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L e r F r e u d 11

Descoberta da obra Desatar o fio condutor da obra

Referências C o m o apresentar u m a o b r a s e m ser s i m p l i f i -


Para cada obra estudada, indiquei quase cador a o r e s u m i - l a e, a om e s m o t e m p o , s e m
s e m p r e d o i s t e x t o s d e referência e n t r e a s t r a d u - s e r enciclopédico, a b a r r o t a n d o o l e i t o r d e r e f e -
ções disponíveis e m língua f r a n c e s a . O p r i m e i - rências? D i a n t e d e s s e d i l e m a , o p t e i p o r a p r e -
r o t e x t o d e referência é a q u e l e d e o n d e extraí a s sentar cada obra de m a n e i r a a despertar a curio-
citações d e F r e u d i n d i c a d a s e m itálico: t r a t a - s e sidade d o leitor, p a r a q u e deseje ler o t e x t o c o m -
d e traduções p u b l i c a d a s n a "Bibliothèque d e p l e t o , o u n o o r i g i n a l , o u e m u m a tradução. P r o -
P s y c h a n a l y s e " (Presses U n i v e r s i t a i r e s de F r a n - c u r e i também c o m u n i c a r o e s s e n c i a l , e x p r e s -
c e ) , n a coleção " C o n n a i s s a n c e d e 1 ' i n c o n s c i e n t " sando-me e m u m a linguagem simples e o mais
e " F o l i o , Essais" ( G a l l i m a r d ) ,e ainda n a "Petite próxima possível d a c o t i d i a n a .
Bibliothèque P a y o t " . Q u a n d o o t e x t o e s t u d a d o A c o m p a n h a n d o o texto d eFreud, encon-
a p a r e c e e m u m d o s v o l u m e s já lançados d a s t r a - s e u m p e n s a m e n t o e m c o n s t a n t e evolução,
CEuvres Completes de Freud, Psychanalyse ( o u q u e a b a n d o n a u m a ideia anterior p o r u m a
OCF.P), i n d i q u e i e n t r e c o l c h e t e s u m s e g u n d o nova e depois retorna à primeira, m e s m o que
t e x t o d e referência. e s s a s posições s e j a m contraditórias. A l e i t u r a
A s s i m , a s páginas d e referência contêm e m d o t e x t o o r i g i n a l n o s f a z p e r c e b e r também a
g e r a l d u a s c i f r a s : ( p . 2 3 5 [132]). A p r i m e i r a c i - q u e p o n t o a o b r a d e F r e u d e s t i m u l a n o s s a pró-
f r a - p . 2 3 5 - r e m e t e às páginas d e u m a t r a d u - p r i a s reflexões e e v o c a o u t r a s e c o n s t i t u i v e r -
ção c o r r e n t e d e t e x t o s f r e u d i a n o s , a s e g u n d a - dadeiramente u m a obra "aberta" n o sentido
[132]- r e m e t e a o s t o m o s já lançados d e CEuvres d e eco, c o m o m o s t r o u A . F e r r o (2000). F r e u d
Completes de Freud, Psychanalyse [OCF.P]. escreve c o m o u m explorador que descobre
O l e i t o r encontrará n a b i b l i o g r a f i a a s r e f e - paisagens desconhecidas, anota suas i m p r e s -
rências c o r r e s p o n d e n t e s a o s v o l u m e s d e sões d e p a s s a g e m , f a z u m esboço e m s e u c a -
Sigmund Freud, Gesammelte Werke ( F r a n k f u r t d e r n o e , às v e z e s , s e detém p o r m a i s t e m p o
a m M a i n : F i s h e r V e r l a g ) e d e The standard para a r m a r seu cavalete e fixar a p a i s a g e m e m
edition of the complete psychological works of u m a obra-prima.
Sigmund Freud ( L o n d o n : T h e H o g a r t h P r e s s
and the Institute of Psychoanalysis).
Privilegiar u m a a b o r d a g e m clínica

A o r e d i g i r Ler Freud, p r i v i l e g i e i i g u a l m e n -
Q u e t e x t o s dc r a eu
t e u m a a b o r d a g e m clínica t a n t o n a m i n h a pró-
deveria escolher? I
pria leitura d eFreud como nos diversos es-
P a r a c a d a o b r a , e x i s t e m m u i t a s traduções clarecimentos. A c h o importante ter sempre
disponíveis e m língua f r a n c e s a e m d i v e r s a s e m m e n t e q u e a psicanálise não é s i m p l e s m e n -
edições, c o m d a t a s d i f e r e n t e s , p o r t r a d u t o r e s t e u m a t e o r i a e u m método d e p e s q u i s a d o
d i f e r e n t e s . Além d i s s o , a s CEuvres Completes psiquismo humano, mas é sobretudo u m a
estão e m f a s e d e publicação p e l a s P r e s s e s a b o r d a g e m clínica e técnica q u e a i n d a h o j e
U n i v e r s i t a i r e s d e F r a n c e , e até a g o r a só f o i p e r m i t e a inúmeros p a c i e n t e s r e s o l v e r c o n f l i -
lançada p o u c o m a i s d a m e t a d e . P a r a f a z e r e s s a t o s i n c o n s c i e n t e s q u e não c o n s e g u i r i a m r e s o l -
difícil e s c o l h a , a p o i e i - m e n a experiência a d - ver por outros meios.
q u i r i d a c o m o seminário, l e v a n d o e m c o n t a a
constatação d e q u e o s p a r t i c i p a n t e s u t i l i z a v a m Cronologia dos conceitos freudianos
preferencialmente o slivros d ebolso e as edi-
ções e m b r o c h u r a , p o r razões económicas, m a s A o f i n a l d e c a d a capítulo, m e n c i o n e i o s
também p o r q u e e l a s têm u m a l i n g u a g e m m a i s p r i n c i p a i s conceitos q u e a p a r e c e m n a o b r a es-
acessível. tudada, na m e d i d a e m que F r e u d lhes atribui
12 J e a n - M i c h e l Q u i n o d o z

o estatuto d e u m v e r d a d e i r o conceito psica- m a i s i m p o r t a n t e s , c o m o o c o m p l e x o d e Édipo,


nalítico. M a s e s s a m a n e i r a d e a p r e s e n t a r u m a transferência e a l g u n s o u t r o s .
c o n c e i t o s i t u a n d o - o e m u m período d e t e r m i -
n a d o d a evolução d e F r e u d não d e i x a d e s e r
Pós-freudianos
problemática. P o r u m l a d o , é q u a s e s e m p r e
arbitrário f i x a r u m m o m e n t o p r e c i s o e m q u e Nessa rubrica, m e n c i o n e i o sprincipais de-
u m conceito aparece e m u m a obra de Freud. s e n v o l v i m e n t o s das ideias de F r e u d feitos por
Q u a n d o sefaz u m a leitura retrospectiva, des- s e u s discípulos i m e d i a t o s e p e l o s p r i n c i p a i s p s i -
c o b r e - s e q u e F r e u d d e s c r e v e u fenómenos q u e c a n a l i s t a s q u e o s u c e d e r a m até o s n o s s o s d i a s .
c o r r e s p o n d e m a u m c o n c e i t o psicanalítico P a r a e v i t a r q u e o l e i t o r se p e r c a e m u m e x c e s s o
muitas vezes e e m m o m e n t o s diferentes e que d e referências bibliográficas, l i m i t e i m i n h a s e s -
só m a i s t a r d e e l e a t r i b u i u m e s t a t u t o d e c o n - c o l h a s às contribuições f u n d a m e n t a i s , m e n c i o -
c e i t o a e s s e fenómeno. P o r e x e m p l o , o t e r m o n a n d o d e p a s s a g e m a l g u m a s referências q u e m e
"transferência" já a p a r e c e e m Estudos sobre a tocam mais diretamente. Os desenvolvimentos
histeria, e m 1 8 9 5 , m a s a p e n a s 1 0 a n o s d e p o i s , pós-freudianos m o s t r a m c o m o c e r t a s noções
e m 1 9 0 5 , será d e f i n i d o c o m o c o n c e i t o p s i c a - esboçadas p o r F r e u d f o r a m r e t o m a d a s e m s e -
nalítico, c o m o c a s o D o r a . guida por u m a o u outra corrente de pensamento
e enriquecidas por aportes inovadores. Nesse
espírito, p r i v i l e g i e i u m a a b o r d a g e m i n t e r n a c i o -
Evolução dos conceitos freudianos
nal, c o m o objetivo d edimensionar a diversi-
A l g u n s conceitos f r e u d i a n o s essenciais f o - dade de correntes atuais entre o s psicanalistas
r a m d e s e n v o l v e n d o - s e a o l o n g o d e várias dé- p e r t e n c e n t e s à Associação Psicanalítica I n t e r n a -
c a d a s . P o r e s s a razão, d e d i q u e i u m q u a d r o a o s cional fundada por Freud.

UM S E M I N Á R I O DE LEITURA C R O N O L Ó G I C A DA O B R A DE FREUD

G o s t a r i a d e f a z e r u m a b r e v e apresentação nário, b a s e a d a n a comunicação i n f o r m a l d a s


d e s s e seminário p a r a m o s t r a r o t r a b a l h o q u e reflexões d e c a d a u m a p a r t i r d e u m a l e i t u r a
foi p r o d u z i d o d u r a n t e m a i s d e 15 anos, pois i n d i v i d u a l , não m e atraía. T i v e então a i d e i a
f o i ele q u e m e f o r n e c e u o p o n t o d e p a r t i d a p a r a d e p r o p o r q u e c a d a p a r t i c i p a n t e contribuísse
r e d i g i r Ler Freud. D e v o e s c l a r e c e r q u e a f o r m a para esclarecer a obra estudada de diferentes
q u e a d o t a m o s n e s s e seminário é a p e n a s u m a p e r s p e c t i v a s - b i o g r a f i a , história d a s i d e i a s ,
e n t r e t a n t a s o u t r a s possíveis e q u e c a b e a c a d a d e s e n v o l v i m e n t o s pós-freudianos, e t c . I m a g i -
u m e n c o n t r a r a m a n e i r a q u e l h e convém d e n a v a q u e e s s e método d e t r a b a l h o a j u d a r i a a
abordar a leitura das obras freudianas. c o m p l e t a r a l e i t u r a d a o b r a d e F r e u d graças a
u m a d u p l a a b o r d a g e m : u m e s t u d o cronológi-
c o d e s e u s t e x t o s , não l i n e a r , e u m a a b o r d a -
Uma abordagem ao m e s m o t e m p o
g e m e m rede. Esse projeto m e a g r a d o u e achei
cronológica e em rede
que valia a pena topar o desafio, c o m a condi-
A a v e n t u r a começou e m 1 9 8 8 , q u a n d o a ção d e q u e o s p a r t i c i p a n t e s i n t e r e s s a d o s e s t i -
i d e i a d e u m t a l seminário p a r t i u d e u m g r u p o v e s s e m d i s p o s t o s a a c e i t a r o método d e t r a b a -
de c a n d i d a t o s d e nossa Sociedade q u e esta- lho que e u lhes p r o p u n h a .
v a m à procura d e psicanalistas f o r m a d o r e s
q u e a c e i t a s s e m c o o r d e n a r u m seminário d e A importância do esquema do seminário
l e i t u r a cronológica d a o b r a d e F r e u d . E s s e
desafio m ea n i m o u : julguei que e u m e s m o A o s poucos f u i m e dando conta da i m p o r -
a p r e n d e r i a m u i t o c o o r d e n a n d o u m seminá- tância d o e s q u e m a e m q u e s e d e s e n v o l v e u m
r i o , p o i s e m b o r a l e s s e F r e u d a s s i d u a m e n t e até seminário d e l e i t u r a cronológica, d e p o i s q u e
então, f a z i a i s s o d e m a n e i r a p o n t u a l e s e m p e r c e b i q u e p a r t e d o êxito d o seminário d e p e n -
ordem. M a s a f o r m a habitual de u m tal semi- de disso. P o r e x e m p l o , considero essencial que,
L e r F r e u d 13

d e s d e a p r i m e i r a sessão d o seminário, o s p a r t i - l i z a u m a d a s traduções c o r r e n t e s e m lín-


cipantes sejam informados d o p r o g r a m a dos g u a f r a n c e s a , e o u t r o s lêem a i n d a e m i n -
próximos três a n o s p a r a q u e t e n h a m u m a i d e i a glês, e m i t a l i a n o o u e m e s p a n h o l . A d i -
d a f o r m a e d a duração d o t r a b a l h o q u e o s a g u a r - v e r s i d a d e d e traduções dá u m a i d e i a d a
d a . D i v i d i a s p r i n c i p a i s o b r a s d e F r e u d e m três c o m p l e x i d a d e d e questões q u e e n f r e n -
períodos p a r a s e r e m l i d a s a o l o n g o d e três a n o s , t a m os tradutores de F r e u d .
e r e t o m e i e s s e p l a n o d e t r a b a l h o e m Ler Freud. O - A redação de uma rubrica: c a d a p a r t i c i p a n -
seminário r e a l i z a - s e a c a d a 1 5 d i a s , o q u e te redige n a sua v e z u m texto c u r t o , n o
c o r r e s p o n d e a c e r c a d e 1 5 sessões p o r a n o , e c a d a máximo d e u m a página ( c e r c a d e 3 0 0 p a -
sessão d u r a u m a h o r a e m e i a . O número d e p a r - lavras), reportando-se a u m a das seguin-
t i c i p a n t e s g e r a l m e n t e é d e 1 6 a 1 8 , e o seminário t e s r u b r i c a s : ( 1 ) "Biografia e história": b r e -
f u n c i o n a e m g r u p o f e c h a d o , i s t o é, não a c e i t a - v e apresentação d a v i d a d e F r e u d e m r e -
m o s m a i s ninguém d e p o i s d e i n i c i a d o o p r o c e s - lação à o b r a e s t u d a d a , s i t u a n d o - a n o
s o . A sessão d e apresentação d o p r o g r a m a p e r - c o n t e x t o histórico. ( 2 ) "Cronologia dos
m i t e q u e o s participantes se e n g a j e m c o m co- conceitos freudianos": d e s t a c a r n a o b r a e s -
n h e c i m e n t o d e c a u s a e q u e a v a l i e m s e estão d i s - t u d a d a o s conceitos i n t r o d u z i d o s p o r
p o s t o s a d e d i c a r o esforço necessário p a r a a t i n g i r Freud à medida que aparecem, d e m a -
u m objetivo i m p o r t a n t e e a sentir prazer nisso. n e i r a a f a z e r s o b r e s s a i r u m a história d a s
i d e i a s . ( 3 ) "Pós-freudianos": seleção d a s
p r i n c i p a i s contribuições pós-freudianas
Participação ativa p e c a d a u m
na obra estudada, e m u m a perspectiva
É i g u a l m e n t e essencial que cada partici- a o m e s m o t e m p o histórica e i n t e r n a c i o -
p a n t e s i n t a q u e e s s e seminário l h e p e r t e n c e , n a l . ( 4 ) "Minutas do seminário": redação
q u e não é u m c u r s o ex cathedra e q u e m e u p a - d o r e s u m o d a discussão q u e será d i s t r i -
p e l s e l i m i t e a acompanhá-los e m s e u p e r c u r - buído n a sessão s e g u i n t e .
s o p o r e s s e período l i m i t a d o d e três a n o s . E s s a
participação i m p l i c a , a o m e s m o t e m p o , u m A exposição d o t r a b a l h o p e s s o a l é f e i t a
t r a b a l h o i n d i v i d u a l e u m a coletivização. A o d u r a n t e a sessão d o seminário. E s t a g e r a l m e n -
l o n g o d o processo, percebi que q u a n t o m a i s t e começa c o m informações b r e v e s e c o m a d i s -
s e p e d e u m a participação a t i v a p a r a a c o n s - tribuição d o s t e x t o s d a s d i v e r s a s r u b r i c a s . E m
trução d o seminário, m a i s o s p a r t i c i p a n t e s o p r i m e i r o l u g a r , o p a r t i c i p a n t e lê e m v o z a l t a a
v a l o r i z a m e t i r a m p r o v e i t o dele. Isso se tra- rubrica consagrada àbiografia de Freud, apre-
d u z n a s p o u c a s ausências e , n o c a s o d e i m p e - sentação q u e é s e g u i d a d e u m a c u r t a d i s c u s -
d i m e n t o , n o fato de a pessoa ter a preocupa- são. E m s e g u i d a , d e p o i s q u e o u t r o p a r t i c i p a n t e
ção d e m e i n f o r m a r d e s u a ausência e d e c u i - lê p u b l i c a m e n t e a r u b r i c a d e d i c a d a a o s c o n -
d a r e l a própria d e a r r a n j a r u m s u b s t i t u t o p a r a c e i t o s f r e u d i a n o s , i n i c i a - s e u m a discussão g e -
o trabalho que deveria apresentar. ral e aberta. D u r a cerca d e 15 m i n u t o s e, e m
O trabalho pessoal implica as seguintes g e r a l , é m u i t o a n i m a d a . S e a discussão d e m o -
atividades: ra a deslanchar, v o u c h a m a n d o u m por u m
p a r a q u e c o l o q u e u m a questão q u e e l e c o l o c o u
- A leitura da obra escolhida: e s p e r a - s e q u e a s i próprio a propósito d o t e x t o , a f i m d e
c a d a u m t e n h a l i d o p o r c o n t a própria, r e a t i v a r a discussão g e r a l . N a última p a r t e d o
a n t e s d e u m a sessão, a o b r a q u e está n o seminário, u m t e r c e i r o p a r t i c i p a n t e lê e m v o z
p r o g r a m a e que coloque suas indaga- a l t a a r u b r i c a d e d i c a d a às contribuições d o s
ções d u r a n t e a discussão. pós-freudianos, apresentação q u e é s e g u i d a d e
- A livre escolha da tradução: c a d a u m é l i - n o v o s comentários e d e u m a r e t o m a d a d a d i s -
v r e p a r a e s c o l h e r o t e x t o n a língua q u e cussão g e r a l . E m o u t r o t e x t o , d e s c r e v i d e t a l h a -
d e s e j a r e n a tradução q u e p r e f e r i r . A l - d a m e n t e a s e t a p a s d e u m a sessão d o seminário
g u n s lêem o t e x t o o r i g i n a l e m alemão, c o n s a g r a d o a o t e x t o d e F r e u d " U m a criança é
u m a grande parte dos participantes uti- e s p a n c a d a " (J.-M. Q u i n o d o z , 1997b). O t e m -
14 J e a n - M i c h e l Q u i n o d o z

p o m u i t o c u r t o d e d i c a d o a c a d a sessão c o n s t i - nhecimentos, pois o trabalho coletivo permite


tui, paradoxalmente, u m fator estimulante, que cada participante aprenda a seouvir e a
p o i s as p e s s o a s p r e c i s a m p e n s a r a n t e s e e x p o r ouvir o que o outro tenta expressar e que evo-
d e f o r m a c o n d e n s a d a a s reflexões q u e d e c i - lua n o contato c o m todos. E u m a maneira d e
d a m comunicar ao grupo. estar m a i s à escuta de F r e u d e de p o d e r avaliar
a diversidade de pontos de vista.
T i v e a demonstração d o p a p e l e s t i m u l a n t e
Exigências elevadas: fator dinâmico q u e d e s e m p e n h a m a s exigências r e l a t i v a m e n t e
elevadas e m favor d o b o m f u n c i o n a m e n t o d o
T e n h o consciência d e q u e não é p o u c o p e d i r
g r u p o q u a n d o r e n u n c i e i a impô-las p o r ocasião
a o s p a r t i c i p a n t e s q u e não a p e n a s l e i a m a m a i o r
d o s e g u n d o c i c l o d e três a n o s . N a p r i m e i r a s e s -
parte das obras de F r e u d cada u m p o r si, c o m o
são d e s s e s e g u n d o c i c l o d e seminário, u m p a r t i c i -
também e x p o n h a m s u a s reflexões e façam a s
p a n t e opôs-se à f o r m a d e t r a b a l h o q u e e u p r o p u -
p e s q u i s a s necessárias p a r a a redação d e u m a d a s
nha, criticou-a veementemente e se recusou a
r u b r i c a s . A preparação d a s sessões r e q u e r u m a
entrar e m u m a tal " m a r a t o n a " , c o n f o r m e seus
grande disponibilidade, retirada d o t e m p o re-
t e r m o s . E u a i n d a não e s t a v a c o n v e n c i d o d a
s e r v a d o a u m a v i d a p r o f i s s i o n a l e m g e r a l já
pertinência d a s exigências d o seminário e s u b -
m u i t o cheia, a s s i m c o m o d a v i d a p r i v a d a e fa- m e t i a questão a o v o t o . A oposição d e a p e n a s
m i l i a r . E s s e esforço só é possível s e o s e n c o n t r o s u m c o n s e g u i u a adesão d e o u t r o s , e a c a b e i a c e i -
são também u m m o m e n t o d e p r a z e r c o m p a r t i - tando, acontragosto, que os participantes deixas-
l h a d o . Além d i s s o , p a r a q u e s e conheçam m e - s e m de realizar u m trabalho pessoal de elabora-
l h o r f o r a d a s reuniões d e t r a b a l h o , p r o p o m o s ção d e r u b r i c a s ; o único t e x t o e s c r i t o q u e c o n s e -
u m e n c o n t r o t o d o f i n a l d e a n o e m u m " b u f e ca- g u i o b t e r f o r a m a s " m i n u t a s d o seminário".
n a d e n s e " , u m a reunião f e s t i v a p a r a a q u a l são C o n t u d o , m a n t i v e o seminário. D u r a n t e e s s e s
c o n v i d a d o s cônjuges e p a r c e i r o s . três a n o s , a discussão g e r a l f o i a m a i s p r e j u d i c a -
A s exigências i m p o s t a s p e l a participação da, pois geralmente d e m o r a v a a se instalar:
ativa de todos revelaram-se u m fator decisivo m e s m o q u e t o d o s t i v e s s e m l i d o a t e n t a m e n t e os
n a dinâmica q u e v a i i n s t a l a n d o - s e a o l o n g o t e x t o s d e F r e u d , e u s e n t i a q u e p a r a c r i a r u m es-
d o s e n c o n t r o s . E s s e " p / u s " d e participação a pírito d e g r u p o f a l t a v a a e s t r u t u r a d e p e n s a m e n -
serviço d a construção d o seminário c r i a u m to que v a i construindo-se pouco apouco ao lon-
clima afetuoso n o t e m p o delimitado que com- g o d o t e m p o , graças p r i n c i p a l m e n t e a o esforço
partilhamos, sabendo que v a m o s nos separar p e s s o a l q u e r e q u e r a redação d e u m a r u b r i c a e
d a l i a três a n o s . E m última análise, o seminá- s u a exposição. S e v o l t a s s e atrás h o j e , e u não c e -
rio p r o p o r c i o n a m a i s q u e u m a u m e n t o d o s co- d e r i a c o m o n a época, p o r f a l t a d e experiência.

AGRADECIMENTOS

D e v o a g r a d e c e r e mp r i m e i r o l u g a r a o s tin Jeanneau, Christoph Hering, Juan M a n z a -


p a r t i c i p a n t e s d o "Seminário d e L e i t u r a no e Paco Palacio, que se d e r a m a o trabalho
Cronológica d a O b r a d e F r e u d " . S u a p a r t i c i - de comentar m e u manuscrito, assim como a
pação a t i v a d u r a n t e a s discussões e a s c o n t r i - Ma u d Struchen que preparou a bibliografia.
buições p e s s o a i s a c u m u l a d a s d e s d e 1 9 8 8 m e E n f i m , last but not least, d e d i c o Ler Freud a
serviram de base e m parte para redigir a r u - Danielle, que f o i q u e m p r i m e i r o m e encora-
b r i c a " B i o g r a f i a s e história" e a q u e l a d e d i c a d a j o u a m e lançar n e s s a a v e n t u r a .
a o s "Pós-freudianos". S e n t i - m e o b r i g a d o a Para concluir, desejo u m a boa jornada a o
mencionar seus n o m e s e m anexo para expres- leitor, l e m b r a n d o que ler u m guia jamais subs-
s a r - l h e s m e u r e c o n h e c i m e n t o . Agradeço i g u a l - titui a viagem!
m e n t e a H a n n a S e g a l , André H a y n a l , A u g u s -

Jean-Michel Quinodoz
L e r F r e u d 21

0 Continuação

Freud estuda c o m precursores: Charcot e Bernheim


Para aprender mais, decidiu fazer u m estágio c o m Charcot e m Paris, entre 1885 e 1886, e depois c o m Bernheim
e m Nancy, e m 1889. Durante alguns meses, seguiu os ensinamentos d e Charcot, q u e se ilustrara tentando
resolver o problema q u e à histeria colocava para a medicina. A b a n d o n a n d o as teses d a Antiguidade e d a Idade
Média q u e atribuíam à histeria a u m a excitação d e origem uterina o u à estimulação, Charcot conferiu a essa
afecção o estatuto de u m a entidade nosológica b e m delimitada e fez dela u m objeto d e estudos e pesquisas.
Classificou a histeria entre as doenças nervosas funcionais o u neuroses para distingui-las das afecções psiquiátri-
cas d e origem orgânica. Estabeleceu essa distinção observando q u e a distribuição das paralisias histéricas era
aleatória e diferente d a distribuição radicular observada nas paralisias neurológicas. Charcot procurava demonstrar
q u e os distúrbios histéricos eram d e natureza psíquica, e não orgânica, e m p r e g a n d o a sugestão hipnótica para
reproduzir os sintomas histéricos e fazê-los desaparecer. Ele lançou a hipótese d e u m a "lesão dinâmica" cere-
bral d e origem traumática, q u e poderia ser a causa d a histeria tento e m mulheres c o m o e m homens.
M a s C h a r c o t e m p r e g a v a a s u g e s t ã o h i p n ó t i c a mais para fins d e d e m o n s t r a ç ã o d o q u e d e t r a t a m e n t o .
A s s i m , e m 1889, Freud d e c i d i u aperfeiçoar s u a própria t é c n i c a j u n t o a B e r n h e i m e m Nancy. Este último
havia d e m o n s t r a d o q u e a h i p n o s e era u m a s u g e s t ã o q u e passava antes d e t u d o pela palavra, e n ã o p e l o
m a g n e t i s m o d o olhar, o q u e fez d e s s a a b o r d a g e m u m a verdadeira t é c n i c a psicoterapêutica q u e Freud
p a s s o u a aplicar d e s d e q u e retornou a Viena.

Estudos sobre a histeria: quinze anos de gestação


F r e u d levou muitos a n o s para c o n v e n c e r Breuer a reunir e m u m a o b r a c o m u m as observações clínicas q u e
t i n h a m feito d e s d e 1 8 8 1 , assim c o m o suas respectivas hipóteses. C o m e ç a r a m a publicar c o n c l u s õ e s p r o -
visórias s o b r e o s resultados d o m é t o d o catártico e m " C o m u n i c a ç ã o preliminar" (1893), q u e foi r e p r o d u z i d a
e m 1895 e m Estudos sobre a histeria, c o n s t i t u i n d o s e u primeiro capítulo.
A p u b l i c a ç ã o d e Estudos sobre a histeria m a r c a , p o r é m , o f i m c o l a b o r a ç ã o d o s dois autores, e a partir d e
1896 Freud p r o s s e g u i u s o z i n h o s u a s p e s q u i s a s , d e c e p c i o n a d o c o m a falta d e a m b i ç ã o d e Breuer. U m a d a s
c a u s a s d o afastamento d e a m b o s foi o fato d e q u e Breuer n ã o estava c o n v e n c i d o d a i m p o r t â n c i a d o s
fatores sexuais n a o r i g e m d a histeria, q u e Freud enfatizava c a d a vez mais. M a s Breuer c o n t i n u o u a c o m p a -
nhando d e longe o desenvolvimento das ideias d e Freud. Este s ó ficou s a b e n d o disso, para s u a s u r p r e s a ,
p o r o c a s i ã o d a morte d e Breuer e m 1925, q u a n d o s e u filho Robert Breuer, e m resposta à carta d e c o n d o -
lências d e Freud, falou-lhe d o interesse p e r m a n e n t e d o pai por s e u s trabalhos (Hirschmúller, 1978).

DESCOBERTA DA OBRA

A s páginas i n d i c a d a s r e m e t e m a o t e x t o p u b l i c a d o e m S . F r e u d e J . B r e u e r ( 1 8 9 5 d ) , Études
sur Vhystérie, t r a d . A . B e r m a n , P a r i s , P U F , 1 9 5 6 .

