
Hannington pela missão após sua morte.
A notícia que chegou a Mackay e os outros missionários de Uganda traziam o selo da
verdade, segundo Mullins, que acredita em sua obra que o que fora proferido por Mackay
após a leitura do diário e das conversas que havia tido com sobreviventes deste atentado era
verdadeiro e não poderia ter sido inventado por qualquer nativo. De acordo com os fatos
Mackay observou na época:
91

Eles o mantiveram afastado de seus homens e os seus bens, mas permitiram a ele sua
cama e sua Bíblia além de um ou dois livros de encomendas. Ele ocupou seu tempo
em escrever muito. Quando eles estavam prestes a matá-lo, mandou que fosse dito ao
rei que ele havia comprado a estrada para Buganda com sua vida, e que ele morreu
pelo povo Baganda.” (MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p.37)71
Após essa mensagem enviada para o rei Mwanga este ordenou que o homem branco
fosse condenado a morte assim como seus seguidores, como fora feito. Quatro dos porteiros
escaparam e levaram a notícia para o resto da caravana, que estava à espera, sob a liderança
do Rev. Jones que havia feito a viagem pouco tempo antes. Jones teria permanecido no local
por um tempo, esperando um “contra-ataque” que não ocorrera. As perseguições não paravam
de aumentar com relação aos missionários protestantes da CMS, a estratégia de Mwanga era
que através do extermínio dos missionários se alcançaria o fim do missão e consequentemente
da ameaça do homem branco europeu.
Assim, o quinto capítulo da obra enfatiza o pior período enfrentado pelos missionários
em campo de missão, “Tempos de Perseguição” trata justamente do risco de morte que os
principais membros da CMS em Buganda constantemente estavam correndo desde a subida
de Mwanga ao poder. Segundo Mullins, após o assassinato do bispo Hannington, Mwanga
teria, por um tempo, ficado com medo pela retaliação que os homens brancos na costa
poderiam fazer em vingança, isso mostra que apesar da postura firme em combater e expulsar
os missionários ingleses do território era algo arriscado já que uma parcela de ingleses não
missionários que estavam na região, poderiam auxiliar a num endurecimento e combate ao
kabaka. Porém, logo foi encorajado a prosseguir em sua estratégia de eliminar os invasores
missionários, algo que Mullins chama de “carreira de crime” demonstrando a parcialidade em
favor dos feitos da CMS já que era um membro dela e conta a história da missão a partir de
sua visão, ou seja, a representação que faz daquela sociedade e da situação em curso durante o
estabelecimento da missão protestante.
Os três missionários em campo, Mackay, O'Flaherty e Ashe, no entanto, estavam em
perigo frequente e temiam por suas vidas. Como exemplo, o autor menciona que em uma
ocasião, Mwanga enviou ordens para Mackay fosse até ele, que obedeceu, enaltecendo que os
missionários se ajoelharam em oração diante do temor que tinham do rei, mostrando que a
oração e a devoção aos ensinamentos do cristianismo protestante eram uma garantia contra o
medo e a insegurança, fato que como mencionado anteriormente auxilia não só no
convencimento durante as pregações, mas para que os ingleses percebessem e reconhecessem
71
Do original: “They kept him aloof from his men and his goods, but allowed him his bedding and his Bible and
one or two order books. He occupied his time in writing much. When they were about to kill him, he bade them
tell the king that he had purchased the road to Buganda with his life, and that he died for the Baganda.”
Tradução própria.
92

a coragem e a “perseguição” e “injustiças” que Mackay e seus companheiros estavam


enfrentando em busca do espalhamento de sua doutrina. Esse tipo de relato faz com que os
africanos locais que estavam representados pela figura do kabaka fossem vistos como cruéis
inimigos, invertendo a ideia de invasão cultural por parte dos membros da CMS naquele
território.
O primeiro subtítulo do capítulo mostra os primeiros embates de enfrentamento das
ações do kabaka Mwanga, “Enfrentando a ira do rei” trabalha desde o início a partir da visão
de Mullins, a ideia de transformar o chefe local numa figura obscura e injusta e os
missionários em heróis. “Muito humilde” escreveu Mr. Ashe a respeito de Mackay,
“Muito fraco, muito ingênuo, ele estava de joelhos diante de Deus, mas, muito experiente,
muito forte, muito viril” depois de como ele suportara por quase três horas da sessão de
espancamento e de intimidação de Mwanga e seus chefes. O rei tentou por ameaças e
promessas descobrir como eles haviam descoberto o assassinato do Bispo Hannington. “E se
eu te matar?” Mwanga indagava; “O que a rainha Victoria vai fazer?” “O que ela ou toda a
Europa poderia fazer?”. (MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p.40)
Durante essa sessão, o líder católico romano Père Lourdel 72, também estava presente e
tentou falar como os missionários da CMS haviam descoberto o assassinato do Bispo
Hannington, mas foi interrompido pelo rei que exclamou se deveria poupá-lo caso matasse
Mackay e os demais missionários protestantes, mostrando que a perseguição nesse momento
(1885), segundo os relatos, estendia-se a todos os cristãos. A influência árabe muçulmana sob
o rei fazia com que tivesse um olhar hostilizador para as demais crenças e essa aversão ficara
evidente em seu discurso e principalmente em suas ações em combate a influência cristã.
Durante esse episódio, ainda que em meio a uma porção de repetidas ameaças para acabar
com a vida dos membros da CMS, provavelmente temoroso das represálias que poderia sofrer
por parte do governo inglês em apoio a seus conterrâneos, deixa que escapem da morte,
porém, para Mullins existiam evidências de que por várias vezes de maneira secreta tentou
organizar atentados almejando eliminar os líderes CMS em Buganda.
72
Simeon Lourdel foi um pioneiro missionário católico em Uganda. Nascido no Pas-de-Calais, França, ele se
tornou um pai branco, sendo ordenado em 1877. Ele foi escolhido para a primeira caravana para a África
Oriental liderada por Leon Livinhac e chegou em Buganda em fevereiro de 1879. Ele logo se tornou o diretor da
missão, o porta-voz, sendo um bom lingüista com uma fé manifesto e um entusiasmo que rapidamente chamou
muitos do povo Baganda para seguí-lo; ele adquiriu o nome pessoal de “Mapera” (Mon père), como ainda é
lembrado. Na atmosfera incerta e tensa do tribunal Ganda do rei M’tesa e seu filho Mwanga, espírito rápido do
Lourdel era frequentemente chamado a intervir como quando, em um momento de crise, em 1881, ele se
ofereceu para andar através do fogo carregando os Evangelhos se um porta-voz muçulmano fizesse o mesmo
com o Alcorão. A oferta não foi aceita e uma ameaça imediata para a comunidade cristã foi enviada. Lourdel
batizou pelo menos quinze dos mártires mortos em perseguição de 1885 e 1886 no governo do kabaka Mwanga.
Expulso de Buganda em 1888 pelo rei muçulmano, usurpando Kalema, retornou após a vitória cristã em 1889,
mas morreu pouco depois. O catolicismo de Uganda o considera seu fundador.
93

