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Copyrigth Editions Sociales, 1973 Editorial Estampa, Ld, Para a Tingua portuguosa CATHERINE B.-CLEMENT, PIERRE BRUNO, LUCIEN SEVE PARA UMA CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA EDITORIAL ESTAMPA LisBo~ THTULO DO ORIGINAL POUR UNE CRITIQUE MARXISTE DE LA THEORIE PSYCHANALYTIQUE TRADUCKO DE JOSE EDUARDO PEREIRA RAMOS Distribuldor no Brasil: Livraria Martins Fontes Praca da Independéncia, 12 Santos — S40 Paulo INDICE Adverténcia © quatro ERPUDIANO H AS MUTAGOES DA PST- CANALISE Introducdo 1—0 campo freudiano Origens ¢ formacio de Freud . A Tevolucdo psicanalitica A histeria © 0 0MhO ee oe. ee oi vee eee oe ‘A cura psteanalitica ‘Teorlas mitologias frou ‘A aplicacio da psicandlise: «novos horizontes» Freud e a pritica estética Freud, a cultura, a linguagem | IL—Desenvolvimentos ¢ mutactes da psicandtise Cisbes, discordancias, deformactes . © freudo-marxismo:' repressiio ou récaicamento Psicandlise e adaptagto ‘A mutagio lacaniana: linguagem @ estrutura | © inconsciente estruturado como uma lin- guagem : O inconsclente do sujelto € o dl 13 15 19 20 25 26 49 66 st 83. ES 97 99 104 110 118 122, 126 LUCIEN SVE © OUTROS renca qualitativa que tentamos mostrar ser, inicialmente, posta e desenvolvida através da linguagem, mesmo antes da erlanga poder falar, o que significa reconhecer a sociabili- Gade da linguagem em todas as suas dimensdes, O mérito historico da psicanatise esta procisamente neste ponto, & em mais nenhum outro, pois 6 a partir daqui que podemos compreender a necessidade do inconsciente como um resul- tado da existéncia social do sujelto humano, e ji néo como um caldo espiritualista propicio a todes os cozinhados da ideologia dominante (que certamente néo deixaré de o uti- Waar), 192 LUCIEN sBVE PSICANALISE E MATERIALISMO HISTORICO Quanto mais estudamos, no seu desenvolvimento hist6rico no decorrer da filtima metade do século, as relagdes entre psicandlise e marxismo, mais nos interrogamos se ji nfo teria sido dito tudo acerca deste assunto. Hm todo 0 caso, na literatura marxista francesa, foi h& muito definida, na base de uma s6lida argumentagio, uma posigio que hoje & cldssica e que se pode resumir assim: 0 mérito historic de Freud reside em ter sido 0 primeiro a considerar a sexua- lidade como objecto de ciéncia, para 14 dos tabus socials © dos preconceitos ideolégicos, e em ter comecado o seu estudo revelando uma série de factos apreendidos por uma prética fecunda: mas simultaneamente, este grande pioneiro permaneceu prisioneiro das ideologias dominantes da sua 6poca no que respelta is mais essenciais concepcéee acerca do individuo, da sociedade e suas relagées; estas ideclogias marearam profundamente uma prétiea psicanalitica enral- zada, de resto, nas relagdes sociais burguesas, que falsearam até ao Amago as suas construgGes tedricas, fizeram abortar na totalidade a tentativa clentifiea e relegaram a psicandlise para a categoria das ideologias reacciondrias. % por isso que qualquer tentativa de entendimento entre psicandlise e mar- xismo revela o mals mediocre eclectismo e, ainda com malor yaziio, toda a milsltificagio do , Ninguém melhor do que Politzer, na sua obra Médecine 195 LUCIEN SVE E OUTROS ‘ou Philosophie? (), contribuiu para 0 estabelecimento desta osigéo quando em 1924, com vinte ¢ um anos, fazia a defesa desta e que em «ter imposto a sexualidade como objecto de estudo> e ter ao mostrar a Importéncia da relacio médico-doente e dos comporta- mentos de transferéncia ("), Acentuavam mesmo: ; ora, diziam, (*) Dentro deste espfrito mostravam que elonge de responder a sua pretensio de constituir uma psicologia abissal; permane- cla uma pslcologia das “aparénclas"» ("), que, como téeniea analftiea apenas podia oferecer ao doente «uma tbertagio artificial num mundo Imagindrio> ("); pela mesma razKo que Permite que o conservantismo gocial encontre nela cuma arma Mdeolégica> ("), Fis porque, em concluséo, afirmavam que se Impde uma outra a quem Pretende militar por uma ( UM PROBLEMA A RETOMAR Quando hoje relemos tal texto, néo podemos deixar de nos surpreender com tudo aquilo que, nele, ainda tem vali- dade, com tudo aquilo que os dois ultimos decénios vieram conflrmar e gue ele teve a perspicdcla e a coragem de revelar, numa época em que a eritica marxista estava longe de possuir @ audiéncla que tem hoje. Bastard portanto, ao expor o tema Jé cldssico das relagbes entre psicantlise ¢ marxismo, limltar. mo-nos a reproduzir, embora actualizando-os, tais conside randos? Pensamos que nfo. Porque nos dltimos vinte anos OP. &, 0) 66, © Ber Pw. © Pp. 70 0 72, 198 ORITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA © problema complicou-se com o apareoimento de dois novos dados de grande importanela, Em primelro lugar, a vitalidade da psicanilise © a sua capacidade de reflexao autocritica © de aprofundamento, afirmam-se mais fortes do que o pen- savam a maior parte dos marxistas, Em 1939, Politzer escre- via que a psicandlise tinha entrado num perfodo de , que o interesse por ela tinha freudianas dos acontecimentos de Maio de 68 e outras eteorias> do mesino tipo apenas confir- maram a degenerescéncia anunciada, h4 30 anos, por Polit- zer, ¢ a intimidade existente entre a psicandlise ¢ as deolo- gias de mistificacso social ¢ politica —intimidade de que & necessirio aprofundar as raz6es, Néo, o que leva a por 0 problema de uma reavaliacéo da vitaidade da pslcandlise € © movimento de eregresso a Freud», inielado depois da guerra, em oposicio, pelo menos até certo ponto, iis utilizagdes mani. festamente ideolégicas da psicandllse; é a tentativa de pro- longar ag mais auténticas descobertas de Freud, separando-as, tanto quanto possivel, dos muito contestéveis pontos de vista Biol6gico ¢ sociolégico, de que o proprio Freud era tributério; 6 @ fecundacdo reciproca da psicandlise, da linguistica ¢ da etnologia sob a alcada da interpretacto estrutural, que a mais legitima vigilancia dialéctica nfo permite recusar sa (04 Berits, 2, pp. 282 © 302, 199 LUCIEN SBVE # OUTROS priori»; e € ainda, muito mais que um renovar de um freudo- -marxismo em que o marxismo é abruptamente adulterado, © iniciar de uma nova atitude, forcosamente ndo politzeriana, de alguns marxistas, a respelto da obra de Freud, considerada como sendo —no seu comeco— cientificamente homéloga da de Marx. B assim que L. Althusser, num artigo Intitulado «Freud fe Lacan» (*), reconhecendo que a caracterizacio da psieand~ lise como «ldeologia reacciondria» no tinha acontecido «sem razio>, acrescentava’ «Mas pode-se hoje dizer que estes mesmos mar- xistas foram, a sua maneira, directa ou indirectamente, as primeiras vitimas da ideologia que eles denuncia~ vam; pois que a confundiram com a descoberta revo- lucionaria de Freud, aceitando deste modo as posigies do adversrio, sujeitando-se as suas proprias condi- ges, e reconhecendo na imagem que ele thes impunha, a pretensa realidade da psicandlise. Todo 0 passado das relagGes entre o marxismo e a psicanélise depende, no que respeita ao essencial, desta confusio e desta impostura.» EH mais adiante retoma o classico paralelismo entre Marx © Freud: «Depois de Marx ficémos a saber que o sujeito humano, 0 ego econémico, politico ou filoséfico mio é © «centro» da histéria; sabemos, mesmo contra os Fil6sofos das Luzes e contra Hegel, que a histéria no tem “centro”, mas possui uma estrutura que apenas tem um seu “centro” necessdrio no desconhecimento (9) La Nowwelle Critique, n. 161-162, Dex. 64/Jan. 65, pp. 88 a 108, Tra dugio portuguesa, que transcrevemos in Estruturalismo, antologia de textos tedricos, Freud e Lacan, Portugilia Editors, pp. 25425. 200 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA ideolégico. Freud revela-nos, por sua vez, que o sujeito real, o individuo na sua esséncia singular nfo tem a figura de um ego centrado no “eu”, na “conseléncia” ou na “existéncia” —quer este seja na existencla do para-si, do corpo-préprio ou do “comportamento” — que © sujeito humano esté descentrado, constituldo por uma estrutura que também ela, nfio tem “centro” sendo no desconhecimento imaginario do “‘eu", isto 6 nav formacdes ideolégicas em que ele se “reconhece™» () As discordincias profundas entre tal posigio ¢ a atitude politzeriana, classica nos marxistas franceses, chegariam para exigir um retomar atento do problema das relagées entre psicandlise ¢ marxismo. ‘Tal retomada Impée-se tanto mais que um outro dado, de importincia essencial, veio sugerir uma releitura descon- fiada da critica politzeriana e da declarago de 1949: a to- mada de consciéneia, nos iiltimos 15 anos, de um certo nimero de falta de conhecimentos ¢ de deformagoes do marxismo que, em muitos casos, tinham alterado as nossas andlises dos anos 50 c, em particular, a tendéncia para a subestimacdo esquemética da complexidade das relagdes que podem existir entre trabalhos, pelo menos parcialmente clentificos, e as fungées de mistificacio ideolégica que eles preenchem, mesmo que involuntariamente. Aprendemos, através de uma longa © rica prética do trabalho tedrico e do debate de idelas, como @ dificil desembaracar a dialéctiea das relagées entre cléncla © ideologia (dificuldade que também se pode transformar subitamente numa desconcertante simplicidade) como a riva- lidade na politizagéo dos problemas 6 susceptivel de afectar a verdadeira firmeza dos principios marxistas: também aqui © exagero esquerdista se enraiza na inexperiéncia das lutas. ‘A este respeito, a afirmagio crucial da declaracio de 1949, que merece reflexdo, parece-nos ser a seguinte: (9 Op. cit, p. 107. Teadugdo portuguesa, pp. 254256, 201 LUCIEN S&VE E OUTROS «Seja o que for que possam pensar alguns psica- nalistas, acreditando sinceramente no desinteresse da- quilo a que chamam a sua cléncia, ndo é possivel dis- sociar a psicandlise da utilizagdo politica que dela se faz e que alguns esto prontos a repudiar, qualifi- eando-0 como falsificagso.