O M E C A N I S M O PSÍQUICO E s s a c a u s a e s c a p a a o s i m p l e s e x a m e clínico e o
DOS FENÓMENOS HISTÉRICOS próprio d o e n t e já não s e r e c o r d a d e s s e a c o n t e -
por J. Breuer e S. Freud c i m e n t o . A a j u d a d a h i p n o s e c o s t u m a ser n e -
cessária p a r a d e s p e r t a r n o p a c i e n t e a s l e m b r a n -
O capítulo introdutório r e t o m a o t e x t o d e ças d a época e m q u e o s i n t o m a f e z s u a p r i m e i -
"Comunicação p r e l i m i n a r " , já p u b l i c a d a e m r a s aparição: " E só depois disso que se consegue
1893, n a q u a l os a u t o r e s d e s c r e v e r a m as etapas estabelecer da forma mais nítida e mais convincente
s u c e s s i v a s d e s u a s c o n d u t a s clínicas e q u e f a z a relação em questão" ( p . 1 ) . N a m a i o r i a d a s v e -
p a r t e d e s u a s p r i m e i r a s hipóteses. E m g e r a l , z e s , a c o n t e c i m e n t o s o c o r r i d o s n a infância é q u e
d e c l a r a m e l e s , é u m a observação f o r t u i t a q u e p r o v o c a r a m p o s t e r i o r m e n t e manifestações p a -
p e r m i t e descobrir acausa o u , m a i s precisamen- tológicas m a i s o u m e n o s g r a v e s .
te, o i n c i d e n t e q u e p r o v o c o u p e l a p r i m e i r a v e z
E s s a s observações m o s t r a m q u e e x i s t e u m a
o s i n t o m a histérico e m u m p a s s a d o longínquo.
a n a l o g i a e n t r e a h i s t e r i a e a n e u r o s e traumática,
22 Jean-Michel Q u i n o d o z

d o p o n t o d e v i s t a d a patogenia, e p o r isso p o d e - l i g a d a à presença d e u m "estado hipnóide" q u e


s e c o n s i d e r a r q u e o s s i n t o m a s histéricos s e d e - c o n s t i t u i r i a o fenómeno f u n d a m e n t a l d a h i s -
v e m a u m traumatismo psíquico. E m s e g u i d a , o t e r i a . E m r e s u m o , o s s i n t o m a s histéricos s e -
t r a u m a t i s m o psíquico e s u a lembrança "agem r i a m o resultado de u m t r a u m a t i s m o grave -
como um corpo estranho que, muito tempo após sua análogo a o d e u m a n e u r o s e traumática - q u e
irrupção, continua desempenhando um papel ativo" p r o d u z i r i a u m a repressão p e n o s a - n a q u a l o
(p. 4). S e g u n d o o s a u t o r e s , o d e s a p a r e c i m e n t o e f e i t o s e x u a l t i n h a u m p a p e l -, c u j o e f e i t o se-
d o s s i n t o m a s q u e s e s e g u e à evocação d a l e m - r i a u m a "dissociação" d e g r u p o s d e r e p r e s e n -
brança traumática v e m c o n f i r m a r e s s a hipótese. tações patogênicas. C o m o a g e o p r o c e d i m e n -
P a s s o a p a l a v r a a F r e u d e B r e u e r p a r a a descrição t o terapêutico?, p e r g u n t a m - s e F r e u d e B r e u e r
d e s e u n o v o método terapêutico: "Para nossa gran- p a r a c o n c l u i r . "Ele suprime efeitos da represen-
de surpresa, descobrimos que, de fato, todos os sinto- tação que não tinha sido primitivamente ab-
mas histéricos desapareciam imediatamente e sem re- reagida, permitindo ao afeto inibido extravasar-se
torno quando se conseguia trazer à luz do dia a lem- verbalmente; leva a que essa representação se mo-
brança do incidente desencadeante e despertar o afeto difique por via associativa trazendo-a para o cons-
ligado a ele e, depois disso, o doente descrevia o que lhe ciente normal (sob hipnose leve) ou suprimindo-a
tinha acontecido deforma bastante detalhada e dando por sugestão médica, do mesmo modo que, no so-
uma expressão verbal à sua emoção" ( p . 4 ) . M a s , nambulismo, suprime-se a amnésia" ( p . 1 3 ) .
c o m o a d v e r t e m e l e s , e r a indispensável q u e o p a -
c i e n t e r e v i v e s s e a emoção o r i g i n a l p a r a q u e a e v o -
" H I S T Ó R I A S DE D O E N T E S " : C I N C O ÊXITOS
cação d a lembrança t i v e s s e u m e f e i t o terapêutico:
"Uma lembrança livre de toda carga afetiva é quase DO M É T O D O C A T Á R T I C O
sempre totalmente ineficaz" ( p . 4 ) . E s s a s o b s e r v a -
Os autores apresentam e m seguida o relato
ções r e i t e r a d a s c o n d u z e m F r e u d e B r e u e r à a f i r -
d e c i n c o observações clínicas, d a s q u a i s s o m e n -
mação q u e h o j e s e t o r n o u célebre: " O histérico sofre
te a p r i m e i r a é r e d i g i d a p o r B r e u e r , e n q u a n t o
sobretudo de reminiscências" ( p . 5 ) .
as o u t r a s q u a t r o s e r e f e r e m a p a c i e n t e s t r a t a -
A l i n g u a g e m d e s e m p e n h a u m papel deter- d o s p o r F r e u d . V a m o s recordá-las b r e v e m e n t e
m i n a n t e n o e f e i t o "catártico", p r o s s e g u e m o s a u - aqui, e m linhas m u i t o gerais, para destacar as
t o r e s , p o i s a obliteração d e u m a lembrança etapas sucessivas percorridas por Breuer e
patogênica i m p l i c a u m a reação d e d e s c a r g a F r e u d e m suas respectivas pesquisas.
e m o c i o n a l , s e j a d e lágrimas o u u m a t o d e v i n -
gança: "Mas o ser humano encontra na linguagem
o equivalente do ato, equivalente graças ao qual o "Srta. Anna O." (J. Breuer): O primeiro caso
afeto pode ser verdadeiramente "ab-reagido" mais
ou menos da mesma maneira. Em outros casos, são Q u a n d o J. B r e u e r v i u p e l a p r i m e i r a v e z
as próprias palavras que constituem o reflexo ade- " A n n a O . " - cujo v e r d a d e i r o n o m e era Bertha
quado, por exemplo, as queixas, a revelação de um P a p p e n h e i m -, a j o v e m p a c i e n t e t i n h a 2 1 a n o s
segredo opressivo (confissão). Quando não ocorre e s o f r i a d e u m a t o s s e n e r v o s a e d e vários o u t r o s
esse tipo de reação pelo ato, pela palavra e, nos casos s i n t o m a s histéricos: variações d o h u m o r , d i s -
mais leves, pelas lágrimas, a lembrança do aconteci- túrbios d a visão, p a r a l i s i a d o l a d o d i r e i t o , " a u -
sências" p o v o a d a s d e alucinações, distúrbios d a
mento preserva todo seu valor afetivo" ( p . 6 ) .
l i n g u a g e m , etc. N o d e c o r r e r d e s e u s f r e q u e n t e s
Além d i s s o , F r e u d e B r e u e r a s s i n a l a m q u e
e l o n g o s encontros c o m ela, B r e u e r percebeu q u e
a memória d o d o e n t e não p r e s e r v a n e n h u m
certos s i n t o m a s desapareciam q u a n d o a j o v e m
traço d o s i n c i d e n t e s o r i g i n a i s , e q u e s e t r a t a
l h e r e l a t a v a e m d e t a l h e a lembrança l i g a d a a o
q u a s e s e m p r e d e lembranças p e n o s a s q u e e l e
m o m e n t o d e s u a p r i m e i r a aparição, a o m e s m o
"guardava, repelia, reprimia, fora de seu pensa-
t e m p o e m q u e r e v i v i a i n t e n s a m e n t e a emoção
mento consciente" ( p . 7 ) . O s a u t o r e s a t r i b u e m q u e t i n h a s e n t i d o n a época. D e p o i s d e f a z e r e s -
o s fenómenos histéricos a u m a "dissociação do s a s observações p o r a c a s o , B r e u e r r e p e t i u a e x -
consciente", i s t o é, a u m a "dupla consciência" periência d e f o r m a m a i s sistemática c o m o u t r o s
L e r F r e u d 23

sintomas e constatou que, ao interrogar A n n a m a d e "catarse" ( o u ab-reação) ( p . 2 5 - 2 6 ) e c i t a


O . s o b r e a s circunstâncias d e s u a p r i m e i r a vários e x e m p l o s . O êxito terapêutico m a i s i m -
aparição, e l e s s e m p r e d e s a p a r e c i a m s i m u l t a n e a - p o r t a n t e é, s e m dúvida, o q u e s e r e f e r e à p a r a -
m e n t e às r e s p o s t a s d a p a c i e n t e . E i s o q u e r e l a t a l i s i a d o braço d i r e i t o d e A n n a O . A p a c i e n t e
B r e u e r : "Cada sintoma desse quadro clínico com- estava sentada j u n t o a o seu p a i gravemente
plicado foi tratado isoladamente; todos os incidentes d o e n t e , q u a n d o , d e súbito, t e v e u m a espécie
motivadores vieram à tona na ordem inversa àquela d e alucinação e m q u e v i a u m a s e r p e n t e a p r o -
em que se produziram, começando dos dias que pre- x i m a r - s e d e s e u p a i p a r a mordê-lo, a o m e s m o
cederam o adoecimento e remontando à causa da pri- t e m p o e m q u e s e d a v a c o n t a d e q u e não c o n s e -
meira aparição dos sintomas. Uma vez revelada essa g u i a m a i s m e x e r s e u braço d i r e i t o , q u e e s t a v a
causa, os sintomas desapareciam para sempre" ( p . i m o b i l i z a d o n o encosto de sua cadeira. D e p o i s
2 5 ) . Além d i s s o , B r e u e r o b s e r v o u q u e e s s e f e - d e s s e p r i m e i r o episódio, a alucinação a n g u s -
nómeno o c o r r i a q u a n d o a p a c i e n t e s e e n c o n - tiante ser e p r o d u z i a constantemente, acompa-
t r a v a e m u m e s t a d o d e consciência diminuído, n h a d a d a p a r a l i s i a d o braço d i r e i t o e d a i m -
próximo d a a u t o - h i p n o s e , e s t a d o secundário p o s s i b i l i d a d e d e s e e x p r e s s a r a não s e r e m i n -
q u e e l e c h a m o u d e "estado hipnóide". E m s e g u i - glês. B r e u e r c o n t a q u e , n o f i n a l d o t r a t a m e n t o ,
d a , B r e u e r aperfeiçoou s u a técnica h i p n o t i z a n - A n n a O . lhefez u m relato completo das condi-
d o e l e m e s m o s u a p a c i e n t e , a o invés d e e s p e r a r ções e m q u e a alucinação d a s e r p e n t e s u r g i r a .
que ela entrasse e m auto-hipnose, o q u e l h e Q u a n d o ela conseguiu lembrar que tinha sido
p e r m i t i a g a n h a r t e m p o . A própria A n n a O . n a n o i t e dramática e m q u e v e l a v a à c a b e c e i r a
u s o u a expressão talking cure ( c u r a p e l a p a l a - de seu p a i doente, a paralisia d o lado direito
v r a ) p a r a q u a l i f i c a r esse p r o c e d i m e n t o d e r e c u - d e s a p a r e c e u e e l a r e c u p e r o u o u s o d a língua
peração e d e s i g n o u p e l o t e r m o chimney sweeping alemã: "Imediatamente após esse relato, ele se ex-
( l i m p e z a d e chaminé) a rememoração d o s a c o n - pressou em alemão e a partir dali se livrou dos
t e c i m e n t o s l i g a d o s à aparição d o s s i n t o m a s q u e incontáveis distúrbios que a afetavam antes. Em se-
p e r m i t e a ab-reação. guida viajou, mas ainda precisou de um bom tempo
Breuer prossegue citando u m a longa lista antes de recuperar inteiramente seu equilíbrio men-
d e s i n t o m a s e l i m i n a d o s graças a o q u e e l e c h a - tal. Desde então, gozou de plena saúde" ( p . 3 0 ) .

PÓS-FREUDIANOS
wBÊÊÊÊÊÊBBSmBBSBÊÊBÊ

C o m o A n n a O. c o m p l e t o u s u a c u r a ?
Breuer concluiu seu relato c o m u m a nota mais otimista, declarando q u e a paciente ainda precisou d e u m b o m
t e m p o antes d e recuperar inteiramente seu equilíbrio mental, mas que, desde então, "gozou de plena saúde" (p.
30), o q u e não é b e m verdade, s e g u n d o pesquisas recentes. Freud, por sua vez, d e u várias versões sobre o fim
d a análise d e A n n a O. Muito t e m p o depois, ele declarou q u e a cura fora interrompida porque Breuer não
suportou a transferência a m o r o s a d e sua paciente e fugiu, conforme escreveu mais tarde: "Apavorado, como
qualquer médico não-psicanalista teria ficado em um caso como esse, ele fugiu, abandonando sua paciente a
um colega" [caria a Stefan Zweig d e 2 d e j u n h o d e 1932]. E m sua biografia de Freud, Jones (1953-1957) retoma
u m a dessas versões: no último dia d o tratamento, s e g u n d o ele, Breuer teria sido c h a m a d o à cabeceira d e A n n a
O. o n d e a encontrou e m plena crise histérica, simulando o parto d e u m a criança q u e dizia ter tido c o m ele.
Breuer teria fugido e viajado no dia seguinte c o m sua esposa para Veneza, o n d e conceberiam u m a filha.
Pesquisas históricas posteriores estabeleceram que, na realidade, a versão amplamente difundida por J o n e s foi
u m a construção posterior por parte de Freud e q u e não corresponde aos fatos. Assim, Hirschmúller (1978)
mostrou q u e Breuer continuou tratando d e sua paciente depois d e concluir a cura catártica. O q u e houve, d e
fato, foi q u e certas manifestações d a d o e n ç a d e A n n a O. persistiram; além disso, ela sofria d e dores nevrálgicas
d o nervo trigêmeo q u e foram tratadas à base d e morfina, o q u e causou u m a dependência. Em julho d e 1882, ele

Continua 0
24 Jean-Michel Q u i n o d o z

PÓS-FREUDIANOS • Continuação

encaminhou a paciente a Ludwig Binswanger, diretor d o sanatório d e Kreuzlingen, para q u e prosseguisse o


tratamento, e d e lá ela saiu curada e m outubro d o m e s m o ano. Depois, A n n a O. foi viver e m Viena, o n d e ainda
foi tratada a l g u m a s vezes, e mais tarde mudou-se para Frankfurt. Na Alemanha, teve u m a vida muito ativa c o m o
escritora e dedicou-se a obras sociais. À luz desses novos dados, R. Britton (2003) lançou u m a série d e hipóte-
ses convincentes s o b r e a natureza d o conflito histérico partindo d o reexame desse primeiro caso.
A l g u n s detratores d a psicanálise se a p o i a r a m n o fato d e o s pacientes descritos e m Estudos sobre a histeria
não t e r e m se livrado c o m p l e t a m e n t e d e seus s i n t o m a s para contestar s u a validade, a c u s a n d o Freud e
Breuer d e mistificação e A n n a O. d e s i m u l a ç ã o . É v e r d a d e q u e , e m s e u e n t u s i a s m o , Breuer e F r e u d florea-
ram u m p o u c o o relato d e seus c a s o s clínicos, pois s u a p u b l i c a ç ã o destinava-se e m parte a d e m o n s t r a r
q u e suas p e s q u i s a s e r a m anteriores às d e Janet. M a s , para isso, n ã o era preciso tapar o sol c o m a peneira,
pois q u a l q u e r q u e t e n h a s i d o o resultado relativo d e s s a cura, o t r a t a m e n t o d e A n n a O. p e r m a n e c e r á n o s
anais c o m o o p r i m e i r o êxito d o m é t o d o c h a m a d o d e catártico e q u e d e u a Freud o p r i m e i r o i m p u l s o e m
direção à d e s c o b e r t a d a psicanálise.

"Sra. E m m y v o n N." (Freud): Freud utiliza u t i l i z a r c o m e s s a p a c i e n t e . E l a própria i n s i s t i a


o método catártico pela primeira vez c o m F r e u d p a r a q u e não a t o c a s s e q u a n d o às
vezes era t o m a d a de terror diante de suas lem-
D o m e s m o m o d o q u e se s i t u o u a d e s c o b e r - branças: "Fique tranquilo!", d i z i a e l a . "Não fale
t a d o método catártico n a c u r a d e A n n a O . p o r nada!... não toque em mim!", e d e p o i s s e a c a l -
Breuer, situou-se na cura de E m m y v o n N . por m a v a . F r e u d concluiu que, n o caso de E m m y
Freud o abandono d ahipnose e m favor d o v o n N . , não s e t r a t a v a d e u m a h i s t e r i a d e c o n -
método d e associação l i v r e . E s s a m u l h e r d e versão, m a s d e s i n t o m a s psíquicos histéricos
41 anos - cujo v e r d a d e i r o n o m e era F a n n y c o m angústias, depressão e f o b i a s . Q u a n t o à
M o s e r - e r a viúva d e u m r i c o i n d u s t r i a l c o m o r i g e m dessa histeria, F r e u d considerou que
q u e m teve duas filhas e sofria de graves fobias a repressão d o e l e m e n t o s e x u a l t e v e u m p a -
de animais. A o l o n g o dessa cura, que come- p e l d e t e r m i n a n t e , p o i s e l a e r a "mais capaz do
çou n o d i a I d e m a i o d e 1 8 8 9 e l e v o u s e i s s e -
o
que outras causas de traumatismos" ( p . 8 0 ) .
manas, F r e u d fez entrevistas c o m finalidade
catártica, a c o m p a n h a d a s d e m a s s a g e n s e d e
sessões d e h i p n o s e p a r a e s t i m u l a r a r e m e m o - " M i s s L u c y R." ( F r e u d ) : F r e u d
ração. M a s e l e p e r c e b e u , n a s e n t r e v i s t a s , q u e abandona progressivamente a
bastava que a paciente falasse espontanea- hipnose pela sugestão
m e n t e p a r a t r a z e r à t o n a a s lembranças s i g n i -
f i c a t i v a s e p a r a q u e o e f e i t o catártico v i e s s e E m d e z e m b r o d e 1892, F r e u d t r a t o u p o r
d o simples fato de ela sedescarregar esponta- nove semanas d eu m a j o v e m governanta in-
n e a m e n t e p o r m e i o d a p a l a v r a : "É como se ela glesa que sofria de u m a p e r d a de o d o r ede alu-
tivesse se apropriado do meu procedimento", e s - cinações o l f a t i v a s e q u e e r a p e r s e g u i d a p o r c h e i -
c r e v e F r e u d . "Ela parece utilizar essa conversa r o d e q u e i m a d o e p o r distúrbios c o n s i d e r a d o s
aparentemente interrompida como complemento da s i n t o m a s histéricos. D e p o i s d e t e r t e n t a d o e m
hipnose" ( p . 4 2 ) . A l g u n s d i a s d e p o i s , i r r i t a d a vão u t i l i z a r a h i p n o s e c o m e l a , F r e u d d e s i s t i u e
c o m asperguntas d e Freud, a paciente lhe p a s s o u a a p l i c a r o c h a m a d o método d e "associa-
p e d i u q u e não a i n t e r r o g a s s e s e m p a r a r e "que ção livre", a j u d a n d o às v e z e s c o m u m a l e v e p r e s -
a deixasse contar o que ela tinha a dizer" ( p . 4 8 ) . são n a t e s t a d a p a c i e n t e c o m a mão q u a n d o a s
Freud concordou e acabou constatando que lembranças d e m o r a v a m a s u r g i r : "e apoiava a
c o n s e g u i a a rememoração d e s e j a d a m e s m o mão na testa da paciente ou segurava sua cabeça
sem a hipnose que, n o entanto, continuava a com as duas mãos dizendo: 'Você se lembrará sob a
L e r F r e u d 25

pressão das minhas mãos. No momento em que a surge em cada traumatismo sexual" ( p . 1 0 6 ) . E m
pressão parar, você verá alguma coisa à sua frente u m a n o t a acrescentada e m 1924, F r e u d r e v e l a
ou passará uma ideia por sua cabeça que é preciso q u e não s e t r a t a v a d o "tio" d a m e n i n a , m a s d e
captar, é ela que vamos perseguir. E então, você viu s e u próprio p a i ( p . 1 0 6 , n . 1 ) .
ou pensou?"' ( p . 8 6 ) . E s s e t r a t a m e n t o c o n f i r m o u
a hipótese d e q u e a lembrança d e u m i n c i d e n t e
" S r t a . E l i s a b e t h v o n R." ( F r e u d ) : P r i m e i r a
esquecido, mas fielmente conservado n a m e -
análise completa de u m caso de histeria
mória, está n a o r i g e m d o e f e i t o patogênico d o s
s i n t o m a s histéricos. T r a t a - s e d e u m c o n f l i t o O quarto caso descrito por F r e u d é o d e
psíquico, q u a s e s e m p r e d e n a t u r e z a s e x u a l , c u j o u m a moça d e o r i g e m húngara, d e 2 4 a n o s ,
e f e i t o patogênico s e d e v e a q u e u m a i d e i a i n - Elisabeth v o n R. - cujo verdadeiro n o m e era
compatível é "reprimida do consciente e exclui a I l o n a W e i s s -, q u e ele t r a t o u d o o u t o n o d e 1892
elaboração associativa" ( p . 9 1 ) . N e s s e c a s o , o s s i n - a j u l h o d e 1 8 9 3 . A moça s o f r i a há d o i s a n o s d e
tomas foram eliminados no m o m e n t o e m que d o r e s v i o l e n t a s n a s p e r n a s e d e distúrbios i n e x -
F r e u d descobriu que M i s s L u c y R. se apaixo- plicáveis d a m a r c h a , distúrbios q u e t i n h a m
n a r a s e c r e t a m e n t e p o r s e u patrão e e m q u e e l a aparecido pela p r i m e i r a v e z q u a n d o ela c u i d a -
a d m i t i u t e r r e p r i m i d o e s s e a m o r p o r q u e não v a de seu p a i doente. P o u c o antes d a m o r t e de
t i n h a esperança. s e u p a i , s u a irmã f i c o u d o e n t e e também m o r -
r e u , e essas d u a s perdas t i v e r a m u m p a p e l
determinante n acausa d asintomatologia. O
"Katharina" (Freud)a Relato d e u m a t r a t a m e n t o s e d e s e n v o l v e u e m três f a s e s , s e g u n -
breve terapia psicanalítica d o F r e u d . A p r i m e i r a fase f o i d o m i n a d a pela
i m p o s s i b i l i d a d e d e estabelecer c o m essa pa-
N e s s e r e l a t o , F r e u d f a z u m a demonstração
c i e n t e u m a relação e n t r e s e u s s i n t o m a s e a c a u -
curta ebrilhante sobre opapel dos t r a u m a t i s m o s
s a d e s e n c a d e a n t e . E l a s e m o s t r o u refratária à
s e x u a i s n a o r i g e m d o s s i n t o m a s histéricos. E s s e
h i p n o s e e F r e u d s e c o n t e n t o u e m mantê-la d e i -
tratamento desenvolve-se e m f o r m a de u m a en-
tada, c o m os olhos fechados, m a s c o m os m o v i -
trevista d e a l g u m a s h o r a s entre F r e u d e essa
m e n t o s livres. A despeito das tentativas d e
moça d e 1 8 a n o s , a q u e m e l e c o n c e d e u u m a c o n -
F r e u d , não s e p r o d u z i a o e f e i t o terapêutico e s -
sulta i m p r o v i s a d a d u r a n t e u m passeio e m suas
férias n a m o n t a n h a , e m a g o s t o d e 1 8 9 3 . K a t h a r i - p e r a d o . Então e l e r e c o r r e u a o p r o c e d i m e n t o p o r
na era filha d adona d a estalagem e, sabendo pressão d a mão s o b r e a cabeça, p e d i n d o - l h e q u e
q u e F r e u d e r a médico, p e r g u n t o u - l h e s e p o d e - falasse o q u e l h e viesse à m e n t e . O p r i m e i r o
r i a ajudá-la a r e s o l v e r s i n t o m a s d e sufocação p e n s a m e n t o d e E l i s a b e t h v o n R . f o i a lembrança
a c o m p a n h a d o s d a visão d e u m r o s t o a s s u s t a - de u m rapaz p o r q u e m se a p a i x o n o u q u a n d o
d o r . E m s e u s diálogos, r e p r o d u z i d o s f i e l m e n t e seu pai estava doente. D e v i d o à gravidade d o
p o r F r e u d , Katharina l e m b r o u que seus sinto- estado de seu pai, ela renunciara d e f i n i t i v a m e n -
m a s t i n h a m começado d o i s a n o s a n t e s , q u a n d o t e a e s s e a m o r . E l a s e l e m b r o u também q u e n o
p r e s e n c i o u u m a relação s e x u a l e n t r e s e u " t i o " e m o m e n t o e m que apareceu o conflito interno,
sua p r i m a Franziska, oque adeixara profunda- s u r g i u a d o r nas pernas - m e c a n i s m o caracte-
m e n t e c h o c a d a . E s s a lembrança r e c o r d o u a rístico d a conversão histérica, s e g u n d o F r e u d .
K a t h a r i n a q u e e s s e " t i o " já t e n t a r a s e d u z i - l a vá- O despertar desse fracasso a m o r o s o l e v o u a q u e
rias vezes, q u a n d o ela t i n h a 14 anos. F r e u d ob- a própria p a c i e n t e d e s c o b r i s s e o m o t i v o d e s u a
s e r v a q u e , após o r e l a t o d o s f a t o s , a moça s e s e n - p r i m e i r a conversão: "A doente surpreendeu-me
te a l i v i a d a , pois, s e g u n d o suas palavras, a histe- primeiro ao dizer que agora sabia por que razão as
r i a f o i "em grande medida ab-reagida" ( p . 1 0 4 ) . dores partiam sempre de um determinado ponto da
F r e u d v i u n i s s o a confirmação d e s u a t e s e : "A coxa direita e eram sempre mais violentas ali. Era
angústia que Katharina sente nesse acesso é uma an- justamente o lugar onde todas as manhãs seu pai
gústia histérica, isto é, a repetição da angústia que repousava sua perna muito inchada quando ela tro-
26 Jean-Michel Q u i n o d o z

cava o curativo" ( p . 1 1 7 ) . Após e s s e período d e sença d e representações i n c o n s c i e n t e s q u e não