Neste período de tensão, dentro de quinze dias após o assassinato do Bispo, a primeira
folha do Evangelho de São Mateus foi impressa e distribuída entre os convertidos. A data
exata é digna de registro: e foi 13 novembro de 1885. “Tempos de perigo foram sempre
momentos impressão”, que segundo Mullins era uma expressão muito utilizada por Mackay.
"Toda profecia colocada em folha”, escreveu ele em seus registros.
A distribuição era gratuita naquele momento (1885), o que mostrava um grande
interesse publicitário dos missionários a respeito de suas ações em campo, além disso, várias
cópias eram dadas aos convertidos e possíveis novos fiéis. Também atuavam como uma
espécie de editores fazendo correções e emendas que julgavam necessárias antes de ir para a
imprensa, o que mostra que o que era passado para os fiéis era selecionado pelos missionários
e mais do que isso existia uma ideologia simbólica em utilizar elementos das escrituras que
fizessem sentido para o projeto da missão, daí a seleção e a correção aplicada antes da
impressão dos exemplares. Isso mostra de forma muito organizada os missionários
selecionavam sua ideias e interpretações que chegavam pré-formuladas para os evangelizados.
A imprensa era muito importante nos períodos de perigo e de crise, como o momento
que viviam os missionários durante o governo de Mwanga, pois essas impressões eram uma
forma de propaganda em favor da missão e do cristianismo, a partir de “milagres” e passagens
que enaltecessem o cristianismo protestante e despertasse o sentimento de combate às
perseguições. Por essa presença dos materiais educadores e divulgadores na sociedade de
Buganda e visando uma permanência da missão tomaram para si um profundo interesse na
conversão letrada e tiveram sucesso neste trabalho, desta forma, conseguiram difundir seu
Evangelho de maneira bastante efetiva.
No quinto capítulo de forma ascendente vemos em todo momento os demais membros
da CMS trazendo suas opiniões pessoais a respeito da postura de Mackay diante do projeto
missionário e da figura messiânica e da cristandade personificada, como no trecho em que Mr.
Ashe destaca, “Muito humilde, ingênuo como uma criança que dobra seus joelhos para Deus”.
(MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p.39)
Essas características de fragilidade auxiliam na construção da imagem tenebrosa do rei
Mwanga, a dualidade do bem ante o mal para caracterizar o papel da missão e principalmente
o heroísmo de seus membros diante do cenário de perseguição que estavam enfrentando. Era,
portanto, bastante comum esta estratégia de colocar a visão missionaria para qualificar o papel
não só da missão, mas dos enfrentamentos e resistências que o poder local estava exercendo
diante da expansão cristã.
94

Em novembro de 1885 Balikudembe Mukasa, pagem do rei, por ter se tornado um


“reader” primeiro seguindo Mackay depois com os padres católicos romanos, foi sentenciado
para ser queimado vivo, porem fora morto por Kitikiro, aliado do rei e carrasco das vítimas de
perseguição, antes mesmo de ter seu corpo arremessado ao fogo, fato que tenta mostrar a
crueldade com que o rei tratava aqueles que tivessem se debandado para o lado dos cristãos.
Após isso um jovem chefe chamado Apolo Kagwa, que fora terrivelmente maltratado pelo rei
perdeu seus domínios de uma pequena extensão de terra onde Kitikiro foi nomeado como
Primeiro Ministro. Isso aparece na obra como complemento para a ideia de que os seguidores
dos cristãos eram severamente punidos e por sua vez aqueles que auxiliassem o rei nessa
perseguição receberiam uma série de vantagens.
Do mesmo modo que havia feito após os primeiros assassinatos o rei após fatos novos
que chocaram os seguidores da missão estabelecia tréguas, com a morte de Mukasa não fora
diferente. Após o acontecimento, houve um certo período de calmaria, que surtia efeitos
claros na rotina de trabalho para ampliação da missão em campo. As reuniões e assembleias
cristãs eram feitas em relativo segredo, mostrando que apesar de secretas as reuniões não
deixaram de acontecer.
A trégua durou ate o mês de maio de 1886. Após este período a fúria do rei veio à tona
novamente conta todos aqueles que pudessem estar ligados ou no caminho para tornarem-se
“readers”. Apesar de não tratarem do assunto nos relatos, a provável retomada da perseguição
do rei aos cristãos seguidores principalmente da CMS era pelo fato das atrocidades que
cometia não surtirem efeito para a diminuição da atividade dos missionários. O retorno da
fúria do rei em maio de 1886 levou a morte cerca de dezesseis convertidos que além de
mortos tiveram que passar por sessões de tortura brutais por parte dos funcionários reais.
Em junho de 1886 as torturas e os assassinatos se intensificaram, nesta parte a obra de
Mullins choca com o grau de exemplos dados para mostrar o rei como grande “vilão” diante
dos feitos missionários, além de trazer diversas passagens onde o próprio Mackay faz
discursos lamentando e indignando-se com a postura do monarca diante dos fiéis. Naquele
momento, segundo ele, qualquer cristão que se dirigisse à capital estava sujeito à prisão, cerca
de doze pessoas que ousaram desafiar essa ameaça foram massacrados de uma só vez. Muitos
foram mutilados e tiveram as partes do corpo espalhadas, ainda houveram aqueles que foram
perseguidos e capturados em diversas regiões do país e cerca de trinta e dois que foram
submetidos à morte sendo queimados vivos diante de uma enorme pira após uma cruel prisão
de cerca de uma semana.
95