> (*") Num certo sentido, que deve ser esclarecido, todo 0 pro- blema das relagbes entre psicandlise ¢ marxismo reside pre- cisamente aqui, © facto de a Ugacdo entre as teses centrais de Freud e © uso que delas se faz, nfo ser, em grande parte, contingente @ meramente externo, mas pelo contrario, intimo e dificil de romper, facilmente se mostra, e este livro demonstra-o mals uma vez, Assim, que néio nos atribuam a rejelefio dos mais fundamentais principios da erftica marxista das ideologias como se se tratasse de cuma estreiteza sectarista dos anos 50» pois, pelo contrario, tudo leva a crer que se trata de uma reacgéio contra a degenerescéncia ideolégica no weio da pré- pria psicandlise. Mas quando 6 que a ligacio intima entre um niicleo clentifico e uma cobertura ideolégica, impediu 0 tra- balho da sua dissociagdo? Se assim fosse, todo 0 trabalho de ‘Marx sobre a dialéctica de Hegel teria sido uma pura perda. A histéria do pensamento, a hist6ria das ciénclas é fértll em exemplog de descobertas fecundas efectuadas no préprio selo das mais mistificadoras, das mais retrégradas 1deolo- gias—mais: descobertas que necessitaram dessas ideologias como catalisador, B assim, sabemo-lo, que 0 prinefpio meta- fisico letbniziano ¢a natureza nflo dé saltos», a ideologia demo- eriitieo-burguesa do proceso continuo, embora desempenhando um papel positive considerdvel na formagio do evolucionismo biolégieo de Lamarck a Darwin, mascara ao mesmo tempo a Importancia teériea dos factos de mutagio, enquanto a beatice conservadora de Cuvier, negativa A primeira vista, ©) La Nouvelle Critique, nw 7, Junho de 1919, Sublinhado do. autor, 202 ORITICA MARXISTA DA THORIA PSICANALITICA desempenhou, involuntariamente, um papel positivo, através da concepefo criacionista das do dogmatismo especulativo do sistema hegellano; isto demonstra que a ceguelra perante as verdades cientificas e uma «gene ralizacdo excessiva> da psicandlise e, por conseguinte, dis 205 LUCIEN S8vE £ OUTROS pensar-se de procurar atentamente quais as relagdes existen- tes entre a doutrina freudiana e a . Mas nfo deixa de concluir, nas dltl- mas pginas do livro, que ese reencontra no complezo dé 2Bdipo, a0 mesmo tempo, o comeco da religific, da moral, da sociedade e da arte» e expressa claramente o seu pensamento na seguinte nota: (*) Nesta afirmacio vemos atribulr inequivocamente & psi- eandlise 0 papel explicative «principals no que respeita & «sociedade> em geral, e que visa até desqualificar teorica- mente «a priorl> qualquer argumentagdo em contrrio, desde 44 apresentada como manifestagio de uma Freud nunea alterou a sua posi¢fo sobre esta tese. Assim, quinze anos mais tarde em Psychanalyse et Médecine, torna a afirmar: « entre os actos obsessivos das neuroses e 0s exercielos rituals de pledade: o a um capitulo de um livro seu, onde escreve: «sta analogia encontramo-la na psicopatologia, na génese das neuroses humanas, quer dizer num dominio da competéncia da psicologia individual, enquanto os fen6menos retigiosos pertencem ao dominio da psicolo- ) Totem et Tabou, p. 8. ©) L’Avenir d'une itlusion, pp. 62 © 7. 209 LUCIEN S8VE E OUTROS gia das multidoes, Ver-se- que esta analogia néo 6 ‘Go surpreendente como parece A primelra vista; ela equivale mesmo a wm postulado.> (*) ‘Mas, com esta iltima proposigfo, a atitude de Freud ofe- rece-nos um outro aspecto que j4 ndo nos deve surpreender: no tendo deixado de se Ihe impor durante 30 anos, a analogia entre fenémenos religiosos e neuroses individuals (e 6 neces- sarlo tentar compreender como isso foi possivel) nao poderia permanecer no seu espirito como uma simples comparacéo subjectiva, mas levaria a postular uma ligagdo objectiva entre ‘ambos, quer dizer, a passar de uma constatagio de semelhanga A hipétese de uma identidade essencial, A forma como se efectuou esta passagem assume, admitimos, uma importancia capital: aqut se decide toda a concepefio das relagdes entre psicandlise e ciéncias socials, aqui se decide o proprio lugar da psicandlise no quadro das ciéneias humanas. Ora esta Passagem faz-se, em Freud, sem sombra de diivida, no sentido de uma assimilagéo — pelo menos quanto ao essencial — da énose da religido ao mecanismo du neurose individual, quer dizer no sentido de uma profunda psicologizagio dos processos sociais, de uma eanonizacdo da forma do psiquismo indivi- dual como factor origindrio dos factos humanos, Em Moise et le Monothéisme, por exemplo, Freud escreve indiferente- ‘mente que a religido tem importantes analogias com a neu- rose Individual © que ela «nfo passa de uma neurose da humanidade>, «que o seu enorme poder se explica da mesma mancira que a obsessio neurética de alguns dos nossos pacientes» (*); e tem, visivelmente, to pouea cons- efénela das objeccdes radicais que esta passagem pode pro- vocat, na base do materialismo histérico que, apesar da sua habitual circunspecedo no que respeita a possivels eriticas, no tenta © mais pequeno esforgo para a justifiear, () Moise et fe Monothéisme, Gallimard, 1948, pp. 79 ¢ 99. Subliohados aes, 9 Ibid, p. 76, Sublinhados de L. 8, 210 ORITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA Sem davida que 6 em L’Avenir dune Musion que melhor aparece esta cogueira teérica de Freud (a mesma da 1deo- logia dominante na época) a respeito do pressuposto funda- mental sobre o qual assenta toda a sua investigagio: que a colossal realidade histérico-social das institulgdes e das ideo- logias religiosas, assim como dag relacdes sociais em que repousam, longe de ser a base objectiva da religiosidade indl- vidual apenas uma simples projecgtio da conseléncia erente, Depois de ter escrito que «para o individuo, como para @ humanidade em geral, a vida é dificil de suportar» ¢ que 6 fért!l em ameacas, mas que na religifo , e prossegue: , aparentemente homogéneo ao longo da pagina, posto um ‘sinal de igualdade entre dois enés> antropolégicos de que nao diriamos o suficiente se afirméssemos que a coln- cidéncia nao é evidente: a questo consiste precisamente em verificar se nfo se trata, por acaso, da mistificacio idealista fundamental das cléneias humanas, ©) Wavenir d'une Iusion, pp. 22 2 24 au LUCIEN S&VE & OUTROS ‘Com efeito, por um lado, 0 «nds» remete para no sentido de , quer dizer, na ocor- réncia do fenémeno social religiio; mas por outro representa a crlanga que cada um de foi, ou seja = = erlanga que se ter numa situagio anéloga «quando era eriancas, ou seja, misturando, por meio de outro jogo de palavras com 0 termo , tem como caracteristica (*), que () LiAvenir d'une Mlasion, p. 4. 212 CRITICA MARXISTA DA THORIA PSICANALITICA as instituigdes do totemismo se baselam «nas necessidades psiquicas do homem, de que so a expressdo> (*), ¢ que, mais geralmente, a sociedade se explica, em ultima andlise, no dominio da psicologia colectiva que, por sua vez, se apoin. na andlise do ego (*). No entanto, nalgumas raras ocasi6es, Freud apercebe-se ligeiramente de como a existéncia sociel das Instltuigdes ¢ das Ideologias religiosas pouco se reduz s condicdes psiquicas da religiosidade individual. Em 1/Avenir @une Mlusion vefere que 6 (*): assim se mascara, pela con- viegao prévia de poder encontrar a explicacdo final na ‘génese psiquica das ideias religiosas» (*), a aculdade da contradic que aparece e, em seguida, os verdadeiros termos pelos quais se pOe globalmente 0 problema. Ora, uma vez formulado este postulado na ignorancia das objeccdes de fundo que levanta, Freud nfo consegue liber- tar-se de uma série de postulados que o conduzem cada vez mais para posicdes insustentavels, Admitamos, com efeito, por momentos, que é legitimo tratar a sociedade como um sujeito colectivo dependente no fim de contas das categorias de uma cigneia do psiquismo; admitamos que a religifio repro- duz escala social os mecanismos da neurose individual Como esta altima se explica, segundo Freud, a partir da ©) Totem et abou, p. 125. ©) CE. Paychologie Collective et Anslyse dis Moi, nos nalyse, Payot, 1971 ©) L'Avenir d'une Mlusion, pp. 30 ¢ 33. Sublinhsdlos de L. S. on sais de Psych 213 LUCIEN S8VE E OUTROS situacdo em que nos encontramos na primeira infancia, tratar @ religigo como uma neurose da humanidade signifiea que dela nos apercebemos pelos comecos da sua histérla, ou seja, significa tomar rigorosamente a letra a metéfora de uma cinfancia da humanidader, ou melhor: assimilar 0 desenvol- vimento individual da hist6ria a0 desenvolvimento de uma vida individual, ® o que Freud nos pede, explicitamente, que admitarhos: <..admitir que a humanidade no seu conjunto Passa, no decorrer da sua evolugfio, por estados and- logos aos das neuroses (e isto pelas mesmas ra- zSes)> (1); «... admitir que 6 possivel fazer uma apro- ximacfio entre a historia da espécie humana e a do individuo. Isto quer dizer que a espécie humana passa, também ela, por processos com contetidos agressivo- -sexuais que deixam vestigios permanentes, embora tendo sido na maior parte afastados e esquceidos, Mais tarde, apés um longo perfodo de laténela, tornam-se de novo activos e produzem fenémenos comparaveis, pela estrutura e tendéncia, aos sintomas neuréticos.»> (*) Deixo aqui de parte, porque 6 exterior ao que temos vindo a debater, a discussio do préprio contefido das teses e hips- teses antropolégicas com a ajuda das quais Freud pensou poder projectar na prépria uma situagdo ediplana: horda primitiva segundo Darwin, refeig&o totémica segundo Robertson Smith, assassinio do pai pela associagio dos filhos segundo Atkinson, Mas, mesmo admi- tindo @ hipétese global de um traumatismo infantil da hume- nidade, pelo menos um ponto permanece obseuro no funcio- namento clentifico da analogia: como 6 que esta cinfancia da humanidade» pode ? sta questéo nfo deixou de embaracar Freud, Nuio tendo 4 menor ideia do materialismo histérico, desconhecendo 0 facto determinante de que a actividade humana se objectiva socialmente e permanece exterior aos indiwiduos, no mundo das relagdes sociais onde a Individualidade social desenvol- vida encontra a sua verdadelra base, 6-Ihe necessério aceltar cada um dos corolérios da psicologizacdo da socledade, Em Totem et Tabou escrevia: «Certamente que a ninguém escapou que postulamos a existéncia de uma alma colectiva na qual se efecti- vam processos iguais Aqueles que tém lugar na alma individual.» pée-lhe «... um novo problema, este essencial, Trata-se de saber sob que forma persiste a tradicio eficiente na exis tencia dos povos, problema que nfio se pée em relacéo a individuo, pois nele esta resolvido pela existéncia de tracos mnésicos do passado no inconsclente.» (**) Considerando a inconsisténcia de uma explicacdo baseada 09 Moise et le Monothéisme, p. 177 eB. 125. 9 P. 126. 