"ab-reação", o e s t a d o d a p a c i e n t e m e l h o r o u . p o d e m se t o r n a r c o n s c i e n t e s e q u e p o r isso a d -
F r e u d g a n h o u confiança e m s e u p r o c e d i m e n t o q u i r e m u m caráter patogênico. E l e a s s i n a l a q u e
d e pressão s o b r e a cabeça p a r a p r o v o c a r o a p a - o s distúrbios histéricos sobrevêm e m p e r s o n a -
r e c i m e n t o d e i m a g e n s e d e i d e i a s , e não h e s i t a - lidades que apresentam u m a excitabilidade
v a m a i s e m insistir c o m a paciente q u a n d o ela p a r t i c u l a r e u m a tendência à a u t o - h i p n o s e -
a f i r m a v a não t e r p e n s a d o e m n a d a , s o b o e f e i - q u e e l e c h a m a d e "hipnoidia" -, o q u e f a c i l i t a a
t o d a s resistências: "Durante esse trabalho peno- sugestão. E l e m o s t r a também q u e e s s e s p a c i -
so, aprendi a atribuir uma grande importância à re- e n t e s têm u m a predisposição a r e j e i t a r o q u e é
sistência que a doente mostrava ao evocar suas lem- s e x u a l , p a r t i c u l a r m e n t e n o c a s o d e conversão
branças (...)" ( p . 1 2 2 ) . histérica: "a maior parte das representações assim
A p e n a s n a terceira fase dessa cura f o i repelidas e convertidas têm um conteúdo sexual"
possível c h e g a r à eliminação c o m p l e t a d o s s i n - (p. 199). M a s , e n q u a n t o B r e u e r s e c o n t e n t a v a
t o m a s . F o i e m decorrência d e u m episódio f o r - e m a p l i c a r o método catártico q u e h a v i a d e s -
t u i t o q u e F r e u d c o n s e g u i u d e s c o b r i r o "segre- c o b e r t o s e m t e n t a r melhorá-lo, F r e u d d e s c r e v e
do" q u e e s t a v a n a o r i g e m d a s d o r e s : d u r a n t e n o último capítulo a m a n e i r a c o m o o d e s e n -
u m a sessão, a p a c i e n t e p e d i u a F r e u d p a r a s a i r v o l v e u , o q u e c o n f e r e a o capítulo d e B r e u e r u m
porque tinha o u v i d o seu cunhado chamando-a i n t e r e s s e m a i s histórico d o q u e teórico.
d o l a d o d e f o r a . A o v o l t a r , após e s s a i n t e r r u p -
ção, s e n t i u n o v a m e n t e d o r e s v i o l e n t a s n a s p e r -
A P S I C O T E R A P I A DA H I S T E R I A (FREUD)
n a s , e F r e u d d e c i d i u i r até o f i m d e s s e e n i g m a .
A chegada d o c u n h a d o fez c o m que a paciente Da h i p n o s e à a s s o c i a ç ã o livre
lembrasse que suas dores r e m o n t a v a m à m o r t e
d e s u a irmã, e q u e u m p e n s a m e n t o inconfessá- A p a r t i r d e s u a experiência clínica, F r e u d
v e l l h e a t r a v e s s a r a o espírito a o e n t r a r n o q u a r - mostra que foi levado a modificar pouco a
to o n d e jazia a m o r t a : a ideia de q u e a m o r t e de p o u c o a técnica catártica p a r a c h e g a r a u m a
s u a irmã d e i x a v a s e u c u n h a d o l i v r e , e q u e a g o - a b o r d a g e m terapêutica o r i g i n a l , d i f e r e n t e d a
ra p o d e r i a casa c o m ele! M a s o a m o r p o r s e u d e B r e u e r , e e x a m i n a as v a n t a g e n s e os i n c o n -
c u n h a d o s e c h o c a v a c o m s u a consciência m o - v e n i e n t e s d e s t a . A s s i m , n a l e i t u r a d e s s e capí-
r a l , e p o r i s s o e l a t i n h a "reprimido" f o r a d e s u a t u l o f u n d a m e n t a l , v e m o s esboçar-se s o b a
consciência e s s a i d e i a intolerável. E a s s i m s e p r o - pena d e Freud o scontornos cada vez mais
d u z i u o m e c a n i s m o d e conversão: "ela tinha pro- p r e c i s o s d o q u e será o método psicanalítico,
duzido dores por uma conversão bem-sucedida do c o m s e u s princípios c o n s t i t u t i v o s já d e l i n e a -
psíquico em somático" ( p . 1 2 4 ) . O e f e i t o d e s s a t o - dos: nesse texto d e 1895 e n c o n t r a m - s e as n o -
m a d a d e consciência t e v e c o m o r e s u l t a d o a c u r a v a s noções d e i n c o n s c i e n t e , resistências, d e f e -
d e f i n i t i v a , o q u e F r e u d pôde c o n f i r m a r u m a n o s a s , transferências e m u i t a s o u t r a s .
d e p o i s a o vê-la dançando e m u m b a i l e . O êxito F r e u d começa p o r r e c o r d a r q u e f o r a m a s
d e s s e t r a t a m e n t o não i m p e d i u q u e e l a f o s s e t e r - dificuldades e os l i m i t e s encontrados n a apli-
r i v e l m e n t e agressiva c o m F r e u d p o r ter revela- cação d o método catártico q u e o i n c i t a r a m a
do seu segredo. buscar m e i o s m a i s eficazes para trazer à tona
a s lembranças patogênicas e a e x p l o r a r n o v a s
C O N S I D E R A Ç Õ E S T E Ó R I C A S (BREUER) técnicas q u e l o g o substituirão a a n t e r i o r . D e
fato, tal c o m o era aplicado, o tratamento
E m u m capítulo teórico, B r e u e r d e s e n v o l v e catártico l e v a v a m u i t o t e m p o e e x i g i a t o t a l
a l g u m a s hipóteses esboçadas n a " C o m u n i c a - confiança n o médico p o r p a r t e d o p a c i e n t e
ção p r e l i m i n a r " . S u a contribuição r e f e r e - s e p a r a q u e a h i p n o s e t i v e s s e êxito. Porém, n e m
e s s e n c i a l m e n t e a o " e s t a d o hipnóide" e à d i s s o - todos o spacientes t i n h a m o m e s m o g r a u d e
ciação d o p s i q u i s m o c o m o r e s u l t a d o d a p r e - confiança. A o invés d e d e s a n i m a r , F r e u d s u -
L e r F r e u d 27

p e r o u e s s e obstáculo e n c o n t r a n d o u m m e i o d e g a r p o u c o a p o u c o à expressão espontânea d e


p e r m i t i r ao paciente recuperar suas l e m b r a n - sua paciente.
ças patogênicas s e m a h i p n o s e . E s s a f o i u m a O s Estudos sobre a histeria - p a r t i c u l a r m e n -
de suas tiradas geniais. Ela notara que, dei- t e a s contribuições d e F r e u d - são a b u n d a n t e s
t a n d o o paciente e lhe p e d i n d o que fechasse e m comentários clínicos, técnicos e teóricos
os o l h o s e seconcentrasse, e insistindo repeti- que abrem caminhos novos e constituem as
damente, conseguia que surgissem novas lem- b a s e s s o b r e a s q u a i s s e edificará d e p o i s a p s i -
branças. M a s , d a d o q u e e s s e p r o c e d i m e n t o canálise. E n t r e o s c o n c e i t o s inéditos i n t r o d u -
a i n d a e x i g i a m u i t o s esforços e o s r e s u l t a d o s z i d o s a q u i , três noções m e r e c e m u m e x a m e
d e m o r a v a m aaparecer, F r e u d p e n s o u q u e isso mais detido: a sexualidade, o simbolismo e a
t a l v e z f o s s e s i n a l d e u m a "resistência" v i n d a transferência.
d o p a c i e n t e . C a b i a a o médico s u p e r a r e s s e s
n o v o s obstáculos q u e t r a v a v a m a emergência
d e s s a s representações. O papel d e s e m p e n h a d o pela sexualidade
Foi assim que F r e u d descobriu opapel de- Embora Freud tenha constatado desde
s e m p e n h a d o p e l a s resistências e defesas, m e - m u i t o cedo que o straumatismos d e o r d e m
c a n i s m o s psíquicos q u e i m p e d i a m q u e a s r e - sexual sobrevinham regularmente n o relato
presentações patogênicas c h e g a s s e m a o "ego" d a s circunstâncias d e aparição d o s p r i m e i r o s
( p . 2 1 7 ) . P a r e c i a - l h e q u e s e u o b j e t i v o e r a "re- s i n t o m a s histéricos, d e início e l e s e m o s t r o u
jeitar para fora do consciente e da lembrança" a s cético q u a n t o a i d e n t i f i c a r a l i u m a relação d e
i d e i a s inconciliáveis, s o b a ação d e u m a força c a u s a e e f e i t o : "Recém-saído da Escola de Charcot,
q u e c h a m o u d e censura: "Tratava-se, portanto, eu enrubescia em face da conexão entre a histeria e
de uma força psíquica, de uma aversão do ego, que o tema da sexualidade, que é mais ou menos o que
provocara primitivamente a rejeição da ideia ocorre com os pacientes em geral" ( p . 2 0 8 - 2 0 9 ) .
patogênica para fora das associações e que se opu- M a s , p o r força d e v e r i f i c a r a presença r e i t e r a -
nha ao retorno desta na lembrança" ( p . 2 1 7 ) . S e - da d et r a u m a t i s m o s d e o r d e m sexual nos re-
g u n d o F r e u d , a representação patogênica s o - latos d e seus pacientes, ele s e r e n d e u à e v i -
f r e r i a u m a rejeição n o p s i q u i s m o q u e a s s o c i o u dência d e q u e o f a t o r s e x u a l d e s e m p e n h a v a
à "repressão" ( p . 2 1 7 ) . M a s s e a emoção não u m papel decisivo como ponto de partida d e
eliminada ultrapassa oslimites do que o pa- sua sintomatologia. M a i s tarde, percebeu que
c i e n t e p o d e t o l e r a r , a e n e r g i a psíquica s e con- e s s e f a t o r não e s t a v a r e l a c i o n a d o a p e n a s à h i s -
verteu e m e n e r g i a somática e dá l u g a r a u m t e r i a , m a s às n e u r o p s i c o s e s e m g e r a l . P o r i s s o ,
sintoma histérico, c o n f o r m e u m m e c a n i s m o d e c h a m o u - a s d e "neuroses sexuais".
conversão.
N o s Estudos sobre a histeria, F r e u d f a l a r e l a t i -
Freud fundamentara sua abordagem n a v a m e n t e p o u c o s o b r e i s s o ; porém, expõe e s s e
insistência r e p e t i d a c o m s e u s p a c i e n t e s p a r a p o n t o d e v i s t a revolucionário e m d i v e r s o s a r t i -
q u e s u p e r a s s e m s u a s resistências. C o m p l e - g o s d a m e s m a época, e m q u e r e a f i r m a q u e n o s
m e n t o u - a a c r e s c e n t a n d o a i s s o o g e s t o técni- c a s o s d e n e u r o s e e, e m p a r t i c u l a r , n a h i s t e r i a , o
c o d e u m a pressão s o b r e s u a t e s t a c o m o t r a u m a t i s m o originário está s e m p r e l i g a d o a e x -
o b j e t i v o d e f a c i l i t a r a emergência d e l e m b r a n - periências s e x u a i s r e a l m e n t e v i v i d a s n a p r i m e i -
ças patogênicas. C o n t u d o , q u a n d o d e s c o b r i u r a infância, a n t e r i o r e s à p u b e r d a d e . E s s a s e x p e -
l o g o d e p o i s o método d a associação l i v r e , r e - riências, q u e p o d e m i r d a s s i m p l e s i n v e s t i d a s
n u n c i o u também a o g e s t o técnico. A d e s c o - aos atos sexuais m a i s o u m e n o s caracterizados,
b e r t a d a associação l i v r e s e d e u p r o g r e s s i - n a s p a l a v r a s d e F r e u d , "devem ser qualificadas
v a m e n t e e n t r e 1 8 9 2 e 1 8 9 8 , e não t e m o s c o m o como abusos sexuais no sentido estrito do termo"
datá-la, m a s F r e u d já f a z menção a e l a n o c a s o ( 1 8 9 7 b , p . 2 0 9 ) . C o m a noção d e u m t r a u m a t i s m o
de E m m y V o n N . ,e m que foi levado a dar l u - s e x u a l real o c o r r i d o n a infância p r e c o c e , F r e u d
28 Jean-Michel Q u i n o d o z

lançou u m a hipótese q u e a s s u m i u d u r a n t e u m F r e u d h a v i a d e s c r i t o o fenómeno d a t r a n s f e -


c u r t o período, e n t r e 1 8 9 5 e 1 8 9 7 . N o t e - s e q u e , rência já u t i l i z a n d o e s s e t e r m o . N o início, r e -
a o f a l a r d e t r a u m a t i s m o s e x u a l r e a l , F r e u d não fere-se a ele de f o r m a i n d i r e t a , d a perspectiva
f a z i a n e n h u m a referência à s e x u a l i d a d e i n f a n - d a n e c e s s i d a d e d e e s t a b e l e c e r u m a relação d e
t i l , i s t o é, a o f a t o d e q u e a criança t e m pulsões confiança. A s s i m , q u a n d o d e s c r e v e o p r o c e d i -
sexuais, c o m o assinala R. W o l l h e i m (1971, p . 39). m e n t o catártico, a s s i n a l a q u e o êxito d a h i p n o -
M a s a s n o v a s observações clínicas f i z e r a m c o m s e r e q u e r o máximo d e confiança d o p a c i e n t e
que Freud modificasse rapidamente seu ponto e m relação a o médico e i n c l u s i v e u m a "adesão
d e v i s t a . A p a r t i r d e s s a época, p a s s o u a d u v i d a r total" ( p . 2 1 3 ) . P o s t e r i o r m e n t e , q u a n d o a b o r -
d a r e a l i d a d e d a c e n a s e x u a l r e l a t a d a : será q u e d a a m a n e i r a d e e l i m i n a r a s resistências, F r e u d
e l a não t i n h a s i d o i m a g i n a d a , e não r e a l m e n t e c h a m a a atenção p a r a o p a p e l e s s e n c i a l d e s e m -
v i v i d a ? D e s d e então, p a s s o u a c o n s i d e r a r q u e o p e n h a d o p e l a p e r s o n a l i d a d e d o médico, p o i s
f a t o r traumático d e t e r m i n a n t e d e p e n d e m a i s d a "em inúmeros casos, só ela será capaz de suprimir
fantasia e d a pulsão d o q u e d a realidade d a c e n a a resistência" ( p . 2 2 9 ) .
s e x u a l . V o l t a r e m o s a e s s a questão m a i s a d i a n t e . F r e u d m e n c i o n a d e f o r m a explícita a n o -
ção d e transferência q u a n d o s e a p r o f u n d a n o s
m o t i v o s d e resistência d o p a c i e n t e , e m p a r t i -
Símbolos e sintomas histéricos cular nos casos e m que o p r o c e d i m e n t o p o r
pressão não f u n c i o n a . E l e vê e s s e n c i a l m e n t e
Freud observou igualmente que havia u m
d o i s obstáculos à t o m a d a d e consciência d a s
d e t e r m i n i s m o simbólico n a f o r m a a s s u m i d a
resistências: e m p r i m e i r o l u g a r , u m a objeção
p e l o s s i n t o m a s , c u j a conversão v i a m e c a n i s m o
p e s s o a l e m relação a o médico, fácil d e r e s o l -
d a simbolização constituía a expressão m a i s
ver; e m segundo lugar, o t e m o r d e se ligar
m a r c a n t e . E l e dá vários e x e m p l o s d e s s a "deter-
d e m a i s a e l e , obstáculo m a i s difícil d e s u p e -
minação pelo simbolismo", c o m o o d a d o r d e c a b e -
r a r . E l e a c r e s c e n t a d e p o i s u m t e r c e i r o obstá-
ça l a n c i n a n t e q u e u m a p a c i e n t e s e n t i a , e n t r e o s
c u l o à conscientização d a s resistências q u e
d o i s o l h o s , e q u e d e s a p a r e c e u q u a n d o e l a se l e m -
s u r g e m "quando o doente teme reportar à pessoa
b r o u d o o l h a r tão "penetrante" d e s u a avó, c u j o
do médico as representações penosas que emergem
o l h a r , s e g u n d o e l e "se infiltrara profundamente em
do conteúdo da análise. Esse é um fato constante
seu cérebro" ( p . 1 4 4 ) . E l e a f i r m a c o m m u i t a
em certas análises. A transferência ao médico se
pertinência q u e s e t r a t a "em geral de jogos de pala-
realiza por uma falsa associação" ( p . 2 4 5 ) . F r e u d
vras ridículos, de associações por consonância, que
relata o breve e x e m p l o d eu m a paciente que
ligam o afeto e o reflexo entre si" ( p . 1 6 6 ) . F i n a l -
d e s e j a v a s e r abraçada e b e i j a d a p o r u m h o -
m e n t e , e l e e v o c a a p o s s i b i l i d a d e d e q u e a histé-
m e m d e s e u círculo. N o f i n a l d e sessão, e l a f o i
r i c a d e v o l v a "seu sentido verbal primitivo" às s u a s
t o m a d a p e l o m e s m o d e s e j o d e s e r abraçada e
sensações e às s u a s enervações, p o i s "parece que
beijada p o r F r e u d , o que a d e i x o u assustada.
tudo isso teve outrora um sentido literal" ( p . 1 4 5 ) .
Q u a n d o F r e u d f o i i n f o r m a d o p o r ela da n a t u -
Porém, n e s s e m o m e n t o , e l e não irá m u i t o m a i s
r e z a d e s s a resistência, e s t a f o i s u p e r a d a e o
l o n g e n a s investigações d a noção d e "símbolo
t r a b a l h o pôde p r o s s e g u i r . E l e q u a l i f i c a e s s e f e -
mnésico", q u e retomará m a i s t a r d e .
nómeno d e desajuste o u d e falsa relação: "Desde
que soube disso, toda vez que minha pessoa é en-
Esboço da noção de transferência volvida dessa maneira, consigo postular a existên-
cia de uma transferência e de uma falsa relação. O
Finalmente, descobre-se c o m surpresa que, que é curioso, a c r e s c e n t a e l e , é que nesse caso os
desde seus p r i m e i r o s escritos sobre a histeria, doentes estão sempre enganados" ( p . 2 4 5 - 2 4 6 ) .
L e r F r e u d 29

PÓS-FREUDIANOS

"A h i s t e r i a c e m a n o s d e p o i s "
C o m o os psicanalistas v ê e m a histeria atualmente? Ela desapareceu? Ainda s a b e m o s c o m o diagnosticá-la
hoje? Essas perguntas foram feitas por E. Nersessian (New York) aos participantes de u m a m e s a r e d o n d a
intitulada "A histeria c e m anos depois" durante o Congresso Internacional de Psicanálise realizado e m San
Francisco, e m 1995. S e g u n d o o relato d e J.-M. Tous (1996), os debates deram u m a ideia geral das principais
posições contemporâneas, q u e resumimos brevemente aqui.
Hoje, a maioria d o s psicanalistas c o n c o r d a e m q u e a histeria repousa e m u m a m p l o leque d e patologias q u e
vai d a neurose à psicose, p a s s a n d o pelos estados borderline e narcisísticos graves. C o n t u d o , d o p o n t o d e
vista d a a b o r d a g e m terapêutica, há d u a s tendências principais q u e se d e s t a c a m , u m a representada por
psicanalistas franceses e outra por psicanalistas ligados à escola inglesa.
Para Janine Chasseguet-Smirgel (Paris), é essencial que o psicanalista não perca de vista a dimensão sexual d a
histeria e q u e não se limite a pensar que ela se fundamenta unicamente e m u m a patologia arcaica pré-genital.
Evidentemente, a autora reconhece que o psicanalista muitas vezes se confunde diante da profusão d e fenóme-
nos clínicos que enfrenta c o m esse tipo de pacientes que evocam u m a grande variedade de patologias primitivas.
Mas, segundo ela, não se trata d e minimizar o papel que tem a interpretação dos conflitos edipianos e d a culpabi-
lidade e m face dos ataques destrutivos e m relação à mãe. Quando se focaliza a atenção apenas nos aspectos
arcaicos, há u m risco muito grande de diluir a histeria c o m o entidade clínica estreitamente ligada à identidade
sexual e no nível edipiano. J. Chasseguet-Smirgel diz ainda que não é a única a manifestar esse tipo d e preocupa-
ção, pois outros psicanalistas d a escola francesa, c o m o A. Green e J. Laplanche, manifestam o m e s m o temor.
Entretanto, ela considera que a histeria pertence ao "reino das mães", na medida e m que o útero e a gravidez estão
altamente implicados, seja na fantasia ou na realidade. Por essa razão, ela insiste no fator biológico na histeria: ele
não deve ser subestimado, pois se trata de u m a patologia psíquica que tem c o m o cenário o corpo. A o reafirmar o
papel desempenhado pela dimensão corporal, J. Chasseguet-Smirgel se demarca de outros psicanalistas, q u e
privilegiam a linguagem em detrimento d o corpo.
Eric Brenman (Londres), representante d a escola inglesa, expõe u m a posição teórica e clínica muito diferente.
Ele sustenta a ideia de que, já e m suas primeiras relações d e objeto, a criança pequena cria defesas contra as
angústias q u e determinarão a maneira c o m o irá geri-las na idade adulta. S e m dúvida, E. Brenman reconhece
q u e a sexualidade d e s e m p e n h a u m papel capital na histeria, mas, para ele, o que predomina e m u m paciente
histérico é a luta incessante q u e trava contra angústias primitivas. Ele descreve c o m o esses pacientes a g e m na
transferência para a realidade psíquica d o psicanalista e c o m o p r o c e d e m e m face das angústias arcaicas, q u e
são sentidas c o m o angústias catastróficas e c o m o perigos inexistentes. Geralmente, observam-se neles clivagens
determinantes de estados psíquicos q u e d e c o m p õ e m t o d o s os níveis d e sua vida psíquica. Por exemplo, os
pacientes histéricos procuram relações c o m objetos ideais, mas se d e c e p c i o n a m tão logo entram e m contato
c o m eles e, por isso, transitam permanentemente d e u m extremo a outro. Para E. Brenman, a histeria se deve,
antes d e tudo, a distúrbios psicóticos graves. Contudo, e m c e m anos, a psicanálise evoluiu na c a p a c i d a d e d e
conter as angústias psicóticas e d e elaborá-las, d e m o d o q u e hoje esses pacientes dispõem de melhores meios
para superar suas angústias e enfrentar as vicissitudes d a existência.

"O rubi tem horror do vermelho"


Esse é o título de u m artigo e m q u e Jacqueline Schaeffer (1986) descreve a relação q u e o histérico m a n t é m
c o m a sexualidade. A metáfora q u e utiliza é inspirada na definição q u e o mineralogista d á d o rubi: O rubi é ik

uma pedra que tem horror do vermelho. Ele absorve todas as outras cores do prisma e guarda-as para ele.
Rejeita o vermelho, eéo que nos permite ver" (p. 925). Do m e s m o m o d o q u e o rubi, a histeria "cintila", diz J .
Schaeffer: "Haverá uma melhor ilustração do que o histérico nos permite ver: seu horror pelo vermelho, pela
sexualidade, pela exibição de seu traumatismo? (...) Subterfúgio do ego que consiste em pôr adiante, em
mostrar o que é mais ameaçador e mais ameaçado, o que é estranho, detestado, o que faz mal, e agredir com
o que agride. Será que existe então, como para o rubi, algo precioso a guardar tão bem escondido?" (p. 925).

£ CRONOLOGIA DOS CONCEITOS FREUDIANOS

A b - r e a ç ã o - c e n s u r a c o n v e r s ã o - defesa - fantasia - incons< a ç ã o livre - m é t o d o catártico -


r e p r e s s ã o - resistênc a - t r a u m a t i s m o sexual real
L e r F r e u d 93

PÓS-FREUDIANOS

Neurose e psicose justapostas em Gradiva?


Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen t e m interesse n ã o a p e n a s d o p o n t o d e vista d a psicanálise aplica-
d a a u m a o b r a literária, m a s i g u a l m e n t e d o p o n t o d e vista clínico e teórico. No q u e se diz respeito à clínica,
F r e u d descreve c o m u m d o m d e o b s e r v a ç ã o i n c o m p a r á v e l u m a m p l o leque d e sintomas q u e atribui à
n e u r o s e , c o m o a inibição d o herói e m relação às m u l h e r e s e s e u delírio alucinatório e p i s ó d i c o . C o n t u d o ,
Freud fala u n i c a m e n t e d e "delírio" q u a n d o e v o c a as a l u c i n a ç õ e s d e H a n o l d e não utiliza o t e r m o " p s i c o s e " .
Mas, será q u e se p o d e falar d e p s i c o s e nesse c a s o ?
O s comentários d o s psicanalistas pós-freudianos variam q u a n t o a esse ponto. Para os psicanalistas q u e se
a t ê m a o texto de Freud, o delírio d e Hanold p r o v é m essencialmente d e u m distúrbio de consciência passagei-
ro, não-psicótico, q u e se p o d e observar e m u m a personalidade neurótica (Jeanneau, 1990). Para outros
psicanalistas pós-freudianos q u e fazem u m a leitura d e Gradiva levando e m c o n t a os últimos trabalhos d e
Freud s o b r e a n e g a ç ã o d a realidade e a clivagem d o e g o , pode-se considerar q u e as alucinações d e H a n o l d
p e r t e n c e m à parte d e seu e g o q u e n e g a u m a realidade insuportável, e n q u a n t o q u e a outra parte d o e g o a
aceita. Desse ponto de vista, a cura ocorre q u a n d o essa última aceita a realidade e t o m a a frente d a parte d o
e g o q u e a nega. A s s i m , p a r a F. L a d a m e (1991), o delírio e as a l u c i n a ç õ e s d o herói seriam típicos d a
psicopatologia q u e se encontra na adolescência, q u e qualificaríamos hoje d e u m a d e s c o m p e n s a ç ã o psicótica,
c u j o s destinos são vários. Por s u a vez, D. Q u i n o d o z (2002) evidenciou a maneira c o m o Freud nos oferece u m
m o d e l o q u e ensina ao psicanalista "como falar aparte "louca" de nossos pacientes sem ignorar o resto de sua
pessoa" (p. 60). S e g u n d o a autora, o fato d e Hanold ter u m delírio e ao m e s m o t e m p o levar u m a vida mais o u
m e n o s normal implica u m a clivagem d o e g o , c o m o se encontra hoje c o m muita frequência e m pacientes q u e
ela c h a m a d e "heterogéneos". A coexistência e m u m a m e s m a pessoa d e u m a parte q u e delira e d e u m a outra
parte q u e leva e m c o n t a a realidade c o n d u z a u m a a b o r d a g e m técnica particular pelo psicanalista. A s s i m ,
e m b o r a Z o é não se deixe levar pelo delírio d e H a n o l d , ela evita lhe dizer imediatamente: Z o é utiliza "um
discurso de duplo sentido" q u e p o d e ser c o m p r e e n d i d o pela parte delirante d e Hanold, mas t a m b é m por s u a
parte q u e leva e m conta a realidade.
Se f i z e r m o s u m a leitura d o s textos d e Freud à luz d e seus t r a b a l h o s d o último período, p o d e r e m o s obser-
var u m a j u s t a p o s i ç ã o d e m e c a n i s m o s d e c o r r e n t e s d a p s i c o s e e m e c a n i s m o s decorrentes d a n e u r o s e na
m a i o r i a d o s c a s o s clínicos q u e ele d e s c r e v e , m a s a i n d a s e m conceituar, d e s d e Estudos sobre a histeria, e m
1895, até " O h o m e m d o s l o b o s " , e m 1918. De fato, Freud m o s t r a e m Esboço de psicanálise (1940a [1938])
q u e a parte d o e g o q u e n e g a a realidade e a parte d o e g o q u e a aceita s ã o encontradas e m p r o p o r ç õ e s
variáveis n ã o a p e n a s na psicose, m a s t a m b é m na n e u r o s e e m e s m o n o indivíduo normal.
Finalmente, alguns comentadores enfatizaram a problemática d o fetichismo onipresente nesse texto
f r e u d i a n o , c o m o d e s t a c o u J . Bellemin-Noèl (1983), d o fetichismo d o pé a o d o andar d e Gradiva.

CRONOLOGIA DOS CONCEITOS FREUDIANOS

Delírio alucinatório - alu :inação - n e u r o s e - psicanálise a p l i c a d a a u m a o b r a literária - p s i c o s e


"ANALISE DE UMA FOBIA EM UM MENINO
DE CINCO ANOS (O PEQUENO HANS)"
S. FREUD (1909b)

A primeira psicanálise de criança

Esse estudo d e caso constitui o relato d o psychoanalytische und psychopathologische


p r i m e i r o t r a t a m e n t o psicanalítico d e u m a c r i a n - Forschungen, c u j a criação f o r a d e c i d i d a n o a n o
ça. A c u r a d o m e n i n o , o " p e q u e n o H a n s " , o u a n t e r i o r n o P r i m e i r o C o n g r e s s o d e Psicanálise
Herbert Graf, foi conduzida por seu pai, M a x e m S a l z b u r g . E s s a r e v i s t a efémera f o i p u b l i c a d a
G r a f , prática q u e não e r a r a r a n a época. A aná- até a véspera d a P r i m e i r a G u e r r a M u n d i a l .
lise se d e s e n v o l v e u d e j a n e i r o a m a i o d e 1908 e O q u e n o s e n s i n a esse e s t u d o d e caso? E m
foi supervisionada por F r e u d c o m base nas ano- p r i m e i r o lugar, o caso d o" p e q u e n o H a n s "
tações q u e o p a i f a z i a r e g u l a r m e n t e e l h e t r a n s - p r o p o r c i o n o u a F r e u d a " p r o v a " q u e ele t a n t o
m i t i a , m a s e l e só i n t e r v e i o p e s s o a l m e n t e u m a b u s c a v a d e s u a s hipóteses s o b r e a existência
vez, durante u m a entrevista decisiva c o m o pai d e u m a s e x u a l i d a d e n a criança e m g e r a l ; e m
d a criança. F r e u d e s c r e v e u u m r e l a t o d e s s a s e g u n d o lugar, a cura desse caso de fobia v e i o
c u r a , q u e p u b l i c o u e m 1 9 0 9 c o m a autorização ilustrar d ef o r m a magistral as possibilidades
d o p a i . E s s a contribuição d e F r e u d i n a u g u r o u terapêuticas d a psicanálise não a p e n a s n o
a n o v a r e v i s t a psicanalítica, Jahrbuch fur a d u l t o , m a s também n a criança.