Alguns dos membros da missão, segundo Mackay, estavam neste momento em


constante fuga e precisavam a todo tempo mudarem de alojamento em busca de proteção, em
determinados momentos, lamenta na passem, que alguns daqueles com quem haviam
almoçado, feito preces e conversado no dia anterior eram presos e mutilados vivos,
praticamente diante dos seus olhos, e os pedaços de seus corpos deixados ao longo das
estradas apodrecendo e entrando em decomposição sob o sol, o que fazia com que as rotas por
onde estavam passando ou haviam passado ficassem com um enorme fedor.
Essa situação de crueldade auxilia o discurso do autor Mullins a respeito da ausência e
a necessidade do cristianismo e seus dogmas para evangelização da população daquele reino
que estava diante de tais atrocidade mas também não deixa de ser um paradoxo com a
escravidão e tráfico mantido por séculos pelos europeus em terras africanas. O caráter de
vítimas da perseguição que é atribuído aos missionários e seus seguidores fica nítido a partir
dos relatos da obra e a indignação e o sofrimento diante das perdas denunciadas e descritas
por Mackay são fundamentais para a construção da imagem heroica do mesmo.
Uma série de depoimentos a respeito daqueles que cercavam os campos da missão
diariamente, e faziam parte do cotidiano dos missionários, e, por isso, foram alvo da
perseguição ocorrida no reinado de Mwanga. Esses depoimentos ora feitos por Mackay, ora
por outros líderes locais também missionários da CMS são retomados com frequência como
forma de enaltecer e dar o caráter de vitimas da situação àqueles que estavam ali com a
mensagem evangelizadora. Isso nos leva a crer que foi uma maneira de auxiliar o processo de
convencimento dos leitores europeus ingleses a respeito da “difícil tarefa” de levar a
mensagem cristã para aquele reino tão “desprovido” de crenças fazendo referência à ideia
para o despertar da missão como mencionado no início do primeiro capítulo da obra de
Mullins.
Seguindo esse cronograma, no capítulo “Tempos de Perseguição” a morte de Roberto,
um importante membro do Concílio da Igreja Nativa que viria a ocorrer ainda no ano de 1886,
foi adjetivada como “A Horrivel Morte” num subtítulo dentro do texto. O contexto mostra um
momento ainda mais frágil para os líderes missionários, o perigo era iminente e Mackay
explorava em seus relatos como um também pedido de “socorro” ainda que implícito. Ele
inicia a descrição do caso com frases impactantes e mostrando a proximidade que tinha com
este membro:
“Me lembro vividamente a voz e o rosto daquele homem que vinha aqui
diariamente. Muitas viagens ele fez comigo na pequena embarcação indo e
voltando de Msalala. Ele era um importante membro para o nosso Concílio
Nativo da Igreja. Os executores apareceram antes disso de surpresa em sua
96

casa para o prender, mas estavam apreensivos com medo de entrar. Roberto
estava com vários outros em prece. Muitos fugiram através de uma
passagem na parede”. (...) “Roberto foi pego em poucos dias escondido em
meio a estoques e teve os braços cortados e antes disso os olhos assados,
depois sua perna foi decepada e por fim foi queimado. Quantas torturas eu
ainda não conhecia”. “Depois do massacre, o líder da execução reportou
ao rei que nunca havia matado um homem que mostrasse tanta força e
resistência e que ele se manteve rezando para Deus mesmo estando no fogo.
Isso causou divertimento na corte e o rei ressaltou que aquele Deus não os
resgataria do seu poder”. 73(MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p.42-43)

Neste período (segunda metade do ano de 1886), segundo Mullins, não era possível
calcular a quantidade de mortes dos chamados mártires que pereceram durante a “grande
perseguição”, mas acredita-se que tenham sido aproximadamente duzentos cristãos,
contabilizados entre os seguidores e evangelizados pela C.M.S e também daqueles que eram
convertidos ao catolicismo romano. É interessante mostrar que os antigos adversários
católicos no momento de crise se juntam aos membros da missão, apesar da disputa por fiéis,
eram ambas as vertentes cristãs e provindas da Europa, tinham muito mais afinidades do que
desavenças naquele momento. A impressão que os relatos tomariam na Europa partiam não só
da C.M.S mas de todas as dificuldades que as autoridades locais em Uganda estavam
impondo para garantirem seu território livre das influências europeias. Juntamente às centenas
de mortos temos uma serie de mutilados e banidos do reino por conta da fé, isso mostra que
nem todos os perseguidos eram imediatamente mortos, provavelmente as punições mais duras
eram para aqueles que de certa forma exercessem maior influência nas missões. A
perseguição ocorre, portanto, de maneira heterogênea, e cada caso era julgado de uma
maneira, sendo algumas vezes de modo exemplar com intenção de interromper os avanços
daquelas ideias não-nativas.
No mesmo ano um famoso viajante alemão chamado de Dr. Junker chega à Uganda
vindo de Bonyoro e contou que havia ouvido no caminho a respeito do derramamento de
sangue contra os missionários, mostrando que as notícias a respeito das perseguições não
estavam restritas ao meio religioso. Segundo Mullins, com muita dificuldade e mostrando a
capacidade diplomática, ainda que num espaço impróprio para tal, Mackay induz o rei para
73
Do original: “At this moment I recall vividly the voice and face of a man who came here almost daily. Several
voyages he made with me in the boat to and from Msalala. He was further a member of our Native Church
Council. The executioners suddenly appeared before his house to arrest him, but were afraid to enter. At the
time he was engaged in holding prayers with several lads. These bolted through the thin reed wall of the house
escaped”.(…) ‘’Roberto was kept a few days in the stocks, and then an arm cut off and, before roasted his eyes.
Next a leg was severed, and that also burnt. How much further the torture went I do not know”. “After the
massacre the head-executioner reported to the king that he had never killed men who showed such fortitude and
endurance, and that they had prayed aloud to God in the fire. This caused merriment in the court, the king
remarking that ‘God did not rescue them from his power’.” Tradução própria.
97

que este permitisse a partida de Junker com a pequena embarcação missionária chamada
Eleanor sem correr riscos.
Auxiliar europeus não ligados à religião em meio a um terreno de medo constante e
arriscar a própria vida em função de um “igual” nos desperta para a necessidade de se
manterem os laços conterrâneos por parte dos missionários, muito além da ideia
evangelizadora. Junker ia ser colocado no final desta pequena passagem pode significar muito
mais do que uma simples atitude cristã de compaixão por parte de Mackay, até porque o
próprio Mullins destaca a fama que este viajante possuía o que nos possibilita refletir no
quanto essa ajuda seria reconhecida no continente europeu.
Grande parte dos cristãos tiveram naquele momento que viajarem para lugares mais
afastados onde pudessem viver com relativa paz, ainda que na clandestinidade assim como
haviam feito os cristãos de Madagascar. Os missionários por sua vez enviaram cartas à esses
clandestinos como forma de encorajá-los. Nessas cartas continham mensagens como:
“Pessoas de Jesus que estão em Uganda, nossos queridos irmãos, não abandonem nosso
senhor Jesus Cristo e ele não vos abandonará no grande dia quando ele retornar com a glória.”
(MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p.44)
Pediam ainda que seguissem o exemplo do grande salvador que dizia aos seus
discípulos que não tivessem medo, pois os inimigos eram capazes apenas de matar o corpo e
não a alma. Era uma forma de resgatar membros que combatessem e possibilitassem o
enfraquecimento do rei. Essas palavras comoviam diretamente aqueles que estavam em perigo
diário enquanto se escondiam em locais longínquos da capital. Esses incentivos feitos pelos
missionários faziam com que muitos homens se dirigissem na calada da noite em busca de
conversão influenciados pelas mortes heroicizadas que eram disseminadas entre a população.
Quando o autor nos fornece esta informação nos leva a salientar que as ações missionárias
propagandísticas a respeito dos mártires que haviam perdido suas vidas estavam surtindo
efeito na propagação da evangelização e consequentemente no aumento do número de fieis.
Por diversas vezes o sacramento do batismo teve de ser administrado de forma
clandestina para que pudesse continuar sendo efetuado e ampliando o número de convertidos.
Segundo o autor percebendo a força das palavras em meio aos clandestinos, as mensagens
passaram a ser cada vez mais frequentes, professavam a necessidade dos fieis não terem
vergonha de confessar a fé em Jesus Cristo e difundi-la. Devemos salientar que palavras que
recordassem situações de sofrimento do messias como “crucificado” ajudavam a relacionar o
cristianismo pregado pelos missionários com as situações cotidianas que durante os períodos
98