216 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA nas «tradigdes oraiss, Freud nfo teve outra saida sendo adoptar 0 postulado suplomentar de uma hereditariedade psicotégica: & necessario, admitir que o individuo transporta em si, desde o nascimento, (*), Infelizmente, e Freud sabe-o, ca blologia, no mo- mento actual, nega totalmente a hereditariedade das quali- dades adquiridas, Wxistiré outra saida? « (") De facto, 0 que é considerado aqui como audécla teérica, nio passa de uma fuga desesperada para novos suportes ideoldgicos, que fraquejam sistematicamente, PRUSENCA DE UMA ILUSAO: A foi, propriamente falando, uma inf”incla no sentido edipiano do termo, cujos vestigios se teriam conservado na genera- Udade dos individuos por meio da hereditariedade psicolé- gica, embora esta nog seja condenada por tudo aquilo que se sabe, quer em genética, quer em pslcologia; que a crianca, © primitivo e o neurético constituiriam, em definitivo, indepen- dentemente das suas diferencas, trés manifestagées de um Processo psiquico fundamentalmente uno cuja solugio nos seria dada pela andlise da neurose (*), enquanto todo 9 mo- derno movimento das ciéneias humanas tem argumentado con tra estas analogias falaciosas; e para coroar tudo isto, leva- -nos a fazer depender a compreensio dog factos humanos no ‘seu todo de um dos dogmas mais ultrapassados do dltimo século: a aplicacéo do principio biologic de reprodugio das fases fundamentais da fllogénese nas da ontogénese & psico- logia humana e a histéria mediante uma assimilacdo prévia de cfilogénese socials a uma «ontogénese psiquica>, Desta- quemos ainda mais 0 aspecto essencial: a psicologizacdo da sociedade, quer dizer a ignordncia das suas bases materiais especificas, conduz inevitavelmente qualquer teérieo conven- cido de que a ciénela ou 6 materialista ou nfo 6 ciéneia, que era o caso de Freud, a procurar um substitute desta materia~ lidade histérico-social na via de uma biologizacdo radical dos factos humanos no seu conjunto, A reflexiio de Freud sobre a religitio, e de um modo mais geral sobre a sociedade, 6 prova esclarecedora disso: niio consegue defender a assimilacio do soclal ao psiquico, a néo ser assimilando simultaneamente em profundidade 0 psiguico a0 biolégico. 09 CF. por exemplo, Totem et Tabou, pp. M46 © 18 218 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA (*) Perante um texto destes é dificil niio concordar que, por muito importante que possa ser uma releltura contempo- ranea de Freud com vista a descoberta do a capa biologizante, a distinc entre a nocdo de pulsio (Trieb) —cuja fixagio a um objecto estarla assegurada ao longo da histéria do sujeito— e o instinto (Instinkt) — onde esta fixagio seria hereditaria ()— nflo o 6 menos todo o Procedimento de Freud quando procura atribulr & psicand- lise o principal papel explicativo no campo das ciénelas huma- nas, o que implica o psiquismo individual, Diologizar os factos humanos, aparecendo a hereditarledade psiquica como o tinico melo de dar ao social uma base indivi- dual, ao individual uma dimensio social, ‘Mas, por uma recorréncla final, a inevitével biologizacio dos factos humanos implica por sua vez a negagho do seu cardcter fundamentalmente hist6rieo, isto 6 a erenca numa naturesa humana no fundo imutévet: psicologizacio do social, biologizagtio do psiquico, naturalizacsio do humano, sio assim 09 trés postulados maximos em que assenta a colocacio da Psicandilise no centro das ciénclas do homem (*), Endo se (©) Moise e¢ le Monothéisme, p. 136. Sublinhados de L. 8 (#) Cr. por exemplo, J. Laplanehe ¢ J. B. Pontalis, Vocabuldirio de Ps. candtise, Morais, 1970, artigos «Instinto» e «Pulsion (HB por isto que nio t@m futuro cientifico ar tentativas para «des. biologizar» a obra freudiana, caso apenas consistam em procurar, por exem plo na Tinguistica, explicagies substitutivas destes estados _biold Accadentes para desse modo salvaguardar a economia de conjunto, ¢ em particular a psicologizagao ultima dos factos humanos, Como vimos, 0 bio. logismo nio é, em Freud, um erro local grosseiro, contingente; ¢ uin elo ORITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA imagine que a «natureza humana» aparece apenas marginal- mente na obra freudiana, nos espagos em braneo que um dos mals originais processos tedricos delxa sempre a ideologia dominante, Um livro como Malaise dans la Civilisation, es- crito numa altura em que Freud h4 multo dispoe de todos os seus conceitos essenciais, 6 inteiramente construido a volta dessa_ideologia. Qual, afinal, a tese central? Aquilo que ameaca «o progresso da civilizaco>, aquilo que perturba «a vida em comump, so as pulsdes humanas de agressio fe autodestruicdo>; que a luta (*) Noutros termos, 0 ponto de vista a partir do qual se pretende que sejamos esclarecidos acerea da signifieacio geral da historia humana consiste em «que a agressividade uma disposicdo instintiva, primaria e auténoma do ser humano». «J4 nfo posso compreender que continuemos cegos perante a ubiquidade da agressiio ¢ da destrulcdo nfo eroti- zadas, © que neguemos dar-Thes o lugar que merecem na inter- pretagio dos fenémenos da vida.» E, no imaginando sequer niecessirio a uma forma de pensamento que comeca por tomar como forma: -padrio dos factos humanos a sua forma psfquica individual, pols nio Feconhece a materialidade da esséneia humana na dialéetica das forcas © das. relagées de produgio social. Nio podemos, portanto, escapar a0 dilema: desbiologizagio sem significado real, ow abandono completo da Propria psicolopizagio. Mas neste segundo caso acabase com qualauer pretensio da psicandlise a0 papel explicativo «principal» dos factos hnuma- hos no seu conjunto, (8) Malaise dans ta Civitisation, pp. 91 © 100 zat LUCIEN seve & OUTROS gue se pudesse atribuir a esta eoncepetio qualquer objeccdo que néo fosse a de um optimismo teolégico, acrescenta: « verdade que agueles que preferem os contos de fadas fazem orelhas moueas quando se Ihes fala de tendéncia originéria do homem para a “maldade", a agressio, a destruicéio «, portante, também para a erueldade, N&o 6 verdade que Deus fez 0 homem & imagem da sua propria perfeigho?> (#) necessiirio dizé-lo: se em certo niimero de aspectos a obra de Freud nos dé a forte impressio de estarmos perante um pensamento cientifico profundamente original e fecundo, 98 aspectos que temos vindo a citar reflectem a mals me. diocre ideologia (+), vé-se bem, em definitivo, a que se deve esta entriste- cedora queda ideolégica de um esforco a que devemos indi bitavelmente novas perspectivas em relacdo a numerosos factos humanos: 6 que Freud, melo século aps Marx, no compreendeu o que é a sociedade humana ¢ a sua hist6via, Ao mesmo tempo, longe de estar em posigio de aclarar © conjunto dos factos humanos — por exemplo 0 religioso — @ partir da psicandlise, encontrara-se mesmo impedido de Pensar de um modo valido o lugar ocupado e os limites da psicandlise no quadro, diferentemente centrado, das ciéncias humanas, Como 6 que Freud apresenta, afinal, a socledade? Segundo a velha concepedo idealista e tipicamente burguesa de um pacto social voluntariamente estabelecido entre os (9) Pp. 95 7. () erificndo a inconsiténia desta soncepsto de sina ovihns Fa do homens, Laplanche e Ponilis (Vocabudane te ieee uma interpetagio menos grosselraments naturalists de soreetdeae en permite pore a estas tela de Freud on orgindude ete feovie, Resta perguntar tals Sngemuidades Weolgieas noo ese ore tives moma tora que comeea, por psldlogiae a cate 22 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA individuos com 0 objective de procurar uma solugho colectiva para as dificuldades inerentes ao estado natural do homem. «2 precisamente por causa destes perigos com que ‘a natureza nos ameaga que nos aproximémos uns dos outros e cridmos a elvilizacio que, entre outras razbes, deve permitir-nos viver em comum, Na verdade, a prineipal razo da existéncia da clvilizagio reside em proteger-nos da natureza.> (*) «Tudo leva a crer, esereve em Moise et Te Bono- théisme, que a seguir ao assassinlo do pal os Irmios discutiram a sua sucessiio, durante muito tempo, pre- tendendo cada um deles possulr a heranca sozlaho. Mas chega uma altura em que compreendem o perlgo © inutilidade dessas lutas, A recordagtio da ibertactio que tinham realizado om conjunto, os lagos sentimen- tais que tinham erlado entre si, levaram-nos ao entendi- mento, a uma espécle de contrato social. Daf surge uma primeira forma de organizactio social renunciando aos instintos, aceitando obrigagdes matuas, estabelecendo certas Instituig6es consideradas invioliveis, sagradas, enfim, 0 infelo da moral e do direito.» (*) Assim, por um lado individuos considerados apenas sob 0 Angulo das pulsdes, como seres de desejo estruturados na primeira Infancia, Isto 6, essenclalmente pelag relagdes fami- jlares, e por owtro uma sociedade reduzida a algumas das | | suas superstruturas (direito, moral), identificada em suma com uma lei proibidora —tal a imagem idealista e simplista até & caricatura, por meio da qual a obra freudiana julga poder dar a conhecer ("), (©) LeAvenir dune Mlusion, p. 22. (©) Moise et te Monothéisme, p. 112, (©) Malaise dans ta Civilisation, p. 78, 223 LUCIEN S8VE BH OUTROS Compreende-se agora melhor por meio de que truque de prestidigitacio, nitidamente inconsclente, a psicandlise se pode maravilhar por abrir todas as portas das ciéncias humanas com a gazua dos mecanismos neuréticos: abstrain- do-se @ partida quase totalmente, de tudo o que constitui a sociedade reat —forgas produtivas, relagbes sociais, vida polt- tica, formas especificas de consciéncia social, luta de classes, Iuta de ideias—e das actividades correspondentes nos indi viduos reais — do trabalho social ao pensamento tedrico, p: sando pelos comportamentos politicos —a psicanalise apenas conserva como definigfio de fica assim antecipadamente garantido. Vejamos por exemplo a questio dos conflitos socials, politicos e internacionais gritante na al- tura em que Freud escreve Moise et le Monothéisme. Cada vez que os aborda, Freud comega por proceder, nflo como se se tra~ tasse de contradicdes entre realidades sociais (classes, Hsta~ dos, nagdes) mas de diversas figuras de um eterno conflito entre os e (*) Encontrando-se assim todo 0 conflito sociat reduzido a um combate entre o individuo e a sociedade> e a propria «socte- (© P. 47, Ct. igualmente, no mesmo sentido, Considérations Actuelles sur ta Guerre et sur la Mort, in Essais de Psychanalyse, Payot 224 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA dade> assimilada a uma instituico étnico-juridica, cuja funcdo proibitiva e repressiva.