B I O G R A F I A S E Hl 5TÓRIA

O " p e q u e n o Hans": uma carreira brilhante c o m o diretor de ópera


O s pais d o p e q u e n o Hans n ã o e r a m estranhos para Freud, pois s u a mãe, O l g a Graf, tinha sido analisada por
ele a l g u n s anos antes. Q u a n t o a o pai d e Hans, Max Graf, c o m p o s i t o r e crítico musical, ele c o n h e c e r a Freud
e m 1900, e s e n d o apaixonado pelas descobertas d a psicanálise, participou regularmente d a s reuniões d a
S o c i e d a d e Psicanalítica d a s quartas-feiras até 1913. Desde 1906, q u a n d o Hans tinha m e n o s d e 3 anos, Max
Graf transmitiu regularmente a Freud observações q u e fazia sobre s e u filho. Ele respondia assim a o apelo d e
Freud q u e exortara seus discípulos mais próximos a tomar notas s o b r e t u d o o q u e pudesse estar relacionado
c o m a sexualidade infantil a fim d e confirmar as hipóteses q u e sugerira e m Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade e m 1905. Freud utilizou certas observações feitas pelo pai d o p e q u e n o Hans e m dois artigos: " O
esclarecimento sexual d a s crianças" (1907c) e "Sobre as teorias sexuais d a s crianças" (1908c). Q u a n t o a o
c a s o d o " p e q u e n o Hans", p u b l i c a d o e m 1909, trata-se d e u m relato d o trabalho d e interpretação e d e elabo-
ração realizado até a eliminação parcial d o s conflitos subjacentes à o r i g e m d o s i n t o m a fóbico.
D e p o i s disso, Freud p e r d e u d e vista o m e n i n o assim c o m o seus pais, m a s e m u m p o s f á c i o a c r e s c e n t a d o
e m 1922 ele c o n t a q u e nesse a n o r e c e b e u a vista d e u m j o v e m q u e se a p r e s e n t o u c o m o o p e q u e n o H a n s
descrito p o r ele n o artigo d e 1909. Freud f i c o u feliz por saber q u e a c r i a n ç a para q u e m " s e previra t o d o tipo
d e d e s g r a ç a " (p. 198 [129]) estava muito b e m e n ã o sofria mais d e inibição. Ele s o u b e t a m b é m q u e s e u s

Continua £
96 Jean-Michel Q u i n o d o z

0 BIOGRAFIAS E HISTÓRIA • Continuação

pais t i n h a m - s e d i v o r c i a d o e q u e a m b o s t i n h a m se c a s a d o n o v a m e n t e . Finalmente, Freud s e s u r p r e e n d e u


ao constatar q u e o j o v e m n ã o t i n h a g u a r d a d o n e n h u m a l e m b r a n ç a d e s u a c u r a psicanalítica.
Herbert Graf, q u e t i n h a c o m o p a d r i n h o o c o m p o s i t o r Gustav Mahler, se tornaria mais t a r d e u m diretor d e
ó p e r a r e c o n h e c i d o . C o m a n d o u , entre outras, a Metropolitan O p e r a d e N e w York, t e n d o r e t o r n a d o à Europa
o n d e t e r m i n o u s u a carreira c o m o diretor d e G r a n d Théâtre d e G e n e b r a . M a s , apesar d a trajetória profissio-
nal brilhante, s u a v i d a pessoal foi m a r c a d a por fracassos c o n j u g a i s q u e o levaram a r e t o m a r u m a psicaná-
lise e m 1970, c o m H u g o S o l m s , e m G e n e b r a . Graf m o r r e u n e s s a c i d a d e e m 1973. C h e g o u a publicar
q u a t r o entrevistas c o m o jornalista F. Rizzo, lançadas c o m o título Memórias de um homem invisível (1972),
e m q u e se revela p u b l i c a m e n t e c o m o o " p e q u e n o H a n s " . P o r é m , n ã o t e m o m e s m o interesse p e l a psicaná-
lise q u e s e u p a i , M a x Graf, a q u e m se d e v e a p u b l i c a ç ã o p ó s t u m a d e u m artigo d e F r e u d , " P e r s o n a g e n s
p s i c o p á t i c o s n o p a l c o " (1942 [1905-1906]), q u e lhe foi p r e s e n t e a d o e m 1906.

DESCOBERTA DA OBRA

As p á g i n a s i n d i c a d a s r e m e t e m a o texto p u b l i c a d o e m S. Freud (1909b), "Analyse d e la p h o b i e d ' u m g a r ç o n


d e c i n q a n s (Le petit H a n s ) " , in Cinq psychanalyses, trad. M. B o n a p a r t e e R. L o e w e n s t e i n , Paris, PUF, 1954,
p. 93-198 [as páginas indicadas entre colchetes remetem ás OCF.R IX, p. 1-130].

A confirmação da importância Manifestações precoces da sexualidade


da sexualidade e m u m a criança pequena infantil n o " p e q u e n o H a n s "

O r e l a t o d e F r e u d contém d u a s p a r t e s : u m a F r e u d e n c o n t r a n a s anotações f e i t a s p e l o p a i
c u r t a introdução, q u e reúne a s observações f e i - a confirmação d o i n t e r e s s e p a r t i c u l a r m e n t e i n -
tas p e l o p a i d o " p e q u e n o H a n s " q u a n d o ele t e n s o d e s s e m e n i n o p o r s e u próprio c o r p o , e
t i n h a e n t r e 3 e 5 a n o s , período q u e p r e c e d e u o s o b r e t u d o p o r s e u pênis q u e e l e c h a m a d e s e u
aparecimento da fobia; e u m a segunda parte, "faz-xixi". E s s e órgão é o b j e t o d e u m a c u r i o s i -
que relata o d e s e n v o l v i m e n t o da cura, segui- d a d e i l i m i t a d a e c o n s t i t u i p a r a ele u m a fonte
d o d e comentários d e F r e u d . d e p r a z e r e d e angústia. P o r i s s o , não p a r a d e
Transcritas fielmente por seu pai, as pala- f a z e r p e r g u n t a s às p e s s o a s d e s e u convívio:
v r a s d i t a s p e l o m e n i n o s o b r e questões s e x u a i s "Papai, você também tem um faz-xixi?", i n d a g a
d e m o n s t r a r a m q u e a cabeça d o " P e q u e n o ao pai, que responde afirmativamente.M a s as
H a n s " e s t a v a t o m a d a d e preocupação p e l o s r e s p o s t a s q u e r e c e b e às v e z e s são ambíguas, s o -
e n i g m a s d a sexualidade sob todas a s suas b r e t u d o q u a n d o s e t r a t a d e questões r e l a c i o n a -
f o r m a s . Além d i s s o , o q u e s e o b s e r v o u n e s s a d a s à s u a mãe e às m e n i n a s . U m d i a , e n q u a n t o
criança p o d i a s e r g e n e r a l i z a d o a t o d a s a s c r i a n - o b s e r v a s u a mãe s e d e s p i n d o , e l a l h e p e r g u n -
ças d e s d e s e u s p r i m e i r o s a n o s , e não s e t r a t a - t a : "O que você está olhando desse jeito?" - "Eu só
v a d e u m c a s o patológico. F i n a l m e n t e , e s s a s quero ver se você também tem um faz-xixi" - "En-
observações f e i t a s e m H a n s v i n h a m f u n d a - tão, r e s p o n d e a mãe, isso quer dizer que você não
m e n t a r hipóteses q u e F r e u d f o r m u l a r a e m Três sabia?" ( 1 9 0 9 b , p . 9 6 [8]). E m s u a r e s p o s t a a m -
ensaios sobre a teoria da sexualidade s o b r e a e x i s - bígua, será q u e a mãe d e H a n s q u i s d i z e r s i m -
tência d e u m a s e x u a l i d a d e i n f a n t i l , hipóteses p l e s m e n t e q u e e l a t i n h a u m orifício p a r a u r i -
que tinha deduzido essencialmente apartir de n a r , o u d e u a e n t e n d e r q u e também t i n h a u m
lembranças s u r g i d a s d u r a n t e a análise d e p a - pênis? P a r a F r e u d , é a s e g u n d a p o s s i b i l i d a d e
cientes adultos. q u e t e m m a i s importância a o s o l h o s d o m e n i -
L e r F r e u d 139

d i f u n d i d o e mais rigoroso diz respeito à evi- bém s e t o r n o u demoníaco. S u a f o n t e é u m a f o r -


tação e n t r e s o g r a e g e n r o . D e u m p o n t o d e v i s - ça d e e n c a n t a m e n t o q u e s e a s s o c i a a p e s s o a s e m
t a psicanalítico, F r e u d c o n s i d e r a q u e e s s a u m e s t a d o d e exceção - r e i s , p a d r e s , m u l h e r e s
evitação recíproca está f u n d a d a e m u m a r e l a - m e n s t r u a d a s , a d o l e s c e n t e s , etc. -, o u a l u g a r e s ,
ção " a m b i v a l e n t e " , i s t o é, s o b r e a coexistên- e, seja q u a l f o r , o t a b u d e s e n c a d e i a a o m e s m o
c i a recíproca d e s e n t i m e n t o s t e r n o s e h o s t i s , t e m p o u m sentimento de respeito e de inquieta-
estreitamente ligados ao t e m o r d o incesto. ção. N a psicanálise, e n c o n t r a m o s p e s s o a s q u e
S e g u n d o ele, o t e m o r d o incesto associado s e i n f l i g e m t a b u s c o m o o s "selvagens": são o s n e u -
a o t o t e m q u e e n c o n t r a m o s n o s "selvagens" está róticos o b s e s s i v o s . E s s a s p e s s o a s estão c o n v e n -
p r e s e n t e também n a v i d a psíquica d o s neuró- c i d a s i n t i m a m e n t e - p o r u m a i m p i e d o s a "cons-
t i c o s , n a q u a l c o n s t i t u i u m traço i n f a n t i l : "A psi- ciência moral" - q u e s e t r a n s g r e d i r e m c e r t a s p r o i -
canálise nos mostrou que o primeiro objeto a que se bições enigmáticas, ocorrerá u m a desgraça. O
dirige a escolha sexual do menino é de natureza in- t e m o r l i g a d o à proibição não i m p e d e q u e s e o b -
cestuosa, condenável, pois esse objeto é representa- serve nos povos primitivos, d o m e s m o m o d o que
do por sua mãe ou por sua irmã, e nos mostrou tam- n o s neuróticos, u m "prazer-desejo" d e t r a n s g r e -
bém o caminho seguido pelo menino, à medida que dir o tabu, e F r e u d acrescenta q u e o desejo d e
cresce, para escapar da atração do incesto" ( p . 3 3 transgredir o proibido é altamente contagioso.
[218]). C o n s e q u e n t e m e n t e , a s fixações o u a s r e - E m seguida, F r e u d procura estabelecer u m a
gressões i n c e s t u o s a s i n c o n s c i e n t e s d a l i b i d o d e - semelhança e n t r e o s t a b u s d e t r i b o s p r i m i t i v a s
s e m p e n h a m u m papel central na neurose, d e e a q u e l e s d o s neuróticos o b s e s s i v o s , e a e n c o n -
m o d o q u e o d e s e j o i n c e s t u o s o e m relação a o s t r a n a ambivalência d e s e n t i m e n t o s . N o s p r i -
p a i s c o n s t i t u i o "complexo nuclear da neurose". A m i t i v o s , n o t a - s e u m a l t o g r a u d e ambivalência
revelação p e l a psicanálise d a importância d o n a s inúmeras prescrições q u e a c o m p a n h a m o s
t e m o r d o incesto n o p e n s a m e n t o inconsciente tabus. T e m o s e x e m p l o s n a m a n e i r a de tratar os
d o s neuróticos c h o c o u - s e c o m a i n c r e d u l i d a d e inimigos quando sua morte é acompanhada de
g e r a l , o q u e , p a r a F r e u d , é a p r o v a d a angústia prescrições d e expiação, o u n o t a b u d o s s o b e r a -
generalizada que ela desencadeia e m q u a l q u e r n o s , e m q u e o r e i v e n e r a d o p e l o s súditos é a o
indivíduo: "Somos obrigados a admitir que essa m e s m o t e m p o e n c l a u s u r a d o p o r eles e m u m sis-
resistência decorre sobretudo da profunda aversão t e m a c e r i m o n i a l c o e r c i t i v o , s i n a l d e ambivalên-
que o homem sente por seus desejos incestuosos de c i a e m relação a o e n v i a d o p r i v i l e g i a d o .
outrora, hoje completamente e profundamente repri- A presença r e g u l a r d e s e n t i m e n t o s d e
midos. Assim, não deixa de ser importante poder ambivalência n o s t a b u s c o n d u z F r e u d a e x a m i -
mostrar que os povos primitivos sentem ainda de nar mais de perto o papel que desempenham
uma maneira perigosa, a ponto de se verem obrigados a l g u n s m e c a n i s m o s psíquicos f u n d a m e n t a i s .
a se defenderem contra eles por medidas extrema- P o r e x e m p l o , ele estabelece u m p a r a l e l o e n t r e o
mente rigorosas, os desejos incestuosos destinados a s e n t i m e n t o persecutório e x p e r i m e n t a d o p o r u m
se perderem um dia no inconsciente" ( p . 3 4 [218]). p r i m i t i v o e m relação a o s e u s o b e r a n o e o delí-
r i o d o paranóico: a m b o s s e r i a m f u n d a d o s n a
ambivalência d e s e n t i m e n t o s d e a m o r e d e ódio
O tabu e a ambivalência de sentimentos q u e a criança e x p e r i m e n t a e m relação a o s e u
p a i , c o m o e l e já m o s t r a r a a propósito d o c o m -
F r e u d p r o s s e g u e e x a m i n a n d o a noção d e plexo p a t e r n o de Schreber. N o que serefere ao
t a b u , p a l a v r a polinésia c u j o s i g n i f i c a d o é d u p l o , t a b u d o s m o r t o s , F r e u d c h a m a a atenção p a r a o
p o i s e l a contém, d e u m l a d o , a i d e i a d e s a g r a d o , f a t o d e q u e a s acusações o b s e s s i v a s q u e s e i n f l i -
d e c o n s a g r a d o e, d e o u t r o , a d e i n q u i e t a n t e , p e r i - g e o s o b r e v i v e n t e após u m f a l e c i m e n t o , p o r s e
g o s o , p r o i b i d o . A s proibições l i g a d a s a o t a b u não sentir culpado pela m o r t e da pessoa amada, de-
f a z e m parte de u m sistema m o r a l o u religioso, c o r r e m i g u a l m e n t e d e u m a f o r t e ambivalência:
m a s são proibições e m s i ; o t a b u n a s c e u p r i m e i r o "Encontramos a mesma hostilidade, dissimulada por
d o m e d o d a s forças demoníacas, e d e p o i s t a m - trás de um amor terno, em quase todos os casos de
140 Jean-Michel Q u i n o d o z

fixação intensa do sentimento em uma pessoa deter- d o p o r u m a m f i n i d a d e de seres espirituais bene-


minada: é o caso clássico, o protótipo da ambivalência v o l e n t e s o u m a l - i n t e n c i o n a d o s e m relação a e l e s ,
da afetividade humana" ( p . 9 1 [267]). M a s , então, e a c r e d i t a m q u e e s s e s espíritos são responsáveis
o q u e é q u e d i s t i n g u e u m neurótico o b s e s s i v o p o r fenómenos n a t u r a i s . S e g u n d o F r e u d , a h u -
de u m h o m e m primitivo? F r e u d responde que m a n i d a d e c o n h e c e u a o l o n g o d e s u a história três
n o neurótico o b s e s s i v o a h o s t i l i d a d e e m r e l a - p r i n c i p a i s visões d o m u n d o : a anímica (mitoló-
ção a o m o r t o é i n c o n s c i e n t e , p o i s é a expressão g i c a ) , a r e l i g i o s a e a científica. A p r i m e i r a visão
d e u m a satisfação condenável p r o v o c a d a p e l o foi o animismo, que nada mais é d o que u m a
falecimento; m a s o mecanismo é diferente, pois t e o r i a psicológica; além d i s s o , o a n i m i s m o é
n o p r i m i t i v o sua hostilidade é objeto d e u m a a c o m p a n h a d o d oencantamento e d a magia,
"projeção" n o m o r t o : "O sobrevivente se defende sendo que oencantamento éaarte de influenciar
de nunca ter experimentado um sentimento hostil o s espíritos e a m a g i a c o n s t i t u i a técnica própria
em relação ao morto querido; ele acha que é a alma do ao a n i m i s m o . D e fato, a m a g i a serve para sub-
desaparecido que nutre esse sentimento que ela pro- meter o sprocessos naturais à v o n t a d e d o h o -
curará saciar durante o período de luto" ( p . 9 2 [268]). m e m , e p a r a p r o t e g e r o indivíduo c o n t r a i n i m i -
E F r e u d d e s t a c a também a "cisão" q u e o b s e r v a g o s e p e r i g o s , a o m e s m o t e m p o e m q u e l h e dá a
nos sentimentos ambivalentes, antecipando força p a r a d e r r o t a r s e u s i n i m i g o s . N e s s a visão
seus trabalhos posteriores sobre a clivagem: d o m u n d o , a sobrestimação e x c e s s i v a d o p e n -
"Aqui também as prescrições tabu têm um duplo sig- s a m e n t o o f u s c a a percepção d a r e a l i d a d e , d e
nificado, assim como os sintomas dos neuróticos: se, m o d o q u e o princípio q u e r e g e a m a g i a é o d a
de um lado, essas expressam, pelas restrições que im- onipotência d o p e n s a m e n t o : "O princípio que rege
põem, o sentimento de dor que se experimenta diante a magia, a técnica do modo de pensamento animista,
da morte de um ser amado, de outro lado deixam éoda 'onipotência das ideias" ( p . 1 2 3 [295]).
transparecer o que gostariam de ocultar, ou seja, a N o neurótico, a psicanálise e v i d e n c i o u o
hostilidade em relação ao morto à qual atribuem ago- m o d o p r i m i t i v o de f u n c i o n a m e n t o que consti-
ra um caráter de necessidade" ( p . 9 2 [268]). t u i a onipotência d o s p e n s a m e n t o s , e m p a r t i c u -
A compreensão d o t a b u e s c l a r e c e também a l a r n a n e u r o s e o b s e s s i v a , n a q u a l a sobrestimação
noção d e "consciência moral" o u "consciência de d o processo de pensamento suplanta a realida-
culpa" q u e F r e u d começa a e s c l a r e c e r . E l e d e f i n e d e , c o m o n a obsessão d o s r a t o s n o " H o m e m d o s
e s s a consciência m o r a l c o m o a percepção d e u m r a t o s " . A sobrestimação d o p o d e r q u e u m i n d i -
j u l g a m e n t o i n t e r i o r d e condenação p o r d e s e j o s víduo a t r i b u i a o s e u próprio p e n s a m e n t o , a i n -
s e n t i d o s p e l o neurótico, s e n t i m e n t o h o r r i p i l a n - da segundo F r e u d , é u m e l e m e n t o essencial d o
t e q u e não s e d i f e r e n c i a d o "mandamento de sua "narcisismo", f a s e d o d e s e n v o l v i m e n t o n a q u a l
consciência moral" l i g a d a a o t a b u n o s e l v a g e m , a s pulsões s e x u a i s já e n c o n t r a r a m u m o b j e t o ,
c u j a violência f a z e m e r g i r "um terrível sentimen- m a s esse objeto, m a s esse objeto c o n t i n u a s e n d o
to de culpa" ( p . 1 0 1 [276]). P a r a e l e , s e n t i m e n t o o e g o d o indivíduo. D e s s e m o d o , p o d e - s e c o n s i -
d e c u l p a e t e m o r d a punição f u n d a m e n t a m - s e d e r a r q u e a onipotência d o s p e n s a m e n t o s n o s
n a ambivalência d e s e n t i m e n t o s , t a n t o n o n e u - p r i m i t i v o s corresponde a u m a fase precoce d o
rótico q u a n t o n o p r i m i t i v o ; m a s o q u e d i f e r e n - d e s e n v o l v i m e n t o l i b i d i n a l - u m "narcisismo in-
c i a o p r i m e i r o d o s e g u n d o é q u e o t a b u não é telectual" - a q u e o indivíduo neurótico c h e g o u ,
u m a n e u r o s e , m a s u m a formação s o c i a l . E s s e s p o r s u a v e z , o u p o r regressão o u p o r fixação p a -
a r g u m e n t o s a n t e c i p a m a noção d e s u p e r e g o q u e tológica. F i n a l m e n t e , F r e u d r e t o m a a i d e i a d e
será d e f i n i d a 1 0 a n o s m a i s t a r d e , e m 1 9 2 3 . q u e , n o a n i m i s m o , o s espíritos e demónios q u e
p o v o a m o m u n d o são a p e n a s "projeções" d e s e n -
t i m e n t o s e p e s s o a s i m p o r t a n t e s p a r a o indiví-
Animismo, magia, onipotência
d u o e m questão, q u e e n c o n t r a s e u s p r o c e s s o s
dos pensamentos
psíquicos n o e x t e r i o r d e s i m e s m o , d a m e s m a
O animismo éparticularmente desenvolvido m a n e i r a q u e S c h r e b e r o s e n c o n t r a v a n o conteú-
nos primitivos, que imaginam om u n d o povoa- d o d e s e u delírio paranóico.
L e r F r e u d 141

O r e t o r n o infantil d o t o t e m i s m o v a s s e r i a u m a lembrança c o m e m o r a t i v a : "A re-


feição totêmica, que é talvez a primeira festa da hu-
Totem e Édipo manidade, seria a reprodução e uma espécie de festa
A p o i a n d o - s e e m t r a b a l h o s c o m o o s d o comemorativa desse ato memorável e criminoso que
etnólogo F r a z e r , q u e m o s t r a v a m q u e o a n i m a l serviu de ponto de partida para tantas coisas: orga-
t o t e m era visto e mgeral c o m o o ancestral d a nizações sociais, restrições morais, religiões" ( p . 2 0 0 -
tribo e que o t o t e m era t r a n s m i t i d o hereditaria- 2 0 1 [361 ]). T e n d o a s s i m s a c i a d o s e u ódio, o s f i -
m e n t e , F r e u d s u g e r e a hipótese d e q u e o t o t e - l h o s começaram a s e n t i r a consciência d e c u l p a
m i s m o e a exogamia t e r i a m u m a o r i g e m ances- e o desejo de sereconciliarem c o m o p a i o f e n d i -
t r a l , reforçando a i d e i a d e D a r w i n s o b r e a e x i s - do. Desse sentimento d eculpa decorreria a re-
tência d e u m a h o r d a p r i m i t i v a originária t a n t o ligião totêmica a c o m p a n h a d a d e s e u s d o i s t a -
nos p r i m a t a s c o m o n o h o m e m . A partir desse b u s f u n d a m e n t a i s , a proibição d e m a t a r o a n i -
p o s t u l a d o , F r e u d e s t a b e l e c e u m a aproximação m a l t o t e m , r e p r e s e n t a n t e d o p a i , e a proibição
entre oa n i m a l t o t e m e afobia infantil, pois nesta d o i n c e s t o . S e g u n d o F r e u d , e s s a consciência d e
última o o b j e t o c o s t u m a s e r u m a n i m a l . S e g u n - c u l p a e s t a r i a não a p e n a s n a o r i g e m d a religião
d o ele, o a n i m a l t o t e m , a s s i m c o m o o objeto d a totêmica, m a s também n a o r i g e m d e t o d a s r e l i -
fobia, seria representante d o p a i t e m i d o e respei- giões, d a s o c i e d a d e e d a m o r a l : "A sociedade re-
tado, c o m o demonstrara a fobia d ocavalo n o pousa agora sobre uma falta comum, sobre um crime
" p e q u e n o H a n s " . A presença d e s e n t i m e n t o s cometido em comum; a religião, sobre o sentimento
a m b i v a l e n t e s e m relação a o p a i n a s d u a s s i t u a - de culpa e sobre o arrependimento; a moral, sobre as
ções p e r m i t e a F r e u d c h e g a r à conclusão d e q u e necessidades dessa sociedade, de um lado, e sobre a
o t o t e m e o c o m p l e x o d e Édipo têm u m a m e s - necessidade de expiação engendrada pelo sentimento
m a o r i g e m : "Se o animal totem nada mais é do que de culpa, de outro" ( p . 2 0 5 [365]).
o pai, temos de fato o seguinte: os dois mandamentos
capitais do totemismo, as duas prescrições tabu que
formam como que seu núcleo, a saber, a proibição de O sacrifício totêmico na origem das religiões
matar o totem e a proibição de casar com uma mu- F r e u d v a i m a i s l o n g e e m o s t r a q u e a religião
lher pertencente ao mesmo totem, coincidem quanto c o n s t i t u i a expressão e x t r e m a d a ambivalência
ao conteúdo com os dois crimes de Édipo, que matou c o m relação a o p a i : d e f a t o , a eliminação d o p a i -
com o pai e casou com a mãe, e com os dois desejos e s u a incorporação p e l o s irmãos p a r a q u e t o r -
primitivos da criança que, por não serem suficiente- nassem semelhantes ao pai - teria sido sucedida
mente reprimidos ou por despertarem, talvez consti- d e u m a exaltação d o p a i m o r t o , i d e a l i z a d o e
tuam o núcleo de todas as neuroses" ( p . 1 8 6 [349]). t r a n s f o r m a d o e m d e u s d a t r i b o . A s s i m , a l e m -
brança d o p r i m e i r o g r a n d e a t o s a c r i f i c i a l e s t a r i a
p e r p e t u a d a d e m a n e i r a indestrutível, e o s vários
A refeição totêmica e o assassinato do pai desdobramentos posteriores d o pensamento re-
P r o s s e g u i n d o s u a investigação a c e r c a d e l i g i o s o s e r i a m u m a f o r m a d e racionalizá-lo. E l e
o u t r a s características d o t o t e m i s m o , p a r t i c u l a r - vê a demonstração d i s s o n o c r i s t i a n i s m o , e m q u e
m e n t e a s u p o s t a existência d e u m a "refeição C r i s t o s a c r i f i c o u s u a própria v i d a p a r a r e d i m i r
totêmica" originária, F r e u d lança u m a hipóte- s e u s irmãos d o p e c a d o o r i g i n a l : "No mito cristão,
se a u d a c i o s a s e g u n d o a q u a l o p a i d a h o r d a p r i - o pecado original resulta incontestavelmente de uma
m i t i v a teria sido m o r t o e d e v o r a d o p o r seus fi- ofensa contra o Deus Pai" ( p . 2 3 0 [374]).
l h o s n a o r i g e m d o s t e m p o s , e m u m a refeição Para concluir, F r e u d seindaga sobre a m a -
s a c r i f i c i a l : "Um dia, os irmãos expulsos se reuni- n e i r a c o m o s e p e r p e t u o u d u r a n t e milénios a
ram, mataram e comeram o pai, o que pôs fim à horda consciência d e c u l p a l i g a d a à m o r t e d o p a i , à
paterna. Reunidos, eles se tornaram valentes e pude- r e v e l i a d e indivíduos e d e gerações. E l e supõe
ram realizar o que cada um, tomado individualmen- q u e e x i s t a u m a "alma do grupo" o u "psique de
te, teria sido incapaz de fazer" ( p . 1 9 9 [361 ]). A c e - massa" análoga à "alma individual" o u "psique
rimónia d e refeição totêmica d a s t r i b o s p r i m i t i - individual" q u e s e p e r p e t u a d e u m a geração a
142 Jean-Michel Q u i n o d o z

o u t r a p a r a além d a "comunicação direta e da tra- teu'" ( G o e t h e , Faust I, v . 6 8 2 - 6 8 3 ; L a N u i t ( m o -


dição". E s s e p r o c e s s o a i n d a é p o u c o c o n h e c i - nólogo d e F a u s t o ) ( p . 2 2 2 [379]). F r e u d t e r m i -
d o : "Em geral, a psicologia de grupo se preocupa n a s u a o b r a e s t a b e l e c e n d o u m a distinção e n -
muito pouco em saber por que meios se dá a conti- t r e o neurótico e o p r i m i t i v o : "No neurótico, diz
nuidade da vida psíquica das sucessivas gerações. e l e , a ação é completamente inibida e totalmente
Essa continuidade é assegurada em parte pela here- substituída pela ideia. O primitivo, ao contrário,
ditariedade das disposições psíquicas que, no entan- não conhece entraves a ação; suas ideias transfor-
to, precisam ser estimuladas por certos acontecimen- mam-se imediatamente em atos; poderíamos dizer
tos da vida individual para se tornarem eficazes. inclusive que o ato substitui a ideia, e por isso (...)
Assim, é preciso interpretar o verso do poeta: 'Aquilo podemos arriscar esta afirmação: 'No princípio era
que herdaste de teus pais conquista-o para fazê-lo o ato'" ( p . 2 2 5 - 2 2 6 [382]).

PÓS-FREUDIANOS

Uma obra visionária q u e p r o v o c o u as críticas


E m b o r a esta o b r a t e n h a p r o v o c a d o i n ú m e r a s críticas d e s d e s e u l a n ç a m e n t o , tanto p o r parte d o s a n t r o p ó -
l o g o s c o m o d o s psicanalistas, o s d e b a t e s a i n d a hoje estão l o n g e d e se e s g o t a r e m , c o m o revelam as
citações a s e g u i r extraídas d e u m a literatura particularmente a b u n d a n t e s o b r e a q u e s t ã o .

Críticas das hipóteses etnológicas


E m 1920, o e t n ó l o g o Kroeber foi u m d o s primeiros a levantar o b j e ç õ e s e m relação a Totem e tabu. Ele contes-
tou tanto s u a m e t o d o l o g i a q u a n t o suas conclusões teóricas, e rejeitou a hipótese d e u m a o r i g e m sociorreligiosa
d a civilização s u g e r i d a p o r Freud. C o n t u d o , mostrou-se aberto à utilização d a s descobertas d a psicanálise na
pesquisa a n t r o p o l ó g i c a . Outros críticos se voltaram contra a própria p e s s o a d e Freud, c o m o D. Freeman
(1967), para q u e m a teoria d o assassinato original era essencialmente a expressão d a ambivalência d e Freud
e m relação à figura d e s e u pai. De maneira geral, as posições t o m a d a s por Freud f o r a m contestadas não
apenas e m razão d o " d a r w i n i s m o social" e m q u e se inspirou, m a s t a m b é m p o r q u e a maior partes d o s espe-
cialistas rejeitou as b a s e s etnológicas e antropológicas e m q u e se apoia
Totem e tabu.