de perseguição os mártires que haviam perdido suas vidas e recorrentemente eram lembrados,
enaltecendo a fé dos líderes da missão da CMS.
Com o aumento constante do número de fieis vemos um maior engajamento dos
missionários no endurecimento da postura de combate as perseguições do rei Mwanga,
passaram a convocar fieis para fazerem frente à monarquia relacionando essa “luta” com a
defesa da bandeira contra o pecado, o mundo e o diabo, além de relacionar o fato de
defenderem a missão da CMS com o reconhecimento da soberania de Jesus e com a
necessidade de defendê-lo até o fim da vida caso fosse preciso. A nítida efetividade e
importância dessas mensagens aos novos e possíveis cristãos fica evidente no momento em
que Mullins demonstra que elas alcançaram lugares antes inimagináveis, como foi o caso de
Tinnevelly uma província do sul da Índia que esteve sob domínio britânico.
As mensagens dos missionários chegaram aos convertidos do cristianismo protestante
da CMS naquela região de modo que teriam acatado os apelos com bastante simpatia,
inclusive resultando num acúmulo de cerca de oitenta libras esterlinas que foram destinadas
para auxiliar na manutenção das despesas com os clandestinos aos quais o autor refere-se
como os irmãos que sofrem em Uganda. Apesar de um valor pouco expressivo em valores
atuais, esta ação deve ser levada em conta para demonstrar a capacidade que os membros da
missão estavam exercendo no poder de convencimento e disseminação de suas ideias.
99

3.3 Mackay como único membro chefe da CMS em Uganda

Figura 5 - A. M. Mackay: Pioneer Missionary of the Church Missionary Society to Uganda –


(http://www.wdl.org/en/item/7774/)

Os missionários percebendo que sua presença em Uganda estava em perigo constante


e que aquelas ações que tinham como base o envio de mensagens aos convertidos
clandestinos espalhados pelo país acentuaram a perseguição do chefe local Mwanga na
segunda metade de 1886 começaram a pedir ajuda e proteção a esses evangelizados para
deixarem o país ou ao menos se afastarem evitando maiores desastres.
Depois de muitos insultos Mwanga acaba cedendo às pressões e permitindo que Mr.
Ashe, então principal companheiro de Mackay em campo de missão, partisse, porém, insistiu
na manutenção de Mackay não por considerá-lo útil, mas por enxergar através dele a
possibilidade de conhecer e garantir alguém que pudesse resguardar a estabilidade numa
possível vingança dos homens brancos funcionando como refém. Mackay era, naquele
momento de total instabilidade, a única possibilidade de se assegurar a manutenção dos
trabalhos da CMS mas também na relativa importância para evitar um massacre caso os
europeus resolvessem armar uma guerra contra o monarca, era a “moeda de troca”
fundamental para que Mwanga continuasse com seu projeto de perseguição.
Mullins tenta passar a ideia da capacidade importância de Mackay e de como sua
presença era impar naquele território, onde mesmo diante de inúmeros massacres, ele como
herói e ícone da instituição conseguira manter, ainda que de forma reduzida, o processo de
evangelização sem para isso precisar utilizar métodos cruéis como fazia seu opositor
Mwanga. Mackay estava acima das disputas, era para a missão e seus membros a peça
100

fundamental, mas também era para o soberano nativo uma possibilidade de amenizar
represálias.
De agosto de 1886 até julho de 1887 Mackay esteve sozinho como chefe de missão em
Uganda, durante este período se dedicou a manter a atividade missionária traduzindo as
escrituras sagradas cristãs (Bíblia), auxiliou aqueles fieis que permaneceram na região central
do reino no combate a perseguição assegurando-lhes a vida e empenhou-se com suas
estratégias diplomáticas buscando um apaziguamento na postura do monarca, e, obteve
relativo sucesso dentro das possibilidades que o momento permitia, auxiliando na redução dos
massacres que até então estavam ocorrendo.
Em meio a este ambiente de tensão que havia um fato deve ser destacado, foi
concluída a tradução do Evangelho Segundo São Mateus, feito com a ajuda de bagandas
convertidos que naquele momento eram fundamentais para a manutenção das ações
missionárias. O importante nesta citação dentro dos relatos é que os cristianizados estavam
ativamente participando, juntamente com o líder da CMS, dos trabalhos propostos para os
missionários. Além disso, percebe-se que boa parte desses convertidos já sabiam ler e
escrever em inglês e, mais do que isso, tinham adquirido a habilidade de traduzir da língua
inglesa para a local. Esse fato é mostrado pelo autor como forma de enaltecer e caracterizar
como “vantajosa” a presença da CMS em Uganda por ter apresentado resultados concretos de
“avanços” dos ideais da instituição para a população já que um grande número de locais
estava alfabetizado e convertido ao cristianismo protestante.
A fúria do rei durante o final de 1886 e início de 1887 foi gradativamente amenizada e
possibilitou que alguns dos cristãos locais recém-convertidos saíssem da clandestinidade e
voltassem a se reunir com Mackay. Sobre este período uma importante carta escrita por
Mackay em janeiro de 1887 traz algumas características a respeito da postura do missionário e
sua visão enquanto única liderança remanescente no território.
Por uma porção de meses eu estava vivenciando reuniões todas as noites em
uma casa regular com diversas pessoas estranhas, as latas de petróleo que
chegaram no tempo certo permitiu que eu instalasse uma espécie de
iluminação e a biblioteca se tornou uma escola noturna. Tarde, tarde e cada
vez mais tarde nós saíamos de lá e eu frequentemente estava mais do que
exausto – lendo, ensinando, remediando...”.
Em outra carta de seis de março escreve:
“Pela graça e pelo amor do Senhor eu ainda estou nesse corpo... desde que
recebi mensagens, tenho consciência de que muito da minha existência aqui
101