é de tipo paternal, nio nos ‘espantaremos ao ouvir que o segredo comum da guerra de 14, do fascismo, do anti-semitism e do bolchevismo, esta no complexo de dipo, De resto, para flcar ainda mais seguro de poder assimilar 0 social ao paternal, 20 mesmo tempo que explica o individual pelo infantil, Freud, através de uma concessdo suplementar A psicologizacio idealista da sociedade, apresenta como fundamento do direito e da moral a influéncia dos homens ilustres: assim, 0 efrculo fecha-se € da relagéo social em desenvolvimento nada mais resta do que um imutavel frente a frente dos individuos, individuo; fundamenta-se na impressio que atris de si deixaram as grandes personagens, os condutores, 03 homens dotados de uma forga espiritual dominadora, nos quais uma das aspitages humanas encontrou a sua expresso mais forte e mais pura e, por isso mes- mo, também a mais exclusiva.» (*) Estamos aqui ao nivel do Bergson das Deux Sources de la Morate et de a Religion. Talvez esta comparagio até seja injusta para Bergson, © drama de Freud consiste em ter vivido e pensado num universo social ¢ cultural que o obrigou a ignorar totalmente a contribuicdo, decisiva nestas matérias, do marxismo. Quanto mais se afasta da prética analitica, a partir da qual consegue elaborar conceitos novos e especificos, mais o seu pensamento (©) Maiaise dans ta Civilisation, p. 102. Moise et te Monothdisme, capitulo sobre «Le grand homme 225 LUCIEN SeVE EB OUTROS 6, sem que ele o note, dominado pelas ideologias burguesas que Informavam a ciéncia da época: blologismo pés-dar- winlano, ético-Juridismo pés-Kkantiano, que encontramos na aso da sociologia e da etnologia em que se apolou. A cléncia- -piloto, cuja existéncia desconheceu totalmente, 6 a economia politica, tal como @ fundada por O Capital, de Marx; 0 conceit decisive perante o qual Freud se mostrou sempre eego € 0 conceito de relagées de produc, Ao inventariar, em Malaise dans ta Civilisation, cag relages dos homens entre als, esereve: sBstas relagdes, ditas socials, referem-so aos serea humanos considerados, quer como vizinhos uns dos outros, quer como individuos esforgando-se em entrea- Juda quer como objectos sexuals doutros individuos, quer como membros de uma familia ou de um Es tado.» (*) Nilo Ihe ocorre que nenhuma destas rubrieas — incluindo a centreajuda» — niio tem em consideragso as relacbes no seio das quais os homens produzem colectivamente os bens mate- riais: divistio técnica e social do trabalho, relagdes de pro- Priedade, por isso que todas as vezes que refere a questao do comunismo, apesar de algumas prudénelas e, de qualquer modo, de se recusar a condené-lo (*), Mas Freud ignora tudo sobre as classes; conhece apenas (""). Repete-o em Malaise dans la Civilisation: «A grande maiorla dos homens apenas trabalha Sob coacgiio, e desta aversio natural pelo trabalho nascem og mais graves problemas sociais.> (®) Bis 0 que compreendeu do comunismo: «Os comunistas julgam ter descoberto a via para a libertagio do mal. Para eles, 0 homem é apenas bom, apenas deseja o bem do préximo; mas a instituicao da propriedade privada viclou a sua natureza>; por- tanto, a abolicko da propriedade privada ters. como resultado que e «todos se subme- terdio benevolamente A necessidade do trabalho» (#). Duvidamos: este (*) qualquer tentativa de recons- ©) P18 (A Malaise dans ta Civilisation, p. 26, nota, (9 Pp. 66 6 67. PF, oP. 105, P69, OP, 228 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA trugdo da civiliggcdo falhar, pois ca natureza mais do que ninguém, pela soberana desigualdade das capacidades fisicas mentale distribufdas pelos humanos, cometeu injusticas contra as quais néo hé remédio» (*). J niio se trata de um Bergson, 6 quase LeGo XIII: Rerum Novarum, 3.* parte, I, 1, ponto 14 «O primeiro principio a considerar & que 0 homem dove aceitar ‘esta necessidade da sua natureza, que torna impossivel, na sociedade, a elevagio de todos ao mesmo nivel. # isto sem davida que pretendem os socla- Listas. Mas contra a natureza todos os esforcos siio vios, Foi ela que instaurou entre os homens diferencas tio variadas como profundas: diferencas de inteligéncla, de talento, de habilidade, de satide, de forca; diferencas necessdrias donde nasce espontaneamente a desigual- dade das condigées.» LIMITHS DE FREUD Resumamos. Surpreendido por certas analogias entre os fenémenos neurdticos, tal como os compreendia, -e diversos comportamentos socials — por exemplo ao nivel das priticas religiosas— Freud chegou a conclusio de que a psicandlise poderia, néo s6 intervir no quadro geral das ciéncias socials mas desempenhar mesmo o principal papel explicativo. Mas isto significava ter de admitir implicitamente 0 postulado decisive segundo 0 qual o psiquismo individual pode ser tomado como forma de referéneia universal, como base real de todos og factos humanos, Dal, por uma cadeia de postu- lados obrigatérios, a psicologizactio da sociedade, a biolo- gizaghio do psiquismo, a naturalizacho do homem, que levam 9 P. oF, nota. 229 LUCIEN SRVE E OUTROS @ esta jé banal quadratura do cireulo: considerar a historia nos termos nitidamente nao histéricas de uma teoria da «naturesa humand». Deixemos de lade, de momento, a questi de sabermos se uma tal concepefio nfo historia pode ser fecunda para a compreensao de certos aspectos dos processos de hominizag&éo do antepassado do homem, o que no 6 im- Pensiivel, mesmo do ponto de vista da dlaléctica. Mas 0 facto 6 que, aplicada a histéria no sentido mais lato do termo, obriga um pensador da envergadura de Freud a descer ao nivel da asneira pura e simples. ® pois necessirio considerar toda a pslcologizacio da sociedade, ou qualquer pretensio de eentrar 0 campo das ciéncias humanas no psiquismo indivi- dual, seja qual for a forma sob que se verifique, um daqueles erros estratégicos sem cuja eliminagao definitiva podem ficar numa situagiio de impasse sectores intelros do conhecimento clentifico, Seja qual for o valor da psicanflise dentro dos seus préprios limites, uma coisa 6, desde j4, certa: 6 que estes Umites se situam completamente fora do camps da histéria © das realldades sociais que Ihe pertencem, % necessirio saberse que: ndo existe uma (*) Este «precisamentes 6 notdvel! Porque, em suma, Fre atribul @ decadéncla da religlio ao taste’ de a momanlenee abandonar a infdnclas, Mas como € que cle secoumenn ae termos psicanalfticos, que ela sai da infancia? Melhor: que fentido pode ter a aopio da passagem da humane g dade aduta, quando se considera que 9 su destine ata dum bad pela eiuta eterna entre Bros © © inatinte de dectennng ou do morte> (*)? tnquanto, alguns anon mais cody: nena Lindo sobre a Primelra Guerra Mundial afirmare seater mente, para combater ae ilusSes do progrtnse, que at nn existe de mais primitive na nossa vida pslgulen @ Neerohncine | mperecives, e considerava que os povor sainda se enenrtonn em tasea de organizacdo multo primitivas, nasa aleve wn Bouco avancada do pereurso que conduz & tormagia he wa dades superiotes>(*). Porque 6 que Trend reveriee swe humanidade chegou hoje a um estddio de deamvelvinnte sulleleatemente avangado pata conduzit a9 desarreeinens da religito? Por nada nfo. ser «precisamenten es Gesaparecimento da religito ("). A explicacko que aqal nos proposta nfo passa. de uma tautologa, de. wea tine de gages Pp. 249 e 251. Mot i Boole tay asec a 232 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA anestesiadora do Oplo». Se quisermos, pelo contrario abordar esta questiio em termos de classe, e no a partir da abstraceio vazia que & co homem oterno do Eros e do instinto de morte —reflectindo, por exemplo, sobre 0 seguinte facto social: a descristianizacao prioritéria da classe operdria; & desde logo, independentemente dos impasses da psicologiza- do abstracta do facto religioso, 6 a andlise concreta das relagdes existentes entre a ideologia social ¢ as bases reals desta ideologia que se nos oferecem, substituindo a nogio vazia e arbitrdria de dos factos psico- Iogicos ndo é de ordem psicol6gica, de que ordem 6 entio? (Cf, Michel Verret, Les Marsistes et ta Religion, 8a, Sociales, prin- Imente © capttulo «Une classe athées, © R. Leroy, A. Casanov , Les Marsistes et UBvointion du Monde Catholique, #4. Sociales, nomeadamente pp. 34 ¢ segs. (©) G. Politer, Les Fondements de te Psychologie, Bd. Sociales, p. 170 LUCIEN S&VE © OUTROS Se A psicandlise ndo € permitido relvindicar um papel expll- cativo central das cléncias humanas, que outra cléncia, se que hé alguma, o pode pretender? E em que posigio se colocaré em relacdo & psicandlise? Poder-se-4 admitir que no passa de ilusio a ideia, tio divulgada, de que a psica- nélise nos permite compreender multo mais do que os meca- nismos da neurose? Tais sio as questdes, inevitavels e legi- timas, que teremos de abordar antes de tirar alguma con- clusdo sobre as relagbes de conjunto entre psicandlise e mate- rlalismo histérico, Partamos dos factos, ¢ nomeadamente dos factos mais simples e mais conhecidos, ainda que, para Ihes compreender plenamente 0 significado ¢ a dimensio, os psicélogos @ antro- pOlogos tenham tido necessidade de dissipar ilusdes extraor- dinariamente marcantes ¢ elaborar percursos tedricos parti- cularmente complexes. Desde o século XIX ag ciéncias blol6- gicas estabeleceram, de forma irreversivel, a origem animal do homem e, por consequéncia, a necessidade de colocar em termos biol6gicos os problemas referentes ao ponto de partida da ontogénese e da filogénese da espécie humana, Mas os progressos mals significativos das ciénelas do homem no século XX obrigam-nos © permitem-nos compreender esta passagem da animalidade & humanidade, nfo como uma sim- ples complecificagdo evolutiva e genétiea, mas como um pro- cesso dialéctico em que a continuidade das modificagBes quan- titativas suporta uma ruptura qualitativa, uma negagdo das mais propriedades essenciais da realidade origindria, de tal modo que a humanidade, ao prolongar sob certos aspectos a animalidade, 6 fundamentalmente algo de diferente, e mesmo, sob determinado aspecto, precisamente o contrério, Compa- remos, com efeito, as caracteristieas mals gerais do psiquismo animal e do psiquismo humano. O trago dominante no pri- meiro é sem diivida, a auséncia de qualquer progresso comportamental notavel na espécle, a nfo ser ao ritmo extre- mamente Iento dos correspondentes progressos biolégicos, As abelhas de hoje ndo procedem de um modo diferente das do tempo de Virgilio. Tal facto nada tem de misterloso, Mfectl- CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA vamente, og animais nfio produzem nada de durdvel indepen- dentemente de si, a nfo ser modificagdes limitadas e pura- mente repetitivas do seu melo, a sua reprodugdo 86 acumula —muito Ientamente— a cexperiéncia da espécle sob a forma de aptiddo para determinados comportamentos, armazenada no patriménio