A filogênese, uma questão polémica


U m a das principais críticas às teses apresentadas por Freud e m Totem e tabu partiu d o s próprios psicanalis-
tas, e vale a p e n a examiná-la aqui, pois, d e p o i s d e ter lido o conjunto d a o b r a d e Freud, estou c o n v e n c i d o d e
q u e ele continua s e n d o u m precursor iluminado por ter m o s t r a d o a importância d a transmissão filogenética.
Essa questão controversa diz respeito à hipótese d a transmissão d e traços m n é s i c o s por g e r a ç õ e s sucessi-
vas, d e s d e as o r i g e n s d a h u m a n i d a d e , c o n c e p ç ã o a q u e Freud recorre na maior parte d e seus trabalhos. De
fato, ele distingue o p r o c e s s o d e desenvolvimento individual d a infância à idade adulta - a o n t o g ê n e s e - e o
processo evolutivo d o g é n e r o h u m a n o , d a s origens aos nossos dias - a filogênese. S e g u n d o ele, traços d e
acontecimentos traumáticos ocorridos a o longo d a história d a h u m a n i d a d e ressurgiriam e m c a d a indivíduo e
contribuiriam para estruturar a personalidade. Por exemplo, e m Totem e tabu ele c o n s i d e r a q u e o c o m p l e x o
de Édipo e o s e n t i m e n t o d e c u l p a d e c a d a indivíduo estariam f u n d a d o s e m elementos pessoais, ligados ao
contexto familiar, a o s quais se acrescentaria o traço "histórico" d o assassinato d o pai d a h o r d a primitiva,
remontando à o r i g e m d a h u m a n i d a d e .
Ainda hoje, n u m e r o s o s psicanalistas rejeitam a hipótese d e u m a transmissão filogenética q u e implicaria ao
m e s m o t e m p o a biologia e a genética. Alguns apelam a argumentos d e o r d e m técnica, dizendo q u e , e m relação
à s u a prática cotidiana, p o u c o importa a origem das pulsões e d o s conflitos: qualquer q u e seja a parte d o
adquirido e a parte d o inato, isso não m u d a e m nada a interpretação, d e m o d o q u e , para eles, essa distinção é
puramente teórica. Outros apelam a u m argumento d e o r d e m psicológica, e afirmam q u e Freud recorre a esse
tipo d e explicação filogenética sempre q u e sua c o m p r e e n s ã o pela ontogênese t o p a c o m a "rocha biológica",
c o m o ele próprio reconhece e m seus m o m e n t o s d e dúvida. Contudo, estou convencido d a intervenção d e u m a

Continua Q
L e r F r e u d 143

£ Continuação

causalidade psíquica pela filogênese, c o m o sustenta, entre outros, D. Braunschweig (1991), ainda q u e não se
d i s p o n h a d e conhecimentos suficientes no q u e se refere às bases biológicas sobre as quais se efetua u m a
transmissão filogenética. Estou certo d e q u e Bion abriu u m c a m i n h o na psicanálise ao introduzir a n o ç ã o d e
"preconcepção", q u e ele entende c o m o u m a capacidade inata d e ter experiências psicológicas. A p r e c o n c e p ç ã o
ainda "não experimentada" espera unir-se a u m a "realização", a partir d a qual se torna u m a " c o n c e p ç ã o " .
H á a l g u m a s d é c a d a s , contata-se u m interesse c r e s c e n t e p e l o s t r a b a l h o s psicanalíticos p ó s - f r e u d i a n o s
a c e r c a d e u m a s p e c t o particular d a t r a n s m i s s ã o , a t r a n s m i s s ã o t r a n s g e r a c i o n a l , f e n ó m e n o o b s e r v a d o c o m
f r e q u ê n c i a e m clínica. Essa t r a n s m i s s ã o se d e s e n v o l v e através d e p r o c e s s o s psíquicos d e identificação
i n c o n s c i e n t e , p a s s a n d o s u c e s s i v a m e n t e d e u m a g e r a ç ã o a outra, e t o m a n d o c a m i n h o s diferentes d a q u e -
les p o s t u l a d o s na f o r m a d e t r a n s m i s s ã o filogenética.
De resto, a c h o q u e seria desejável q u e os psicanalistas se i n s p i r a s s e m i g u a l m e n t e e m f e n ó m e n o s d e
t r a n s m i s s ã o d a pulsão q u e se verifica n o s animais, c o m o Freud s u g e r e e m 1939 e m Moisés e o monoteísmo.
D e s s e p o n t o d e vista, estou c o n v e n c i d o d e q u e os psicanalistas c o n t e m p o r â n e o s tirariam proveito d e u m
m e l h o r c o n h e c i m e n t o d a s d e s c o b e r t a s recentes d a e t n o l o g i a q u e n ã o d o m i n a m suficientemente, e q u e
e s s e s n o v o s d a d o s c o n t r i b u i r i a m para a p r o x i m a r disciplinas c o m p l e m e n t a r e s q u e t ê m c o m o objetivo c o -
m u m c o n h e c e r melhor a natureza h u m a n a (R. S c h a e p p i , 2 0 0 2 ) .

Por uma psicologia psicanalítica


A despeito d e seus aspectos contestados, há fortes razões para se considerar Totem e tabu c o m o o p o n t o d e
partida de u m a verdadeira antropologia psicanalítica e de u m a etnopsicanálise. Várias obras t e s t e m u n h a m a
riqueza desses desenvolvimentos. A. Kardiner (1939), psicanalista americano, procurou conciliar psicanálise e
antropologia social, e elaborou a noção de "personalidade d e base", q u e c o n c e b e u c o m o u m a integração d e
n o r m a s sociais no nível subconsciente. G. Roheim (1950), antropólogo e psicanalista húngaro, foi o primeiro a
entrar nesse terreno ao introduzir na pesquisa antropológica não apenas a noção de complexo d e Édipo, m a s
t a m b é m o conjunto de c o n c e p ç õ e s psicanalíticas. Ele analisou os sonhos dos indígenas, seus j o g o s , seus
mitos, suas crenças, t o m a n d o - s e o pioneiro dessa disciplina. Se, para G. Roheim, a universalidade d o s m e c a -
nismos psíquicos e m todas as culturas não deixa dúvida, outros autores compartilham seus pontos d e vista,
c o m o W. Múnsterberger (1969), Hartmann, Kris e Loewenstein, assim c o m o R Parin e F. Morgenthaler (in
Múnsterberger, 1969). Em c o m p e n s a ç ã o , antropólogos c o m o Malinowski e M. Mead p õ e m e m dúvida a univer-
salidade d o complexo de Édipo, mas esse t e m a ainda é controverso. Quanto a G. Devereux (1972), ele adota
u m a posição "complementarista": para ele, a psicanálise e a antropologia apresentam pontos de vista diferen-
tes m a s complementares sobre u m a m e s m a realidade, s e n d o q u e u m a a observa de dentro e a outra de fora.
Os desenvolvimentos teóricos d e Devereux culminaram e m u m a clínica etnopsicanalítica q u e leva e m conta as
particularidades contratransferenciais na prática d a psicanálise transcultural.

CRONOLOGIA DOS CONCEITOS FREUDIANOS

A m b i v a l ê n c i a - amor-c dio - a n i m i s m o - c o n s c i ê n c i a moral - m a g i a - assassinato d o pai - f i l o g ê n e s e -


s e n t i m e n t o d e c u l p a - a b u d o incesto - o n i p o t ê n c i a d o p e n s a m e n t o - t r a n s m i s s ã o filogenética
L e r F r e u d 157

terior (indiferente o u desprazeroso), mas en- N o que se refere a o emprego d a palavra


t r e u m "ego de prazer" q u e i n c l u i o s o b j e t o s q u e "ódio", e l a não t e m u m a relação tão íntima c o m
t r a z e m a satisfação e u m mundo externo q u e s e o prazer sexual quanto o amor, e apenas a re-
t o r n a u m a f o n t e d e d e s p r a z e r , p o r ser perce- lação c o m o d e s p r a z e r p a r e c e d e t e r m i n a n t e :
b i d o c o m o e s t r a n h o : "O ego-realidade do início, "O ego odeia, detesta, persegue com a intenção de
que distinguiu interior e exterior com a ajuda de destruir todos os objetos que são para ele fontes de
um bom critério objetivo, transforma-se assim em desprazer, que significam uma frustração da satis-
um ego de p r a z e r purificado que situa o caráter fação sexual ou da satisfação das necessidades de
de prazer acima de qualquer outro. O mundo ex- conservação" ( p . 4 0 [183]). S e g u n d o F r e u d , a o r i -
terno se decompõe para o ego em uma parte 'pra- g e m d o ódio d e v e r i a s e r b u s c a d a n a l u t a d o
zer , que ele incorporou, e um resto que lhe é estra- e g o p e l a autoconservação, i s t o é, n o ódio s e n -
nho" ( p . 3 7 [180-181]). E m o u t r a s p a l a v r a s , a t i d o e m relação a o o b j e t o q u e não s a t i s f a z a s
intervenção d o o b j e t o n a f a s e d o n a r c i s i s m o pulsões d e autoconservação, m a i s d o q u e n a
primário i n s t a l a então o "odiar" q u e s e opõe a v i d a s e x u a l . Lá, n o nível d a autoconservação,
"amar": "O exterior, o objeto, o odiado seriam idên- se e n c o n t r a r i a , s e g u n d o F r e u d , a o r i g e m d o
ticos no início. Quando mais tarde o objeto se reve- c o n f l i t o d e ambivalência, p a r t i c u l a r m e n t e m a -
la como uma fonte de prazer, ele é amado, mas tam- nifesta nas neuroses.
bém incorporado ao ego, de modo que, para o ego
de prazer purificado, o objeto coincide de novo com
o estranho e o odiado" ( p . 3 8 [181]). A génese do amor e do ódio ao
longo do desenvolvimento

O amor, expressão | a tendência sexual total N a o r i g e m , d i z F r e u d , o e g o é c a p a z d e sa-


t i s f a z e r e m p a r t e s u a s pulsões auto-eróticos, e ,
Q u a n d o o objeto é fonte de prazer, d i z e m o s p o r t a n t o , o a m o r é narcísico. D e p o i s , o e g o s e
então q u e "amamos" o o b j e t o , e q u a n d o e l e é f o n - d i r i g e p a r a o s o b j e t o s : "Na origem, o amor é
t e d e p r a z e r nós o "odiamos". M a s , i n d a g a - s e narcísico, pois ele se estende aos objetos que foram
F r e u d , será q u e s e p o d e d i z e r q u e u m a pulsão, incorporados ao ego ampliado, e expressa a tendên-
n a l i n g u a g e m c o r r e n t e , "ama" o o b j e t o ? C e r t a - cia motriz do ego a esses objetos na medida em que
m e n t e não, r e s p o n d e e l e , a s s i m c o m o não s e eles são fontes de prazer" ( p . 4 1 [183]). F r e u d d e s -
p o d e d i z e r q u e u m a pulsão "odeia" o o b j e t o . E creve e m s e g u i d a a s fases p r e l i m i n a r e s d o
p o r i s s o , i n s i s t e a i n d a , q u e "os termos 'amor' e a m o r , começando p e l a p r i m e i r a f i n a l i d a d e , q u e
'ódio' não devem ser utilizados para a relação das é incorporar o u devorar, f a s e a m b i v a l e n t e p o r
pulsões com seus objetos, mas reservados para as re- excelência e m q u e o indivíduo não s a b e s e d e s -
lações do ego-total com os objetos" ( p . 3 9 [182]). N o trói o o b j e t o p o r a m o r o u p o r ódio; d e p o i s , v e m
máximo p o d e m o s u t i l i z a r o s t e r m o s "eu gosto, a f a s e pré-genital sádica a n a l e , f i n a l m e n t e , a
eu aprecio" n o q u e r e f e r e a o s o b j e t o s q u e s e r v e m f a s e a n a l : "Foi só com a organização genital que o
p a r a a conservação d o e g o (alimentação, e t c ) . amor se tornou o oposto do ódio" ( p . 4 2 [184]). E l e
Q u a l é então o e s t a t u t o d a p a l a v r a "amar" c o n c l u i q u e o ódio é d e f i n i t i v a m e n t e m a i s a n -
q u a n d o ela é p l e n a m e n t e realizada? Para tigo que o a m o r e que o a m o r aparece depois,
F r e u d , oa m o r aparece i n e q u i v o c a m e n t e n a fase q u a n d o o ego setorna u m ego total.
g e n i t a l , q u a n d o s e e s t a b e l e c e a síntese d a s É i s s o q u e e x p l i c a também a n a t u r e z a d a
pulsões p a r c i a i s d e n t r o d e u m "ego-total" ( p . 3 9 ambivalência, i s t o é, d o ódio j u s t a p o s t o a o
[182]): "O emprego mais adequado da palavra 'amar' a m o r e m relação a o m e s m o o b j e t o : "O ódio
encontra-se na relação do ego com seu objeto sexual: mesclado ao amor provém em parte de fases preli-
isso nos ensina que o emprego dessa palavra para minares do amor, não totalmente superadas, e em
uma tal relação só pode começar com a síntese de parte sefunda na recusa das pulsões do ego, reações
todas as pulsões parciais da sexualidade sob o pri- que, nos frequentes conflitos entre os interesses do
mado dos órgãos genitais e a serviço da função de ego e os do amor, podem invocar motivos reais e
reprodução" ( p . 4 0 [182]). atuais. Assim, nos dois casos, esse elemento de ódio
158 Jean-Michel Q u i n o d o z

encontra sua fonte nas pulsões de conservação do transformação. E l e t e r m i n a e s s e t r a b a l h o m e n -


ego" ( p . 4 2 [184]). F i n a l m e n t e , F r e u d e v o c a o c i o n a n d o a p o s s i b i l i d a d e d e q u e o ódio a s s u -
s e n t i m e n t o d e ódio q u e p o d e a p a r e c e r d e p o i s m a u m caráter erótico q u a n d o r e g r e s s a à f a s e
d e u m a r u p t u r a d e relação d e a m o r , d e s t a c a n - sádica, a n u n c i a n d o a s s i m f u t u r o s d e s e n v o l -
d o q u e n e s s e s c a s o s "temos então a impressão de v i m e n t o s sobre o s a d o m a s o q u i s m o c o m o t a m -
ver o amor se transformar em ódio" ( p . 4 3 [184]), bém s o b r e o c o n f l i t o f u n d a m e n t a l e n t r e pulsão
m a s não e x p l i c a m e l h o r o q u e e n t e n d e p o r e s s a d e v i d a e pulsão d e m o r t e .

• "REPRESSÃO" (1915d)
As p á g i n a s i n d i c a d a s r e m e t e m a o texto p u b l i c a d o e m S. Freud (1915d), "Le refoulement", t r a d . J . Laplanche
e J.-B. Pontalis, in Metapsychologie, Paris, Gallimard, 1968 , p. 45-63 [as páginas indicadas entre colchetes
remetem ás OCF.P, XIII, p. 187-201].

O papel da repressão cada u m sofre u m destino diferente. N o que diz


r e s p e i t o à representação, e x i s t e s e g u n d o F r e u d
U m a pulsão está e s s e n c i a l m e n t e e m b u s c a u m a repressão originária: "Primeira fase da re-
d o p r a z e r d a satisfação, d e a c o r d o c o m a " p r i - pressão que consiste em que o representante psíquico
m e i r a t e o r i a d a s pulsões" à q u a l F r e u d a d e r e e m (representante-representação) da pulsão se depara
1 9 1 5 . M a s , e m s u a b u s c a d e p r a z e r , a pulsão s e com a recusa de ser assumido no consciente" ( p . 4 8
c h o c a c o m resistências q u e t e n t a m torná-lo i n e - [191]). P o r e x e m p l o , n o p e q u e n o H a n s , a a n -
f i c a z . E n t r e e s s a s resistências, a repressão o c u - gústia d e s e r m o r d i d o p e l o c a v a l o o c u l t a a a n -
p a u m l u g a r p a r t i c u l a r p o r se t r a t a r d e u m c o m - gústia i n c o n s c i e n t e d e s e r c a s t r a d o p e l o p a i , s e n -
p r o m i s s o e n t r e a f u g a - impossível e m f a c e d e d o a i d e i a d e " p a i " a representação r e p r i m i d a .
u m a pulsão v i n d a d e d e n t r o - e a condenação. A s e g u n d a f a s e d a repressão, a repressão p r o -
P o r q u e u m a pulsão d e v e r i a s e r r e p r i m i d a , v i s - p r i a m e n t e d i t a , "refere-se aos derivados psíquicos
t o q u e e l a está e m b u s c a d o p r a z e r d a s a t i s f a - do representante reprimido, ou então essas cadeias
ção? P o r q u e , e m b o r a a satisfação d a pulsão p r o - de pensamento que, vindas de outra parte, estabele-
d u z a o p r a z e r e m u m a p a r t e d o p s i q u i s m o , esse ceram relações associativas com ele" ( p . 4 8 [191]).
p r a z e r p a r e c e inconciliável c o m a s exigências d e A repressão r e f e r e - s e , p o r t a n t o , não a p e n a s à
u m a o u t r a p a r t e d o p s i q u i s m o , e é, então, q u e representação p r o p r i a m e n t e d i t a , m a s também
intervém o "julgamento pela condenação" q u e d e - a o s derivados d o i n c o n s c i e n t e , i s t o é, às p r o d u -
s e n c a d e i a a repressão: "A essência da repressão ções e m conexão, m a i s o u m e n o s a f a s t a d a s d o
consiste exatamente nisto: afastar e manter à distân- q u e é r e p r i m i d o , q u e p o r s u a v e z são o b j e t o d e
cia do consciente" ( p . 4 7 [190]). P o r t a n t o , a r e p r e s - d e f e s a s . D e s s e p o n t o d e v i s t a , o s s i n t o m a s são
são não é u m m e c a n i s m o d e d e f e s a p r e s e n t e n a igualmente derivados d o r e p r i m i d o . M a s a re-
o r i g e m , m a s s e i n s t a l a só d e p o i s q u e s e e s t a b e - pressão d a pulsão não d e s a p a r e c e , l o n g e d i s s o ,
l e c e a separação e n t r e c o n s c i e n t e e i n c o n s c i e n t e . continua a seorganizar n o inconsciente, a pro-
C o m e s s a separação, F r e u d lança a hipótese d e d u z i r d e r i v a d o s e "a se proliferar na obscuridade"
que o u t r o s m e c a n i s m o s d e defesa contra a s ( p . 4 9 [192]). E s s e p r o c e s s o contínuo t e m c o m o
pulsões estão a t i v o s , c o m o a transformação e m consequência q u e a repressão p r o p r i a m e n t e d i t a
s e u contrário o u o r e t o r n o à própria p e s s o a . é u m a repressão a posteriori, e x p l i c a F r e u d . P o r
e x e m p l o , n o p e q u e n o H a n s , a angústia d o c a -
valo, a incapacidade d esair n a r u a o u a l e m -
O destino da representação
brança d a q u e d a d o c a v a l o d e u m c o l e g a , e t c ,
F r e u d r e t o m a a q u i , s e m mencioná-las e x p l i - são t o d o s d e r i v a d o s d o r e p r i m i d o .
c i t a m e n t e , a s hipóteses q u e lançara e m s e u s a r - Esses derivados inconscientes p o d e m ter li-
t i g o s d e 1894 e 1896 s o b r e as n e u r o p s i c o s e s d e v r e a c e s s o à consciência q u a n d o estão s u f i c i e n -
defesa. Ele d i s t i n g u e dois e l e m e n t o s n o repre- t e m e n t e a f a s t a d o s d o conteúdo r e p r i m i d o . É
s e n t a n t e psíquico d a pulsão q u e p o d e m s o f r e r então q u e o p s i c a n a l i s t a c o n s e g u e circunscrevê-
a repressão: a representação e o a f e t o , s e n d o q u e l o s através d a s associações l i v r e s d o p a c i e n t e .
L e r F r e u d 159

A s características < a repressão O d e s t i n o d o representante-representação


d a pulsão é s e r a f a s t a d o d o c o n s c i e n t e , c o m o
S e g u n d o F r e u d , a repressão t r a b a l h a "de v i m o s anteriormente, mas o do fator quantita-
maneira inteiramente individual" ( p . 5 2 [194]), t r a - t i v o d o r e p r e s e n t a n t e d a pulsão p o d e s e r t r i p l a :
t a n d o c a d a d e r i v a d o psíquico e m p a r t i c u l a r . a pulsão p o d e s e r r e p r i m i d a e não d e i x a r n e -
Além d i s s o , a repressão é e x t r e m a m e n t e mó- n h u m traço, p o d e s e m a n i f e s t a r c o m u m a c o l o -
v e l e exige u m gasto de energia incessante, de ração q u a n t i t a t i v a , o u p o d e s e t r a n s f o r m a r e m
m o d o q u e dependerá d o f a t o r quantitativo a angústia. D a d o q u e a f i n a l i d a d e d a repressão é
manutenção n o i n c o n s c i e n t e d o conteúdo psí- e v i t a r o d e s p r a z e r , "o resultado disso é que o desti-
q u i c o r e p r i m i d o d a pulsão, o u s u a reaparição no do q u a n t u m de afeto pertencente ao represen-
n o c o n s c i e n t e : "Mas o fator quantitativo se mos- tante é de longe maior que o da representação: é ela
tra decisivo para o conflito: desde que a representa- que decide o julgamento que fazemos sobre o proces-
ção chocante em seu conteúdo se reforça além de um so de repressão" ( p . 5 6 [196]). F r e u d o b s e r v a e m
certo grau, o conflito se torna atual, e é precisamen- s e g u i d a q u e a repressão é a c o m p a n h a d a d e f o r -
te a reativação que causa a repressão" ( p . 5 4 [195]). mação d e s u b s t i t u t o s e d e s i n t o m a s e s e p e r -
g u n t a s e e s t e s últimos s e r i a m o p r o d u t o d e u m
retorno d o reprimido por vias m u i t o diferen-
O d e s t i n o d o afet<
t e s . E l e t e r m i n a c o m u m a demonstração m u i t o
D e p o i s de ter m o s t r a d o o destino d a repre- e s c l a r e c e d o r a p a r a a prática clínica d e s c r e v e n -
sentação, F r e u d m o s t r a a g o r a o q u e s o f r e o d o e m d e t a l h e a ação d a repressão n a s três m a i o -
afeto. S e g u n d o ele, o afeto - o u , m a i s precisa- r e s n e u r o p s i c o s e s . N a h i s t e r i a d e angústia ( o u
m e n t e , o "quantum de afeto" c o n s t i t u i o e l e m e n - fobia), assim c o m o na fobia d eanimais, a re-
t o q u a n t i t a t i v o d a pulsão s u b m e t i d a à r e p r e s - pressão f r a c a s s a , e n o máximo c o n s e g u e s u b s -
são: "Ele corresponde à pulsão na medida em que t i t u i r a representação p o r u m a o u t r a , s e m c o n -
esta se separa da representação e encontra uma ex- s e g u i r s u p r i m i r a angústia. N a v e r d a d e i r a h i s -
pressão correspondente à sua quantidade nos pro- t e r i a d e conversão, a repressão c o n s e g u e e l i m i -
cessos que são sentidos sob a forma de afetos. Daqui n a r c o m p l e t a m e n t e o quantum d e a f e t o , o q u e
em diante, na descrição de um caso de repressão, será e x p l i c a a " b e l a indiferença histérica"; m a s é a o
preciso buscar separadamente o que advém da re- preço d e i m p o r t a n t e s formações d e s u b s t i t u t o s
presentação por ter sido reprimido e o que advém da sintomáticos q u e a t r a e m p o r condensação a t o -
energia pulsional associada a ela" ( p . 5 5 [195]). S e talidade d o mvestimento. Finalmente, na n e u -
r e t o m a m o s o e x e m p l o d op e q u e n o H a n s , o r o s e o b s e s s i v a , é a h o s t i l i d a d e e m relação à p e s -
a f e t o s u b m e t i d o à repressão é o i m p u l s o h o s t i l s o a a m a d a q u e é r e p r i m i d a , m a s a repressão
d a criança e m relação a o s e u p a i s , d e s e j o a s s a s - não p e r s i s t e e o a f e t o r e t o r n a e m f o r m a d e i n -
s i n o q u e p e r t e n c e a o c o m p l e x o d e Édipo. termináveis auto-recrirninações.

EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS FREUDIANOS

O q u e é u m afeto?
Q u a n d o se procura definir o q u e é u m afeto, logo se t o p a c o m problemas complexos, pois esse é u m t e r m o q u e
a s s u m e significados muito diversos e m psicanálise. O afeto é u m a noção presente d e s d e o início e m Freud, e
ele a utiliza e m duas acepções principais: e m sentido amplo, o afeto designa u m estado emocional e m geral, d e
qualidade e intensidade variáveis, enquanto e m sentido estreito o afeto constitui a expressão quantitativa d a
pulsão, e m u m a teoria q u e leva e m conta a intensidade d a energia pulsional. É e m Estudos sobre a histeria
(1895d) q u e o afeto adquire u m a importância central, na m e d i d a e m q u e Freud atribui a origem d o s sintomas a

Continua Q
160 Jean-Michel Q u i n o d o z

H EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS FREUDIANOS • Continuação

u m "afeto imobilizado" q u e não p ô d e ser descarregado. A finalidade d a ação terapêutica é a descarga dessa
e m o ç ã o c o m a volta d e u m acontecimento traumático esquecido, descarga q u e constitui a ab-reação. Desde
então, Freud atribui dois destinos diferentes à representação e ao afeto, e destacará a d i m e n s ã o e c o n ó m i c a d o
afeto referindo-se a "quantum d e afeto" e m Artigos sobre metapsicologia e m 1915.
Posteriormente, a n o ç ã o d e afeto terá u m a extensão mais a m p l a , p a s s a n d o a e n g l o b a r u m a g r a n d e varie-
d a d e d e afetos, c o m o a a n g ú s t i a , o luto, o s e n t i m e n t o d e c u l p a , o a m o r e o ó d i o , e t c , s o b r e t u d o a partir d e
Inibições, sintomas e ansiedade (1926d). A p e n a s a l g u n s d e s s e s efeitos serão o b j e t o d e e s t u d o s mais
d e t a l h a d o s p o r parte d e F r e u d , q u e estabelecerá u m a estreita relação entre eles e o d e s e n v o l v i m e n t o d o
ego, s e n d o q u e p a r a ele o e g o é v e r d a d e i r a m e n t e o lugar d o afeto. C o n t u d o , se a n o ç ã o d e afeto adquiriu
u m a a c e p ç ã o q u e ultrapassa a m p l a m e n t e a perspectiva energética c o m p r e e n d i d a n a e x p r e s s ã o " q u a n t u m
d e afeto", ela a i n d a está l o n g e d e ser explicitada n a teoria psicanalítica atual.

• " O I N C O N S C I E N T E " (1915e)

As p á g i n a s i n d i c a d a s r e m e t e m a o texto p u b l i c a d o e m S. Freud (1915e), " U l n c o n s c i e n t " , t r a d . J . Laplanche


e J.-B. Pontalis, in Metapsychologie, Paris, G a l l i m a r d , 1968, p. 65-121 (os subtítulos a s e g u i r s ã o os
m e s m o s utilizados p o r Freud [as páginas indicadas entre colchetes remetem ás OCF.R XIII, p. 203-242].

Justificação d o inconsciente tópico" (topos, t e r m o g r e g o q u e s i g n i f i c a l u g a r ,


p o r e x e m p l o , geográfico). M a s F r e u d d e i x a c l a -
F r e u d d e d i c a e s t e capítulo a d e m o n s t r a r a r o q u e e s s a localização e m d i v e r s a s regiões psí-
existência d o i n c o n s c i e n t e , a f i r m a n d o q u e a p s i - q u i c a s não t e m n a d a a v e r c o m a a n a t o m i a .
canálise e v i d e n c i o u p r o c e s s o s psíquicos q u e são O que leva F r e u d a introduzir o conceito de
"inconscientes em si", e q u a n d o são p e r c e b i d o s pré-consciente ( P c s ) é o f a t o d e q u e u m "ato psíqui-
p e l a consciência p o d e - s e c o m p a r a r s u a p e r c e p - co" p a s s a p o r s u a s f a s e s a n t e s d e s e t o r n a r v e r -
ção à percepção d o m u n d o e x t e r n o p e l o s órgãos d a d e i r a m e n t e consciente. Ele observa d e fato
dos sentidos. Ele l e m b r a igualmente que o p r o - q u e e n t r e e s s a s d u a s f a s e s i n t e r c a l a - s e "uma espé-
c e s s o d e repressão não c o n s i s t e e m s u p r i m i r u m a cie de prova ( c e n s u r a ) " ( p . 7 6 [212]); a p r i m e i r a
representação d a pulsão, m a s e m i m p e d i r q u e censura seopera entre o inconsciente e o cons-
ela se t o r n e consciente, d e m o d o q u e c o n t i n u a c i e n t e e p o d e i m p e d i r o a t o psíquico d e " s e t o r -
p r o d u z i n d o e f e i t o s q u e a t i n g e m a consciência, n a r consciente", m a s seacaso ele chega à cons-
e n q u a n t o e l a própria p e r m a n e c e i n c o n s c i e n t e . ciência, c h o c a - s e c o m u m a s e g u n d a c e n s u r a a n -
tes d e se t o r n a r p l e n a m e n t e c o n s c i e n t e . É n e s s e
nível q u e F r e u d s i t u a o pré-consciente: "Ele [ o
O ponto de vista tópico
a t o psíquico] ainda não é consciente, mas sim sus-
Até então, F r e u d s e i n t e r e s s a r a s o b r e t u d o cetível de se t o r n a r consciente ( . . . ) " ( p . 7 6 [212]).
p e l o " p o n t o d e v i s t a dinâmico", i s t o é, p e l a n a - Freud procura explicar e m seguida o m o d o
tureza dos conflitos n aorigem d a neurose, d e p a s s a g e m d e u m a representação i n c o n s -
como, por exemplo, quando atribui a fobia do c i e n t e a u m a representação c o n s c i e n t e e m o s -
p e q u e n o H a n s à angústia i n c o n s c i e n t e d e s e r tra que o processo sedesenvolve e m dois m o -
c a s t r a d o p o r s e u p a i . C o m a introdução d e u m a m e n t o s . D e f a t o , a experiência clínica m o s t r a
distinção e n t r e i n c o n s c i e n t e , pré-consciente e q u e não b a s t a q u e u m a representação r e p r i m i -
consciente, ele passa a se interessar pelos p r o - d a a n t e r i o r m e n t e se t o r n e c o n s c i e n t e p a r a q u e
c e s s o s psíquicos d e u m n o v o ângulo, o d e s u a s e u s e f e i t o s s e j a m s u p r i m i d o s : "Se comunica-
localização e m l u g a r e s topográficos d i s t i n t o s d o mos a um paciente uma representação que ele re-
a p a r e l h o psíquico, e daí o n o m e "ponto de vista primiu em um determinado momento e que nós
L e r F r e u d 169

EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS FREUDIANOS

O s desenvolvimentos posteriores feitos por Freud em "Luto e melancolia"


Para c o m p r e e n d e r melhor os m e c a n i s m o s psíquicos d a d e p r e s s ã o descritos por Freud é preciso c o n s i d e -
rar o s importantes d e s e n v o l v i m e n t o s feitos por ele p o s t e r i o r m e n t e . Eis a l g u n s pontos d e referência a o s
q u a i s retornaremos ao a b o r d a r as o b r a s e m q u e s t ã o .