é por conta de suas preces e de todos os filhos de Deus da Europa.” 74


(MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p.46-47)

O interlocutor sugerido por Mullins é um jovem chefe local que estava em perigo
naquele momento e havia escapado com vida de perseguições do rei, era Mika Sematimba, o
mesmo que na época visitara a Inglaterra. As cartas de Mackay sugerem que as relações com
a Europa eram muito valorizadas e os aliados locais estavam mantendo contatos estreitos com
a Inglaterra, inclusive com visitas desses importantes aliados nativos à capital inglesa. A
presença de Mackay sozinho e com relativa influência no território, que mesmo diante do
medo pôde aumentar o número de conversões e apoio de boa parte da população local, muitas
vezes não só pela postura carismática enquanto evangelizador, mas também pelos feitos na
modernização75 do reino e arredores como com a construção de 230 milhas de estradas a partir
de suas habilidades como engenheiro fato ressaltado por sua irmã e biógrafa Alexina Mackay.
Ele de fato exercia influência não só no âmbito religioso, mas era admirado pelos povos
locais, e por isso, talvez tivesse despertado novamente de forma mais agressiva a rivalidade
com os comerciantes árabes de religião muçulmana que desde 1878 estavam em constante
posição de disputa pela influência sob a população e seu soberano.
Os relatos de Mullins, coerentes com as demais publicações da CMS trazem a ideia de
transformar árabes muçulmanos em inimigos do projeto de cristianização da população, uma
dualidade, o bem, representando os ingleses anglicanos, contra o mal, os muçulmanos,
relacionando muitas vezes a posição persecutória do rei com esses inimigos. A oposição
trazida nos relatos ajuda a compreender a maneira como eram heroicizados os membros da
CMS, dos quais o mais destacado fora Mackay.
Como esses comerciantes detinham forte influência sobre o rei e suas decisões,
aconselharam o soberano a expulsar Mackay do país. Devemos ressaltar que no ano de 1887
ao sul do lago Victória o General e Reverendo Gordon já possuía forte influência sob os
locais e apoio do governo da Inglaterra. Quando o rei aceita expulsar Mackay a pedido dos

74
Do original: “For a couple of month after you left I was having a regular houseful of strangers every evening.
The tin of petroleum arrived just in time, as by it I could make a respectable light, and the library became a
night school. Late, late, often very late, we wound up, and I was often more than exhausted – reading, teaching,
drugging…”
In another letter, on March 6th, he wrote: -
“By the grace of our loving Lord I am still in the body… Since receiving the mail, I have had the consciousness
forced upon me that our very existence here is mightily due to the prayers of you and off all the children of God
in Europe.” Tradução Própria.
75
HARRISON, Alexina Mackay. A.M. Mackay: missionário pioneiro da Sociedade Missionária da Igreja em
Uganda. Hodder and Stoughton, London. 1890. p. 473.
102

comerciantes árabes locais, prefere consultar Gordon a respeito de um sucessor, indicado pelo
general, que pudesse substituir o maior nome da CMS em campo de missão.
O general Gordon chegou à Uganda em agosto de 1888 e ali permaneceu sozinho
comandando e conseguindo estabelecer a ordem dos trabalhos da missão até a chegada do
novo Reverendo, R. H. Walker. Mackay foi exilado em Usambiro onde pôde continuar
desenvolvendo atividades para a CMS juntamente com outros exilados, caso de Mr. Ashe, por
exemplo. Aquele seria o último reduto de trabalho do mártir de onde saiu morto em 1890. A
chegada de Walker pareceu de início uma retomada da estabilidade já que o próprio rei no ano
de 1887 consultara Gordon para substituição de Mackay. Porém, o rei que provavelmente
esperou por um reverendo menos influente para poder por em prática uma ação desesperada
juntamente com sua corte, enviar para uma das ilhas do lago todos os readers e árabes de
Uganda, esse plano foi adjetivado por Mullins como “diabólico”, pois, segundo o autor, só
não permitiria que morressem de fome, e, como boa parte dos habitantes de Uganda seguia ou
nutria simpatia por um ou outro grupo, logo, o plano vazou e ambos recusaram-se a cair na
armadilha para eles preparada.
Nota-se que o rei procurou não aderir às imposições dos grupos não nativos, a
resistência à opressão, as influências culturais e a defesa do domínio sob seu território foi
pretendida com esta postura de isolamento, porém, sem sucesso. Iniciou-se um complô contra
o rei gerando uma serie de consequências, denominadas pelos membros da CMS
posteriormente como “Revolução Sangrenta” que não somente destronou Mwanga como
também destituiu as missões francesas católicas e a da CMS inglesa e protestante, já que fora
liderada pelos muçulmanos e estabeleceu um governo centrado em eliminar toda possível
influência cristã em Uganda.
A notícia da tomada de poder por parte dos árabes chegou a Inglaterra e causou grande
alvoroço. Segundo Mullins, cerca de 5.000 cópias de panfletos foram distribuídos na capital
inglesa pelo Editorial Department at the Salisbury Square, a população da época na Europa
estava a par e seguia atenta a todas as novidades segundo o relato do autor.
Quando os grupos descobriram as intenções de Mwanga, organizaram-se com
armamentos para confrontar as tropas reais, porém, por caminhos diferentes. Os árabes ainda
traziam consigo, um outro filho de M’tesa, Kiwewa, como rei que assumiria pouco tempo
depois o trono influenciado totalmente pelos muçulmanos. Mwanga fugiu com sua esposa e
pajens em uma canoa rumo a Magu, nas margens de Speke Gulf onde fora capturado e
mantido como prisioneiro pelos viajantes árabes. Enquanto isso, os insurgentes se
distribuíram departamentos de chefia por todas as partes contra os líderes de todas as partes,
103

um derramamento de sangue sem precedentes, liberdade de adoração foi proclamada e os