genético © transmitida biologicamente de modo fa que cada individuo a encontra dentro de si préprio, sob a forma de um saber-fazer hereditario ou de processo de matu- ragho, & precisamente por Isso que, nos animais as aprendi- zagens individuais niio podem alterar nada de importante no destino comportamental da espécle. Isto no 6 apenas valido para as espécies —por exemplo Insectos— nas quais, a bre- vidade da vida individual e a pobreza do sistema nervoso em capacidade de armazenagem de informacio, condenam a aprendizagem a apurar a adaptag&o especifica as condig&es do melo, Porque, mesmo nos vertebrados superiores, que sob este aspecto tem multo maiores posslbilidades, a aprendi- zagem individual também nfo se faz através de formas comportamentais determinadas pelo patriménio genético e a partir de dados —comportamento dos congéneres, regula! dades do meio— que evoluam de um modo diferente dos deles, Portanto, 0 psiquismo animal encontra-se fundamen- talmente sob a dependéncia da natureza © especialmente da natureza da espécie, 0 que signifiea que nfo poderin eman- clpar-se dos limites atingidos pelo patriménio genético e pelos esquemas comportamentais que Ihe estiio ligados num deter- minado estdio da evolucto, PSIQUISMO HUMANO E EXCENTRAGAO SOCIAL Inversamente, 0 que caracteriza o psiquismo da humani- dade evoluida, nfo apenas a relativa pobreza das habilidades hereditérias ¢ dos comportamentos ligados a uma maturactio 235 LUCIEN SBVE © OUTROS orgduica, ou 0 extraordinario desenvolvimento das capaci- dades biologicas de aprendizagem individual, pols, apesar destas condigdes, uma «crianga selvagem», por exemplo, nio atinglré nfvels de comportamento muito diferentes daqueles que atingem og vertebrados superiores; 6 que acima de tudo, & aprendizagem individual, embora assumida por um orga. alsmo com possibilidades andtomio-fislolégicas definidas, i- berta-se fundamentalmente dos Timites naturais pelo duplo facto de se efectuar a partir de dados e sob formas compor- tamentals eatoriores @ qualquer patriménio genético e sus- ceptiveis de iimitadas transformagdes ¢ acumulacées histé- ricas. Por um lado, com efeito, ao produzirem os seus meios de subsisténcia, os homens realizam nao s6 simples actos psiquicos que se extinguem na sua efectlvacdo, mas também meios materiais de producdo —em primeiro lugar o silex talhado— que perduram para além do acto de produgio ¢ do proprio produtor enquanto matrizes externas de compor- tamento (um simples machado de pedra pré-histérico repre- senta uma técnica de talhe e um gesto utillzador materiali- zados) e que stio, portanto, susceptiveis de acumulagéo, Assim se comeca a constituir-se um patriménio social —for- gas produtivas, relagdes socials, linguas e conhecimentos, institulgdes, ete.— que, sob o ponto de vista que nos interessa, ndo passa de psiquismo objectivad sob uma forma ndo psiquica. Por outro lado e conjuntamente, 0 suporte nervoso dos comportamentos deixa progressivamente de ser o cérebro enquanto érgiio dado, para ser constituido por sistemas esté- vois de actos cerebrais formados no decurso da aprendizagem individual e que constituem um segundo nivel de verdadelros Srgaos funcionais Mbertos das coaccées da fixagéo e da trans- missdo hereditarias ("), Por outras palavras, a passagem da animalidade ao ho- mem significa que a uma forma de armazenagem interna da (9 Cl. os estudos de A. Leontiev, in Recherches Internationales & 4a Lumiere due Marxisme, n.° 28 (1961) sobre eL'édications m:° 46. (1965) sobre «L hommes 236 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA experifncla. da espésie, sob a forma de um patsiménio gené- fico do eptidoce comportamentais inexoraveimente tad pelo lento desenvolvimento, natural da eapécle, #0 sobrepde ce substitu progressivamente uma forma witracrépida. d= rmazenagem externa sob a forma de um patsiménio social ae objecton odo relagdes que representam wm capital pstquica desprovido das formas e limites da individualidade patquca. Sho" contrario da animatidade, aquilo que a. humbanidade tecumula no est. dirctamente’ na ordem dos comportamen- tos, mag consiste em realidades socials, nas quais © psguismo se encontra aparentemente extinto, formalmente negado, de tots us cad indo the deve restitireata foxna Ps roprlando-se delas, assimliando-as para se poder dlovar ao nivel comportamentalatingdo. pela. umanldado, a partir da auimatidade nativa, Bata negagto a negate & tomo diafetiea nos. permite compreender, mares do snore. progresso qualitative. que representa a, homninacao Gh animal, Assim como a essénela da mereadorin, iioialk mente tmplicta e como que estreitada pela. troea directa, tia ver objectivada no dinhlro se Uberta das formay con: oretay das mereadbrias por esa razdo, se toma. nim factor revoluctontrlo de desenvolvimento universal da. pro- Guoo mercanti, também a actividade psigulcs, iaplicita © estreitada no comportamento animal, uma vez objectivada fo utonsitio e mais geraimente no Patrimonio socal hamane, Mhertacgo des eoteltas formas da individualidade natural © torna possivel um desenvolvimento ilmitado do psqulamo © Ga perwonalidade, Com feito, enqvanto qualquer animal € tnais ou menos, © por definigdo, capaz de fazer tudo 0 qe treapécie a gue pertence faz, na medida em que a especie pens go tngereve no individu, @ humanidade, em fang de sua historia comulativa, ultrapassa cada ver tals forte. mente o que © Individue dela pode assimilar nos liter da Sua existincia, do modo que os homens ce colocsm face @ Intinttas possiilaades ce diversifieao, e & por isso que & individuadade biotigiow ve sobrepte, no homer, uma ¥erds- deira personalidade psicolégica, Estas breves consideragoes, 237 LUCIEN S8VE © OUTROS que seria vantajoso completar ¢ estudar em pormenor, per- mitem por si s6 compreender que, sejam quais forem as investigagoes e debates acerea do papel das condigées biolé- gicas e das relagdes sociais num ou noutro processo psiquico, se pode afirmar com toda a certeza que o recurso & ¢heredi- tariedade psicolégica», como elemento centra! da explicagsio dos factos humanos, demonstra uma decisiva incompreensio do proprio fundo da questio, pois que o verdadeiro segredo a passagem da humanidade para uma érbita diferente da do mundo animal reside precisamente no facto de que 0 pro- cess de reproducdo simples, porque imediata, da individua- lidade blolégica como tal, fol substitufdo pela reproducéo ‘mediatizada pelo patriménio social da personalidade psico- logica (reproducio desde logo indefinidamente sujeita a ex- pansio) sob reserva de condigées hist6rleas apropriadas, Quando imaginamos a quantidade de aparéncias hé mutto covidentes> que foi necessario dissipar, de materials cientiti- cos que foi necessirio tratar, de dificuldades teérieas que fol necessirio ultrapassar para chegarmos a esta concepedo geral, nfio podemos deixar de ficar profundamente impres- sionados pelo. poder de antecipactio da andilise filoséfica, pelo menos quando se trata de uma filosofia radicalmente nfo especulativa; pois, enquanto hoje cientistas qualifieados pa- recem ndo ter uma consciéneia suflelentemente clara da reso- Iugko do problema, h& cerea de mals de um séeulo —por- tanto antes de todos os contributos da antropologia moderna, antes do proprio Darwin— e pela tintca via da critica filo- séfica —aquela que ao mesmo tempo fundava a ciéneia da historia — Marx e Engels tinham-na encontrado sob a forma tedrica mais _geral. O materialismo histérieo por eles fun- dado nos anos que precederam as revolugSes de 1848 6 a verdadeira solucio do grande problema da antropologia filoséfica (0 que & 0 homem?), ao mesmo tempo que & —postura erecta, cérebro desenvolvido, polegar oponivel, aptidio para o fabrico de utensflios, linguagem © pensamento abstractos, ete,— mas, em qualquer enzo, & sempre cla que fundamenta a compreensio do conceito de homem, e define, por consequéncia, o que na linguagem filo- s6flea se chama, classleamente, a esséncia do homem. Mas a presenca destas —eomo o materia- lismo pré-marxista, mesmo o que ainda hoje se exprime, através do estruturallsmo por exemplo— 6 Impossivel com- preendermos os factos mais importantes que caracterlzam a humanidade, e em primeiro lugar o seguinte: que a huma- ‘nidade se produza a si prépria ao longo da sua histéria, ® por Isso que o apareeimento da hist6ria no cerne da reflexao antropolégica, nomeadamente a partir da Revolucdo Fran- cesa, coincidiu com a profunda crise do essenclalismo, um por em causa da nog&o de essénela humana, Mas na medida ‘em que esta contestaciio se circunsereve & negacfo formal da resposta essenelalista, sem chegar critica radical da abs- tracoXo dos proprios termos com que o problema ¢ falsificado desde a origem, néo pode permitir uma visio clara. Assim, © existenclallemo postula que . Enunclado bem intencionado mas grosseiramente contradi- 239 | LUCIEN S&VE © OUTROS t6rlo; porque, ao aceltar raciocinar, assim, sobre est condenado, desde logo, a colocar o problema em termos de esséncia abstracta, de natureza, Se xo homem> no possut esséncla, ou ausénela de esséncia inerente a naturesa humana, quer seja ainda pensada em termos idealistas [por exemplo na teologia da_«solidio> (+) humana] ou de intengao materialista (por exemplo nas correntes de pensamento psicolégico para as quais @ auséncla da hereditariedade psicolégica no homem significa que, logo @ partida, o individuo permanece numa total inde- terminagdo de desenvolvimento, como se Ihe fosse possivel escolher as condlcdes socio-histéricas da sua hominizacéo)! © existencialismo, como o essencialismo cldssico, permanece Preso a uma teorla da natureza humana» contra a qual se vém acumulando objecedes dectsivas. Apenas o marxismo —afirmamo-lo néo por apologética mas por ser um facto— permite ultrapassar verdadetramente esta difieuldade central da antropologia tedrica, ¢ 6 por isso due a ignordncia ou o insuficiente conhecimento do marxismo, em Freud como em todos og especialistas das eléncias huma. nas, tem efeitos desastrosos, Mas para compreender perfel- tamente a solug%o que 9 marxismo dé a0 problema, é indis- Pensfvel tomar consciéncla das armadilhas da abstracgao especulativa que o pensamento teérico efectua, com a mesma «naturalidade> com que o senhor Jourdain fazia prosa, a menos que se esteja prevenido pelo estudo da dialdction materialista, Do mesmo modo, fol apenas depols de ter reve. Jado inteiramente do homem) aos préprios objectos que sfio o ponto de partida da abstraegéo (neste caso, os individuos considerados scpa- radamente). Por