A introdução do conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte (1920)


O papel central d e s e m p e n h a d o pelas pulsões autodestrutivas nos pacientes depressivos foi u m d o s fatores
q u e c o n d u z i r a m Freud a rever s u a primeira teoria das pulsões f u n d a d a no princípio d o prazer, tal c o m o ele
havia f o r m u l a d o e m 1915: d e fato, se a finalidade d a pulsão é essencialmente a busca de satisfação, c o m o
explicar q u e u m depressivo seja levado ao suicídio? Para responder a esse tipo d e questão, Freud introduziu
e m 1920 u m a nova teoria das pulsões, b a s e a d a no conflito fundamental entre pulsão d e vida e pulsão d e
morte, c o n c e p ç ã o q u e ele aplicará a n u m e r o s a s situações psicopatológicas, entre as quais a melancolia.

O conflito entre e g o j id e superego (1923)


E m 1915, e m "Luto e melancolia", Freud atribui as auto-acusações d o melancólico à "cr/f/ca" q u e u m a parte d o
e g o exerce sobre a outra, evocando u m a "consciência moral" análoga à "voz da consciência". Em 1923, ela fará
dessa "crítica" u m a verdadeira instância psíquica q u e chamará d e superego, e a colocará e m estreita relação
c o m outras duas instâncias recém-definidas, o ego e o id. S e g u n d o ele, e m condições normais o superego
exerce u m a função reguladora e m relação ao ego, q u e por sua vez se confronta c o m as exigências pulsionais
d o id. Contudo, na melancolia, Freud constata q u e o superego exerce u m sadismo excessivo e m relação ao
ego, pois nessa afecção, s e g u n d o ele, "[o superego] investe contra o ego com uma violência impiedosa, como
se estivesse possuído por todo o sadismo disponível no indivíduo. (...) O que agora reina no ego é, por assim
dizer, uma pura cultura da pulsão de morte, e de fato ela consegue quase sempre levar o ego à morte, se este não
se defender de seu tirano a tempo transformando-o na mania" (1923b, p. 268 [296]).

A clivagem do ego m927)


A n o ç ã o d e clivagem d o e g o já está presente e m Freud e m "Luto e melancolia", e ele utiliza explicitamente ora
o t e r m o "clivagem", ora "cisão" d o ego, particularmente q u a n d o descreve a severidade c o m que a "consciência
moral" critica o ego no melancólico. Mais tarde, e m "Fetichismo" (1927e), ele completará suas hipóteses sobre
a clivagem d o ego considerando que, no caso d a depressão, ela é consequência d a negação d a perda d e
objeto; ele ilustra esse ponto de vista mencionando a análise de dois irmãos que na infância haviam "escotomizado"
a morte de seu pai, mas q u e não se tornaram psicóticos: "Havia apenas uma corrente de sua vida psíquica que
não reconhecia essa morte; uma outra corrente admitia-a plenamente; as duas posições, a que se fundava no
desejo e a que se fundava na realidade, coexistiam. Essa clivagem, para um de meus dois casos, era a base de
uma neurose obsessiva medianamente grave" (p.137). Em outros termos, no luto patológico, a noção de clivagem
d á conta d e q u e u m a parte d o e g o n e g a a realidade d a perda, enquanto q u e a outra a aceita. E m seus últimos
trabalhos, Freud atribuirá u m a importância c a d a vez maior aos fenómenos d e negação da realidade e de clivagem
d o ego.

PÓS-FREUDIANOS

O s d e s e n v o l v i m e n t o s k l e i n i a n o s e p ó s - k l e i n i a n o s a p a r t i r d e Artigos sobre metapsicologia


M. Klein c o m e ç o u por desenvolver seus p o n t o s d e vista partindo d a teoria f r e u d i a n a clássica e, posterior-
m e n t e , introduziu suas próprias ideias. Entre os c o n c e i t o s f r e u d i a n o s f u n d a m e n t a i s n o s q u a i s se a p o i o u ,
m u i t o s f o r a m e x p o s t o s e m Artigos sobre metapsicologia, particularmente em "Pulsões e destinos das
p u l s õ e s " (1915c), e m " O i n c o n s c i e n t e " (1915e), c o m o t a m b é m e m "Luto e m e l a n c o l i a " (1917e [1915]).
Ela n ã o falou d e " m e t a p s i c o l o g i a " , m a s e s s e n c i a l m e n t e a p r e s e n t o u seus c o n c e i t o s e m t e r m o s clínicos,
a t r i b u i n d o u m p a p e l central às n o ç õ e s estruturais d e p o s i ç ã o e s q u i z o p a r a n ó i d e e d e p o s i ç ã o d e p r e s s i v a , e
a i n d a a o c o n c e i t o d e identificação projetiva. V a m o s c o m e ç a r por u m a breve r e m e m o r a ç ã o .

Continua Q
170 Jean-Michel Q u i n o d o z

PÓS-FREUDIANOS • Continuação

Uma concepção estrutural do funcionamento psíquico e da mudança


A o introduzir a n o ç ã o d e " p o s i ç ã o " , M. Klein p ô d e n ã o a p e n a s distinguir d o i s e s t a d o s f u n d a m e n t a i s na
estrutura d o p s i q u i s m o , a p o s i ç ã o e s q u i z o p a r a n ó i d e e a p o s i ç ã o depressiva, c o m o t a m b é m e n t e n d e r as
m u d a n ç a s estruturais q u e se o b s e r v a m d o l o n g o d o p r o c e s s o psicanalítico. A n o ç ã o d e p o s i ç ã o é diferente
d a n o ç ã o d e fase c r o n o l ó g i c a d o d e s e n v o l v i m e n t o libidinal, c o m o a fase oral o u a fase fálica, p o i s se trata
d e u m c o n c e i t o estrutural d e s t i n a d o a refletir o e s t a d o m o m e n t â n e o d a o r g a n i z a ç ã o p s í q u i c a e as transi-
ções entre as d u a s fases.
Inúmeros fatores estão e n v o l v i d o s na constituição d a p o s i ç ã o e s q u i z o p a r a n ó i d e e d a p o s i ç ã o d e p r e s s i v a e
na transição d e u m a a outra, entre os q u a i s : o g r a u d e c o e s ã o d o e g o c o n f o r m e esteja f r a g m e n t a d o o u
integrado, a n a t u r e z a d a s relações d e o b j e t o c o n f o r m e s e j a m parciais o u totais, o nível d e d e f e s a s confor-
m e s e j a m p r i m i t i v a s o u e v o l u í d a s , e t c . Vale a c r e s c e n t a r q u e d u r a n t e a t r a n s i ç ã o e n t r e a p o s i ç ã o
e s q u i z o p a r a n ó i d e e a p o s i ç ã o d e p r e s s i v a assiste-se à p a s s a g e m d o c o m p l e x o d e É d i p o p r e c o c e , q u e
pertence a o p r i m e i r o d e s e n v o l v i m e n t o infantil s e g u n d o Klein, para o c o m p l e x o d e É d i p o t a r d i o , tal c o m o o
d e s c r e v e u F r e u d . E m o u t r o s t e r m o s , c o m o c o n c e i t o estrutural d e p o s i ç ã o , M. Klein c o n s e g u i u mostrar q u e
a transição d a p o s i ç ã o e s q u i z o p a r a n ó i d e à p o s i ç ã o depressiva constitui a p a s s a g e m f u n d a m e n t a l d e u m
funcionamento psicótico a u m funcionamento sadio.

Do "ego de prazer purificado" à integração do amor e do ódio


Tomando c o m o m o d e l o a noção d e "ego d e prazer purificado" exposta por Freud e m 1915 e m "Pulsões e
destinos das pulsões", assim c o m o as de projeção e introjeção associadas a ela, M. Klein descreve e m t o d a
criança p e q u e n a a evolução d o s afetos a partir das primeiras relações d e objeto parciais até a relação c o m o
objeto separado e total. L e m b r o os termos e m q u e Freud descreve a noção d e "ego de prazer purificado": "Ele
(o ego) acolhe em si, na medida em que são fontes de prazer, os objetos que se apresentam, introjeta-os
(segundo a expressão de Ferenczi) e, ao mesmo tempo, expulsa para fora de si aquilo que, em seu interior,
provoca o desprazer" (p. 3 7 [80-81]). A partir daí, M. Klein explicitará a natureza d a primeira relação d o bebé e
mostrará q u e ela se constitui c o m u m objeto parcial, o seio d a mãe, q u e se encontra clivado e m seio ideal,
objeto de todas as expectativas, e seio persecutório, objeto d e ódio e d e m e d o , situação q u e c h a m a d e posição
esquizoparanóide. E m seguida, ela descreverá a evolução q u e se produz à m e d i d a q u e a integração d o e g o e
dos objetos avança, q u a n d o o bebé c o m e ç a a perceber sua m ã e e a amá-la c o m o u m a pessoa total, m u d a n ç a
definida c o m o o início d a posição depressiva.
Q u a n d o se lê o q u e Freud escreveu e m 1915 à luz das c o n c e p ç õ e s kleinianas, contata-se q u e ele intuiu q u e há
u m a m u d a n ç a na qualidade d o s afetos e das relações d e objeto, mas não conceituou explicitamente essa
transição e m termos d e integração e d e amor e ódio e d e passagem d e u m a relação d e objeto parcial para u m a
relação d e objeto total. Eis c o m o ele descreve essa m u d a n ç a : "Poderíamos dizer rigorosamente que uma pulsão
"ama" o objeto ao qual se dirige para sua satisfação. Mas dizer que uma pulsão "odeia" um objeto nos choca e
por isso nos faz crer que os termos "amor" e "ódio" não devem ser utilizados para a relação das pulsões com
seus objetos, mas reservados para as relações do ego-total com os objetos" (Freud, 1915e, p. 39 [82]). Posterior-
mente, caberá a M. Klein completar as ideias
q u e Freud havia e s b o ç a d o sobre os destinos d o a m o r e d o ódio de
maneira a aplicá-los na clínica.

O luto e os estados maníaco-depressivos


Klein t a m b é m se inspira nas n o ç õ e s introduzidas por Freud e m "Luto e melancolia" ao edificar s u a própria
teoria d o s e s t a d o s maníaco-depressivos (1935). Ele d e s c o b r i u , d e fato, q u e os conflitos entre a agressividade
e a libido, tal c o m o Freud os descreveu e m 1917 na depressão d o adulto, t i n h a m u m a o r i g e m p r e c o c e , e q u e
o ponto d e fixação d a d e p r e s s ã o se situava j á na infância. Estendendo as ideias freudianas s o b r e o pape/
d e s e m p e n h a d o pela agressividade e pelo sentimento d e c u l p a n o afeto depressivo, M. Klein atribuiu u m a
g r a n d e importância à n o ç ã o d e separação, isto é, ao desejo d e restaurar o objeto q u e foi danificado pelas
fantasias agressivas e destrutivas. Ela distingue então dois tipos d e reparação: u m a reparação normal, cria-
dora, q u e surge na posição depressiva e q u e está ligada a o a m o r e ao respeito pelo objeto, e u m a reparação
patológica, q u e p o d e assumir formas diversas. Por e x e m p l o , a reparação maníaca, f u n d a d a na n e g a ç ã o
triunfal d o s sentimentos depressivos, o u a reparação obsessiva, f u n d a d a na c o m p u l s ã o a eliminar m a g i c a -
m e n t e a angústia depressiva.

Continua Q
L e r F r e u d 171

0 Continuação

Defesas mais primitiv s do que a repressão


A l é m d i s s o , M. Klein foi levada a rever as ideias d e Freud s o b r e a repressão q u a n d o ele acreditava q u e
existiam m e c a n i s m o s d e defesa q u e entrariam e m j o g o antes q u e se constituísse a repressão p r o p r i a m e n -
te dita. A s s i m , ela estabelece u m a distinção entre os m e c a n i s m o s d e defesa primitivos, q u e afetam a estru-
t u r a d o e g o e o f r a g m e n t a m , e a r e p r e s s ã o , q u e incide s o b r e a o s c o n t e ú d o s psíquicos, s e m alterar a
estrutura d o e g o . A diferença entre eles está na violência d a repressão q u e exercem s o b r e a realidade
externa e s o b r e a realidade psíquica. Entre as defesas primitivas, c i n c o o c u p a m u m lugar e s p e c i a l n a
c o n c e p ç ã o kleiniana: a n e g a ç ã o , a c l i v a g e m , a p r o j e ç ã o , a introjeção e a onipotência. A essas d e f e s a s , M.
Klein acrescentará e m 1946 o m e c a n i s m o d a identificação projetiva q u e resulta d a projeção primitiva: n a
identificação projetiva, n ã o é a p e n a s a p u l s ã o q u e é projetada, m a s p o d e m - s e projetar t a m b é m partes d o
e g o n o objeto d e u m a f o r m a fantasiosa. A identificação projetiva diz respeito não a p e n a s à e x p u l s ã o d e
partes m á s e indesejáveis d e si m e s m o para controlar o o b j e t o , m a s inclusive d e partes b o a s . Mais t a r d e ,
W. R. Bion (1959) diferenciará u m a f o r m a p a t o l ó g i c a e u m a f o r m a n o r m a l d e identificação projetiva, d e
m a n e i r a q u e esse se t o r n a r á u m d o s c o n c e i t o s centrais na psicanálise kleiniana e posterior.

Transição entre simmolismo patológico e simbolismo normal


T o m a n d o c o m o b a s e " O i n c o n s c i e n t e " (1915e), o n d e F r e u d e x p õ e s u a s ideias s o b r e a l i n g u a g e m d o
esquizofrénico, e inspirando-se n o s primeiros t r a b a l h o s d e M. Klein (1930) s o b r e o s i m b o l i s m o , H. S e g a l e
W. R. Bion d e s e n v o l v e r a m suas próprias c o n c e p ç õ e s s o b r e a f u n ç ã o s i m b ó l i c a e sobre a transição entre o
simbolismo patológico e o simbolismo normal.

H. Segal: da equaçap simbólica ao simbolismo verdadeiro ou representação simbólica


E m 1957, H. Segal diferencia d o i s t i p o s d e f o r m a ç ã o d e s í m b o l o s e d e f u n ç ã o s i m b ó l i c a : a " e q u a ç ã o
s i m b ó l i c a " e o s i m b o l i s m o v e r d a d e i r o o u representação s i m b ó l i c a . Ela m o s t r a igualmente q u e a f o r m a ç ã o
d e s í m b o l o s é estreitamente d e p e n d e n t e d e transições entre as p o s i ç õ e s e s q u i z o p a r a n ó i d e e d e p r e s s i v a ,
c o m o t a m b é m d a i n t e n s i d a d e d a i d e n t i f i c a ç ã o p r o j e t i v a . A s s i m , q u a n d o se p r o d u z e m p e r t u r b a ç õ e s
e s q u i z ó i d e s nas relações d e o b j e t o e a identificação projetiva a u m e n t a , u m a parte d o e g o se identifica c o m
o o b j e t o d e maneira c o n c r e t a e o s í m b o l o se t o r n a d e tal m o d o equivalente ao objeto s i m b o l i z a d o q u e
a m b o s s ã o sentidos c o m o idênticos; é isso o q u e justifica a e x p r e s s ã o " e q u a ç ã o s i m b ó l i c a " .
A e q u a ç ã o s i m b ó l i c a s u b e n t e n d e o p e n s a m e n t o d o s esquizofrênicos e é e n c o n t r a d a t a m b é m n o p r o c e s s o
d e identificação c o m o o b j e t o p e r d i d o q u e caracteriza o luto p a t o l ó g i c o . A p e n a s q u a n d o a p a r e c e a p o s i ç ã o
d e p r e s s i v a , q u e é a c o m p a n h a d a d a vivência d e estar s e p a r a d o , o s í m b o l o representa o o b j e t o , m a s n ã o é
inteiramente equivalente a ele: é então q u e entra e m j o g o o s í m b o l o v e r d a d e i r o o u representação s i m b ó l i -
ca. A c r e s c e n t e m o s q u e n o início Segal falava d e s i m b o l i s m o c o n c r e t o c o m o d e u m a regressão à p o s i ç ã o
e s q u i z o p a r a n ó i d e , m a s d e p o i s , q u a n d o Rosenfeld, Bion e ela própria diferenciam u m a f o r m a n o r m a l e u m a
f o r m a p a t o l ó g i c a d e n t r o d a p o s i ç ã o e s q u i z o p a r a n ó i d e , ela esclarece q u e era na p a t o l o g i a d a p o s i ç ã o
e s q u i z o p a r a n ó i d e q u e situava o s i m b o l i s m o c o n c r e t o .
S e g u n d o Segal (1991), o p r o c e s s o d e f o r m a ç ã o d e s í m b o l o s é crucial, na m e d i d a e m q u e o s í m b o l o rege
a c a p a c i d a d e d e c o m u n i c a r e t o d a c o m u n i c a ç ã o se realiza por m e i o d e s í m b o l o s , não a p e n a s na c o m u n i -
c a ç ã o c o m o m u n d o , m a s t a m b é m na c o m u n i c a ç ã o interna.

W. R. Bion: criação mo aparelho de pensar os pensamentos


A distinção introduzida por W. R. Bion e m 1962 entre os elementos á e os elementos â permitiu abordar a
questão d o simbolismo e das transições d e u m simbolismo patológico para u m simbolismo normal s o b u m
ângulo diferente, mas complementar e m relação às ideias d e H. Segal. A noção d e função á nasceu das pesqui-
sas d e Bion sobre as dificuldades d o esquizofrénico d e dar u m significado ás suas vivências e a comunicá-las,
a fim d e entender o processo pelo qual os d a d o s brutos provenientes d o s sentidos se convertem e m c o n t e ú d o s
psíquicos suscetíveis d e adquirir u m significado, d e ser pensados e sonhados. S e g u n d o Bion, para q u e u m
pensamento possa ser utilizado pelo psiquismo - processo análogo à função d e simbolização - , é necessário
q u e u m a " p r e c o n c e p ç ã o " se una a u m a "realização" a fim d e criar u m a " c o n c e p ç ã o " . Essa união d e dois
elementos para criar u m terceiro está na base d a formação d e pensamentos e d e teorias. Assim c o m o Segal,
Bion considera q u e o s processos d e pensamento estão estreitamente ligados a processos emocionais, proces-
sos q u e p o d e m ser exprimidos e m termos d e posição esquizoparanóide e depressiva. Q u a n d o a função á é
perturbada, os d a d o s d o s sentidos p o d e m ser transformados, e persistem no psiquismo s o b a f o r m a d e ele-
mentos p não-assimilados q u e são então expulsos por identificação projetiva.
172 Jean-Michel Q u i n o d o z

• "VISÃO DE C O N J U N T O DAS N E U R O S E S DE TRANSFERÊNCIA" (1985a, [1915])

£ BIOGRAFIAS E HISTÓRIA

Um m a n u s c r i t o inédito d e s c o b e r t o e m 1983
Esse ensaio o c u p a u m a posição especial, pois foi descoberto casualmente e m 1983 por I. Grubrich-Simitis nos
d o c u m e n t o s confiados por Ferenczi a M. Balint, a c o m p a n h a d o d a carta d e Freud d e 28 d e julho d e 1915 e m q u e
ele pedia s u a opinião. Trata-se d o e s b o ç o d o d é c i m o s e g u n d o ensaio d e Artigos sobre metapsicoíogia, do
próprio p u n h o d e Freud, o único q u e escapou d o s sete ensaios não publicados d a o b r a q u e ele projetara. Dos
12 ensaios q u e deviam c o m p o r esse livro, Freud só lançou os cinco primeiros e m 1915 e 1917, s o b a forma de
artigos d e revista. M a s s u a correspondência revela q u e ele havia escrito os outros sete e supunha-se q u e os
tivesse destruído. Foi por isso q u e a descoberta d e "Visão de conjunto das neuroses de transferência" causou
surpresa
Nesse ensaio, q u e t e s t e m u n h a s u a estreita c o l a b o r a ç ã o c o m Ferenczi, Freud d á c o n t i n u i d a d e a o t e m a d a
filogênese e s b o ç a d a e m Totem e tabu (1912-1913a), t e m a q u e d e s d e então p e r p a s s a r á t o d a s u a obra.
S e g u n d o ele, a v i d a p s í q u i c a d o h o m e m d e hoje traz m a r c a s indeléveis d e u m a h e r a n ç a arcaica, e aquilo
q u e se c o n s i d e r a c o m o as fantasias originárias d a realidade psíquica n ã o é s e n ã o a m a r c a d e i x a d a por
a c o n t e c i m e n t o s t r a u m á t i c o s reais, q u e r e m o n t a m a é p o c a s pré-históricas c o m o a era glacial.

DESCOBERTA DA OBRA

As páginas indicadas r e m e t e m a o texto publicado e m S. Freud (1985a [1915]), "Vue d ' e n s e m b l e sur les
névroses d e transfert, U m essai m é t a p s y c h o l o g i q u e " , edição bilíngue d e u m manuscrito e n c o n t r a d o e edita-
d o por I. Grubrich-Simitis, trad. R Lacoste, s e g u i d o d e " C o m m e n t a i r e s " d e I. Grubrich-Simitis e R Lacoste,
Paris, Gallimard-NRF, 1986 [as páginas indicadas entre colchetes remetem ás OCF.R XIII, p. 279-300].

A p r i m e i r a parte d otexto, escrito e m u m r o s e s : "Porém, temos a impressão aqui de que a his-


e s t i l o telegráfico, é u m b r e v e a p a n h a d o d o s tória do desenvolvimento da libido repete uma
p r i n c i p a i s m e c a n i s m o s e m j o g o n a s três "neu- sequência muito mais antiga do desenvolvimento
roses de transferência": h i s t e r i a d e angústia, h i s - (filogenético) do que a história do desenvolvimento
t e r i a d e conversão e n e u r o s e o b s e s s i v a . F r e u d do ego (...) a primeira possivelmente repete as con-
e v o c a o p a p e l d a repressão, d o c o n t r a - i n v e s t i - dições de desenvolvimento da ramificação dos verte-
m e n t o , d a formação d e s u b s t i t u t o e d e s i n t o - brados, enquanto que a segunda é subordinada à
m a , etc. A s e g u n d a p a r t e d o e n s a i o s e d i s t a n - História da espécie humana" ( p . 3 0 - 3 1 ( p . [290])).
c i a d o conteúdo a n u n c i a d o p e l o título, p o i s A s s i m , F r e u d se i n d a g a s o b r e o i m p a c t o q u e o s
Freud desenvolve alimais do que e m qualquer traumatismos sofridos pelos h o m e n s nos tem-
o u t r a p a r t e s u a hipótese filogenética, q u e e l e p o s originários p o d e r i a m t e r s o b r e a s n e u r o s e s ,
c h a m a às v e z e s d e s u a "fantasia" filogenética. j u n t a m e n t e c o m f a t o r e s l i g a d o s à pulsão. P o r
Essa parte f o i redigida quase inteira, a o con- e x e m p l o , e l e p e n s a q u e "(...) algumas crianças
trário d a p r i m e i r a . F r e u d p r o c u r a e s t a b e l e c e r trazem ao nascer a ansiedade que vem do início da
alguns paralelos entre os fatores n a o r i g e m das era glacial e que essa ansiedade induz essas crianças
n e u r o s e s - t a n t o a s n e u r o s e s d e transferência desde cedo a tratar a libido insatisfeita como um pe-
c o m o a s n e u r o s e s narcísicas - e a história d o rigo externo" ( p . 3 5 ( p . [293])). F r e u d também
desenvolvimento d ah u m a n i d a d e , referindo- r e t o m a nesse t e x t o a tese d o assassinato d o p a i
se n o c a s o a u m t r a b a l h o p r e c u r s o r d e S . originário p e l a h o r d a p r i m i t i v a , c o n s i d e r a n d o
F e r e n c z i (1913) sobre esse t e m a . F r e u d r e v e l a esse e v e n t o c o m o a o r i g e m d o s e n t i m e n t o d e
q u e a i n d a não e x i s t e u m o u t r o m e i o d e p e s q u i - c u l p a e d a civilização, t e m a já p r e s e n t e e m
s a q u e não s e j a p a r t i r d a observação d a s n e u - Totem e tabu e m 1 9 1 2 - 1 9 1 3 .
"O PROBLEMA ECONÓMICO DO MASOQUISMO"
S. FREUD (1924c)

Do m a s o q u i s m o perverso ao m a s o q u i s m o primário ou
erógeno, protetor d o indivíduo contra a autodestruição

Nesse estudo, F r e u d prossegue suas pesqui- adiar o prazer tolerando temporariamente o


s a s s o b r e a n a t u r e z a d o m a s o q u i s m o , perversão desprazer. F r e u d estuda e m seguida duas for-
q u e consiste e m encontrar prazer n o s o f r i m e n - m a s d e perversão p r o p r i a m e n t e d i t a , o maso-
t o . E l e já h a v i a a b o r d a d o a questão d o m a s o - quismo feminino n o h o m e m e o masoquismo mo-
q u i s m o j u n t a m e n t e c o m o a d o s a d i s m o e m es- ral. E s s a s f o r m a s d e m a s o q u i s m o c a r a c t e r i z a m -
critos anteriores (1905d, 1915c). C o n t u d o , d e p o i s s e p o r u m a regressão a u m a f a s e l i b i d i n a l a n t e -
de ter i n t r o d u z i d o o conflito f u n d a m e n t a l entre r i o r , e m p a r t i c u l a r à f a s e sádico-anal, c o m o t a m -
pulsão d e v i d a e pulsão d e m o r t e , a s s i m c o m o bém p o r u m r e m v e s t i m e n t o d e o b j e t o s i n c e s -
os conceitos de ego, i d e superego, i m p u n h a - s e t u o s o s e d i p i a n o s , q u e e l e c h a m a d e "ressexuali-
u m a atualização d a noção d e m a s o q u i s m o . A i n - zação" d o c o m p l e x o d e Édipo. E s t a última é
d a m a i s p o r q u e a noção d e m a s o q u i s m o c o n - a c o m p a n h a d a d e u m a satisfação erótica culpá-
t r a d i z o princípio d o p r a z e r - d e s p r a z e r p o s t u l a - vel e inconsciente que d e t e r m i n a u m a necessi-
d o a n t e s , s e g u n d o o q u a l o f u n c i o n a m e n t o psí- d a d e m a s o q u i s t a d o e g o d e ser p u n i d o s a d i c a -
quico t e m como objetivo evitar o desprazer e m e n t e p e l o s u p e r e g o . C o m a introdução d a n o -
proporcionar prazer. ção d e masoquismo primário o u erógeno, F r e u d
F r e u d começa p o r r e d e f i n i r o princípio d e e s t e n d e e s s a noção p a r a além d a perversão
prazer apoiado e m novos dados e considera m a s o q u i s t a e m sentido estrito: ele abre u m a
a g o r a q u e e x i s t e m três princípios n a b a s e d a n o v a perspectiva considerando que o conflito
regulação d o f u n c i o n a m e n t o psíquico: o prin- pulsão d e vida/pulsão d e m o r t e c o n s t i t u i o
cípio do Nirvana, q u e t e n d e a r e c o n d u z i r a e x c i - próprio f u n d a m e n t o d o s p r o c e s s o s v i t a i s , d e s -
tação a z e r o , o princípio do prazer, q u e e f e t u a a d e o início d a v i d a , o q u e s i g n i f i c a q u e o p r a z e r
ligação e n t r e a pulsão d e v i d a e a pulsão d e de v i v e r deve impor-se p e r m a n e n t e m e n t e so-
m o r t e , e o princípio de realidade, q u e p e r m i t e b r e a tendência à autodestruição.