postos de missão se encheram da população local em busca de refúgio. Utilizando do artificio
metafórico o autor os compara a um “enxame de abelhas”.
Os árabes e nativos muçulmanos em 1889 assumem o controle do governo de Uganda
e resolvem por em prática um plano: distanciar os cristãos que durante o levante atuaram
como aliados. O principal motivo da rivalidade foi o interesse dos cristãos da CMS em
estabelecer uma monarquia chefiada por uma mulher, aos moldes ingleses que estavam
vivendo sob o comando da poderosa Rainha Victória, fato que poderia estabelecer maior
proximidade entre Uganda e Inglaterra. O autor vai culpar a falta de apoio popular pela
ausência de expectativa para a ilustração de Victória que naquela época nutria grande fama.
Seis meses depois do primeiro conflito em outubro, os cristãos foram atacados de
surpresa. Naquele momento refugiaram-se em Nkole. A vitória dos muçulmanos se deu sob
todos os cristãos, estações francesas e inglesas foram atacadas. Gordon e Walker, então
líderes locais da CMS, fugiram do cerco armado pelos muçulmanos e encontraram nos
antigos inimigos franceses a ajuda para poderem se alimentar e se protegerem do frio. Essa
passagem nos leva a crer que num período de crise povos europeus eram os mais próximos
ideologicamente, tanto que os líderes da missão irão partilhar um abrigo com M. Lavinhac e
Lourdel, dois padres católicos franceses. As antigas disputas foram naquele ano superadas,
eram cristãos e europeus, possuíam mais afinidades do que disparidades. Talvez o momento
de maior distanciamento das ideias da cultura e religião europeia com a população local
dentro do trabalho da missão.
Para fugirem da perseguição do governo muçulmano o barco Eleanor foi morada tanto
de franceses católicos quanto de nativos convertidos aos quais o autor refere-se como almas.
Essa passagem no relato reforça a superação dos desafetos com os franceses no momento
onde a influência europeia esteve ameaçada pelo governo dos muçulmanos.
Após uma serie de acidentes no percurso de busca por refúgio e a quebra da
embarcação tiveram que nadar para alcançarem a terra onde cinco, todos nativos, dos trinta e
nove fugitivos perderam suas vidas. A jornada dos dois missionários chefes da CMS em
Uganda, Gordon e Walker teve como ponto de chegada a estação missionaria de Usambiro,
um lugar seguro e onde puderam se reagrupar e organizar uma contraofensiva a partir das
ideias de Mackay. A organização parte de Mackay, porém, a maior parte dos cristãos
protestantes seguidores da CMS que haviam conseguido se refugiar não estavam próximos a
ele, eram cerca de mil, abrigados em Nkole, onde Mika Sematimba, líder local (a quem uma
104

das cartas de Mackay fora endereçada), aliado dos ingleses tendo inclusive visitado a
Inglaterra, os resguardava em segurança e integridade.
Em Uganda, Kiwewa foi deposto pelos muçulmanos quando tentou impor-se sob os
mesmos, sendo substituído por outro filho de M’tesa, Kilema, e dezena de chefes que nutriam
simpatia pelos feitos cristãos também foram assassinados. Para retornar a Uganda, Mackay
deu início à construção de uma moderna embarcação, maior e mais veloz, segundo os relatos,
o missionário tinha a ambição de fazer algo indestrutível para navegar pelo Victória Nyanza.
A produção literária, as traduções e aulas não cessaram em nenhum momento e
Mackay continuou a frente do projeto da CMS. Os avanços e o aumento do número de
cristãos desse período foram registrados pelo viajante H. M. Stanley que se encontrou com
Mackay em Usambiro no período em um livro publicado por ele mesmo na Europa chamado
In Darkest Africa e apresentado como relato pelo mesmo na sede da CMS na Inglaterra. Nota-
se um grande aumento no número de publicações a respeito da CMS não somente na África,
mas na Inglaterra, a população inglesa passa cada vez mais a se interessar no desenvolvimento
da missão e o período de crise intensifica ainda mais esse interesse.
Enquanto a revolução estabelecia os interesses dos muçulmanos em Uganda, Mwanga
preparou sua retomada, porém, inusitadamente buscou alianças com os antigos inimigos
cristãos para se reestabelecer. Cristãos essencialmente membros da CMS que após uma serie
de reuniões e consultas a Mackay resolveram unir-se a Mwanga para juntar forças na
deposição de Kilema e seus aliados muçulmanos.
Os protestantes e as forças do rei foram coordenados por Apolo Kagwa (ou Katikiro),
além de uma serie de membros da missão atuantes como professores sob o comando de Mr.
Gordon e Mr. Walker. Vemos neste episódio uma superação das desigualdades ideológicas,
da perseguição de Mwanga e sua corte em busca de uma retomada da influência e do trabalho
missionário interrompido com a queda do rei, ou seja, era melhor ter Mwanga aliado do que
os muçulmanos que não permitiam em hipótese alguma o desenvolvimento da evangelização.
Ainda em 1889 protestantes e os soldados do rei recuperaram o trono e o andamento da
missão.
Enquanto Mwanga estava se organizando para retomada do poder na ilha de
Bulingugwe, onde se estabeleceu após conseguir fugir do domínio muçulmano, foi
assessorado por um inglês membro da Companhia Imperial Britânica no Oriente Africano,
Mr. Jackson. Esta Companhia no ano de 1889 já controlava rotas comerciais entre Inglaterra e
o Leste da África. Outros importantes membros desta mesma instituição passaram a atuar na
região em apoio à filantropia, como Willian Mackinnon e Douglas Mackenzie, nesta
105

perspectiva incentivaram o desenvolvimento das missões e o fim do trabalho escravo, além de


fazerem propaganda para a coroa britânica por onde passassem.
Mr. Jackson deu a Mwanga uma bandeira da Companhia e garantiu-lhe proteção para
a retomada do trono, o que Mullins afirma ser uma atitude muito importante por parte dos
ingleses. Neste período forças europeias estavam disputando a partilha do território africano e
asiático, dentre as principais potencias estavam Alemanha e Inglaterra, as instáveis relações
entre franceses, alemães e ingleses que durante o período de perseguição e de dominação
muçulmana estiveram abafadas foram retomadas, os primeiros que tinham como base a
aversão ao protestantismo, mesmo sendo inimigos dos alemães, preferiram se aliar a eles
fazendo oposição aos ingleses.
Naquele ano, a presença da Companhia Britânica que garantiu a retomada do poder a
Mwanga era a instituição inglesa mais importante na expansão imperialista na África, aquela
que tomara a frente para o enfrentamento inglês ante os demais países que almejavam
estabelecer influência na região foi também a que garantiu a retomada dos trabalhos
missionários da CMS, já que uma das bases da filantropia desta instituição era o incentivo ao
trabalho missionário.
No início do ano seguinte, em 8 de fevereiro de 1890, a missão da CMS iniciada com
a partida de seus primeiros membros no ano de 1876, portanto mais de uma década depois,
noticiava a perda do último dos sobreviventes do grupo original, Mackay, acometido de febre
em decorrência de malária, morre em meio a seus trabalhos em Usambiro. O autor menciona
um depoimento de Stanley descrevendo sua impressão do seu encontro com Mackay. Trata-o
por um homem gentil, de baixa estatura, barba e cabelos marrons. (MULLINS, J.D. 1904. op.
cit. p.60)
Devemos salientar que no auge do texto, onde a morte da principal personagem do
livro é trabalhada, o missionário condutor e detentor da personificação das ideias da CMS é
mostrado a partir da evidência de suas características físicas no momento do encontro com o
viajante inglês Stanley, muito próximo de uma imagem messiânica de barba e cabelos longos,
diferente dos retratos do mesmo mais que associavam pela vestimenta e aparência com a vida
na Europa. Após a descrição física, as atuações de Mackay durante seus catorze anos a frente
da missão em Uganda, são mostradas enaltecendo sua indispensável contribuição não somente
na angariação de fiéis, mas também nas demais áreas em que atuou desenvolvendo suas
habilidades enquanto engenheiro.
Sua versátil e mecânica genialidade, seus poderes linguísticos, seu zelo
evangelístico, seu apego e constância a seus propósitos, sua liderança sábia
106