outras palavras, admitiu-se, mesmo antes de qualquer reflexiio explicita sobre o problema da cnatu reza humana», que estas propriedades (aquilo a que a filo sofia classicamente chama esséncia) residiriam em individuos teolados, ser-Ihes-lam Inerentes, exprimiriam a sua natures #, nfo s6 porque enunciados «filos6ficos> tais como , mas também porque assergdes aparente- ‘mente clentificas como comportam, na sua forma légica () se Identifica essencialmente com os individuos hnumanos consi- derados nos seus tragos gerais, e que 6, portanto, sob @ Jorma de individuatidade —quer dizer no dominio psico- Yegico— que 6 necessirio colocar © procurar resolver todos os problemas fundamentals da ciénela do homem, Onde esta o erro? Na utilizagio da abstraccio que des- comhece a contribui¢io decisiva da dialéctica materialista ara a teorla e pritica do conhecimento—utillzagio que as Taeologine burguesae do individuo abstracto (o individu da 241 LUCIEN SRVE E OUTROS concorréncia capitalista) tém contribuido para reforcar, quando se trata de reflectir acerea do homem. H que nos ensina esta dialéctica? Que a generalidade abstracta néo tem valor, que a esséncla nfo existe? De modo nenhum, Tal atitude positivista, de tomar apenas em consideracio os «factos» e de rejelco aparentemente radical da infalivelmente, de uma ou doutra forma, © naturalismo antropolégico da {deologia burguesa. Nao: 0 movimento que eleva os objectos partioulares a uma genera- lidade abstracta do conceito nfo 6 apenas uma operacio subjectiva do pensamento, 6 também, ¢ em primelro lugar, um movimento real. A esséneia entendida como objecto gerat pode perfeitamente existir, nfo s6 nos objectos particulares mas, desde que esteja suficientemente desenvolvida, como objecto particular ao lado de outros objectos partieulares (por exemplo, 0 dinheiro enquanto mereadoria particular, a0 lado de outras mereadorias partieulares); ¢ € precisamente por isto que o conhecimento deve ser entendido niio de uma manelra idealista, como «produefio», mas de uma forma mate- rialista, como «reflextio» do ser no pensamento, o que nfio signifiea que o movimento do pensamento seja, simplesmente, idéntico ao do ser. Mas a esséncia, enquanto objecto geral, longe de ser a explieaco titima imutavel das coisas (ilusio especulativa) nfo passa de um produto histérico, 0 produto das relagdes (mo caso do dinheiro: as relagdes mereantis) que constituem uma essénela (dialéetica) muito mais fun- damental: nio mais abstracta, mas conereta; néo mais «natu- ral», mas histériea; no mais conceblda como inerente a um objecto tomado & parte, mas resultando de profundas con- dices no selo das quals se produz, A utilizacéo vulgar ¢ especulativa da abstracgao que, interpretando de forma falsa @ generalldade do objecto ou o objecto geral, pretende ai encontrar 0 segredo final da coisa ea sua natureza, opde-se 242 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA a relatividade histériea do materialismo dialéctico, s sua inessenclalidade, que orienta o pensamento no sentido do estudo concreto de relag6es muito mais profundas, no seio das quals se produzem tanto 0 geral como o particular. Simul- taneamente a teoria desemboca realmente na pratica, pois ‘© conhecimento das condigées de produeao de uma dada rea- lidade indica 0 meio de nela intervir e de as transformar. Fol 0 que Marx mostrou em relac&o ao homem nas Teses sobre Feuerbach, Wntendida como uma. abstracciio inerente a0 individuo isolado, como uma universalidade interna que liga de uma maneira puramente natural os indlviduos miitiplos, a esséncia humana 6 um ponto de vista do espirito especula- tivo, Isto nfo significa que nfo tenha uma base, A sua base 0 individu abstracto produzido por relacOes sociais deter- minadas, as relagdes mercantis, cujo desenvolvimento atinge ‘© seu ponto maximo no capitalismo: redugdo do homem con- ereto a propriedade abstracta, A forca de trabalho abstracta, Esta abstracta néio é uma simples ilustio, mas também nfo é a natureza absoluta e imutdvel do . ‘Tal como os individuos concretos a que corres- ponde, ela é 0 produto de relagées sociais determinadas que constituem a sua base reat, isto 6, a sua esséncla no sentido fundamental, no sentido materialista dlaléctico do termo. (VI Tese sobre Feuerbach). ‘Tal 6 a soluefio de conjunto do problema antropolégico central ¢o que € 0 homem?> Esta soluc%io basela-se numa eritiea radical do proprio colocar da questio, na rejeicio de qualquer resposta do tipo: , Hla remete-nos para a cléncia da histéria, pois os individuos humanos nfo ‘tém como esstneia real senéo o conjunto das condigses his- t6rleas em desenvolvimento, a partir das quais se hominizam e que, por nfo ser em nenhum grau uma natureza, ndo deixa de apresentar um cardcter determinante a seu respelto, Hla antecipa-se, em termos gerais, aos ensinamentos contempo- raneos das ciéncias humanas, e particularmente no que diz 243, — LUCIEN S8VE E OUTROS respeito ao proceso capital e especificamente humano da excentragao social da esséncia, da acumulacao répida e intrin- secamente ilimitada de um psiquismo objectivado em patri- ‘ménlo social. Mais de um século apés a sua primeira formu- lagho, continua sendo o farol susceptivel de alumiar o pro- gresso do conjunto das ciéncias do homem. CI@NCIA DA BASE, BASE DA CIBNCIA ‘Vemos portanto qual a resposta a dar & primeira questo posta anteriormente a propésito da estrutura do campo des- tas cléncias, Afirmamos que o materialismo hist6rico forneceu a teoria clentifica desta estrutura porque finalmente permitiu pensar de modo coerente, ¢ de acordo com o conjunto dos factos conhecldos, as relagdes entre as duas espécles de factos humanos: os factos socials e os factos individuais— logo, entre as respectivas ciéncias, As ciéncias das relacdes socials ceupam o centro do campo, niio como consequéncia de um improvavel «jufzo de valor> sobre a «importanela relativa> da «sociedade» e do , mas porque, sendo as cién- elas da base dos factos humanos, siio necessarlamente as cféncias humanas de base. Isto tem valldade, especialmente, no gue se refere A economia politica no sentido que The foi dado por Marx, quer dizer, enquanto ciéncia das relacdes socials determinantes em uitima instdncia: as relagdes de produgio de troca. 1 conveniente determo-nos um pouco neste ponto crucial pois aqui deparamos desde logo com a separacao entre 0 marxismo e os pseudomarxismos, que so cada vez mais, sabemo-lo, a forma dominante de recusa — manifesta ou disfarcada— do marxismo, Como reconhecer um pro- cesso fraudulentamente no dominio das clénclas do homem? Pela tentativa de atribulr a outras realidades que nfo econémicas o papel de base na explicagio geral 244 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA ~ dos factos humanos. E, como as teses do materialismo his- torico sobre o papel determinante das relagdes de produgdo material sio actualmente bastante conhecidas, ou melhor, reconhecidas, a fraude adopta cada vez mals a forma de uma transferéncia do vocabulério econémico marxista para objectos inteiramente diferentes, de modo a justifiear a sua funcdo «infra-estruturals, Nas mais varlades formas de actividade humana e nas mais estranhas A producfo dos dens materiais, pretende-se por em evidéncia no 86 . Sem diivida que muitos imaginam de boa f6 que este «deslocamentos do vocabulério deve permitir «produzir> uma teoria mar- xista destes novos objectos, como se fosse suficiente falar de «produgio de um discurso tedrico» ou de «trabalho do desejo> para estarmos a seguir uma via marxista, De facto mesino podendo traduzir um movimento ainda mais verbal que real, mas subjectivamente sincera da aprorimagto do ‘marvismo, 0 resultado efectivo destas manipulagdes 6, no Guvidemos, de sentido inverso; tendem a abolir as distincbes capitals, sobre a revoluciondria descoberta, nas quais se baseia 9 marxismo: entre ideologia e producho material, individualidade psiquica e relagdes sociais, superstruturas ¢ infra-estruturas, Nao podendo j4 ignorar a infra-estrutura, ‘a recusa actual do marxismo descobre-a por toda a parte, nag estruturas do desejo como nas da linguagem, nas do Parentesco como nas do cérebro, Talvez que, vendo bem, as estruturas econémicas fossem, pelo contrétio, multo mais superstruturais do que Marx supusers... Estamos simples- mente perante uma forma contemporinca da velha recusa burguesa do matertalismo histérico, recusa de que o ultra- marxismo agressivo de certos discursos teérieos procura dis- simular o imutavel teor idealista, no entanto muito insafi- clente para desviar 0 reconhecimento da classe dominante: porque ignorar o papel doterminante das relazées da produ- So material na inflaco das , a maldita sede do ouro, e julga poder esclarecé-la através da andlise da ambivaléneia do esagrado>, enquanto expresso da evontade perpetuada do Pai primitives (*), ou seja, por uma generalidade psicolégica. ‘Mas, mesmo sem discutir aqui a pertinéncla desta genera dade, como seré possivel nio ver que em nada se explicon paixdo infernal de enriquecer, por parte do avarento, en- quanto néo se considerarem as suas condigdes coneretas de aparigko © manifestacdo histéricas, sob pena de a fazer apa- vecer sob uma forma mistifieadora como sendo um «traco dq natureza humana», uma pulsio primitiva e eterna do ©) Motse et te Monotheisme, p. 163. 