BIOGRAFIAS E H STORIA

Conflitos internos e temores para o futuro da psicanálise


"O problema e c o n ó m i c o d o masoquismo" foi escrito no final d e 1923 e publicado e m abril d e 1924 na Internationale
Zeitschrift fúr Psychoanalyse. Durante esse período, a vida d e Freud foi permeada por acontecimentos doloro-
sos, entre o s quais a eclosão d e s u a d o e n ç a e m 1923, a q u e já n o s referimos, e o clima d e desentendimento
dentro d o Comité. A despeito d o reconhecimento internacional, Freud se preocupava c o m o futuro d a psicaná-
lise, principalmente e m razão d o s conflitos entre Rank e Jones, q u e p u n h a m e m risco o entendimento dentro d o
Comité n o qual Freud depositava s u a maior esperança quanto à sobrevivência d e s u a o b r a a p ó s s u a morte. J á
fazia alguns anos q u e Rank e Jones não se entendiam b e m , e m b o r a devessem colaborar na edição d e publica-
ções psicanalíticas. No verão d e 1923, nas Dolomites, e m u m a última reunião d a qual participavam Rank e
Jones, esse conflito atingirá seu paroxismo, levando à dissolução d o Comité. Foi nessa ocasião q u e o s partici-
pantes tiveram a notícia d a d o e n ç a d e Freud.
234 Jean-Michel Q u i n o d o z

DESCOBERTA DA OBRA

As p á g i n a s i n d i c a d a s r e m e t e m a o texto p u b l i c a d o e m S. Freud (1924c), "Le p r o b l è m e é c o n o m i q u e d u


m a s o c h i s m e " , in Névrose, psychose et perversion, t r a d . J . Laplanche, Paris, PUF, 1973, p. 287-298 [as
páginas indicadas entre colchetes remetem ás OCF.R XVII, p. 9-23].

Reconsiderar o princípio d o prazer e l e , a s sensações d e p r a z e r - d e s p r a z e r não d e -


p e n d e m a p e n a s d e u m f a t o r quantitativo q u e
F r e u d começa p o r e x p l i c a r o s m o t i v o s q u e e l e não c h e g a a d e t e r m i n a r : "Talvez se trate do
o l e v a m arever seu p o n t o de vista sobre o p r i n - ritmo do curso temporal das modificações, das ele-
cípio d o p r a z e r e , e m p a r t i c u l a r , s u a s relações vações e das quedas da quantidade de excitação:
c o m o princípio d o N i r v a n a , q u e e l e v i a c o m o nós não sabemos" ( p . 2 8 8 [12]).
s e u e q u i v a l e n t e . D e f a t o , e m Além do princípio D e s d e então, F r e u d c o n s i d e r a q u e três p r i n -
do prazer ( 1 9 2 0 g ) , F r e u d c h a m a v a d e "princí- cípios estão n a b a s e d a regulação d e p r o c e s s o s
p i o d o N i r v a n a " a tendência d o a p a r e l h o psí- v i t a i s : o princípio do Nirvana, q u e r e p r e s e n t a a
quico a reconduzir a zero qualquer quantida- pulsão d e m o r t e m e d i a n t e a tendência a r e d u -
d e d e excitação, e e s s a tendência à aniquilação z i r a s quantidades d e excitação a z e r o ; o princí-
p a r e c i a c o i n c i d i r c o m a pulsão d e m o r t e . E m pio de prazer, q u e e x p r e s s a m e d i a n t e u m a quali-
" O p r o b l e m a económico d o m a s o q u i s m o " , e l e dade d e excitação l i b i d i n a l a ligação d a pulsão
r e a f i r m a s u a adesão a o princípio d o N i r v a n a , d e v i d a e d a pulsão d e m o r t e ; f i n a l m e n t e , o prin-
m a s a p o n t a a s e g u i n t e d i f i c u l d a d e : s e o princí- cípio de realidade, q u e p e r m i t e d i f e r e n c i a r o p r a -
pio de prazer érealmente oequivalente d o prin- zer tolerando t e m p o r a r i a m e n t e o desprazer.
cípio d o N i r v a n a , c o m o a f i r m a r a a n t e s , c h e g a - E s s e s três princípios não p o d e m e s c a p a r d e
s e à conclusão d e q u e o princípio d o p r a z e r e s - e n t r a r e m c o n f l i t o , m a s são forçados a s e a c o -
t a r i a a serviços d e pulsões d e m o r t e , o q u e é m o d a r u m ao o u t r o a f i m de preservar os p r o -
u m p a r a d o x o : " ( . . . ) o princípio do Nirvana (e o de cessos vitais. P a r a conseguir p r e s e r v a r a v i d a
prazer, julgado idêntico a ele) estaria totalmente a d a destruição, a o q u e p a r e c e , o princípio d o
serviço das pulsões de morte, cujo objetivo é tirar a prazer deve necessariamente passar por u m a
vida em perpétua mudança da estabilidade do esta- ligação l i b i d i n a l d a pulsão d e m o r t e à pulsão
do inorgânico (...)" ( p . 2 8 8 [12]). A e s s a p r i m e i r a d e v i d a : "A conclusão dessas considerações é que
contradição a c r e s c e n t a - s e u m a o u t r a : o princí- não se pode deixar de designar o princípio do prazer
p i o d o p r a z e r - q u e e l i m i n a r i a a s tensões d o como guardião da vida" ( p . 2 8 9 [13]).
d e s p r a z e r - é c o n t r a d i t a d o também p e l o f a t o
P r o s s e g u i n d o s u a s reflexões à l u z d e s s a s
d e e x i s t i r e m e s t a d o s d e tensão a c o m p a n h a d o s
considerações teóricas, F r e u d e s t u d a s u c e s s i -
de prazer, cujo principal e x e m p l o é o estado
v a m e n t e três f o r m a s d e m a s o q u i s m o : o m a -
d e excitação s e x u a l . T i r a n d o a s consequências
s o q u i s m o f e m i n i n o , o m a s o q u i s m o primário
d e s s a s contradições, F r e u d l e v a n t a a hipótese
o u erógeno e o m a s o q u i s m o m o r a l .
d e q u e o princípio d o N i r v a n a - q u e provém
d a pulsão d e m o r t e - c e r t a m e n t e t e v e d e s o f r e r
u m a modificação n o s o r g a n i s m o s v i v o s p a r a O "masoquismo feminino no h o m e m "
não r e c o n d u z i r a v i d a a o inorgânico e a s s i m s e
c o l o c a r a serviço d o princípio d o p r a z e r : e l e É sobretudo n o h o m e m que seobserva o
a t r i b u i e s s a mudança à intervenção d a l i b i d o m a s o q u i s m o f e m i n i n o : para F r e u d , trata-se de
q u e está u n i d a à pulsão d e m o r t e d e m a n e i r a a u m a v e r d a d e i r a perversão c u j o conteúdo m a -
p a r t i c i p a r d a regulação d e p r o c e s s o s v i t a i s . n i f e s t o se e x p r e s s a p o r f a n t a s i a s e m q u e p r e d o -
N o q u e s e r e f e r e às sensações d a g a m a p r a - m i n a o desejo d e ser a m a r r a d o , e s p a n c a d o o u
z e r - d e s p r a z e r q u e e l e h a v i a c o n s i d e r a d o até chicoteado, etc, fantasias que c u l m i n a m n a
então c o m o d e p e n d e n t e d e u m f a t o r quantita- masturbação o u c o n s t i t u e m e m s i m e s m a s a s a -
tivo, l i g a d o u n i c a m e n t e a u m c r e s c i m e n t o o u tisfação s e x u a l . N e s s e s c a s o s d e perversão, c o n s -
a u m a diminuição d a s tensões d e excitação, t a t a - s e q u e o indivíduo s e c o l o c a e m u m a "posi-
F r e u d i n t r o d u z u m a n o v a diferença: s e g u n d o ção característica da feminilidade e, portanto, que es-
L e r F r e u d 235

sas fantasias significam ser castrado, sofrer o coito d a função s e x u a l ; d e o u t r o l a d o , u m a p a r t e d a


ou parir" ( p . 2 9 0 [14]). Provém daí a d e n o m i n a - pulsão d e m o r t e não é p r o j e t a d a n o e x t e r i o r ,
ção d e " masoquismo feminino", q u e s i g n i f i c a q u e m a s s e t o r n a i n o f e n s i v a n o próprio i n t e r i o r d o
e s s a posição p a s s i v a e m relação a o o b j e t o é o o r g a n i s m o : "Ela (a pulsão de morte) permanece
r e s u l t a d o d e u m a regressão à s e x u a l i d a d e i n - no organismo e lá se encontra ligada libidinalmente
f a n t i l . Além d i s s o , n e s s a perversão, a p e s s o a s e com a ajuda da co-excitação sexual a que nos refe-
acusa de ter c o m e t i d o u m a falta q u e d e v e expiar rimos; é nela que devemos reconhecer o masoquis-
p e l a d o r e p e l o s t o r m e n t o s , e x p r i m i n d o através mo originário, erógeno" ( p . 2 9 1 [16]). Não s e s a b e
d e s s a s auto-recriminações u m s e n t i m e n t o d e p o r q u e m e i o s e p r o d u z e s s a "domesticação"
c u l p a i n c o n s c i e n t e e m relação à masturbação d a s d u a s pulsões, d i z F r e u d , m a s , d e u m p o n -
infantil. Esse sentimento de culpa inconsciente t o d e v i s t a psicanalítico, o b s e r v a - s e q u e e l a s
aproxima omasoquismo feminino de u m a outra estão s e m p r e l i g a d a s e m proporções variáveis,
forma de masoquismo, o masoquismo moral. e q u e j a m a i s s e e n c o n t r a a pulsão d e v i d a o u a
pulsão d e m o r t e e m e s t a d o p u r o .
F r e u d e n u m e r a e m seguida a l g u m a s fases
O masoquismo primário ou d o d e s e n v o l v i m e n t o da libido das quais parti-
masoquismo erógeno c i p a o m a s o q u i s m o originário, p o r e x e m p l o , n a
angústia d e s e r d e v o r a d o p e l o a n i m a l totêmico
F r e u d l e m b r a q u e e m 1 9 0 5 , e m Três ensaios
(o p a i ) n a fase o r a l , o u n o desejo d e ser e s p a n -
sobre a teoria da sexualidade, e l e já o b s e r v a r a q u e
c a d o n a f a s e sádico-anal, o u d e s e r c a s t r a d o n a
u m a excitação s e x u a l s e p r o d u z e m t o d a u m a
f a s e fálica, e t c . Além d i s s o , o m a s o q u i s m o o r i -
série d e p r o c e s s o s i n t e r n o s d e p o i s q u e a i n t e n -
ginário q u e p e r m i t i u a p r i m e i r a domesticação
sidade desses processos ultrapassa u m certo li-
d a pulsão d e m o r t e p e l a l i b i d o "preserva sempre
m i t e , e q u e e s s e fenómeno q u e e l e c h a m a d e
como objeto o ser próprio do indivíduo" ( p . 2 9 2 [16])
"co-excitação libidinal" g e r a l m e n t e é a c o m p a n h a -
e p r o t e g e e s t e último d a autodestruição. F i n a l -
d o d e d o r e d e s p r a z e r . E l e t e v e , então, a i n t u i -
mente, F r e u d considera aeventualidade de que
ção d e q u e "talvez nada de importante ocorresse no
o s a d i s m o e a pulsão d e destruição a n t e s
organismo sem ter de fornecer seu componente á ex-
projetados n o exterior retornem a ointerior, o
citação da pulsão sexual" ( p . 2 9 0 [15]). L e v a n d o
q u e dá l u g a r a o "masoquismo secundário" q u e s e
e m c o n t a a g o r a a d u a l i d a d e pulsão d e v i d a /
s o m a a o m a s o q u i s m o primário.
pulsão d e m o r t e , F r e u d dá u m n o v o d e s e n v o l -
v i m e n t o à noção d e co-excitação l i b i d i n a l : s e -
g u n d o e l e , e s s e fenómeno r e g e r i a o c o n j u n t o d e O masoquismo moral
processos vitais e a libido tornaria inofensivo à
pulsão d e m o r t e e d e destruição q u e p r e d o m i - O m a s o q u i s m o m o r a l busca o sofrimento,
n a n o o r g a n i s m o desde a o r i g e m ; ela evitaria m a s não t e m consciência d a satisfação s e x u a l
a s s i m que o o r g a n i s m o fosse r e c o n d u z i d o a o que encontra e m u m sofrimento buscado e m
e s t a d o inorgânico. P a r a d e s i g n a r e s s e p r o c e s s o relação a u m s e n t i m e n t o d e c u l p a i n c o n s c i e n -
d e erotização d a pulsão d e m o r t e e a f i m d e r e s - t e : n e s s e s p a c i e n t e s , d e f a t o , o p r a z e r erótico
s a l t a r s e u caráter originário, e l e o c h a m a d e "ma- d o s o f r i m e n t o parece ausente. O caso e x t r e m o
soquismo primário" o u "masoquismo erógeno". d o m a s o q u i s m o m o r a l é observado e m pacien-
C o m o a libido sedesincumbe da tarefa d e t e s e m psicanálise q u e s e opõem a o s p r o g r e s -
t o r n a r i n o f e n s i v a a pulsão d e m o r t e ? E l a p r o - sos d a cura, c o n d u t a p a r a d o x a l q u e F r e u d a t r i -
cede de duas maneiras, segundo F r e u d : de u m buíra e m 1 9 2 3 a o s e n t i m e n t o d e c u l p a i n c o n s -
lado, a libido dirige u m a grande parte d a c i e n t e , d e s i g n a n d o - o p e l o t e r m o "reação terapêu-
pulsão d e m o r t e p a r a o s o b j e t o s n o e x t e r i o r tica negativa". P a r a e l e s , s a t i s f a z e r o s e n t i m e n -
p o r m e i o d am u s c u l a t u r a - sob a f o r m a d e t o d e c u l p a i n c o n s c i e n t e c o n s t i t u i o benefício
pulsão d e destruição e d e domínio, d e v o n t a - secundário d e p e r m a n e c e r d o e n t e e m v e z d e
d e d e potência, e também s o b a f o r m a d e s a - se c u r a r , o q u e f a z d i s s o u m a d a s f o r m a s m a i s
d i s m o p r o p r i a m e n t e d i t o c o l o c a d o a serviço g r a v e s d e resistência a o t r a t a m e n t o . C o n t u d o ,
236 Jean-Michel Q u i n o d o z

quando o psicanalista fala d e sentimento d e desprezível, d i z e l e , o sadismo do superego é na


c u l p a i n c o n s c i e n t e , i s s o não d i z n a d a a o s e u maioria das vezes claramente consciente, enquanto
p a c i e n t e ; a o contrário, o p a c i e n t e começa a c o m - a tendência do masoquismo do ego em geral perma-
p r e e n d e r q u a n d o e l e f a l a d e u m a "necessidade nece oculta à pessoa e deve ser deduzido de seu com-
de punição" ( p . 2 9 4 [18]). P a r a e x p l i c a r o a p a r e - portamento" ( p . 2 9 6 [22]). F r e u d a t r i b u i o f a t o
cimento desse s e n t i m e n t o de culpa esmagador, de o m a s o q u i s m o m o r a l permanecer inconsci-
F r e u d r e c o r r e às noções i n t r o d u z i d a s n a s e g u n - ente a que o sentimento de culpa inconsciente
d a tópica e m 1 9 2 3 , e m p a r t i c u l a r à tensão e x - e x p r e s s a u m a n e c e s s i d a d e d e punição p o r p a r t e
cessiva q u e surge entre oego eosuperego q u a n - d e u m a força p a r e n t a l . E s s a p i s t a c o n d u z a o
d o o ego se sente incapaz de satisfazer as exi- verdadeiro sentido oculto d o masoquismo
gências d o i d e a l e s t a b e l e c i d o p e l o s u p e r e g o m o r a l , q u e está e s t r e i t a m e n t e l i g a d o à "ressexua-
c o m o u m m o d e l o a seguir. lização" d o c o m p l e x o d e Édipo. O q u e e l e e n -
Ele lembra igualmente que foi aidentifica- tende p o r isso? P a r a F r e u d , o t e r m o "ressexua-
ção c o m o c a s a l p a r e n t a l q u e d e u o r i g e m a o lização" s i g n i f i c a q u e o m a s o q u i s m o m o r a l f e z
s u p e r e g o . D e f a t o , q u a n d o d a resolução d o u m retorno regressivo ao conflito edipiano, eo
c o n f l i t o e d i p i a n o , a relação c o m o s p a i s f o i desejo incestuoso causa o s e n t i m e n t o d e ter
dessexualizada p o r desvio d e seus objetivos c o m e t i d o u m a f a l t a s e x u a l - u m "pecado" - p e l o
sexuais diretos, de m o d o que seconstitui u m qual deve serp u n i d o pelo representante
s u p e r e g o q u e c o n s e r v a a s características d o s parental. Isso explica q u e o m a s o q u i s m o p r o -
p a i s i n t e r i o r i z a d o s . Além d i s s o , a s exigências c u r e s e r p u n i d o p e l o último r e p r e s e n t a n t e
d o s u p e r e g o t e n d e m a s e r reforçadas p e l a s i n - p a r e n t a l q u e é o D e s t i n o , q u e ele aja c o n t r a seus
fluências d o e x t e r i o r p r o v e n i e n t e s d e p r o f e s - i n t e r e s s e s , c h e g a n d o às v e z e s a a n i q u i l a r s u a
sores e de a u t o r i d a d e s , o q u e c o n t r i b u i p a r a o própria existência r e a l . A s s i m , p r o s s e g u e
s e u p a p e l m o r a l : "O complexo de Édipo se revela F r e u d , "o sadismo do superego e o masoquismo do
portanto (...) como a fonte de nossa ética individual ego se complementam mutuamente e se unem para
(a moral)" ( p . 2 9 5 [20]). provocar as mesmas consequências" ( p . 2 9 7 [22]).
T i r a n d o s u a s conclusões d e s s e c o n f l i t o i n t e r i o r ,
Freud afirma que o masoquismo m o r a l é ver-
A "ressexualização" do complexo de Édipo d a d e i r a m e n t e o t e s t e m u n h o d a existência d e
u m a união e n t r e pulsões d e v i d a e pulsões d e
Após e s s a digressão s o b r e a o r i g e m d o s u - m o r t e : "Seu caráter perigoso provém do fato de que
p e r e g o , F r e u d r e t o m a a questão d o m a s o q u i s - ele tem sua origem na pulsão de morte, de que
m o m o r a l r e s s a l t a n d o q u e esse t i p o d e paciente corresponde à parte deste que evitou se dirigir ao
dá m o s t r a s d e u m a inibição m o r a l e x c e s s i v a e exterior sob forma de destruição. Mas, como ele tem
se c o m p o r t a c o m o u m a p e s s o a d o m i n a d a p o r de outra parte o significado de um componente eró-
u m a consciência m o r a l s e v e r a , s e m t e r c o n s - tico, nem mesmo a autodestruição da pessoa pode se
ciência d e s s a "hipermoral": "Mas, detalhe nada produzir sem satisfação libidinal" ( p . 2 9 7 [23]).

EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS FREUDIANOS

A noção de m a s o q u i s m o e suas ambiguidades e m Freud


A questão do "masoquismo feminino"
O t e r m o "masoquismo feminino" t e m às vezes u m u s o a m b í g u o e m Freud. S e m d ú v i d a , q u a n d o ele fala d o
" m a s o q u i s m o f e m i n i n o n o h o m e m " , trata-se claramente para ele d e u m a perversão m a s o q u i s t a . C o n t u d o ,
q u a n d o utiliza a expressão " m a s o q u i s m o f e m i n i n o " , ele parece entender q u e a mulher seria m a s o q u i s t a
p o r natureza. Essa a m b i g u i d a d e foi revelada, entre outros, por L a p l a n c h e e Pontalis: "Por masoquismo

Continua Q
L e r F r e u d 237

4) Continuação
feminino, evidentemente somos tentados a entender 'masoquismo da mulher', mas, no âmbito da teoria da
bissexualidade, o masoquismo feminino é uma possibilidade imanente a todo ser humano" (1967, p. 232).
De m a n e i r a geral, encontra-se ao l o n g o d e t o d a o b r a d e Freud u m a a m b i g u i d a d e q u a n t o à natureza d a
f e m i n i l i d a d e , d e s d e a o p o s i ç ã o ativo/passivo e m a s c u l i n o / f e m i n i n o m e n c i o n a d a e m Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade (1905d), até e m seus escritos tardios, e m q u e ele persiste e m ligar explicitamente, d e
u m lado, atividade e m a s c u l i n i d a d e , e, d e outro, passividade e m a s o q u i s m o feminino. C o n t u d o , e m A/ovas
conferências introdutórias sobre psicanálise (1933a), essa o p o s i ç ã o entre os dois sexos é a t e n u a d a .

O masoquismo primário ou erógeno não é uma perversão


Vale destacar q u e o t e r m o " m a s o q u i s m o " utilizado por Freud para designar o m a s o q u i s m o primário o u
e r ó g e n o é u m a n o ç ã o q u e p o d e se confundir c o m a d e perversão. De fato, ao introduzir a n o ç ã o d e m a s o -
q u i s m o primário o u e r ó g e n o , Freud p r o c u r a s o b r e t u d o estender a n o ç ã o d e m a s o q u i s m o para a l é m d a
perversão propriamente dita, c o m o objetivo d e assinalar q u e t o d a ligação d o prazer sexual c o m a d o r t e m
c o m o f u n d a m e n t o primordial u m a união entre a pulsão d e v i d a e a pulsão d e morte. E m outros t e r m o s ,
s e g u n d o Freud, o m a s o q u i s m o primário o u e r ó g e n o "seria, portanto, um testemunho e um vestígio dessa
fase de formação na qual se realizou essa aliança, tão importante para a vida, entre a pulsão de vida e Eros"
(p. 2 9 2 [16]). Desde então, para ele, essa f o r m a originária d e m a s o q u i s m o constitui-se c o m o u m a estrutura
f u n d a m e n t a l q u e d e s e m p e n h a o papel d e "guardião da vida", s e g u n d o suas próprias palavras.

C R O N O L O G I A DO:S C O N C E I T O S F R E U D I A N O S

M a s o q u i s m o feminim > - m a s o q u i s m o feminino no h o m e m - m a s o q u i s m o moral - m a s o q u i s m o primário o u


e r ó g e n o - m a s o q u i s m o s e c u n d á r i o - princípio d o Nirvana - princípio d o prazer-desprazer - princípio d e
realidade - "ressexué lização" d o c o m p l e x o d e É d i p o
L e r F r e u d 267

análogo à repressão, p e l o q u a l o e g o s e s e p a r a n e s s e s t e r m o s q u e F r e u d a n u n c i a a introdução


d o m u n d o e x t e r i o r ? "Ele deveria consistir, como próxima d a s noções d e "negação da realidade" e
na repressão, de uma retirada pelo ego do investi- d e "clivagem do ego", q u e esclarecerá e m
mento que ele havia situado fora" ( p . 2 8 6 [7]). É F e t i c h i s m o e m 1927.
/ / , ,
/

• "A P E R D A D A R E A L I D A D E N A N E U R O S E E N A P S I C O S E " ( 1 9 2 4 e )

A s páginas indicadas r e m e t e m a o texto p u b l i c a d o e m S. Freud (1924e), "La perte d e la realité d a n s la


névrose et d a n s la p s y c h o s e " , trad. D. G u é r i n e a u , in Névrose, psychose et perversion, Paris, PUF, 1973,
299-303 [as páginas indicadas entre colchetes remetem ás OCF.R XVII, p. 35-41].

N o artigo anterior, Freud dizia que a dife- e m dois m o m e n t o s : o p r i m e i r o separa o ego


rença e n t r e a p s i c o s e e a n e u r o s e c o n s i s t i a e m d a r e a l i d a d e p o r m e i o d a negação, o s e g u n d o
que n a psicose o ego serecusava a perceber a c r i a u m a n o v a r e a l i d a d e - u m delírio o u u m a
r e a l i d a d e exterior e q u e n a n e u r o s e ele a acei- alucinação - a f i m d e "reparar os desgastes" e
t a v a . N o presente a r t i g o , ele r e l a t i v i z a o q u e compensar a perda d arealidade. E m outras
h a v i a a f i r m a d o e considera agora que existe palavras, na neurose u m fragmento significa-
u m a perturbação d a percepção d o m u n d o r e a l tivo da realidade éevitado e m forma de fuga,
n a s d u a s afecções, m a s q u e e s s a perturbação e n q u a n t o n a psicose esse f r a g m e n t o n e g a d o é
é de natureza diferente. Ele tenta explicar aqui reconstruído: " A neurose não nega a realidade,
e m q u e c o n s i s t e e s s a diferença. só não quer saber nada sobre ela; a psicose a nega e
E l e começa p o r d i s t i n g u i r d o i s m o m e n t o s procura substituí-la" ( p . 3 0 1 [39]). Q u a n t o a o
n o s m o d o s de entrada n a neurose e n a psicose. c o m p o r t a m e n t o d i t o n o r m a l , ele a d o t a aspec-
N a neurose, existe e f e t i v a m e n t e u m a p e r d a d a t o s d a s d u a s reações: c o m o n a n e u r o s e e l e não
realidade n o primeiro m o m e n t o , seguida d a nega a realidade, mas, c o m o na psicose, tenta
formação d e u m c o m p r o m i s s o , o s i n t o m a . M a s , reconstruí-la e modificá-la.
nesse p r i m e i r om o m e n t o , éof r a g m e n t o de rea- A neurose e a psicose apresentam u m a o u -
l i d a d e e v i t a d o q u e p r o d u z a repressão. E l e dá t r a característica c o m u m , i s t o é, a reação d e a n -
c o m o e x e m p l o o c a s o d e u m a moça, a p a i x o n a - gústia q u e a c o m p a n h a o s s i n t o m a s . E s s a a n -
da por seu cunhado, que ficou transtornada gústia provém d o "retorno do reprimido" p a r a a
c o m a ideia q u e l h e o c o r r e u d i a n t e d o leito d e primeira e do retorno daquilo que foi negado
m o r t e d e s u a irmã: " A g o r a ele está l i v r e e pode para a segunda. Embora o retorno do reprimi-
se c a s a r c o m você". A c e n a l o g o é e s q u e c i d a , e d o s e j a u m a noção f r e u d i a n a clássica, é a p r i -
a p a r e c e m a s d o r e s histéricas. F r e u d a s s i n a l a m e i r a v e z q u e F r e u d r e l a t a u m r e t o r n o análo-
que o fato d ereprimir o a m o r pelo cunhado go referindo-se ao que f o i objeto de u m a nega-
t e v e c o m o consequência q u e a moça e v i t a s s e o ção n a p s i c o s e : "Provavelmente, na psicose, o frag-
c o n f r o n t o c o m a r e a l i d a d e , i s t o é, p e n s a r q u e mento de realidade repelido está sempre forçando a
a g o r a s e u c u n h a d o e s t a r i a l i v r e : "Mas o que é abertura para a vida psíquica, como faz na neurose
instrutivo aqui é justamente constatar a via pela qual a pulsão reprimida, e é por isso que o efeito é o mes-
a neurose tenta regular o conflito. Ela desvaloriza a mo nos dois casos" ( p . 3 0 2 [40]). O e f e i t o d e q u e
modificação real reprimindo a reivindicação pulsio- s e t r a t a é o a p a r e c i m e n t o d a angústia.
nal em questão, a saber, o amor pelo cunhado. A F i n a l m e n t e , d i z F r e u d , a distinção não é tão
reação psicótica teria sido negar o fato da morte de nítida e n t r e n e u r o s e e p s i c o s e n o q u e d i z r e s -
sua irmã" ( p . 3 0 0 [38]). p e i t o à criação d e u m a n o v a r e a l i d a d e , c o m o
F r e u d e x a m i n a e m seguida o que se passa n a psicose, pois aneurose é destinada i g u a l m e n -
n a p s i c o s e e i n t r o d u z a noção d e "negação da t e a s u b s t i t u i r a r e a l i d a d e insustentável. A d i f e -
realidade" c o m o característica d a r e c u s a d e p e r - rença está e m q u e , n a p s i c o s e , a doença c r i a u m a
ceber a realidade exterior n a psicose. Segun- n o v a r e a l i d a d e através d o delírio o u d a a l u c i -
d o e l e , a e n t r a d a n a p s i c o s e também o c o r r e nação, e n q u a n t o q u e n a n e u r o s e o d o e n t e t e n t a
268 Jean-Michel Quinodoz

r e s t a b e l e c e r u m a n o v a r e a l i d a d e através d o d a , o psicótico também r e c o r r e a u m t a l m a g a -


m u n d o fantasioso. Esse m u n d o fantasioso cons- z i n e , e x p l i c a F r e u d , m a s o neurótico u t i l i z a e s s e
t i t u i u m "magazine" o n d e o p a c i e n t e neurótico, n o v o m u n d o f a n t a s i o s o c o m o a criança b r i n c a ,
a s s i m c o m o o p a c i e n t e psicótico, obtém s u a s f a n - e l h e e m p r e s t a u m s e n t i d o "simbólico". E m o u -
t a s i a s . C o n t u d o , n o c a s o d o p a c i e n t e neurótico, t r a s p a l a v r a s , o neurótico c o n s e g u e e s t a b e l e c e r
s e u e g o não está t o t a l m e n t e s e p a r a d o d a r e a l i - u m a diferença e n t r e r e a l i d a d e e f a n t a s i a , a o c o n -
d a d e , c o m o está o e g o d o psicótico. S e m dúvi- trário d o psicótico q u e d e l i r a o u a l u c i n a .