tinha feito com que sua influência pudesse ser sentida em toda a região do
Lago. Com todos os seus trabalhos – que foram além do que qualquer outro
homem poderia realizar - ele ainda reiterou seu apego pelos livros...
Mackay tinha milhares de livros em sua sala de jantar, quarto, na Igreja,
em todos os lugares. Seus artigos para as revistas da Church Missionary
Society e outros lugares mostravam que não era somente um missionário
estadista atento com os diversos problemas da África, mas conseguiu se
manter a par de todos os assuntos da casa de missão.
O espírito devoto deste homem já fora mostrado nesse discurso, nenhum
desabafo de momento, realmente esse espírito queimou em seu peito até o
fim de sua vida.”76 (MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p. 60-61)

Na última mensagem pública de Mackay, escrita somente cinco semanas antes de sua
morte, mas publicada somente em junho de 1890 pelo C.M Gleaner (periódico consultado e
explorado inclusive por Mullins para elaboração de seu livro) com suas perspectivas para
Uganda:
Vocês, filhos da Inglaterra, aqui é um campo para as suas energias... Vocês, homens
de Deus que resolveram dedicar suas vidas para a cura das almas dos homens, aqui
é o campo adequado para você. Não é para ganhar números para a Igreja, mas
para ganhar homens para o Salvador ... Deus é Espírito, quem acredita e o coloca
acima de qualquer outra coisa deve passar a diante e ensinar as pessoas a adorá-lo
em espírito e verdade”77 (MULLINS, J.D. 1904. op. cit. p. 60-61)

Sendo assim, notamos que a última mensagem pública de Mackay muito se aproxima
daquela que o levou a fazer parte da primeira missão em Uganda, no entanto, em outro
contexto. Em 1890 a missão já estava praticamente consolidada, ainda que com períodos de
instabilidade política, o espaço da CMS estava crescendo após a entrada da Companhia
Imperial Britânica no Oriente Africano no apoio da retomada de Mwanga ao trono e dos
incentivos filantrópicos de seus membros à intensificação dos trabalhos das missões. Apesar
da força desta Companhia, vimos a partir dos relatos de Mullins que mesmo estando afastando
do centro de Uganda, Mackay de Usambiro ainda era constantemente consultado a respeito do
andamento da missão. Era o mais talentoso missionário no sentido de cativar fiéis, mas foi

76
Do original: “His versatile mechanical genius, his linguistic power, his evangelistic zeal, his constancy of
purpose, his wise leadership, had made his influence felt in all Lake region.
With all his labours – which seem more than any one man could accomplish - he retained a love of
books… Mackay has a thousand of books; in dining-room, bedroom, the church, everywhere. His articles in the
Church Missionary Society’s magazines, and elsewhere showed that he was not only a missionary statesman,
with a large outlook upon African problems, but contrived to keep abreast of affairs at home.
The devoted spirit of the man was shown in the beginning by that speech in the Committee Room which
we have already quoted. It was no mere outburst of the moment, but a spirit which burnt in his heart to the end.”
Tradução Própria.
77
Do original: “You sons of England, here is a field for your energies... You men of God who have resolved to
devote your lives to the cure of the souls of men, here is the proper field for you. It is not to win numbers to a
Church, but to win men to the Savior... God is a Spirit an let him who believes that throw up every other
consideration and come forth to teach these people to worship Him in Spirit and truth.” Traduçao Própria.
107

também aquele que desenvolveu as melhores estratégias para evangelização com a tradução
de textos, alfabetização em língua inglesa, a grafia e possibilidade de se escrever na língua
swahili, construção de estradas e edificações que abrigaram além dos missionários, os
convertidos.
A morte de Mackay encerra um processo em meio a uma mudança completa do
cenário de Uganda ate então, a presença de empresas comerciais e a disputa territorial entre
potencias europeias estava em evidência, apesar disso a nova convocação, desta vez feita pelo
próprio Mackay surtiu efeito na Inglaterra que desde os tempos da perseguição e em seguida
na revolução de tomada do poder por parte dos muçulmanos já estava acompanhando com
mais afinco o andamento dos trabalhos da CMS, continuou nesta perspectiva. Novos grupos
foram enviados e o trabalho de traduções e conversões continuou seguindo os padrões
fundados por Mackay.
108