246 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA nosso psiquismo? Multo mais fundamental parece a andllse econémica que Marx deu desta cauri sacra fames>: «Antes de ser transformado em valor de troca, eada forma de riqueza natural implica uma relago essen- cial entre 0 individuo e 0 objecto; 0 Individuo objec- tiva-se na coisa, e a posse desta representa por sua vez um certo desenvolvimento da sua individualidade se tem muito cereal torna-se agricultor, ete, 0 dinheiro, pelo contrario, torna-se sujeito da riqueza geral por meio da cireulacio; enquanto resultado social, repre- senta apenas aquilo que 6 geral, nfio implicando por- tanto absolutamente nenhuma relae‘lo individual com 0 seu proprietério; a sua posse nfo desenvolve nenhuma qualidade essencial da sua individualidade, porque esta posse diz respeito a um objecto desprovido de qualquer Individualidade; com efeito, esta relagfo social existe enquanto objecto tangivel e exterior que maquinal- mente se pode adquirir e também porder. A sua rela- so com 0 individuo 6 portanto puramente fortulta. Numa palavra, esta relac#o nfo ge encontra ligada @ pessoa mas a uma coisa inerte, e esta investe 0 individuo no dominio geral da soctedade e do mundo dos prazeres, dos trabalhos, etc. ® como se a dei coberta de uma pedra me proporcionasse, independen- temente da minha pessoa, o controle de todas as cigncias, A posse coloca-me em relagio com a riqueza, (social) tal como a pedra filosofal com todos os conhe- cimentos. © dinhelro nfo 6 portanto um objecto do desejo de enriquecimento, 6 0 seu proprio objecto. % essencialmente o “auri sacra fames", A paixéo das riquezas 6 algo diferente da sede instintiva de riquezas particulares, como o vestuirio, as armas, ag jéias, as mutheres, 0 vinho; nfo € possivel senio quando a ri- queza geral, como tal, se individualiza num objecto particular, numa palavra, se 0 dinhelro existe sob a sua terceira forma, O dinhelro nfo 6, portanto, ape- 247 I I LUCIEN SVE E OUTROS nas o objecto, mas também a origem da sede de enti- quecimento. O gosto da posse pode existir sem dinheiro; @ sede de enriquecer é 0 produto de um determinado desenvolvimento social, nfo 6 natural mas & histé- rica.» (*) Bm seguida, Marx mostra que, se os antigos a conside- ravam maldita, era porque cla dissolvia inexoravelmente as antigas comunidades, Ser necessério mostrar pormenorizadamente a extraor- dindria dimensio antropotégica em geral —e psicolégica em particular — de uma andlise econémica como esta? Indepen- dentemente do problema especifico que resolve—o segredo do carécter inextinguivel do cauri sacra fames» reside na forma abstracta que a riqueza social adquire com o dinhelro, portanto na forma igualmente abstracta e consequentemente ilimitada que confere a apropriagiio individual—como nfo @ reconhecer como exemplar de um tipo de andlise social- ‘mente descentrada do conjunto dos actos humanos, mostrando de que forma o aspecto psiquico individual de um acto se informa na matriz das relagdes socio-histéricas que 0 tornam Possivel, permitindo, enfim, compreendé-lo na especifidade de acto humano ¢ nfo mais como variante «complexa» do comportamento animal? Ao meditar sobre tal andlise e gene- ralizando as ligdes dela tiradas, pode conceber-se que 03 actos humanos sfio por um lado efeltos da estrutura —e da /dialéctica — social, e a0 mesmo tempo desligamo-nos da. 1deo- logia antropolgica quase universalmente dominante que, desconhecendo esta excentrag&o, 6 incoerclvelmente levada a faz6-los derivar de enecessidades>, «pulsbes», «desejos» miti- camente interiorizados e postulados como «primordlais> (7) Fondements de ta Critique de Economie Politique, ea. Anthropos, tT, pp. 162 © 163. CE. uma anélise muito semelhante na Contribution a ta Critique de Economic Politique, trad. portug. na Estampa, Ed, So. ciales, p. 97. 248 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA — e que Ievam a naturalizagdo e eternizago de formas sociais historicamente transit6rias do psiquismo humano. Uma tal anélise ndo passa de um exemplo limitado das indicacées gue podemos encontrar na obra econ6mica de Marx; pense- mos na amplitude do campo aclarado por outras anélises como a do fetichismo da mereadoria ou a da reducéo do tempo de trabalho humano concreto a um tempo social abs- tracto na sociedade dominada pela produgéo mercantil, B sobre esta via que poderemos edifiear uma teoria verda- deiramente cientifica das motivagdes e das estruturas da personalidade humana, de que o conjunto das cléucias huma- nas tem hoje uma necessidade gritante ("), H 6, por exemplo, desta forma que em nosso entender dove ser abordado o problema da religiéo, partindo do psi- quico para as suas condigdes de possibilidade soclo-histéricas — freudiano —fecunda na medida em que acentua que as relagées familiares nfo sio um absolute mas derivam de relagées sociais mals fundamentais— corre o risco de ser uma caricatura da critica marxista, caso pretenda, custe o que custar, relacionar a estruturacio originiria do desejo com a luta de classes para além do tridngulo edipiano: poli- tizagio artificial do inconsciente freudiane que no é mais do que o inverso de uma psicologizagdo anterior do materia- lismo histérico e da revoluc&o social, Do mesmo modo, a ten- déncia muito profunda que a psicandiise tem em raciocinar em termos de «natureza humana» independente das formacées socio-histérieas, embora seja inadmissivel em principio, ¢ grosselramente mistificadora na aplicacto que dela se faz & personalidade e a histéria, nfio se encontra tao longe da verdade, e do marxismo, como seriamos tentados a julgar, na medida em que apenas se circunscreve ao seu proprio ohjecto: as primeiras formas de estruturacao do psiquismo induzidas por relagées soclais especificas. Pols nada seria mais estranho a0 materialismo hist6rico, e @ dialéetica, do que uma con- cepsio mecanicamente uniforme do desenvolvimento das rela~ Ses sociais, Uma concepedo coneretamente dialéetica conduz, pelo contrario, ao reconhecimento da diversidade dos tempos segundo os quais evoluem os diferentes elementos de uma formaciio social; e se o tempo das relagdes soclais mais fun- damentais impde os seus efeitos a todas as outras, isto no os impede de possuir 0 seu préprio ritmo, Assim, 0 tempo se- gundo o qual evoluem as relacdes familiares néo 6, em nada, 254 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA © © mesmo das relagées de producdo, das relacbes de classe, Mais: na medida em que se considerem relagdes muito gerais (portanto inessenciais para compreender uma formacio social especifica, mas que com efelto desempenham o papel de condicées gerais de possibilidade das outras relagoes socials © isto em diferentes formagdes socials — por exemplo, por se encontrarem ligadas a condigdes geograticas ou biol6gicas cuja evolugio prépria 6 imperceptivel a escala da historia Social—e que por esta mesma razio se encontram entre as primeiras relagdes nas quais entra a biografia individual) clas podem aparecer numa primeira apromlmagéo como imu- taveis e fazer crer na ideia —falsa— que ai teriamos um elemento da natureza humana, A erftiea firme deste desvio ideolégico nfo seria suficiente para menosprezar a importan- cia, para a ciéneia do psiquismo individual, deste facto de permanéncia de certo modo infra-histérica, para além do qual seria impossivel, por exemplo, abordar de uma forma valida 8 problemas da sexualidade, Ainda aqui nfo hé pior inimigo do marxismo do que a aplicagao indiseriminada, a qualquer objecto, de conceltos ¢ de leis apropriadas a ina realidade determinada. Mas nestas condigdes comproende-se como, em sentido inverso, ¢ @ falta de uma extrema vigilincia tedrica aprendida na escola do materialismo histérico, a psleandlise se arrisea a uma generalizagao ainda mais ruinosa: a que consiste em tira conclusdes da relativa permanéncia de estruturages infantis multo gerais a Invarianeia do psiquismo humano, da socledade humana na sua esséncia, Fol nesta ratocira que caiu a antropologia estrutural de Lévi-Strauss, para quem, tanto 0 marxismo como a psicaniilise reproduziriam um processo de tipo geolégico aplicado aos factos humanos, quer dizer que compreenderiam 9 tempo como simples desenrolar de propriedades invariéveis do universo(*). A ciéncla da hist6rla, fundada pelo marxismo, refutou antecipadamente (Ch. Lévi-Strauss, Tristes Tropiques, 1018, 1955, pp. 43 ¢ segs. 255 LUCIEN SEVE E OUTROS este estruturalismo, ao estabelecer que os pretensos «dados invarldveisr — por exemplo geogrificos— do processo hist6- ri¢o so cada vez mais transformados por ele em resuitados varidveis; ou entio so reduzidos ao papel de simples pontos de partida, de condigbes de possibilidade elementares, incapa- zes por si 96 de Ihe determinar a esséncia. Para evitar este deslize quase universal da psicanélise para a {deologia nos remete: a sociedade e 0 indi- Viduo, a hist6rla e a blogratia, O reparo feito pela psicandlise a0 marxismo consiste em acusé-lo de nfio explicar a primeira Pelo segundo, de nfo fazer assentar a ciénela social na Psicologia. Na realidade, o marxismo reeusa faz6-lo cons- 258 ORITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA clentemente ¢ tem a seu favor a melhor das razdes: 6 © pro- cesso histérico que fez, psiquicamente, do homem aquilo que ele hoje 6; nfio o inverso. Por exemplo, nfio forara cos homens» enquanto «seres de desejo> que fizeram a revolugao socialista, mas as massas, quer dizer, grupos de homens enquanto determinados pela sua posigfio de classe no todo social, Isto nfo quer dizer que 0 desejo se nfio manifeste neles de algum modo, O que quer dizer & que af nfo esté nem pode estar a origem da revolug&o, que de uma manelra geral nfio tem a sua origem em nenhuma realidade psicol6- gica, 0 que nfo a Impede de se tornar ocasionalmente num elemento fundamental do dinamismo da personalidade, A sua origem ndo esta no individuo mas fora dele, no mundo social com as contradic&es que Ihe siio inerentes. Como escre- via Marx em A Ideologia Alema, e at temos algo de dife- rente de uma (*), O desejo 6, por posiedo, incapaz de explicar esta necessidade; é incapax de revelar na sa esséncia a vida militante, facto blografico de dimensto universal que assenta na tomada de consciéncia, por parte do individuo, da excentragio social da esséncia humana, sobre a excentraglo consciente da actividade, Dito isto, uma vida militante € a vida de um individuo conereto que, entre outras coisas, est relacionado com a erianga que fol, Por esta, como por outras razdes, pode estabelecer-se uma psicologia e, eventualmente, uma patologia da vida mill- tante, que poder esclarecer um ou outro aspecto especifico de que 6 portadora num individuo ou num grupo. Mas tal anflise nfo revelard, da prépria vida militante, mais do que a «perpetuagio da vontade do pal primitives, nfio revelar4 © «auri sacra fames>, efelto caracteristico das relacbes di dinheiro (*), Marx nada . Ora a hist6rla é a ciéncia- -piloto de todas as ciénclas humanas, visto que o segredo da hominizagio 6 a progressiva transformagdo do natural em hist6rico. # por isso que qualquer disciplina psicolégica que, 1a pretexto de se ocupar electivamente do Individuo, do origi- nério na vida individual, pretendesse por sé propria ignorar tudo 0 que resulta do materialismo historico estaria condenada a nfio poder considerar-se como verdadelra cléncia, * Vemos assim que a atitude politzeriana a respelto da psicandlise, que recordimos de inicio, requer hoje precises fe correegdes no proprio ponto de vista das relacdes externas entre psicandlise e materialismo histérico. Afirmar que «nio 6 possivel dissociar a psicandilise da utilizagao politica que dela se faz» e a partir daqui recusar a propria posigdo