• "A N E G A T I V A " ( 1 9 2 5 h )

As p á g i n a s i n d i c a d a s r e m e t e m a o texto p u b l i c a d o e m S. Freud (1925h), " L a n é g a t i o n " , t r a d . J . Laplanche,


in Résultats, idées, problémes II, Paris, PUF, 1 9 7 1 , 1 3 5 - 1 3 9 [as páginas indicadas entre colchetes remetem
ás OCF.R XVII, p. 165-171].

F r e u d d e f i n i u a negação c o m o u m p r o c e d i - A função d e j u l g a m e n t o t e m o u t r a s d u a s c a -
m e n t o utilizadopelo paciente quanto surge, d u - racterísticas. A p r i m e i r a é s e p r o n u n c i a r s o b r e
r a n t e a análise, u m p e n s a m e n t o , u m d e s e j o o u u m a p r o p r i e d a d e q u e é, o u não é, a q u i l o q u e
u m s e n t i m e n t o q u e e l e n e g a q u e l h e pertença: se p o d e e x p r e s s a r e m l i n g u a g e m p u l s i o n a l p o r :
"Compreendemos que é a devolução, por projeção, isso e u q u e r o c o m e r o u c u s p i r , o u i s s o d e v e es-
de uma ideia incidente que acaba de emergir". P o r t a r e m m i m o u f o r a d e m i m , o q u e provém d o
e x e m p l o : "'Você pergunta quem pode ser essa pes- "ego de prazer original". A s e g u n d a decisão a s e r
soa no sonho. Minha mãe não é.' Nós retificamos: t o m a d a p e l o j u l g a m e n t o d i z r e s p e i t o à existên-
portanto é sua mãe" ( p . 1 3 5 [167]). A negação é cia r e a l de u m a coisa r e p r e s e n t a d a , o q u e p r o -
também u m m e i o p a r a q u e u m conteúdo r e - vém d a p r o v a d e r e a l i d a d e . E s s a s d u a s funções
p r i m i d o - u m desejo, u m sentimento o u u m estão e s t r e i t a m e n t e l i g a d a s : "O não-real, o sim-
p e n s a m e n t o - p o s s a a b r i r c a m i n h o até a c o n s - plesmente representado, o subjetivo, está apenas den-
ciência, a s s i n a l a F r e u d , m a s c o m a condição d e tro; o outro, o real, também está presente f o r a " ( p .
s e f a z e r negar. A q u i é necessária u m a o b s e r v a - 1 3 7 [169]). D a d o q u e , o r i g i n a l m e n t e , a s p e r c e p -
ção d e o r d e m terminológica, p o i s , e m língua ções são t o d a s o r i u n d a s d e percepções a n t e r i o -
alemã, o t e r m o Verneinung d e s i g n a a o m e s m o r e s , a existência d a representação já é u m a g a -
t e m p o a negação n o s e n t i d o lógico o u linguís- rantia da realidade d o representado, isto por-
t i c o d o t e r m o e a negação n o s e n t i d o psicológi- q u e : "A finalidade primeira e imediata da prova de
c o , i s t o é, a r e c u s a d e u m a afirmação já f e i t a ( A . realidade não é, portanto, encontrar na percepção
B o u r g u i g n o n , P . C o t e t , J. L a p l a n c h e e F . R o b e r t , real um objeto correspondente ao representado, mas
1898, p. 122). reencontrá-lo, convencer-se de que ele ainda está
F r e u d o b s e r v a q u e a negação é u m a m a n e i - presente" ( p . 1 3 8 [169-70]). O j u l g a m e n t o c o n s -
ra de t o m a r c o n h e c i m e n t o d o inconsciente, m a s t i t u i p a r a F r e u d a ação i n t e l e c t u a l q u e v a i d e c i -
i s s o não s i g n i f i c a a i n d a q u e s e a c e i t e o r e p r i m i - d i r a e s c o l h a d a ação m o t r i z , i s t o é, o f a t o r
d o . E a s s i m q u e s e p o d e d i s t i n g u i r a função d e t e r m i n a n t e q u e "leva a passagem do pensar ao
intelectual d o julgamento d o processo afetivo. agir" ( p . 1 3 8 [170]). F i n a l m e n t e , e l e r e l a c i o n a a
Q u a n d o o paciente n e g a qualquer coisa n o jul- p o l a r i d a d e "inclusão no ego - expulsão para fora
g a m e n t o , n o f u n d o ele q u e r dizer: é isso q u e e u do ego" a o c o n f l i t o e n t r e pulsão d e v i d a e pulsão
g o s t a r i a d e r e p r i m i r , d e m o d o q u e d i z e r não s e d e m o r t e : "A afirmação - como substituto da uni-
t o r n a u m s i n a l d e demarcação d o q u e é r e p r i - ficação - pertence ao Eros, enquanto a negação -
m i d o , "um certificado de origem comparável ao sucessora da expulsão - pertence à pulsão de des-
'made in Germany'" ( p . 1 3 6 [168]). Só é possível truição. O prazer generalizado da negação, o ne-
o p e r a r a função d o j u l g a m e n t o m e d i a n t e a c r i a - gativismo de tantos psicóticos, possivelmente deva
ção d o "símbolo de negação" q u e p e r m i t e a o p e n - ser compreendido como indicador da separação das
s a m e n t o u m p r i m e i r o g r a u d e independência pulsões pela retirada dos componentes libidinais"
e m relação às consequências d a repressão. ( p . 1 3 9 [170]).
L e r F r e u d 269

• " A L G U M A S C O N S E Q U Ê N C I A S PSÍQUICAS DA DISTINÇÃO A N A T Ó M I C A ENTRE O S S E X O S " (1925j)


As páginas indicadas remetem ao texto publicado e m S. Freud (1925j), "Quelques conséquences psychologiques
d e la différence anatomique entre les sexes", trad. D. Berger, J . Laplanche era/., in La vie sexuelle, Paris, PUF,
1970,123-132 [as páginas indicadas entre colchetes remetem ás OCF.R XVII, p. 189-202].

A noção d e negação também a p a r e c e e m c o m o objeto de amor. O que é que leva a m e -


p r i m e i r o p l a n o neste artigo que trata essen- n i n a a f a z e r e s s a mudança d e o b j e t o ?
c i a l m e n t e d a s consequências d o c o m p l e x o d e E m seguida, Freud estuda detalhadamente
castração s o b r e o d e s e n v o l v i m e n t o d a m e n i - o q u e e l e c h a m a d e pré-história, i s t o é, o q u e
n a e d o m e n i n o . N o prólogo a e s s e e s t u d o , precede o estabelecimento d ocomplexo d e
F r e u d i n s i s t e n a n e c e s s i d a d e d e a n a l i s a r a se- Édipo n a m e n i n a , q u e , p a r a e l e , g i r a e s s e n c i a l -
x u a l i d a d e infantil tal c o m o ela se desenvolve m e n t e e m t o r n o d a questão d a i n v e j a d o pênis
a o l o n g o d o p r i m e i r o período d a infância e e d a capacidade d a m e n i n a de superar essa i n -
a i n d a n o t e m p o q u e é necessário d e d i c a r p a r a veja para t o m a r o caminho d afeminilidade.
obter resultados. Ela manifesta assim sua F r e u d situa o m o m e n t o crucial d o desenvolvi-
discordância c o m a s t e n t a t i v a s d e r e d u z i r a m e n t o d a m e n i n a n a f a s e fálica, a n t e s d e s e u
duração d a s análises: "Essa análise da primeira c o m p l e x o d e Édipo, q u a n d o e l a "nota o grande
infância é longa e penosa, e o que ela exige do médi- pênis bem visível de um irmão ou de um amigui-
co e do paciente nem sempre é cumprido na práti- nho, reconhece-o logo como a réplica superior de seu
ca" ( p . 1 2 3 [191]). pequeno órgão oculto, e desde então passa a ser víti-
ma da inveja do pênis" ( p . 1 2 6 [195]).
Nesse ponto, o comportamento d o m e n i n o
O desenvolvimento psicossexual
se d i f e r e n c i a d o d a m e n i n a : q u a n d o e l e v i s l u m -
no m e n i n o e na menina
b r a a z o n a g e n i t a l d a m e n i n a , o u não vê n a d a ,
F r e u d começa p o r d e s c r e v e r e m l i n h a s g e - o u n e g a s u a percepção e a c r e d i t a t e r v i s t o u m
rais asprincipais etapas d o desenvolvimento pênis. Só m a i s t a r d e , q u a n d o a ameaça d e c a s -
d o m e n i n o . Ele lembra que a atitude edipiana tração p e s a r s o b r e e l e , é q u e e s s a observação
d o m e n i n o c h e g a a o s e u a c m e n a f a s e fálica e g a n h a s e n t i d o a posteriori: d e s d e então, o m e n i -
q u e s e u c o m p l e x o "perece" - c o n f o r m e s u a s n o i m a g i n a q u e a m u l h e r seja u m a c r i a t u r a
p a l a v r a s - q u a n d o sobrevêm a angústia d e c a s - m u t i l a d a , castrada. Isso explica q u e ele passe a
tração. Além d i s s o , e m razão d a b i s s e x u a l i d a d e ter " h o r r o r " d a m e n i n a e d e m o n s t r e e m rela-
psíquica, o c o m p l e x o d e Édipo d o m e n i n o é s i - ção a e l a u m " d e s p r e z o t r i u n f a n t e " ( p . 1 2 7 [196]).
m u l t a n e a m e n t e a t i v o e p a s s i v o , p o i s ele se i d e n - C o m a m e n i n a é diferente, segundo Freud:
t i f i c a c o m s e u p a i e d e s e j a s e c a s a r c o m s u a mãe "De imediato, ela julgou e decidiu. Ela o viu, sabe
e , a o m e s m o t e m p o , i d e n t i f i c a - s e c o m s u a mãe que não o tem e quer tê-lo. É aqui que se instala o
e adota u m a atitude feminina diante de seu pai. complexo de masculinidade da menina" ( p . 1 2 7
F r e u d insiste i g u a l m e n t e sobre papel i m p o r t a n - [196]). A f o r m a c o m o a m e n i n a r e a g e a e s s e
t e d a masturbação d u r a n t e a "pré-história" d o c o m p l e x o d e m a s c u l i n i d a d e determinará s e u
c o m p l e x o d e Édipo, p o i s e l a p e r m i t e a d e s c a r - f u t u r o , c o n f o r m e e l a c o n s i g a superá-lo r a p i d a -
g a d a excitação s e x u a l . m e n t e o u s u c u m b a a ele. C o n t u d o , m e s m o q u e
D e p o i s d e s s a recapitulação, F r e u d e x a m i - e l a o s u p e r e , "a esperança de um dia, apesar de
n a o c o m p l e x o d e Édipo n a m e n i n a e c o n s t a t a tudo, conseguir um pênis e assim se tornar seme-
q u e este encerra u m p r o b l e m a a m a i s e m re- lhante aos homens, pode se manter até uma época
lação a o d o m e n i n o , q u e é o f a t o d e q u e a m e - incrivelmente tardia (...)" ( p . 1 2 7 [196]). Porém,
nina é conduzida a m u d a r de objeto ao longo q u a n d o a m e n i n a não s u p e r a s e u c o m p l e x o d e
d e s u a evolução i n f a n t i l . D e f a t o , s e a mãe m a s c u l i n i d a d e e s u r g e a negação d e s u a c a s -
constitui op r i m e i r o objeto de a m o r tanto para tração, e l a p a s s a a s e c o m p o r t a r e m s e g u i d a
o m e n i n o como para a menina, o m e n i n o a c o m o s e f o s s e u m h o m e m : "Ou então entra em
c o n s e r v a p o r s e u c o m p l e x o d e Édipo, e n q u a n - cena o processo que eu gostaria de descrever como
to q u e a m e n i n a r e n u n c i a a ela e t o m a seu p a i negação; ele não parece nem raro nem muito peri-
270 Jean-Michel Quinodoz

goso para a vida mental da criança, mas nos adultos l i s t a s m u l h e r e s , e também d o s h o m e n s : "A se
criaria uma psicose" ( p . 1 2 7 [196]). levar em conta uma sondagem analítica isolada,
nessa nova situação podem se produzir sensações
corporais que devem ser consideradas como um
A inveja d o p ê n i s na m e n i n a despertar prematuro do aparelho genital feminino"
( p . 1 3 0 [199]).
A i n v e j a d o pênis t e m d i v e r s a s consequên-
c i a s psíquicas p a r a a m e n i n a . R e v e l a u m s e n -
t i m e n t o d e i n f e r i o r i d a d e que ela sente c o m o Complexo de Édipo diferente
u m a "ferida narcísica" e c o m o u m a "punição no menino e na menina
pessoal", c h e g a n d o a c o m p a r t i l h a r e m relação
a e l a própria o d e s p r e z o d o h o m e m p e l a m u - F r e u d c h e g o u a u m a série d e conclusões.
l h e r . A i n v e j a d o pênis r e v e l a i g u a l m e n t e a P r i m e i r a m e n t e , e l e vê u m a oposição f u n d a -
ciúme p a r t i c u l a r d a m u l h e r e s e a s s o c i a à f a n - m e n t a l entre os dois sexos n o q u e se refere ao
t a s i a masturbatória d a criança e s p a n c a d a c o m p l e x o d e Édipo e a o c o m p l e x o d e c a s t r a -
( F r e u d , 1 9 1 9 e ) . U m a o u t r a consequência p a r a ção: n o m e n i n o , o c o m p l e x o d e Édipo é s e g u i -
a m e n i n a é "o relaxamento da relação terna com a d o d a ameaça d e castração q u e d e p o i s o f a z d e -
mãe enquanto objeto" ( p . 1 2 8 [198]), mãe q u e s a p a r e c e r , e n q u a n t o n a m e n i n a é a castração
frequentemente é responsabilizada pela falta q u e p r e c e d e o c o m p l e x o d e Édipo e t o r n a p o s -
d o pênis. F i n a l m e n t e , o f a t o r m a i s d e t e r m i - sível s u a aparição e m u m s e g u n d o m o m e n t o :
n a n t e , s e g u n d o F r e u d , está l i g a d o à importân- " E n q u a n t o o c o m p l e x o de Édipo desaparece sob
c i a q u e a s s u m e a masturbação c l i t o r i a n a c o m o o efeito do c o m p l e x o de castração, o d a m e n i -
a t i v i d a d e m a s c u l i n a , p o i s e s t a c r i a obstáculo n a se t o r n a possível e é i n t r o d u z i d o p e l o c o m -
ao d e s e n v o l v i m e n t o da m u l h e r . Pouco depois p l e x o de castração" ( p . 1 3 0 [200]). I s s o s i g n i f i c a
d a f a s e d e i n v e j a d o pênis l i g a d a à f a s e fálica, que, para Freud, o desenvolvimento sexual do
a m e n i n a começa a s e r e v o l t a r c o n t r a o o n a - h o m e m e d a m u l h e r r e s u l t a d a diferença
n i s m o clitoriano, e é a revolta contra o fato de anatómica e n t r e o s s e x o s e d a s consequências
não s e r u m m e n i n o q u e a c o n d u z à f e m i n i l i - psicológicas q u e e n v o l v e m a questão d a c a s t r a -
ção: e l a c o r r e s p o n d e à diferença e n t r e "a castra-
d a d e : "É assim que o reconhecimento de uma di-
ção realizada" - i s t o é, r e a l - n a m e n i n a e "a sim-
ferença anatómica entre os sexos afasta a menina
ples ameaça de castração" - i s t o é, f a n t a s i a d a - n o
da masculinidade e do onanismo masculino e a co-
m e n i n o ( p . 1 3 0 [200]). M a i s u m a v e z , s e a f a l t a
loca em outros caminhos que levam ao desenvolvi-
d o pênis c o n s t i t u i u m a s p e c t o i m p o r t a n t e d o
mento da feminilidade" ( p . 1 3 0 [199]). É s o m e n -
desenvolvimento d apsicossexualidade tanto
t e então q u e o c o m p l e x o d e Édipo e n t r a e m
d a m e n i n a c o m o d o m e n i n o , F r e u d não s e dá
j o g o n a m e n i n a . E m v i r t u d e d a "(...) equação
conta d eoutro aspecto igualmente i m p o r t a n -
simbólica: pênis = filho" , a m e n i n a r e n u n c i a à
1

t e , i s t o é, q u e e x i s t e m e l e m e n t o s específicos l i -
i n v e j a d o pênis "para substituí-lo pelo desejo de
g a d o s à f e m i n i l i d a d e , a o s órgãos f e m i n i n o s e
um filho e, com esse desígnio, ela toma o pai como
às f a n t a s i a s l i g a d a s a i s s o .
objeto de amor. A mãe se torna objeto de seu ciú-
me; a menina vira mulher" ( p . 1 3 0 [199]). A q u i Finalmente, segundo Freud, o decurso d o
F r e u d i n t r o d u z u m a d a s únicas menções e x - c o m p l e x o d e Édipo d i f e r e n o m e n i n o e n a m e -
plícitas e m s u a o b r a s o b r e a possível existên- n i n a . N o p r i m e i r o , o c o m p l e x o d e Édipo não é
c i a d e sensações e s p e c i f i c a m e n t e f e m i n i n a s , s i m p l e s m e n t e r e p r i m i d o , "ele vai pelos ares lite-
observação q u e s e d e v e , s e m dúvida, à c o n - ralmente sob o choque da ameaça de castração" ( p .
testação s u s c i t a d a p o r s u a s posições "falocên- 1 3 1 [200]) e s e u s o b j e t o s p a r e n t a i s f o r m a m o
tricas", e m particular por parte das psicana- superego. N o que diz respeito ao complexo de
Édipo d a m e n i n a , e l e só s e r i a a b a n d o n a d o m u i -

'Em alemão: " ( . . . ) s y m b o l i s c h e G l e i c h u n g : P e n i s = K i n c T , GW, X I V , p. 27.


L e r F r e u d 271

t o l e n t a m e n t e , s o b o e f e i t o d a repressão. É p o r d e s p e i t o d e s u a s críticas e m relação às m u l h e -


isso que, segundo F r e u d , o superego da m u l h e r res, a m a i o r i a dos h o m e n s p e r m a n e c e b e m
n u n c a é tão inexorável q u a n t o o d o h o m e m , e aquém d o i d e a l m a s c u l i n o . P a r a c o n c l u i r , F r e u d
d i s s o d e c o r r e m o s s e g u i n t e s traços d e caráter avalia que a igualdade dos sexos reivindicada
"que sempre se reprovem e criticou na mulher": u m p e l a s f e m i n i s t a s não é aceitável, e q u e t o d o s
m e n o r s e n t i m e n t o d e justiça q u e o h o m e m , u m a p o s s u e m a o m e s m o t e m p o traços m a s c u l i n o s e
m e n o r sujeição às n e c e s s i d a d e s d a existência e traços f e m i n i n o s , "embora o conteúdo das constru-
u m a tendência a s e d e i x a r g u i a r m a i s p e l o s s e n - ções teóricas da masculinidade pura e da feminilida-
t i m e n t o s , etc. C o n t u d o , F r e u d r e c o n h e c e q u e a de pura permaneça incerto" ( p . 1 3 2 [201 ]).

• "FETICHISMO" (19Í7e)

A s páginas indicadas r e m e t e m ao texto p u b l i c a d o e m S. Freud (1927e), "Le fétichisme", t r a d . D. Berger, J .


L a p l a n c h e e r a / . , in La vie sexuelle, Paris, PUF, 1970, 133-138 [as páginas indicadas entre colchetes reme-
tem às OCF.R XVIII, p. 123-131].

A negação da percepção da realidade v a o s t e r m o s pênis e f a l o c o m o a l g u n s p s i c a -


no fetichismo n a l i s t a s pós-freudianos, n o s q u a i s s e p o d e
c o n s t a t a r "um uso progressivamente diferencia-
E m " F e t i c h i s m o " , F r e u d e l a b o r a a noção do dos termos pênis efalo, o primeiro designando o
d e negação, q u e c o n s i s t e e m r e c u s a r a p e r c e p - órgão masculino na sua realidade corporal, o se-
ção d e u m a r e a l i d a d e intolerável, e v i n c u l a gundo destacando o valor simbólico deste"
essa defesa à c l i v a g e m d o ego que é sua con- ( L a p l a n c h e e P o n t a l i s , 1967, p. 311).
sequência. O protótipo d e s s e t i p o d e d e f e s a é M a s , v o l t e m o s a o fetichista. O fetiche, d e
o f e t i c h i s m o , q u e n e g a a percepção d a c a s t r a - fato, é considerado nas fantasias inconscientes
ção n a m u l h e r , e o f e t i c h e é o s u b s t i t u t o d o c o m o representante do corpo d am u l h e r , en-
pênis f a l t a n t e . Além d i s s o , F r e u d c o n s t a t a n o q u a n t o s u b s t i t u t o simbólico d o pênis. C o m i s s o ,
f e t i c h i s m o q u e d u a s a t i t u d e s contraditórias para o fetichista, a m u l h e r perde seu atrativo
coexistem dentro d o ego, u m a negando a per- sexual, que se concentra agora n o objeto feti-
cepção d a f a l t a d o pênis n a m u l h e r , a o u t r a c h e , f o n t e única d a excitação s e x u a l . S e g u n d o
r e c o n h e c e n d o essa falta. A ideia d e q u e existe F r e u d , a constituição d e u m o b j e t o f e t i c h e v i s a
u m a clivagem n o ego que determina duas ati- a e s t a b e l e c e r u m a "desmentida" (Verleugnung)
t u d e s contraditórias n o p s i q u i s m o o levará a d a castração n a m u l h e r , a f i m d e p r o t e g e r o f e -
m o d i f i c a r s u a s concepções a n t e r i o r e s , p a r t i - t i c h i s t a d a angústia e m f a c e d e s s a percepção
c u l a r m e n t e sobre a psicose, e ele d e s e n v o l v e - ameaçadora. " O horror da castração se erigiu um
rá s e u p o n t o d e v i s t a n a s d u a s contribuições monumento criando esse substituto" ( p . 1 3 5 [127]).
posteriores. O f e t i c h e t e m , p o r t a n t o , u m a d u p l a função c o n -
E a análise d e vários c a s o s d e f e t i c h i s m o traditória, a d e m a n t e r a crença d e q u e a m u -
que leva F r e u d a considerar que o objeto feti- l h e r t e m u m pênis e , s i m u l t a n e a m e n t e , a d e s e
c h e - pé, s a p a t o , peliça, lingerie f e m i n i n a . - é p r o t e g e r c o n t r a a percepção d a r e a l i d a d e d a
u m s u b s t i t u t o d o pênis, m a s não i m p o r t a q u a l : castração d a m u l h e r : "Ele [o fetiche] permanece o
"O fetiche é o substituto do falo da mulher (a mãe) sinal de um triunfo sobre a ameaça de castração, e
em que o menino acreditava e ao qual, sabemos por uma proteção contra essa ameaça" ( p . 1 3 5 [127]).
que, ele não quer renunciar" ( p . 1 3 4 [126]). V a l e
d e s t a c a r , a propósito d a p a l a v r a " f a l o " u t i l i -
z a d a a q u i p o r F r e u d , q u e ele r a r a m e n t e e m - A negação da percepção da perda de
p r e g a e s s e t e r m o ; e m compensação e l e u s a objeto no luto patológico
c o m frequência o t e r m o pênis ("inveja do pê- E s s a a t i t u d e psíquica contraditória q u a n t o
nis", e t c ) , a s s i m c o m o o a d j e t i v o "fálico" ("fase à percepção d a castração n a m u l h e r f o i o b s e r -
fálica", e t c ) . Além d i s s o , F r e u d não d i f e r e n c i a - v a d a p o r F r e u d também n o l u t o patológico, e
272 Jean-Michel Q u i n o d o z

e l e dá u m e x e m p l o d i s s o a propósito d a a t i t u d e atividade e a outra segundo a qual, ao contrário, seu


d e d o i s irmãos e m relação à m o r t e d e s e u p a i pai estando morto, ele podia se considerar legitima-
a m a d o . N e s s e s d o i s j o v e n s , ele descreve a mente como seu sucessor" ( p . 1 3 7 [129]). E s s e
"clivagem" q u e s e i n s t a l o u e m s u a p e r s o n a l i d a - e x e m p l o m o s t r a q u e , t a n t o n o l u t o patológico
d e e m relação a e s s a p e r d a d e o b j e t o , c l i v a g e m c o m o n o fetichismo, a clivagem d o ego que re-
idêntica à q u e o b s e r v o u n o f e t i c h i s m o : "Parecia s u l t a d a introjeção d o o b j e t o p e r d i d o d e t e r m i -
que os dois jovens tinham 'escotomizado' a morte de n a d u a s a t i t u d e s contraditórias e m relação à p e r -
seu pai do mesmo modo que os fetichistas o fazem cepção d a r e a l i d a d e d a p e r d a , u m a a c e i t a n d o -
com relação á castração da mulher. Havia apenas uma a, a o u t r a n e g a n d o - a . F r e u d c o m p l e m e n t a as-
corrente de sua vida psíquica que não reconhecia essa s i m seus pontos de vista que h a v i a exposto e m
morte, uma outra corrente a percebia perfeitamente; " L u t o e m e l a n c o l i a " (1917e [1915]). E l e c o n c l u i
as duas posições, uma fundada no desejo e a outra a f i r m a n d o q u e o m e s m o fenómeno s e p r o d u z
fundada na realidade, coexistiam" ( p . 1 3 7 [129]). n a psicose, m a s apenas u m a das atitudes con-
E m u m d o s irmãos, F r e u d e x p l i c a q u a l é o e f e i - d u z à r e t i r a d a d a realidade, d em o d o q u e ela
t o p r o d u z i d o n o nível d o e g o p e l a negação d a não é c o m p l e t a , c o m o t i n h a p e n s a d o a n t e r i o r -
r e a l i d a d e d a p e r d a d o p a i : "Em todas as situa- m e n t e : "Posso manter assim minha suposição de que
ções, o sujeito oscilava entre duas hipóteses: uma se- na psicose, uma das correntes, aquela fundada na
gundo a qual o pai ainda estava vivo e impedia sua realidade, realmente desapareceu" ( p . 1 3 7 [130]).

• "A D I V I S Ã O D O E G O N O P R O C E S S O D E D E F E S A " ( 1 9 4 0 e [ 1 9 3 8 ] )

As p á g i n a s i n d i c a d a s r e m e t e m a o texto p u b l i c a d o e m S. Freud (1940e [1938]), "Le clivage d u m o i d a n s le


p r o c e s s u s d e d e f e n s e " , t r a d . Roger Lewinter e J.-B. Pontalis, in Résultats, idées, problémes II, Paris, PUF,
1971, 283-286.

F r e u d r e t o m a a q u i a ideia de que, desde a ço de uma ferida no ego, ferida que nunca mais será
infância, o e g o p o d e s e r c o n f r o n t a d o c o m e x i - curada, mas aumentará com o tempo. As duas
gências contraditórias e , então r e s p o n d e a o reações ao conflito, reações opostas, se mantêm como
c o n f l i t o m e d i a n t e d u a s reações o p o s t a s : d e u m núcleo de uma clivagem no ego" ( p . 2 8 4 ) . U m a
l a d o , e l e r e c u s a a r e a l i d a d e e não s e p e r m i t e t a l perturbação d o e g o é e s t r a n h a , a c r e s c e n t a
p r o i b i r e m n a d a d e s u a s pulsões; d e o u t r o l a d o , F r e u d , p o i s s e e s p e r a q u e e l e exerça u m a f u n -
reconhece simultaneamente o perigo prove- ção sintética. F r e u d c o n c l u i c o m o c a s o d e u m
n i e n t e d a r e a l i d a d e a s s u m e a angústia s o b f o r - m e n i n o de 3 o u 4 anos que c o n f i r m a seus p o n -
m a d e s i n t o m a . M a s e s s a solução m u i t o hábil tos de vista sobre a clivagem d o ego e o papel
t e m s e u preço: a c l i v a g e m d o e g o irá a u m e n - d o f e t i c h e c o m o s u b s t i t u t o f a n t a s i a d o d o pê-
t a n d o c o m o s a n o s : "O êxito foi atingido ao pre- nis da mulher.

SBOÇO DE PSICANÁLISE (1940a [1938])

BIOGRAFIAS E HISTORIA

Um testamento aberto sobre o futuro


Esta o b r a c o n t é m o s últimos d e s d o b r a m e n t o s feitos por Freud a essa série d e artigos, e p o r isso acredito
q u e ela t e m lugar entre eles, m e s m o q u e isso p o s s a c o n t u r b a r u m p o u c o a o r d e m c r o n o l ó g i c a . Foi escrita
por Freud p o u c o a p ó s s u a c h e g a d a a L o n d r e s , entre j u l h o e s e t e m b r o d e 1938, q u a n d o ele estava c o m 8 2
a n o s . M a s ele teve d e interromper s u a r e d a ç ã o d e v i d o a u m a recaída d o câncer q u e o o b r i g o u a u m a n o v a
o p e r a ç ã o . O Esboço de psicanálise foi p u b l i c a d o e m 1940, u m a n o d e p o i s d e s u a m o r t e .

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