CONCLUSÃO

O estudo das representações sobre a África feita a partir da obra de Joseph Dennis
Mullins nos levou a adentrar dentro do universo missionário da CMS em Uganda em sua
primeira fase, mais precisamente durante os catorze anos em que Alexander Murdoch
Mackay, engenheiro e missionário que é membro do primeiro grupo de missionários após o
chamado de Henry Morton Stanley publicado na Inglaterra em 15 de novembro de 1875 no
Daily Telegraph Journal e o último membro vivo até o ano de 1890. Morre em campo, ainda
em atividade depois de ter acometido malária em Usambiro.
A característica principal da obra se da pelo excesso de adjetivação para definir o
andamento dos trabalhos da missão, o enaltecimento dos feitos dos missionários, o martírio de
seus membros e a transformação de seu principal personagem em herói diante das
dificuldades de estabelecimento em meio às condições climáticas totalmente diferentes da
europeia e dos inimigos do trabalho evangelizador.
Os relatos de Mullins baseados num apanhado de publicações do Church Missionary
Gleaner de 1902 que a partir de suas representações e de análises partilhadas pela instituição
inglesa (CMS) trouxeram os missionários como agentes dentro do leste africano, mais
precisamente o reino de Buganda e a personificação dos trabalhos evangelizadores a partir da
construção da figura de um mártir, Alexander Mackay.
Ao mesmo tempo as interlocuções e as impressões a respeito das formas de resistência e
afirmação cultural são apontadas por meio de análises do que o texto traz implicitamente.
Os povos locais através da figura de seus soberanos (M’tesa e Mwanga) exerceram sua
função enquanto líderes nativos para resguardar sua autonomia e dominação sob seu povo. O
primeiro através da diplomacia e de acordos entre os grupos que conviviam naquele espaço, a
diplomacia acontecia e rendeu-lhe a garantia de estabilidade, ora atendendo as solicitações
dos muçulmanos ora dos missionários protestantes, dentro de certa permissividade de
coexistência ainda que com claras posições contrárias entre esses grupos.
Já Mwanga nos primeiros anos esteve próximo da cultura árabe e da religião
muçulmana, para isso, como vimos, exerceu uma sangrenta perseguição ante os ingleses
protestantes, as mutilações e os assassinatos muitas vezes através da incineração dos corpos
teve por objetivo o choque para a ineficiente campanha de barrar o avanço do “homem
branco” inglês e sua crença.
109

As ações de Mwanga se fortaleceram sua soberania no início, foram insuficientes para


sustentá-lo no poder em sua tentativa de eliminar as duas frentes ideológicas principais em
seu reino, cristãos protestantes ingleses e árabes muçulmanos.
Seu primeiro reinado fora o período de maior instabilidade da missão da CMS e de
grande número de perdas de missionários, até a revolução que o tira do poder pela primeira
vez em 1889.
Notou-se, portanto, que mesmo diante de ações diplomáticas e acordos, as resistências e
afirmações do poder do líder local não foram em nenhum momento abandonadas, a
preservação da autonomia dos monarcas só esteve abalada com a derrubada de Mwanga do
trono, já no final do período analisado pelo recorte temporal estabelecido.
A convivência com muçulmanos (principalmente árabes comerciantes) e padres
missionários católicos franceses nos mostram a interação conflituosa em meio aos interesses
comuns de influência no território e a transformação dos missionários protestantes ingleses,
pelo autor e pela CMS, naqueles que conduziriam em meio a adversidades dos demais grupos
sua “superioridade” a partir de sua versão da cultura religiosa e do “desenvolvimento” através
da alfabetização, do desenvolvimento da imprensa e da urbanização, principalmente com as
ações de Mackay na região dos Grandes Lagos. Dessa política adotada por Mackay devemos
destacar a inserção da prensa naquela sociedade que possibilitou o avanço dos trabalhos
missionários a partir da formação dos readers e da possibilidade destes interagirem e atuarem
como parte da missão na tradução dos textos religiosos extraídos da Bíblia e divulgação da
Mateka por exemplo, nas escolas da CMS.
Essa inovação reuniu elementos fundamentais para a ideia inicial de se estabelecer uma
igreja local com sacerdotes locais que puderam garantir a continuação dos trabalhos de
evangelização da população. O projeto missionário de ampliação número de fieis que rendeu
de acordo com Mullins no ano de 1902 a evangelização de aproximadamente trinta mil locais.
Isso mostra que a formação e o patrocínio dos primeiros homens da instituição para poderem
fazer parte do primeiro grupo a seguir rumo a Uganda não havia sido em vão, e, efetivamente
o chamado de Stanley tinha em parte razão no sentido de ser naquele momento um campo
promissor para o cristianismo protestante.
Não somente a religião cristã em seu viés anglicano (CMS) alcançou importantes
conquistas em Uganda, mas também os feitos urbanísticos do engenheiro Mackay, ainda que
na obra The Wonderful History of Uganda suas ações fora do ambiente religioso não tiveram
espaço, como na construção de 230 milhas de estradas na região, que certamente tiveram alto
custo e precisaram de investimentos, bem como a chegada da prensa e no mínimo, a partir
110

dela, uma popularização da instituição CMS não só na região de estabelecimento da missão,


mas também na própria Inglaterra com a distribuição de panfletos propagandísticos dos
acontecimentos naquele período, como fora no momento da tentativa de Mwanga de
isolamento das correntes ideológicas do cristianismo (missionários protestantes ingleses da
CMS e padres missionários católicos franceses e seus seguidores) e muçulmanos
(representados principalmente pelos comerciantes árabes).
Com o afastamento de Mackay da capital vemos ainda uma forte influência dentro da
missão, que em 1888 se expandiu por outras localidades como Usambiro, e manutenção da
CMS com o controle de Walker e Gordon, ou seja, uma disseminação do projeto e uma
ampliação no número de líderes da instituição na região. A chegada da Companhia de
comercio veio a somar e assegurar o projeto evangelizador intensificado quando em 1894
Uganda de transforma em Protetorado inglês. A Companhia deu estabilidade e segurança
além de claro incentivo por parte de seus membros da atividade missionária protestante, como
já mencionado anteriormente.
Da obra podemos assegurar o destaque dado pela instituição para a figura de Mackay,
convertido em grande herói em meio ao enaltecimento de todos os seus feitos, fato que a
instituição também explorou em suas outras obras patrocinadas e na mitificação daquele
homem como o grande evangelizador da África. Devemos observar a recorrência de
passagens com apelos religiosos e pregações baseadas em exemplos para compreendermos o
tipo de celebração e as maneiras de convencimento dos novos cristãos, bem como o uso
constante de elementos escritos e a produção literária religiosa ou não que num determinado
momento passa a ser feita com ajuda dos readers, aqueles que desenvolveram a habilidade da
leitura, escrita e tradução juntamente com os missionários dos quais Mackay fora o maior
disseminador deste artificio.
A obra de Mullins, portanto, nos permitiu ter um apanhado geral não somente da
missão desenvolvida pela CMS em Uganda, mas de todo cotidiano que esta através de seus
missionários esteve inserida durante o recorte de tempo de mais de uma década.
Além disso pudemos explorar as ações de resistência promovidas pela população local
através de seus governantes ante a nova religião trazida pelos missionários ingleses, bem
como, os conflitos com muçulmanos e padres católicos franceses.
Pode-se observar uma aversão dos missionários a respeito da escravidão,
principalmente por ser uma atividade diretamente ligada aos comerciantes árabes que
mutuamente com os missionários exerciam sua influência sob os baganda. Apesar disso foi
um tema pouco abordado nos relatos missionários.
111

O alcance da salvação através da conversão e aceitação do cristianismo protestante, não


deixa de ser, certamente, mais uma das diversas formas de ideias de colonização.
112

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