do objecto psicanalitico, nfo seré 0 mesmo que tender a repro- duziz, invertendo-o, 0 percurso infundado da psicanfilise que, ao extrapelar acriticamente do infantil ao adulto e do indi- vidual ao histérico, se recusa em dissociar dominios qualita- tivamente distintos e a tomar em consideracdo as suas rela~ Bes reais? Deixando aqui de lado o problema (interno) de ‘nio fosse por acasor que Marx ativesse de se indispor com a mie para SD a as ae ene gs Se ee ee aoe cel Ge Ibe, no. preciso ano do nascimento de sua filha Jenny? Noo 6 a Se rao oer es 260 ORITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA saber se a psicanalise no seu estado actual 6 uma ciéncia com objecto bem definide, reconhecer-se-4 em todo 0 caso que ‘© campo que ela assinala (0 originario no psiquismo) e, neste campo, o objecto que revela (a estruturagio inconsciente do desejo), longe de estarem imbricados na ideologia reaccio- naria, constituem realldades universais (que existem e con- tinuario a existir, sob formas espeeificas em determinados aspectos, na sociedade socialista, na socledade comunista). Melhor: concebe-se facilmente que a ciéacla deste objecto tenha uma palavra a dizer sobre as questées antropolégicas, dado que estas tém, de uma maneira ou de outra, uma dimen- slo psicolégica, individual, Togo possuem a marca da poste- rloridade infantil, Nao existe uma «teoria psieanalitica> da religido, da arte ou da luta de classes, mas em princ{plo nada proibe uma fecunda contribuigao da psicandlise para a compreensdo desta ou daquela forma da pratica religiosa, da elaboracéo artistica, da vida militante, Assim ndo s6 cléncia © ideologia se podem dissociar na determinag&o do objecto & limites da psicanélise, como esta dissociacao aparece a0 mesmo tempo como uma consequéncia natural e como uma tarefa oportuna do materialismo histérieo, Modificada deste modo, a posicio politzeriana sobre a psicanélise parece-nos inatacdvel quanto ao essencial, © erro fundamental de Freud, © da maior parte dos psicanalistas que se The segulram, quanto A concepetio geral dos factos humanos que pressupéem, consiste, como Politzer admiravelmente mostrou hé mais de 40 anos, em pensar que se pode seo descentrada da histéria, 0 segundo por umasy ° @ Le, , centrada do psiquismo, Na realidade existen ¢ 261 LUCIEN S8VE E OUTROS e8es do que homotogias nas duas obras, # certo que se encon- ta, na l6gica de certos aspectos da obra freudiana —os que aparecem actualmente a conferir-the 0 seu profundo valor — uma coneepedo descentrada da estruturagéo pstquica infantil; © € precisamente por isso que entre © materialismo histérico © uma psicandlise repensada A luz desta nocdo de excentra- 40, nomeadamente sob a influéneia do marxismo, s¢ pode estabelecer uma articulagéo tedrica real, Mas na propria obra de Freud, como na de outros que o segulram, esta I6gica € demasiado sobrecarregada com o seu contrario para nao lear embrionaria. A atencio ao organleo, ao corporal, tiio ustificada quando se trata da erlanga, 6 multas vezes mo- tivo de um desvio para o biologismo da hereditariedade sicol6gica © do instinto, © que limita antecipadamente a Atencio exigida pelo estudo das relagBes onde se vem estru- turar 0 psiquismo. Por outro lado, as relagBes que contam nag fases Iniciais da blografia individual tomam sobretudo forma imediata de relagdes com 0 préeimo: a passa- gem, to positiva em si, do eu da psleologia eldssica ao id do §meonselente vai desembocar em larga medida numa con- eepedo relacional do psiquico, que mascara mais ou menos completamente as relagdes socials objectivas, base real da sia exeentraco, Para além de toda a crenca tenaz em que a forma do psiqulsmo individual 6 a matriz dos factos huma- nos, crenca de que pensamos ter mostrado aqul a falsidade radical, admite desastrosamente andlises que fazem melhor Justica das tlusdes do sujelto numa coneepeao de conjunto que permanece centrada num sujeito psicolégien (demonstra-o dem a teoria frewdiana da religiéo) © que assume uma diree- lo oposta A de uma compreensto verdadeiramente descen- trada dos factos humanos. Uma parte essencial da pstcandlise, tal como hoje existe vai realmente no sentido contrério ao da leo marxista, ¢ or Isso,o paralelismo Marx-Freud, com que nos enchem os ouviggyct fSice"S Parece bem mals confusionista do que escla- © 134, no previssionista no que respelta & dimensio efectiva lis aleetiva dle Mad —o que ¢ deplorével— mas também a ORITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA respeito do proprio significado do materialismo histérico— © que o é ainda mais, Pols se Freud tivesse aplicado, verda- deiramente, a realidade psiquica individual 0 proceso pelo qual Marx fundou a cléncia da histéria, isso significaria que, para além de todas as ilusdes do sujeito, a psicandlise nos revelaria a infra-estrutura reat da personalidade, Admiti-lo, serla admitir uma discordAncia fundamental entre infra-estru- jtura da personalidade e infra-estrutura da sociedade —o desejo nfio € em nada o homélogo psiquico das relates de produgiio— seria votar incoerénela o campo conjunto das ciéneias humanas, e, mesmo, a prépria histéria, Com efeito nfio basta dizer (0 que até 6 verdade) que a histéria tem a ‘sua explicagfio final, no no psiquismo dos Individuos, mes na dialéctica das suas relagdes constitutivas; para se tornar em uta de classes, motor da histéria, esta dialéctica nfo deve deixar de passar pelos individuos concretos, Se estes indivi- duos coneretos fossem, em iiltima instancia, os eseres de desejo> da psicandilise, ndo seria muito dificil verificar que © fenémeno humano capital da luta de classes permaneceria, na wnidade dos seus aspectos opostos (social ¢ individual), positivamente impensavel. H no entanto 6-0, 1 que, ao atribulr a psicanélise uma dimensio infra-estrutural que ela nfio pode ter —o infantil nfo 6 a base efectiva da individualidade Psiguiea—, saltou-se um elo decisivo na cadela, masearou-se antecipadamente 2 posicflo daquela anunelada por Politzer, a qual nfo poderia ser ocupada pela psicanslise; a posicio de uma teorla da personalidade desen- volvida, directamente associnda A ciéncla da histéria, que o materialismo hist6rico revela com evidéncia e sobre a qual Marx nos delxou, de A Ideologia Alema a O Capital, elementos to preciosos como as suas andlises dos efeitos das relacées de dinheiro, Assim somente og chomens> que fazem a historia —conforme expresstio tio frequente em Marx e Engels— |podem coincidir em profundidade com aqueles que », propria hist6ria produz, A falta de uma tal psicologia de °° =~ dade, 0 materialismo histérico, reduzido a ur ° Le desumanizada da histérin 6 irresistivelmente ¢ 263 LUCIEN S8VE B OUTROS uma interpretagilo estruturalista que o altera profundamente, ‘a0 passo que 0 campo do individual é, no fim de contas, dei- xado & psicandlise, Assim reobscurece-se uma grande parte daquilo que o marxismo tinha clarificado no sentido da com- preensio dos factos humanos, Para poder defender, contra tudo e contra todos, que a afirmagio da dimensio infra-estrutural da psicandlise néo contradiria o materialismo historic, ndo resta outra saida que nfo seja 0 caminho propriamente revisionista que con- siste em , como corolario, isto 6, como critérlo da auténtica revolucto soclalista ("), Esta confusio (Cf. por exemplo os argumentos de W. Reich no clissico Materia limo Dialéctico « Psicandlise (Ed. Presenga, Biblioteca de C. TI). Reich pensava ter assim estabelecido © cardcter’wobjectivamentes, «eminente- mente revoluciondrior da psicanilise. Afirmagio tio falsa como a sua contriria, © pela mesma razio: a confusio’ de planes profundamente Aiferenciados. 'B certo que a revolugio socialista deve ter efeitos dircetos sobre a vida sexual (pela transformacio das relagGes sociais, jurfdicas, familiares, etc) e indirectos (pela modificagho profunda da propria es: trutura das personalidades e das trocas entre elas) no sentido emancipador ye Mes seral, Mas falar de revoluedo sexual, ou melhor, conferinThe Lslvec f08°ymélogo. ao da revoligio social & confundir os nivels a w= 184, 0 pre rm, “Assim & compreensivel que Reich tenha acabado Vids afectiva des i 3 a 264 CRITICA MARXISTA DA TEORIA PSICANALITICA sistematica ndo deixa, como faciimente se compreende de ter um significads ideolégico bem preciso: contestar vigoro- samente 0 marxismo em nome do seu aprofundamento «radi eal, devendo & «raiz» do chomems situar-se no desejo © no prazer, Numa altura em que a crise da sociedade capitalista se torna tdo geral e profunda, em que a revolucéo socialista esti to amadurecida que arrasta no seu processo vastas camadas da burguesia que no conhecem a realidade da exploragdo capitalista como tal, mas sentem os seus efeitos mais ou menos derivados como frustracdes no seio da prépria existéncla burguesa, e que em principio ge orientam no sen- tido da revolugdo (nfo para edificar laboriosamente uma nova socledade mas apenas para rapidaments se subtrairem as frustracdes da antiga), numa conjuntura en sue a luta ideolégica se agudiza entre os dois campos a fim ce intervir na tomada de conscléncia destas novas forcas, 0 trromper da literatura freudo-revolucionarista vem, em dado momento, orlenté-lag para a sua curva descendente, desvid-las dos cami- nhos da revolugiio para a pretensa festividade shertaria que no € mals do que a expressfio da crise yera, das relages burguesas. Pols o primado do individuo sobre as relagdes Sociais, a elevacio do desejo ao alvel de intra-estrutura nao so apenas opgies inocentes do espirito tebrico, sio temos ideolégicos cujo significado politico, eujo significado de classe, € Irrefutdvel: restaurar, contrariamente a cléneia marxista da luta de classes, 0 velho ponto de vista do chomems, quer dizer, do individuo burgués, e reconduzir og esforges de Uber- tagio deste chomem> as dimensdes de uma «revolucdo» que aio revoluciona nada de essencial, Perante isto seria dema- siado facil para os psicanatistas esérios> afirmarem: esta lite- ratura no nos diz respeito. Com efeito no se pode evitar a pergunta: como & que a rleay aos avatares pseudo-revowciondrios de um ‘eandlise pode servir de * -> «teo. de ley. 265 LUCIEN SRVE © OUTROS anarco-nietzchiana que tio bem faz © jogo da sociedade burguesa? Nao deixando escamotear esta questtio ¢ repor- tando-nos & sua ralz: a psicologizagdo da esséneia humana, © marxismo, permanece fiel & sua profunda inspiragho critica e revolucionaria, +22 fos 1844, no. pree vida afectiva de. 26 ANEXO 8 de be,

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